quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Re Piketty - Luis Fernando Verissimo

Saiu outro livro do Thomas Piketty, o economista francês cujo livro anterior, O Capital no Século XXI, causou enjoos na direita e euforia na esquerda porque destruía a tese de que era só deixar o capitalismo solto que com o tempo ele resolveria tudo, da desigualdade social ao bicho de pé. O título do novo livro é Capitalismo e Ideologia e ele consegue ser maior em número de páginas do que o anterior. Apesar do alvoroço que causou, O Capital no Século XXI não fez maiores estragos no pensamento econômico da época porque, segundo os cínicos, ninguém conseguia carregar, o que dirá ler, um volume daquele tamanho. Ler na cama, arriscando um aprofundamento do esterno, então, nem pensar.
Mesmo assim, O Capital no Século XXI vendeu mais de 2 milhões de exemplares e foi considerado o mais bem-sucedido livro sobre economia publicado no mundo depois da Teoria Geral do John Maynard Keynes. Com uma diferença: o livro de Keynes foi lançado no fim da Segunda Guerra Mundial, quando o mundo se organizava para evitar a repetição de tragédias como a guerra e o clima geral de otimismo permitia pensar na economia como uma entidade racionalizável, seguindo a teoria de Keynes. Já Piketty lança seus livros num mundo radicalizado pelo predomínio do capital financeiro e uma desigualdade social explosiva que parece irreversível, imune a qualquer tipo de racionalização. Outra diferença entre Keynes e Piketty é o estilo, não das teses, mas da sua apresentação. Keynes era um intelectual de gostos finos, Piketty recorre à cultura pop e a personagens da ficção popular (Jane Austen, Dickens, Balzac) para tornar a leitura dos seus tijolos mais agradável.
O novo Piketty foi publicado, por enquanto, só na França. Sairá em inglês em março. Sua mensagem é a mesma do outro livro: o capitalismo, do jeito que vai, caminha para um desastre. Como evitar o desastre? Taxar mais os mais ricos. Mudar as leis de sucessão que só favorecem fortunas herdadas. Etc. Piketty não é comunista. Se declara um social-democrata no modelo europeu, só disposto a levar o social e o democrático um pouco mais longe. Um bom exemplo.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Inveja benigna - Humberto Werneck

Recruta Zero - Mort Walker
Praticamente incapaz de dar às minhas coisas - materiais ou não - aquele mínimo de ordem, tenho inveja de quem o faz, e mais ainda de quem, num passo adiante, cria sistema próprio de organização. Como certa senhora de minhas relações, muito querida, que ao morrer de morte repentina não legou sofrimento adicional a seus familiares. Não se foi, aliás, sem antes tomar um banho e perfumar-se, só não tendo tido tempo de polvilhar os pés com talco, cuidado a seu ver indispensável, ainda mais em dia como aquele, de verão. 
Além de instruções precisas, incluindo gestos de carinho para distribuição póstuma, a boa criatura deixou na gaveta do criado-mudo uns envelopes com combustível monetário suficiente para as primeiras, segundas e até terceiras providências. Não se esqueceu sequer da fotografia e dos dizeres do santinho a ser distribuído na missa de sétimo dia. Não me espantaria se num daqueles envelopes jazesse a nota fiscal de compra de um caixão, guardado na intimidade do quartinho dos fundos, sob uma lona para não assustar ninguém, à espera de quem o haveria de habitar. Não há exagero em dizer que, tivesse o Criador lhe concedido uns minutinhos mais, teria ela própria, para não dar trabalho aos outros, se acondicionado no ataúde, depois de acender os quatro círios fúnebres, e então cruzado as mãos no peito. 
Não aspiro a tanto, quem sou eu. A mim me bastaria a manha básica de saber juntar coisa com coisa. A barafunda, por exemplo, das estantes do escritório (já nem falo das pilhas pelo chão), que ultimamente tem me levado a comprar livro em duplicata, para daí a pouco encontrar o que já dava por sumido, tudo isso, enfim, tem a ver, para começo de conversa, com a incapacidade de decidir como organizar essa montanha de papel impresso, se por gênero literário ou nacionalidade dos autores.
O panorama é tal que começo a considerar com simpatia aquela faxineira que alguns anos atrás, diante da evidência de que o patrão não dava conta de domar o caos, tomou a iniciativa de organizar os livros a partir do critério cromático. Quando voltei de viagem, ela, triunfante, sequiosa por um elogio, fez questão de me conduzir ao escritório e exibir estantes onde lombadas não se misturavam com outras que não fossem da mesma cor. O arranjo obedecia também ao critério estatura, para evitar que um volume de bolso passasse vergonha ao lado de um vizinho muito mais alentado, ainda que tivessem ambos em comum o fato de serem azuis. Não sei como não dei à moça, no ato, o famoso bilhete dessa mesma cor.
*
Até não me faltam impulsos heroicos do tipo “é hoje!”, em geral num desses fins de semana em que o mau tempo nos convence a não sair à rua. Decidido, esqueço por ora a livralhada e vou exumando caixas dos armários, todas delas identificadas com hidrográfica e a invariável indicação: “Papéis a organizar”. Umas três ou quatro, de bom tamanho, estão repletas desse anacronismo que se chama carta, e para nelas mergulhar me muno de máscaras compradas em farmácia. É hoje! 
Pena que o perigo não esteja apenas nas nuvens de pó acumulado. O verdadeiro problema reside não nos ácaros, mas em quem permitiu que se avolumasse praticamente tudo o que lhe foi trazendo o correio desde profundas entranhas do século 20. Antes me limitasse eu, nesses meus repentes organizatórios, a ler nomes de missivistas para mim hoje tão apagados quanto a esmaecida caligrafia no envelope, e em seguida conjugar o verbo sob medida para a circunstância: descartar. Quando dou por mim, já encerrei a arrumação sem tê-la iniciado, e o corpo buscou assento para a leitura da prosa epistolar bem mais do que cinquentenária da namoradinha dos meus 15 anos. Lá estou eu, adolescente, de volta ao Grande Hotel de Araxá, fervilhante de hormônios, sem saber se já se acham reunidas as condições para dar o bote na mão da carioquinha de franja ao lado no sofá. A mão, agora de um senhor para lá de maduro, volta a hesitar, antes de devolver à caixa as duas ou três cartas da Graziela, até que sobrevenha um novo surto de arrumação.
Quanto ao papelório que não cessa de crescer sobre a mesa de trabalho, cujo tampo não se vê faz tempo, às vezes penso, com o risco de vir a pagar pela língua, que o que me falta é um bom incêndio. Bate em mim, outra vez, a invejosa admiração que sinto por Fernando Sabino, capaz de achar em 40 segundos qualquer papelucho nas gavetas de seu quarto e sala da rua Canning, 22, fronteira de Copacabana com Ipanema. 
Inveja também, já nem digo literária, de Carlos Drummond de Andrade, a poucas quadras dali, na Conselheiro Lafaiete, 60, cujo esmero o levava a transcrever em cadernetas De Luxe, de espiral, as dedicatórias versificadas que distribuía, rotina da qual haveria de resultar uma coletânea de fac-símiles, Versos de Circunstância, organizada três décadas depois de sua morte pelo poeta Eucanaã Ferraz e lindamente editada pelo Instituto Moreira Salles.
Quando entrevistei Drummond para a IstoÉ, em abril de 1985, pedi que autografasse meu exemplar de sua obra na edição da Nova Aguilar - e confesso que por um segundo sucumbi à pretensiosa ilusão de que o poeta estivesse improvisando uma quadrinha sob medida para o repórter. Como me restasse aquela mínima noção das coisas, tratei de quietar o facho da apoteose mental. Limitei-me a admirar a capacidade do autor octogenário de guardar de cor uns versos, escritos, soube depois, quase 20 anos antes, mais exatamente em 11 de outubro de 1966, por certo para alguém de mais merecimento, e com os quais vim a topar na página 251 da citada coletânea. 
Em tempos mais recentes, numa visita a outro admirador do poeta, vi o anfitrião chegar às lágrimas ao me contar que Carlos Drummond escreveu para ele uma dedicatória, mais do que isso, em versos!, no seu volume da Nova Aguilar, que fez questão de ir buscar lá dentro, igualzinho ao meu, para que eu pudesse ler uma quadrinha, adivinha qual. 
“Sonetilho do Falso Fernando Pessoa” 

Onde nasci, morri
 Onde morri, existo.
 E das peles que visto
  muitas há que não vi.


 Sem mim como sem ti
  posso durar. Desisto
  de tudo quanto é misto
  e que odiei ou senti.


  Nem Fausto nem Mefisto,
 à deusa que se ri
  deste nosso oaristo,


 eis-me a dizer: assisto
  além, nenhum, aqui
  mas não sou eu, nem isto.



Uma Leitura de Pessoa por Drummond: Sonetilho do Falso Fernando Pessoa Prof.ª Dr.ª Cristina de Fátima Lourenço Marques - UNIP 

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Uma revolta pode começar pelos pães - Ignácio de Loyola Brandão

Domingo. Sete da manhã. Eriberto encostou no balcão da padaria. Todos o chamam de o Pequeno, claro, por causa de sua estatura e por se dizer rei da Aquitânia, desde que devorou todos os volumes de Will Durant sobre A História da Civilização. Pois Eriberto perguntou à Graça, que naquele momento estava no balcão de pães.
“O pão novo já saiu?”
Antes que a funcionária respondesse, um homem atrás de mim na fila, disse:
“Saiu sim. Acabou de sair, passou por mim, apressado”.
Graça percebeu a boutade e emendou:
“Os pães estão saindo rápido hoje. Parecem malucos”.
Emendei:
“Ouvi dizer que não querem ser comidos”.
Eriberto, o Pequeno ficou irritado:
“Pães foram feitos para serem comidos, e ponto final. Portanto precisam se conformar com seu destino”.
A conversa foi se estendendo, cada um com sua opinião.
“Não existe essa de se conformar com o destino. Podemos nos rebelar contra ele.”
Renato, o contador, me pegou pelo braço:
“Explique a ele o Maktub. O assim estava escrito”.
“Nessa hora?”
“Depressa porque Eriberto está nervoso.”
“Mas de que adianta? Os pães estão saindo apressados, sabe-se lá para onde vão.”
Olhávamos e víamos os pães de braços dados com broinhas de milho, e logo seguidos pelos pães italianos de casca grossa, quase derrubando os tenros pães de leite ou as bisnaguinhas envernizadas. Micropães de queijo furavam os sacos de papel com sua quentura e se agarravam a pãezinhos pincelados de ovo e polvilhados com açúcar cristal.
Tinha virado bagunça na padaria, mas todos se divertiam.
Um sujeito entrou:
“Eram do senhor aqueles pães rolando pela calçada? Não! Então. Vou pegar! Quentinhos. Soubesse tinha segurado. Achei que eram encomenda de alguma família aqui da rua. Espertinhos, iam depressa. Talvez fugissem do senhor”. Apontou para um homem de terno impecável, preto, com uma margarida amarela na lapela, parecendo saído de uma peça de Pirandello
“Fugissem de mim?”, disse o senhor de terno. “Por que haveriam de fugir de mim? Nem tinha comprado ainda, queria comprar. Pães não fogem das pessoas.”
“Fogem, sim. Quando não querem ser comidos, somem.”
Uma professora que conheço, é também psicanalista, entrou no assunto:
“Eu estava chegando e dei com três pães entrando na vila Alcides Pertiga. Deitaram no beiral de um portão do professor Jorge”.
A Alcides Pertiga é uma vilazinha que tem no meio da quadra, corre que todas as casas são de uma dona só. Meti minha colher de pau na história:
“Deviam ser pães antigos, da época em que padeiro passava e deixava o pão na porta. Ninguém mais deixa pão na porta, roubam tudo”.
O senhor de terno, a princípio, ficou cabreiro, protestou, estavam a gozá-lo, ele tinha feito a pergunta certa. Por que implicavam? O protestou piorou, todos riam, menos o pessoal do outro lado do balcão. Não sabiam o que Zé, o dono da CPL, podia estar pensando. Zé estava do outro lado, correndo a servir as mesas de fora, funcionários tinham faltado, problema com o horário de verão, o dono tinha de colocar a mão na massa. O senhor de terno de repente se deu conta da situação. Pediu:
“O que está havendo aqui?”.
“Uma revolta. Todos sabiam que ia estourar um dia. Ninguém mais aguenta. Acho que começou pelos pães, vai continuar com o açúcar, com os cravos, com os lírios, com as grades de portão com as câmeras nas ruas. Quem ainda aguenta essas câmeras que fotografam tudo? Depois será a vez do feijão, da farinha, dos sapatos, dos mantôs de veludo, dos saltos altos, dos cotonetes que avisaram, vão furar todos os ouvidos. Sabia que estão todos se quebrando e quebrando os pés das mulheres.”
“Quem não aguenta o quê?”, indagou Eriberto, o Pequeno. Ele sempre foi assim, nunca entendeu nada. Tem muita gente como ele, de olhos fechados, ouvidos tapados, que nunca sabem o que se passa. E como está passando coisa! Passando demais. Como é que ninguém percebe, vê, enlouquece? Coisas terríveis, mas todo mundo calado, acho que roubaram a voz de todo mundo.
Então, o freguês que tinha visto o pão com a broinha de fubá explicou:
“Meu senhor, assim que o forno esquenta e começa a queimar, os pães caem fora do forno, saem correndo, senão acabam queimados.
Já ouvi muito pão gritando de dor, voando por cima de minha cabeça desesperado em busca de ar fresco. Às vezes, fica lá fora um grupo de pedintes e assim que os pães saem pela porta, pulam, agarram e correm”.

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Vendo de longe e de fora - Roberto DaMatta

O observador é um tradutor entre o olhar habitual, íntimo e absoluto de dentro, e a visada fria, cautelosa e distante, de fora. O olhar da casa implica fidelidade e amor. Já o ponto de vista da rua tem a moldura da lei que fundamenta a vida coletiva. Vivemos entre esses olhares que se interpenetram e segmentam. Quando a rua vira casa, há a corrupção onipotente e deslavada do “tudo é nosso” e do “está tudo dominado”, e quando a casa vira rua, há o congelamento dos despotismos sem atenuantes. 
Descobrir quando os laços de família devem ser contidos relativamente aos elos públicos é exercitar-se no igualitarismo e na solidariedade da democracia, conciliando uma liberdade fraterna. A solidariedade que está ausente neste Brasil no qual testemunhamos um Executivo patologicamente agressivo, um Legislativo tendendo ao equilíbrio reacionário e um Judiciário defensivo dos seus privilégios.
Todo “fato novo” revela um aspecto pouco conhecido, desejado ou não, das estruturas elementares da vida cotidiana. “Fatos novos” são sinais de mudança ou, como falamos coloquialmente, de “fim de mundo”. De coisas não rotineiras que anunciam os estertores e a reconstrução de um modo de existência. Todo observador é, querendo ou não, um profeta ou um fofoqueiro porque olha o mundo de fora para dentro quando o trivial é observá-lo de dentro para fora.
O novo revela a alma das coletividades. No Brasil, o novo remete a erros e ausências. Em outros lugares, ele indica a necessidade de aprendizado. Em vez de culpa, erro e ressentimento (dos quais nós não seríamos culpados, pois o erro foi dos outros...), o novo surge como um caminho a ser trilhado por todos, já que todos somos atores (e autores) daquilo que é visto como vergonhoso ou negativo. Nas polarizações, um lado insiste em não ter culpa. Nelas, há a tentativa de exclusão de um lado e a óbvia inclusão do outro como responsável absoluto da novidade lida ou não como negativa. 
Vejamos um exemplo. Quando o rei e a Corte portuguesa vieram para o Brasil em 1808, ficando do lado dos ingleses, a elite local ficou em dúvida sobre essa desmesurada novidade. Era maravilhoso o Rio de Janeiro virar a capital do reino de Portugal e Algarve, mas era também terrível ver Lisboa e o reino desintegrados e sem a Corte e o rei e, além do mais, invadidos pelos franceses. A um fato novo correspondiam dilemas e problemas. Penso que poucos países viveram etapas históricas com pouca ambiguidade como foram, apesar da Guerra Civil, os Estados Unidos, cujo espírito ideológico – pelo menos até agora – tem sido vencedor conseguindo ganhar mais do que perder. 
*
Quando adquiri consciência da vida e descobri fatos que me causavam confusão sofri, mas não desisti. Muito pelo contrário, busquei entrar na vida pelo lado de fora. Primeiro, pela religião, depois pelos livros – pela luz fraca, mas persistente, como diz Thomas Mann, do intelecto. 
O mundo é duro e injusto. Não precisei de nenhum partido político ou ideologia para me ensinar o que a minha própria experiência já me havia duramente informado, a começar pelo fato de ser canhoto e ter sido estigmatizado pelos que haviam me fabricado e com os quais eu amorosamente vivia. 
*
Nem sempre se acusa por maldade ou atraso. Na maioria dos casos quem discorda e corrige o faz por cuidado. O significado emocional que leva à reação antecede a compreensão. Falamos uma língua sem saber e somente quando aprendemos outro idioma é que descobrimos o modo pelo qual nossa língua nos controla. O mesmo ocorre no nosso ambiente histórico e cultural. O político pensa que “faz política”, mas é justamente a “política” que o faz ou desfaz. Ele, a despeito de seus planos secretos, está sujeito às circunstâncias – à sorte ou ao azar de quem olha de fora...
Devemos desistir? Claro que não. Devemos assumir que somos parte de uma coletividade à qual podemos ser indiferentes e até mesmo traí-la, mas dela não escapamos. O básico para mudar não é distinguir-se ou assumir que há um “sistema imutável”, ou colocar a responsabilidade exclusivamente nos outros. É saber que papel desempenhamos nesse lugar que nos cabe, neste aqui e agora que nos obriga a enxergar de perto e, com ajuda do cronista, também de longe...

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Parar a tempo - Martha Medeiros

"Você tem que ser capaz de parar a tempo", disse Pablo Picasso, em 1932, revelando um dos segredos do ofício de escultor (que ele era também, e magnífico). Como saber que uma obra está acabada? Não há um alarme sonoro que avise que chegamos ao limite, ainda mais em se tratando de arte. Um texto pode se prolongar e sofrer diversas revisões, um filme pode ser editado e reeditado tantas vezes quanto necessário - a arte é inquieta, está sempre sujeita a transformações de última hora e tentativas de aperfeiçoamento. Acrescenta-se cores, imagens, argila, ao gosto do autor, que tem que ter muito autocontrole pra dizer a si mesmo: basta. Ele precisa abandonar o que está fazendo e declarar o trabalho pronto. Não é uma despedida fácil.

Parar a tempo - a tempo de quê? A tempo de apresentar aos outros algo que faça sentido, e não uma demência completa. A tempo de preservar a ideia original, não avançar a ponto de destruir o conceito que se pretendia. A tempo de manter a integridade da obra. A eternidade da obra. Sua genialidade, se ela a tiver.

Invejo quem escreve de um fôlego só e encerra a tarefa. Sou artesã: escrevo, reescrevo, faço uma faxina meticulosa em cada frase e só me dou por vencida quando já não consigo manter os olhos abertos. Tchau, texto, vai com Deus. Dias depois, quando ele é publicado nos jornais, descubro uma palavra sobrando ou uma vírgula faltando e não me perdoo pela desatenção. Aí lembro que essa cobrança vem acontecendo há 25 anos e que a obsessão é prima-irmã da paranoia. Relaxa, mulher.

Como saber se 10 pinceladas a mais modificariam o sorriso da Mona Lisa, tornando-a ainda mais enigmática? Como saber se o corte de dois parágrafos deixaria um conto de Dalton Trevisan ainda mais preciso? Pergunta inútil. Pra quem está do outro lado balcão, nada parece faltar ou sobrar: consumimos o que nos foi entregue. Só quem sabe onde poderia ter chegado é o próprio autor, e até isso é uma ilusão, porque ele não tem como prever que futuro teriam suas insistências. Prefiro acreditar que ele parou a tempo.

Vale para tudo. Parar a tempo uma discussão antes que acabe em pancadaria. Parar a tempo uma relação desgastada, antes que os dois comecem a se odiar. Parar de ser engraçadinho no Twitter a tempo de não entrar para a história como um boçal. Vale até pra hora do almoço: segure a ansiedade, não vá salgar demais esse molho. Dê sua obra como acabada. Sua noite como encerrada. Seu casamento como concluído. "Até que a morte os separe" é romântico apenas para alguns casais sortudos - para tantos outros, é preguiça de decidir. Terceirização.

Saibamos parar a tempo. Todo vexame é falta de timing.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Gre - Luis Fernando Verissimo

Gregory, Gre para os íntimos, ficou famoso pelas suas fotografias de mulheres. Gre fotografava mulheres como ninguém. Mulheres não: rostos de mulheres. Do pescoço para baixo Gre as desprezava. Pfui, dizia. Corpos inteiros, torsos, bustos... Pfui. Bonitos eram os rostos. E do pescoço para cima, nenhum fotógrafo se igualava ao Gre. Que cobrava caro pela sua especialização. As mulheres pagavam fortunas para ter um Gre autêntico na parede. Você via um Gre ocupando o lugar de um Picasso numa parede e nem precisava apertar os olhos para ler a assinatura: Gregory. Gre para os íntimos. 
*
Perguntavam como ele fazia para conseguir aquela expressão no rosto das mulheres e o Gre desconversava. Não gostava de elogios. Pfui para elegios. Diziam que Gre tinha um método secreto para fazer suas fotos de mulheres. Como não deixava ninguém acompanhar as sessões de fotos, as especulações se multiplicavam. Diziam que a expressão de uma certa socialite numa fotografia célebre fora conseguida com um tapa do Gre na sua cara, seguido de uma flor. A própria socialite não confirmava nem desmentia o episódio. E o Gre não falava.
*
Sabia-se pouco sobre a vida do Gre. Ele passara uma grande temporada na selva amazônica, fotografando bichos e índios. Um dia voltara para a cidade grande e montara seu estúdio. Em pouco tempo estava famoso, fotografando rostos de mulheres. As que contavam como era ser fotografada pelo Gre, contavam que durante as sessões ele falava. Não parava de falar. 
*
Dizia coisas como:
– Você está nua, acaba de sair da piscina e o Brad Pitt vem na sua direção com um roupão numa mão um martíni seco na outra, para você escolher.
– Você está lendo Nietzsche e de repente levanta a cabeça para pensar no que leu, com a boca ligeiramente aberta.
– Você acaba de ouvir no rádio que a Indonésia desapareceu. Um tsunami levou a Indonésia. 
– Você comeu um sonho igual ao que sua avó fazia e não sabe se ri de prazer ou chora de saudade.
– Você está tendo um orgasmo múltiplo e já chegou no quinto.
– Você está pensando na finitude humana.
Mas nenhuma falava em ter recebido um tapa e uma flor do Gre.
*
Um dia, depois de uma sessão, uma moça se atrasou no camarim e quando passou pelo estúdio viu uma cena insólita: Gre falando com um índio. Gre discutindo com um índio seminu. Os dois agitados.
É claro que, depois disso, as especulações sobre o misterioso fotógrafo só cresceram. E por mais fantasiosas que fossem as especulações, nenhuma chegou perto da verdade. Até hoje ninguém sabe que depois de fotografar uma tribo inteira na selva amazônica e roubar as suas almas, Gre fora intimado pelo cacique a indenizar a tribo com almas novas, de preferência brancas, sob pena de ser caçado, esquartejado e talvez comido. Não adiantava fugir da selva. Viriam atrás dele para cobrar a indenização. Não adiantou Gre argumentar que estava fazendo um lindo livro para mesa de centro, com as fotos da Amazônia. O cacique respondeu: “Índio não tem mesa de centro”.

A vida no hospício - Gregorio Duvivier

JORGE
Nada mais divertido que morar num hospício. Dá trabalho se fingir de louco. Mas vale a pena. O aluguel é de graça, a comida não é ruim e você ainda tem diversão 24 horas por dia. Melhor que TV a cabo. Tem um gordo que acha que é Napoleão. A parte engraçada é que ele é gordo. E tem dois metros de altura. E nem sabe direito quem foi Napoleão. Tem a Dona Valda, que acha que é dona disso aqui. Tem um louco, o Edmir, que acha que eu sou um armário e inventou que quer guardar coisas dentro de mim. Às vezes passa horas me perseguindo. É hilário. Outro dia tivemos um embate físico. Mas nada grave.


EDMIR
Eu devia ter feito veterinária, passava o dia cuidando de gatinho. Mas não. Passo o dia limpando cocô na parede e conversando com Napoleão. De todos os ramos da enfermagem, saúde mental é o mais ingrato. Sobretudo num hospício moderninho onde o paciente não usa camisa de força. Outro dia tomei um tabefe do Jorge, que não queria tomar o haldol e saiu gritando: "Eu não sou seu armário!". Pra piorar, a Dona Valda, que é a proprietária disso aqui, me obriga a tomar um remedinho. Ela diz que é bom pra eu sentir na pele o que os loucos sentem. Resultado: tremedeira, babação. Eu devia ter feito veterinária.

VALDA
Eu comecei isso aqui pra ganhar dinheiro. Mas acabei me apegando. Hoje em dia tem gente querendo comprar o terreno e fazer um estacionamento. Mas eu não vendo por nada nesse mundo. Os pacientes precisam de mim. O Edmir é um que eu tenho vontade de levar pra casa. Um amor de pessoa. De todos os loucos é o que tá aqui há mais tempo. E até hoje acha que é enfermeiro. Usa jaleco e tudo. As vezes tenta empurrar um remédio goela abaixo dos outros e termina em briga. Não faz por mal. Mas o meu preferido mesmo é o nosso Napoleão de dois metros de altura. Um amor de pessoa. Ah, não vendo isso aqui por nada nesse mundo.

JAIME
Nunca aprovei a forma com que a saúde mental era tratada no Brasil. Meu pai morreu num hospício, lobotomizado, no mesmo ano em que eu me formei em medicina. Me especializei em psiquiatria. Inventei meu próprio método. Aqui não tem lobotomia, eletrochoque nem camisa de força. Todo o mundo aqui é louco. E todo o mundo é médico. Me visto de Napoleão porque foi a fantasia que eu consegui alugar. Eu deveria ter pesquisado mais sobre o personagem. Se eu soubesse que ele media um metro e meio teria escolhido outra fantasia.



Nani

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Dois gigantes na ilha deserta - Humberto Werneck

Dessas coisas difíceis de acreditar: Carlos Drummond de Andrade, nosso maior poeta, de nariz torcido para Machado de Assis, nosso maior prosador – e no entanto aconteceu. Como aconteceu também, ao cabo de longo processo de amadurecimento não só literário, de o mocinho que em 1925 recomendara “repudiar” o autor de Dom Casmurro a ele se render sem condições, ao ponto de lhe dedicar, em 1958, um poema, “A um Bruxo, com amor”, cujos 90 versos se compõem de fragmentos garimpados na obra de Machado e montados com toda a arte do melhor joalheiro.
O percurso de três décadas entre a declaração do jovem Drummond, então nos seus 22 anos de idade, e amorosa rendição do poeta consagrado e cinquentão, tinha já sido retrilhado por estudiosos dos dois mestres, numa tortuosa viagem em busca do que disse sobre Machado o autor mineiro em seus poemas, artigos, crônicas e entrevistas. Viagem que, agora, se pode fazer com prazer e sem perda de tempo, graças a um esplêndido trabalho de Hélio de Seixas Guimarães, especialista em Machado de Assis e professor da USP, cuja peneira fina recolheu na obra de Drummond o que lá houvesse a respeito do Bruxo do Cosme Velho. 
O resultado desse esforço chegou às livrarias com um título que faz lembrar o Há uma gota de sangue em cada poema, de Mário de Andrade: Amor nenhum dispensa uma gota de ácido – frase que Hélio Guimarães pescou numa entrevista de Drummond a Lya Cavalcanti, nos anos 1950, papo saboroso e comprido o bastante para render um livro, Tempo Vida Poesia, publicado em 1986, um ano antes da morte do poeta. 
Ao falar de suas leituras de formação, o poeta conta ali que, “pela graça de Deus”, chegou “cedinho a Machado de Assis”. Acrescenta: “Deste não me separaria nunca, embora vez por outra lhe tenha feito umas más-criações” – e, para justificar as caneladas, saca a frase que daria nome ao livro organizado e prefaciado por Hélio Guimarães.
A primeira de uma série de más-criações veio no primeiro dos três números de A Revista, que Drummond e outros frangotes da literatura, entre eles Pedro Nava, João Alphonsus, Emílio Moura e Abgar Renault, lançaram em Belo Horizonte três anos depois da Semana de Arte Moderna. No artigo “Sobre a tradição em literatura”, o Drummond de 1925 não esconde sua admiração por Machado de Assis – “Amo tal escritor patrício do século 19, pela magia irreprimível de seu estilo e pela genuína aristocracia de seu pensamento” –, mas vê nisto, exatamente, “um entrave à obra de renovação da cultura geral”. 
O jovem poeta se pergunta o que fazer – e, certo de que “a razão está sempre com a mocidade”, encontra resposta “clara e reta”: é preciso “repudiar” do criador de Brás Cubas. 
Drummond, àquela altura, já estava embarcado na experiência para ele decisiva de corresponder-se com Mário de Andrade, que irá morrer, em 1945, sem ter deixado de considerar Machado um problema. No calor da hora, estava longe de ser o único pioneiro do modernismo a ver nele uma iguaria de difícil digestão, por não se tratar de um “passadista” qualquer. 
“Uma pedra no caminho”, cravou Hélio Guimarães dias atrás, num papo dos mais interessantes com Rita Palmeira, nesse não menos interessante oásis paulistano que se chama Tapera Taperá, no piso mais alto da outrora gloriosa Galeria Metrópole. Segundo Hélio, daquela turma iconoclasta o primeiro a deglutir Machado devidamente, destacando-o do ranço irremediável de outros velhos escribas, foi Oswald de Andrade – o que só mais adiante, já bem entrados os anos 1930, viria a fazer, entre outros, Augusto Meyer, e também Marques Rebelo, capaz de reconhecer no autor do Brás Cubas ao menos um “fantasma camarada”.
É fascinante acompanhar, nas páginas de Amor nenhum dispensa uma gota de ácido, a gradual aproximação de Carlos Drummond de Andrade daquele gigante que, na juventude, lhe parecia ser, embora portentoso, ou por isso mesmo, um mestre a descartar. Quando, nos anos 1950, a Academia Brasileira de Letras construiu seu mausoléu no cemitério de São João Batista, vicejou entre seus futuros habitantes a ideia de transladar para lá os restos imortais de Machado, tirando-os do “leito derradeiro” no qual o fundador da ABL, por vontade expressa, desde 1908 jazia ao lado de sua amada Carolina. Drummond foi contra, indignadamente contra – e, em manifestações veementes, ajudou a pôr a pique o infeliz projeto. “Levante a Academia o seu grandioso sarcófago”, fulminou ele, “e ponha dentro quantos almejem magnificência fúnebre. Machado, não.” 
Espécie de modernizador da figura de velho Bruxo, como lembra Hélio Guimarães, capaz de reconhecer nele um olhar percuciente e uma fatura sem data de validade, Drummond procedeu a uma exumação não literal, exumação literária, do objeto de sua crescente admiração, que por décadas estivera quase escanteado pela geração modernista. 
Em dado momento do processo de aproximação, ainda relutante, o poeta concedeu a Machado espaço na bagagem a levar para uma ilha deserta. No início, espaço bem modesto – não mais, digamos, que um strapontin, aquele assento suplementar que só podemos abaixar quando o ônibus não esteja lotado. 
Mais adiante, na fluvial entrevista de Tempo Vida Poesia, o poeta voltaria ao tema da bagagem literária. “Se me derem Machado na tal ilha deserta”, disse então a Lya Cavalcanti, “estou satisfeito” – e afivelou a mala: “O resto que se dane, embora o resto seja tanta coisa amorável”.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

O Fim que Se Aproxima - Milton Hatoum


Amazonas: mito grego
menos antigo que os mitos da Amazônia.
Os que vivem no Cosmo há milênios
são perseguidos por mãos de ganância, 
olhos ávidos: minério, fogo, serragem, fim. 
Quem são vocês,
incendiários desde sempre, 
ferozes construtores de ruínas? 
Os que queimam, impunes, a morada ancestral, 
projetam no céu mapas sombrios:
manchas da floresta calcinada,
cicatrizes de rios que não renascem.
Qual Brasil se esconde 
atrás da humanidade amazônica?
Que triste pátria delida,
mais armada que amada:
traidora de riquezas e verdades.
Quando tudo for deserto,
o mundo ouvirá rugidos de fantasmas.
E todos vão escutar, numa agonia seca, 
o eco:
Não existirão mundos, novos ou velhos,
nem passado ou futuro.
No solo de cinzas: 
o tempo-espaço vazio.

domingo, 1 de setembro de 2019

Poetas - Luis Fernando Verissimo

Ainda não sabemos tudo sobre Marte, mas sabemos o bastante para dizer que ele nos decepcionou. Marte foi um blefe. Os tais canais vistos pelas lunetas antigas, provas de que haveria alguma forma de vida inteligente no planeta, mesmo que fosse só de engenheiros, não eram canais. Nenhum vestígio de qualquer tipo de vida apareceu em Marte, muito menos o de uma civilização de homenzinhos verdes, ou de qualquer outra cor, com a capacidade para invadir a Terra. Anos e anos de literatura premonitória e previsões terríveis foram desperdiçados. Nos apavoraram por nada. Como no Iraque, também não havia armas de destruição em massa em Marte.
Mas, se Marte revelou ser um imenso parque de estacionamento, que não ameaça a Terra, isso não quer dizer que não existam civilizações lá fora que cedo ou tarde entrarão em contato conosco, exigindo nossa submissão ou anunciando a invasão.
Nada nos assegura que, se ainda não fomos invadidos por exércitos extraterrenos, não tenha havido — ou esteja havendo neste momento — missões de prospecção e espionagem, feitas por destacamentos avançados ou por agentes isolados, Não quero assustar ninguém, mas vou contar. Já tive contato com um desses agentes extraterrestres. Desconfiei quando ele disse “Vocês são engraçados...” e eu perguntei “Vocês”, quem? “Vocês” brasileiros? “Vocês” carecas? “Vocês” míopes? Destros? Cardiopatas? E ele respondeu: “Vocês, gente.”
E me confessou (já tinha bebido um pouco) que não era deste mundo, era de outro, e estava prospectando o Universo inteiro atrás de um planeta para ser colonizado pelo seu. Achava que tinha, finalmente, encontrado este planeta. Era a Terra. No seu relatório, recomendaria que a Terra fosse ocupada e sua principal riqueza natural explorada, pois era o que faltava no planeta do qual viera.
Perguntei qual era a riqueza natural que nós tínhamos e eles não e o extraterrestre respondeu: “A poesia.” E perguntou: “Você sabe que a Terra é o único planeta do universo conhecido em que as pessoas dão nome aos ventos?” Fiquei lisonjeado com aquilo, pensando: “Taí, somos todos poetas e não sabíamos”, e perguntei o que fariam com os poetas da Terra no planeta dele.
— Comê-los, claro — respondeu ele.
E explicou que não havia mais poetas no seu planeta porque já tinham comido todos. Ou como eu imaginava que eles tinham se tornado uma civilização tão avançada?

Lições de Guerra - Leandro Karnal

Há 80 anos, na data de hoje, iniciava-se o maior conflito que a espécie humana já enfrentou: a Segunda Guerra Mundial. No amanhecer de 1.º de setembro de 1939, tropas alemãs invadiram a cidade de Danzig, hoje Gdansk, arrasando a resistência polonesa e encerrando as tentativas franco-inglesas de apaziguamento. Ao final de seis anos, mais de 60 milhões de mortos completariam a estatística recorde de genocídios e devastação. 
A palavra mundial é correta, no sentido de que, fiel a um fenômeno já verificado no século 18 com a Guerra dos Sete Anos (1756-63), houve batalhas em quase todos os continentes. Porém, os dois conflitos mundiais do século 20 trariam novos significados à extensão do horror. Muitos tinham se espantado com os danos à população civil na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). O choque tendo por capa a ideia religiosa levou ao túmulo quase um terço da população alemã. A Segunda Guerra traria civis de cidades como Varsóvia, Londres, Hamburgo, Hiroshima, Stalingrado como vítimas principais de uma devastação inédita. A guerra total tinha chegado e o horror excedeu tudo o que pudesse ser imaginado.
Guerra Mundial, sem dúvida, mas ainda marcada pela memória europeia. O bombardeio sistemático do Japão a cidades do litoral chinês havia começado dois anos antes, em 1937, com o incidente da Ponte Marco Polo. O número de mortos chineses excede as cifras de qualquer país europeu, com exceção da URSS. A guerra asiática começou antes e terminou depois. Enquanto a Europa suspirava, aliviada, pelo fim do conflito em maio de 1945, os asiáticos teriam de esperar até agosto/setembro do mesmo ano para que a palavra paz aparecesse. 
Não existe justificativa para que se date a Segunda Guerra de setembro de 1939, apenas a tradição eurocêntrica usual na memória. Também um foco EUA-França-Inglaterra impede de se avaliar, por vezes até hoje, o peso decisivo das tropas soviéticas na derrota do nazismo. O mesmo ocorre com as datações da Guerra Fria como tendo origem em 1945 nas divergências dos antigos Aliados. O choque do capitalismo e do socialismo pode ser diagnosticado em questões diplomáticas após a vitória bolchevique de 1917 e na invasão do território russo logo na sequência. Toda a década de 1920 foi tomada por ações de países como França/Inglaterra/Japão contra o governo soviético. Datas são símbolos de como concebemos o mundo e o poder. 
O senso comum gosta de afirmar que devemos estudar história para evitar a repetição de seus erros. Se assim for, trabalho em área inútil, porque pouco ou nada se aprende, em especial sobre guerras. Vejamos: a guerra de 1914 tinha sido para acabar com todas as guerras. O lema foi reforçado pelo discurso idealista do presidente dos EUA W. Wilson. Terminou com a humilhação da Alemanha e um espírito revanchista contido no Tratado de Versalhes. Mesmo assim, avaliando o custo enorme das trincheiras com gases e metralhadoras, Londres e Paris fizeram concessões ao nazi-fascismo antes de 1939. As tentativas de apaziguamento, como o Acordo de Munique de 1938, de muitas formas incentivaram as ditaduras de Berlim e Roma a exigir cada vez mais. Ou seja, o aprendizado do horror da Grande Guerra tinha se revelado um incentivador para novo conflito.
Da mesma forma, tendo sofrido com o pesadelo de duas frentes de batalha entre 1914 e 1917, a Alemanha, grande pátria de historiadores, refez o erro em 1941. Terminada a guerra, em 1945, temos novas ações de provocação que nos empurram para o risco de outro conflito mundial: o bloqueio de Berlim, o conflito na Coreia, os choques de fronteira entre China e URSS, a guerra do Vietnã, a crise dos mísseis de Cuba e tantos outros. Aprendemos pouco e repetimos erros de forma sistemática. O “aprendizado da história” sempre me parece como o caso do clichê tradicional de um homem que se casa cedo, constrói patrimônio com uma mulher, aprende muito, amadurece e, quando chega aos 60 anos, pleno de lições e de sabedoria, abandona a antiga companheira e se casa com uma jovem de 20 anos... Nós, humanos, nem sempre somos sábios com o passar dos anos.
Quando a rádio alemã anunciou a invasão da Polônia no amanhecer de 1.º de setembro de 1939, muitos foram às ruas comemorar. Guerras causam algumas alegrias nos primeiros dias. O mesmo ocorreria com uma multidão em Buenos Aires, em 1982, saudando outra aventura ditatorial: a invasão das Malvinas. O entusiasmo diminui sistematicamente com a chegada de corpos. 
Existe uma ironia a refletir. A “causa imediata” (historiadores abominam a palavra causa, hoje) da Segunda Guerra na Europa foi a invasão da Polônia. O governo polonês, derrotado, fugiu para Londres. Teoricamente, todo o esforço dos seis anos seguintes seria para restaurar aquela administração. Ao final do conflito, os soviéticos impuseram outro governo e os dirigentes de Varsóvia ficaram sem o reconhecimento oficial das potências ocidentais. Em outras palavras, uma guerra termina muito distinta do que a fez começar e as causas “elevadas” apresentam um custo tão alto que deveriam ser muito avaliadas. Por fim, se existe uma lição em 1939 é de que democracias plenas não declaram guerra umas às outras na História. A guerra sempre envolve um governo autoritário em um dos campos ou em ambos. Não bastasse tudo, esse seria um grande motivo de defesa do Estado Democrático de Direito. 

Fenda Antiga - Luis Fernando Verissimo

Estávamos em San Jose, Califórnia, para cobrir a Copa do Mundo de 94. A maioria, ocupada em instalar o equipamento para a cobertura e fazer um reconhecimento do local, não se deu conta do drama que estava acontecendo junto com a nossa chegada: a perseguição e a eventual captura de O.J. Simpson – certamente a pessoa mais famosa a ser acusada de um assassinato no mundo desde que levantaram a hipótese de que Jack, o Estripador poderia ser um membro da família real inglesa. Simpson era um herói para os negros, mas não necessariamente um herói do ressentimento racial. Casara com a loira que supostamente acabara de matar e transitava no mundo das celebridades brancas de Hollywood com naturalidade. Mas quando o utilitário Ford com Simpson dentro rodou pelas freeways de Los Angeles perseguido pela polícia, os negros no caminho vibravam à sua passagem e o incentivavam como se ele ainda estivesse num campo de futebol. Tudo, inclusive a tentativa de fuga, indicava que Simpson era culpado, mas o mais importante era que ali estava um afro-americano fazendo a polícia dos brancos correr atrás dele. Depois da prisão as pesquisas divergiam. A maioria dos brancos achava que Simpson era culpado, a maioria dos negros achava que não. As opiniões se dividiam ao longo da velha fenda que não tinha nada a ver com evidências e argumentos. Uma fenda que permanece apesar de todos os avanços havidos nas relações raciais americanas e de todas as conquistas dos negros. Que, ao contrário dos negros brasileiros, nunca foram anestesiados por um falso sentimento de igualdade e nunca tiveram qualquer dúvida sobre o racismo da sociedade em que vivem. O.J. Simpson acabou sendo absolvido, mas pouca gente acredita que ele era inocente dos assassinatos. Talvez tenha matado a ex-mulher e o namorado dela levado pela certeza de que sua celebridade de certa maneira o protegeria e o eximiria de suspeita. 
*
A celebridade tornou-se um valor independente nos Estados Unidos, o centro do seu próprio universo moral. Seu valor é definido pela cotação no mercado. Nada é tão rentável nos Estados Unidos quanto a celebridade, e tanto faz a celebridade se dever à invenção de uma nova vacina ou à castração de um marido infiel. Fizeram uma lei que proíbe as pessoas de ganhar dinheiro explorando o próprio crime em livros (“Como desmembrei mamãe”) e reportagens, mas nada impede que outras pessoas envolvidas lucrem com sua proximidade ao crime. Todos os participantes do julgamento de Simpson tornaram-se celebridades, mesmo que por pouco tempo. A promotora chegou a dar palpite sobre quem deveria interpretá-la quando fizessem o filme. E Simpson, o homem que realizara, como atleta e ator, o desejo de tantos com tanta facilidade que podia se imaginar a salvo de qualquer represália, deve ter se sentido um pouco como o Gatsby de Scott Fitzgerald, quando descobriu que a promessa americana de um continente aberto para os melhores sonhos de um homem, sem obstáculos de classe ou preconceito, era uma armadilha. A celebridade lhe garantiu uma defesa de primeira classe e a absolvição, mas a celebridade não o suspendeu acima do bem e do mal. E embora ele pensasse que tivesse atravessado a fenda para sempre, a celebridade não impediu que seu caso se transformasse, no fim, em negros contra brancos. Como sempre.
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Dos americanos que se reuniram na Filadélfia para debater a primeira Constituição democrática da história, a grande maioria era de homens de negócio, proprietários rurais e donos de escravos, o que não os impediu de escrever a “Bill of Rights”, que definia para sempre os direitos iguais de todos os cidadãos e seria a inspiração para a Revolução Francesa e a Declaração Universal dos Direitos do Homem. É verdade que se passaram quase 170 anos antes que os direitos “autoevidentes” da “Bill of Rights” fossem assegurados a todos os americanos, independentemente de raça, por uma interpretação algo tardia da Suprema Corte. E que questões como o condicionamento social do direito à propriedade não foram sequer tocados na Constituição americana, cuidadosamente redigida para proteger a aristocracia rural de qualquer desafio aos seus direitos divinos. E que até hoje, embora a aristocracia rural americana tenha seguido o caminho da “landed gentry” inglesa para a irrelevância, a questão da propriedade nunca entrou no debate político dos Estados Unidos. Mas a “Bill of Rights” está lá, como uma promessa viva, mesmo descumprida.
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No final de O Grande Gatsby, Fitzgerald, no melhor texto que escreveu na vida, evoca o sonhado país inédito que se enredaria nas suas intenções e contradições. Descreve a costa leste americana, “a fronte verde e fresca do novo mundo”. Suas árvores desaparecidas “um dia tinham se oferecido com sussurros ao último e maior de todos os sonhos humanos: por um momento transitório encantado o homem deve ter prendido a respiração na presença deste continente, compelido a uma apreciação estética que ele nem compreendia ou desejava, cara a cara pela última vez na história com algo comensurável à sua capacidade de se maravilhar”. Para Fitzgerald, o “futuro orgástico” perseguido por Gatsby e as promessas da época tinham se evanescido “na vasta escuridão além da cidade, onde os campos soturnos da república se estendem sob a noite”. E o momento encantado não voltaria mais.

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...