domingo, 1 de setembro de 2019

Lições de Guerra - Leandro Karnal

Há 80 anos, na data de hoje, iniciava-se o maior conflito que a espécie humana já enfrentou: a Segunda Guerra Mundial. No amanhecer de 1.º de setembro de 1939, tropas alemãs invadiram a cidade de Danzig, hoje Gdansk, arrasando a resistência polonesa e encerrando as tentativas franco-inglesas de apaziguamento. Ao final de seis anos, mais de 60 milhões de mortos completariam a estatística recorde de genocídios e devastação. 
A palavra mundial é correta, no sentido de que, fiel a um fenômeno já verificado no século 18 com a Guerra dos Sete Anos (1756-63), houve batalhas em quase todos os continentes. Porém, os dois conflitos mundiais do século 20 trariam novos significados à extensão do horror. Muitos tinham se espantado com os danos à população civil na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). O choque tendo por capa a ideia religiosa levou ao túmulo quase um terço da população alemã. A Segunda Guerra traria civis de cidades como Varsóvia, Londres, Hamburgo, Hiroshima, Stalingrado como vítimas principais de uma devastação inédita. A guerra total tinha chegado e o horror excedeu tudo o que pudesse ser imaginado.
Guerra Mundial, sem dúvida, mas ainda marcada pela memória europeia. O bombardeio sistemático do Japão a cidades do litoral chinês havia começado dois anos antes, em 1937, com o incidente da Ponte Marco Polo. O número de mortos chineses excede as cifras de qualquer país europeu, com exceção da URSS. A guerra asiática começou antes e terminou depois. Enquanto a Europa suspirava, aliviada, pelo fim do conflito em maio de 1945, os asiáticos teriam de esperar até agosto/setembro do mesmo ano para que a palavra paz aparecesse. 
Não existe justificativa para que se date a Segunda Guerra de setembro de 1939, apenas a tradição eurocêntrica usual na memória. Também um foco EUA-França-Inglaterra impede de se avaliar, por vezes até hoje, o peso decisivo das tropas soviéticas na derrota do nazismo. O mesmo ocorre com as datações da Guerra Fria como tendo origem em 1945 nas divergências dos antigos Aliados. O choque do capitalismo e do socialismo pode ser diagnosticado em questões diplomáticas após a vitória bolchevique de 1917 e na invasão do território russo logo na sequência. Toda a década de 1920 foi tomada por ações de países como França/Inglaterra/Japão contra o governo soviético. Datas são símbolos de como concebemos o mundo e o poder. 
O senso comum gosta de afirmar que devemos estudar história para evitar a repetição de seus erros. Se assim for, trabalho em área inútil, porque pouco ou nada se aprende, em especial sobre guerras. Vejamos: a guerra de 1914 tinha sido para acabar com todas as guerras. O lema foi reforçado pelo discurso idealista do presidente dos EUA W. Wilson. Terminou com a humilhação da Alemanha e um espírito revanchista contido no Tratado de Versalhes. Mesmo assim, avaliando o custo enorme das trincheiras com gases e metralhadoras, Londres e Paris fizeram concessões ao nazi-fascismo antes de 1939. As tentativas de apaziguamento, como o Acordo de Munique de 1938, de muitas formas incentivaram as ditaduras de Berlim e Roma a exigir cada vez mais. Ou seja, o aprendizado do horror da Grande Guerra tinha se revelado um incentivador para novo conflito.
Da mesma forma, tendo sofrido com o pesadelo de duas frentes de batalha entre 1914 e 1917, a Alemanha, grande pátria de historiadores, refez o erro em 1941. Terminada a guerra, em 1945, temos novas ações de provocação que nos empurram para o risco de outro conflito mundial: o bloqueio de Berlim, o conflito na Coreia, os choques de fronteira entre China e URSS, a guerra do Vietnã, a crise dos mísseis de Cuba e tantos outros. Aprendemos pouco e repetimos erros de forma sistemática. O “aprendizado da história” sempre me parece como o caso do clichê tradicional de um homem que se casa cedo, constrói patrimônio com uma mulher, aprende muito, amadurece e, quando chega aos 60 anos, pleno de lições e de sabedoria, abandona a antiga companheira e se casa com uma jovem de 20 anos... Nós, humanos, nem sempre somos sábios com o passar dos anos.
Quando a rádio alemã anunciou a invasão da Polônia no amanhecer de 1.º de setembro de 1939, muitos foram às ruas comemorar. Guerras causam algumas alegrias nos primeiros dias. O mesmo ocorreria com uma multidão em Buenos Aires, em 1982, saudando outra aventura ditatorial: a invasão das Malvinas. O entusiasmo diminui sistematicamente com a chegada de corpos. 
Existe uma ironia a refletir. A “causa imediata” (historiadores abominam a palavra causa, hoje) da Segunda Guerra na Europa foi a invasão da Polônia. O governo polonês, derrotado, fugiu para Londres. Teoricamente, todo o esforço dos seis anos seguintes seria para restaurar aquela administração. Ao final do conflito, os soviéticos impuseram outro governo e os dirigentes de Varsóvia ficaram sem o reconhecimento oficial das potências ocidentais. Em outras palavras, uma guerra termina muito distinta do que a fez começar e as causas “elevadas” apresentam um custo tão alto que deveriam ser muito avaliadas. Por fim, se existe uma lição em 1939 é de que democracias plenas não declaram guerra umas às outras na História. A guerra sempre envolve um governo autoritário em um dos campos ou em ambos. Não bastasse tudo, esse seria um grande motivo de defesa do Estado Democrático de Direito. 

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