Domingo. Sete da manhã. Eriberto encostou no balcão da padaria. Todos o chamam de o Pequeno, claro, por causa de sua estatura e por se dizer rei da Aquitânia, desde que devorou todos os volumes de Will Durant sobre A História da Civilização. Pois Eriberto perguntou à Graça, que naquele momento estava no balcão de pães.
“O pão novo já saiu?”
Antes que a funcionária respondesse, um homem atrás de mim na fila, disse:
“Saiu sim. Acabou de sair, passou por mim, apressado”.
Graça percebeu a boutade e emendou:
“Os pães estão saindo rápido hoje. Parecem malucos”.
Emendei:
“Ouvi dizer que não querem ser comidos”.
Eriberto, o Pequeno ficou irritado:
“Pães foram feitos para serem comidos, e ponto final. Portanto precisam se conformar com seu destino”.
A conversa foi se estendendo, cada um com sua opinião.
“Não existe essa de se conformar com o destino. Podemos nos rebelar contra ele.”
Renato, o contador, me pegou pelo braço:
“Explique a ele o Maktub. O assim estava escrito”.
“Nessa hora?”
“Depressa porque Eriberto está nervoso.”
“Mas de que adianta? Os pães estão saindo apressados, sabe-se lá para onde vão.”
Olhávamos e víamos os pães de braços dados com broinhas de milho, e logo seguidos pelos pães italianos de casca grossa, quase derrubando os tenros pães de leite ou as bisnaguinhas envernizadas. Micropães de queijo furavam os sacos de papel com sua quentura e se agarravam a pãezinhos pincelados de ovo e polvilhados com açúcar cristal.
Tinha virado bagunça na padaria, mas todos se divertiam.
Um sujeito entrou:
“Eram do senhor aqueles pães rolando pela calçada? Não! Então. Vou pegar! Quentinhos. Soubesse tinha segurado. Achei que eram encomenda de alguma família aqui da rua. Espertinhos, iam depressa. Talvez fugissem do senhor”. Apontou para um homem de terno impecável, preto, com uma margarida amarela na lapela, parecendo saído de uma peça de Pirandello
“Fugissem de mim?”, disse o senhor de terno. “Por que haveriam de fugir de mim? Nem tinha comprado ainda, queria comprar. Pães não fogem das pessoas.”
“Fogem, sim. Quando não querem ser comidos, somem.”
Uma professora que conheço, é também psicanalista, entrou no assunto:
“Eu estava chegando e dei com três pães entrando na vila Alcides Pertiga. Deitaram no beiral de um portão do professor Jorge”.
A Alcides Pertiga é uma vilazinha que tem no meio da quadra, corre que todas as casas são de uma dona só. Meti minha colher de pau na história:
“Deviam ser pães antigos, da época em que padeiro passava e deixava o pão na porta. Ninguém mais deixa pão na porta, roubam tudo”.
O senhor de terno, a princípio, ficou cabreiro, protestou, estavam a gozá-lo, ele tinha feito a pergunta certa. Por que implicavam? O protestou piorou, todos riam, menos o pessoal do outro lado do balcão. Não sabiam o que Zé, o dono da CPL, podia estar pensando. Zé estava do outro lado, correndo a servir as mesas de fora, funcionários tinham faltado, problema com o horário de verão, o dono tinha de colocar a mão na massa. O senhor de terno de repente se deu conta da situação. Pediu:
“O que está havendo aqui?”.
“Uma revolta. Todos sabiam que ia estourar um dia. Ninguém mais aguenta. Acho que começou pelos pães, vai continuar com o açúcar, com os cravos, com os lírios, com as grades de portão com as câmeras nas ruas. Quem ainda aguenta essas câmeras que fotografam tudo? Depois será a vez do feijão, da farinha, dos sapatos, dos mantôs de veludo, dos saltos altos, dos cotonetes que avisaram, vão furar todos os ouvidos. Sabia que estão todos se quebrando e quebrando os pés das mulheres.”
“Quem não aguenta o quê?”, indagou Eriberto, o Pequeno. Ele sempre foi assim, nunca entendeu nada. Tem muita gente como ele, de olhos fechados, ouvidos tapados, que nunca sabem o que se passa. E como está passando coisa! Passando demais. Como é que ninguém percebe, vê, enlouquece? Coisas terríveis, mas todo mundo calado, acho que roubaram a voz de todo mundo.
Então, o freguês que tinha visto o pão com a broinha de fubá explicou:
“Meu senhor, assim que o forno esquenta e começa a queimar, os pães caem fora do forno, saem correndo, senão acabam queimados.
Já ouvi muito pão gritando de dor, voando por cima de minha cabeça desesperado em busca de ar fresco. Às vezes, fica lá fora um grupo de pedintes e assim que os pães saem pela porta, pulam, agarram e correm”.