segunda-feira, 29 de abril de 2019

A retranqueta - Luis Fernando Verissimo

A mentira é um mal necessário. Sem a mentira nossa vida social seria impossível. Sem a mentira, muitos casamentos não resistiriam a duas semanas.
Não estou falando da falsa bajulação e das falsas juras, das declarações insinceras que os casais trocam para se agradar mutuamente, do orgasmo fingido ou das repetidas promessas de não molhar mais o banheiro como um urso depois do banho. Me refiro às pequenas mentiras que mantêm um relacionamento estável, mesmo que dependam de algum autocontrole da parte da mulher, para não rir ou ficar fazendo cara de “conta outra”, enquanto a mentira dele fica cada vez mais improvável. Pois ele pode estar mentindo para o seu bem e o bem do seu casamento. Por exemplo.
Se o homem diz que deve ser algum problema com a retranqueta do polidor, quando não tem a menor ideia do que há de errado com o carro, não é para proteger o orgulho dele. Está mentindo para a tranquilidade dela. Para que ela não saiba que está vivendo com alguém que não tem bem certeza nem onde fica o motor do carro quanto mais qual é o seu problema. Você se sentiria segura sabendo que, no caso de o carro enguiçar, no meio da noite, perto do Morro das Metralhadoras de Uso Exclusivo das Forças Armadas, a única providência técnica que ele poderia tomar seria trancar as portas por dentro? Está certo, não existe o polidor e muito menos a sua retranqueta – até onde eu sei – mas o importante é você pensar que o polidor existe, e que ele sabe exatamente onde fica e o que precisa ser feito para consertá-lo, além de gritar por socorro. 
– É só dar um repique na retranqueta e equalizar o polidor.
Mulher, mulher. Acima de tudo, não se meta. Se no dia seguinte ele deixar o carro em casa, alegando que não quer forçar a retranqueta para não anodizar o parkerson, em hipótese alguma receba-o em casa na volta do trabalho com a notícia de que você levou o carro na oficina por sua conta.
– O quê?! E o que você disse que era?
– O que você falou. A retranqueta do polidor.
Pronto. Ele nunca mais vai poder olhar o mecânico na cara. A esta altura, toda a oficina já sabe que ele provavelmente pensa que “afogador” é um assassino de praia. Ele está arrasado. Você o destruiu. A não ser que...
– E o que foi que o mecânico disse?
– Que ia dar um repique na retranqueta e equalizar o polidor.
O casamento está salvo – por uma mentira. Ele não precisa se preocupar em ser desmascarado.
Agora, só precisa se preocupar com o mecânico, que obviamente sabe menos do que ele.

domingo, 28 de abril de 2019

Constellation - Luis Fernando Veríssimo

Minha primeira viagem de avião durou quatro dias. Porto Alegre a Miami. Não, o piloto não era o Santos Dumont. E não, não ficamos quatro dias no ar. Ia-se de Porto Alegre ao Rio de Janeiro num daqueles Douglas do tamanho aproximado de uma turbina dos jatos de hoje. No dia seguinte, fazia-se o trecho Rio-Recife. No outro, Recife-Trinidad, no Caribe. Finalmente Trinidad-Miami. Chegava-se alguns quilos mais magro, pois uma das atividades de bordo, nos aviões da época, era vomitar.

O avião não precisava jogar para você vomitar. O avião não precisava nem decolar. O cheiro do interior dos aviões induzia ao vômito. É a isso, crianças, que se referem aqueles saquinhos de papel com as palavras “Para indisposição”. Quer dizer “Vomite aqui em vez de no vizinho”. Hoje, ninguém vomita mais em avião, mas os saquinhos permanecem, talvez prevendo algum regurgitador nostálgico.
Com vômito e tudo, viajar de avião era coisa fina. As mulheres se vestiam com o melhor que tinham para entrar num avião. Os homens usavam gravata. Me lembro de quando apareceu o Constellation, o avião mais bonito já construído até hoje. O fino do fino passou a ser viajar num Constellation. Nada representava melhor a elegância de voar do que aquele avião comprido com algo de garça no seu formato.
Ouviam-se maravilhas da sua velocidade a turboélices e do seu requintado serviço de bordo. Nunca entrei num Constellation, que por isso mesmo ficou para mim como uma referência mítica, o símbolo de viajar com classe, ou simplesmente do prazer de ir para longe sendo bem tratado. Jamais viajei tão bem quanto dentro de um Constellation na minha imaginação.
Estas lembranças são só para comentar como voar mudou, não só porque se massificou e os aviões ficaram maiores, mais rápidos e, apesar de tudo, mais seguros (e não cheiram mais), mas porque se perdeu aquela aura de prazer que começava no aeroporto, na expectativa de embarque numa experiência rara. Aquele espírito de Constellation imaginário. Com o agravante das atuais medidas antiterrorismo, o prazer antegozado virou martírio compartilhado, aqui, nos Estados Unidos e no resto do planeta. E não é preciso nem falar nas poltronas em que cabe só meio Jô Soares.
Hoje, em todos os aeroportos neurotizados do mundo, há um Constellation fantasma pousado no pátio, dizendo “Nunca mais, nunca mais”.

terça-feira, 23 de abril de 2019

Camus cá entre nós - Humberto Werneck

Mais umas semanas e estará fazendo 70 anos que Albert Camus pegou um navio em Marselha e veio dar com os costados no Brasil. Em junho de 1949, o escritor francês era ainda escassamente conhecido por aqui, mas aos 35 já havia publicado alguns dos livros – A PesteO EstrangeiroO Mito de Sísifo – que oito anos mais tarde lhe valeriam o Nobel.
Em missão cultural de seu país, Camus dividiu 50 dias entre Brasil, Argentina, Uruguai e Chile. Suas impressões permaneceriam em cadernos de notas, publicados postumamente em 1978 como Diário de Viagem, que sete anos mais tarde teria tradução brasileira. São, na verdade, dois relatos de viagem – aos Estados Unidos, em 1946, e à América do Sul, em 1949. Mais da metade das páginas é dedicada ao Brasil, onde o jovem escritor passou cinco semanas.
Às voltas com uma gripe que o calor dos trópicos e a asfixiante efusão dos anfitriões só fizeram piorar, Albert Camus é um viajante quase sempre depressivo, entediado, irritadiço, que ainda a bordo cogitou matar-se. Mal pôs os pés no Rio de Janeiro, foi engolfado por ensandecedora maratona de conferências, entrevistas, passeios e rega-bofes. Não escapou de ver tudo o que então se exibia a um intelectual estrangeiro em visita ao País: favela, macumba, candomblé, bumba meu boi. Viu dançar o frevo e pediu – não tivesse sido goleiro em sua juventude – para ir ao futebol. Os brasileiros, registrou, “literalmente deliram” ao saber que ele tivera “uma longa carreira” sob o travessão. “Encontrei, sem querer, sua paixão principal.” 
Na contramão da maioria dos turistas, Camus não se embasbacou ante os cartões-postais do Rio de Janeiro. Viu com desgosto o Corcovado e seu “imenso e lamentável Cristo luminoso”. Considerou a Baía de Guanabara “espetacular” demais para seu gosto – haverá de preferir a de Salvador, que, “pelo menos, tem uma medida e uma poesia”.
Em terra, escandalizou-se instantaneamente com a sandice do trânsito carioca. “Os motoristas brasileiros ou são alegres loucos ou frios sádicos”, horrorizou-se Camus – que, por ironia, viria a morrer, 11 anos depois, num acidente de automóvel.
Não lhe faltou, porém, um ponta de humor acre, como na impiedosa descrição que fez de “Federico”, o poeta Augusto Frederico Schmidt, seu oferecido acompanhante em giros cariocas, o tempo todo acolitado por um jovem que Camus apresenta como “um señorito”, criatura que o levou à exasperação com a insistência em lhe empurrar uns camarões fritos. Otto Lara Resende, que ajudou a editora brasileira a identificar personagens do livro, não descobriu (ou não quis revelar) quem era o caricato “señorito”. 
Tomado de antipatia, Camus descreve Schmidt a cuspir no prato as espinhas do peixe, lá do alto, sem curvar o corpanzil, com “destreza maravilhosa”, pois só uma vez não acertou no alvo. O poeta, anos mais tarde, passará recibo da hostilidade do visitante, e na morte dele, em 1960, rememorou horas “penosas” vividas na companhia de Camus, de quem guardou “uma impressão de dureza, de implacabilidade”. 
Outras personalidades locais povoam o Diário de Viagem, quase sempre com a grafia estropiada que os franceses tantas vezes dão aos nomes estrangeiros. O jornalista Barreto Leite Filho virou “Barleto”, Manuel Bandeira (“pequeno homem extremamente fino”) perdeu o i, Murilo Mendes (“espírito fino e resistente”) se afrancesou em “Murillo Mendès” e Dorival Caymmi ganhou contornos árabes como “Kaïmi”, “um negro que compõe e escreve todos os sambas que o País canta”. Na pena de Camus, Madureira é “Maidedura”, “cachado” é cachaça e “junsahés”, sabe Deus o quê. 
O forasteiro não esconde simpatia pelo ator e futuro escritor negro Abdias do Nascimento, que encenou sua peça Calígula e o introduziu aos mistérios da macumba. Em São Paulo, Oswald de Andrade lhe pareceu ser “um personagem notável (a desenvolver)”. Na companhia do antropófago, agora inapetente, visitou Iguape, no litoral paulista, experiência que lhe inspirou A Pedra Que Cresce, relato incluído em O Exílio e o Reino, de 1957.
Camus achou o Rio caótico, Porto Alegre feia e Recife, não uma Veneza brasileira, mas uma “Florença dos Trópicos”. São Paulo lhe caiu como “cidade estranha”, impressão quem sabe acentuada pelo fato de que o levaram, “não sei bem por que”, para conhecer o hoje demolido presídio do Carandiru, a ele apresentado como sendo “a mais bela” penitenciária do Brasil. Em Salvador, foi submetido a “pratos tão apimentados que fariam andar um paralítico”. Gostou do “barroco harmonioso” das velhas igrejas coloniais, mas não se impressionou com a música brasileira, a seu ver – e ouvir – igual a “qualquer outra”.
Vinte e quatro horas depois de haver desembarcado, o escritor já acreditava ser o Brasil “uma terra sem homens” – e anotava: “Tudo é criado aqui à custa de esforços desmedidos. A natureza sufoca o homem”. Da janelinha de um avião, concluiu que “a terrível solidão dessa natureza explica muitas coisas deste país”. A certa altura, indagou-se: “Será que sinto vontade de passar alguns anos no Brasil?” – e cravou sem titubeio: “Não”.
Despreocupado de produzir análises profundas, Camus mesmo assim largou no papel um diagnóstico dos nativos: “Observo”, escreveu, “a refinada polidez brasileira, talvez um pouco cerimoniosa, mas que, mesmo assim, é melhor que a malandragem europeia”. Deixou também uma profecia de fazer inveja à retórica mais incendiária: “O Brasil, com sua armadura moderna, como uma chapa metálica sobre este imenso continente de forças naturais e primitivas, me faz pensar num edifício, corroído cada vez mais de baixo para cima por traças invisíveis. Um dia, o edifício desabará, e todo um pequeno povo agitado, negro, vermelho e amarelo espalhar-se-á pela superfície do continente, mascarado e munido de lanças, para a dança da vitória”.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

A virtude do silêncio - Leandro Karnal

Benjamin Moser cita (faço sem consultar o texto lido há alguns anos) que Clarice Lispector foi convidada para um jantar com um conhecido. O anfitrião, desconhecendo a pouca afeição da autora à sociabilidade, convidou outro casal. Na saída, irritada, a mais brasileira das ucranianas disse que não sabia que haveria muita gente à mesa. O episódio aqui mal citado de memória remete ao conto O Jantar, da mesma Lispector, traz o trivial relido sob a subjetividade de um observador. Aparentemente, o conto parece indicar uma pessoa, Clarice, mais feliz em observar alguém jantando do que em participar de uma refeição como comensal ativa. 
Ela ficava atormentada com a presença de muita gente. Entendo-a. Infelizmente, não posso ter a justificativa dela de ser tão brilhante na percepção do indizível que a algaravia externa atrapalhe. Uma mulher genial como Clarice pode dizer: “Não fiquem conversando comigo, pois estou criando A Paixão Segundo GH”. O mundo se calaria com respeito similar aos milaneses que, diante do prédio onde o compositor Verdi convalescia, colocaram feno nas ruas para que as carruagens e cavalos não perturbassem a enfermidade grave do criador de melodias da Traviata. Para Clarice e Verdi, teríamos o obséquio da mudez. Gênios podem ser chatos, misantropos isolados para que saia a obra definitiva e impactante. Nós? Seremos apenas chatos ao querer silêncio ou isolamento. 
O mundo oferece sístoles e diástoles sociais, como um coração. Expande-se ou contrai-se o órgão, cumprindo suas funções vitais. A função pública, a vida em meio a grupos, palestras e aulas e todo o processo expansivo, faz parte de algo natural e até desejável. As ocasiões sociais ensinam, introduzem novas pessoas e desafiam no sentido positivo. Acho que, com o tempo e a personalidade, tendemos a querer um pouco mais de isolamento.
Li que os finlandeses valorizam muito o silêncio, que só deveria ser quebrado em um transporte público tendo em vista mal iminente. A notícia me faz desejar Helsinque como alguns anelam Paris. Imagino um ônibus onde eu esteja imerso em um livro e ninguém, jamais, nunca tenha a ideia de perguntar se o livro é bom. Essa questão, para mim, é similar a interromper um casal no meio de uma relação erótica e pedir aos envolvidos uma avaliação minuciosa do momento e se recomendam alguma carícia em particular. 
Sou colocado em uma sala esperando uma palestra ou outro evento. De repente chega alguém, compadecido da minha solidão, e decide que seria gentil ficar comigo conversando. Sou bom em conversa rápida com pessoas desconhecidas. É um treino de anos. Etimologia do nome da pessoa, dados familiares, pequenas questões sobre algum símbolo ou joia que o interlocutor esteja usando, comentários interessantes para preencher o silêncio e o vazio. A questão é que o vazio não precisa ser preenchido porque ele não é ruim. O silêncio externo aguça o interno. Tenho saudade dos Exercícios de Santo Inácio de Loyola, um mês de retiro em quase total silêncio. A ordem religiosa dos trapistas e seus prolongados períodos de silêncio também me animam muito. Li o grande trapista Thomas Merton prestando atenção se a sabedoria dele era fruto do que ouvira ou do que calara. 
Sim, querida leitora e estimado leitor: gosto de companhia e de conversas. Tal como Harold Bloom, confesso que é difícil a competição entre o mundo descrito nos livros e as conversas em geral. 
O coração funciona entre aberturas e fechamentos. Retraindo e expandindo, ele cumpre sua missão. Surgiu uma categoria nova de silêncio: o dos celulares. Nada falo, mas fico digitando e tagarelando pelos dedos. Pior, preguiçosos em geral adoram gravar mensagens de voz, algo que abomino profundamente. Alguém pode ser um gênio e dizer que não deseja muitos convidados. É o silêncio brilhante da Clarice. Alguém pode transmutar-se em místico denso e fascinante como um trapista. É o silêncio de Merton. Por fim, alguém pode dizer a um político desagradável ¿Por qué no te callas? É a vontade de silêncio real de Juan Carlos. Gênios, santos e reis podem adotar ou impor o silêncio. Nós, mortais atarefados ou entediados, temos de falar e de ouvir sempre. Nosso laconismo não é adornado pelo QI extraordinário, pela coroa da glória celeste ou pelo diadema real das Espanhas. Porém, caberia aqui o desejo utópico de um botão on e off sobre o barulho circunstante? Não apenas conversas, mas gente vendo vídeos sem fone de ouvido no avião, pessoas narrando seu cotidiano de um desesperador tom sépia e, por fim, sibilar de vozes gravando ou ouvindo longuíssimos trechos narrados ao celular...
O mundo é um lugar barulhento. Dizem que os anjos cantam hosanas sem cessar no céu. O inferno, afirma-se, tem o som forte de choro e ranger de dentes. Haveria um espaço sem barulho algum? Teremos de buscar na Finlândia esse paraíso terreal repleto da paz imperativa do silêncio? Ruas sem buzinas, salas sem celulares, aeroportos sem avisos e o débil som das folhas do outono caindo, farfalhando, tênues e poéticas. O que será que ouviríamos se não fôssemos todos algozes do frágil silêncio? É preciso ter esperança.

Como era Paris - Luis Fernando Verissimo

Nada identificava Paris como a Torre Eiffel, os Champs Elysées e a Notre Dame. E as pessoas vinham de Paris com histórias inacreditáveis. Em Paris as mulheres fumavam na rua. Em Paris viam-se casais se beijando (na boca!) nos bancos de praça. Também se comentava que os parisienses não gostavam muito de banho, e que viajar apertado com eles num metrô era um teste de tolerância com os cheiros dos outros. Mas isso talvez se devesse à escassez de água quente nos prédios antigos, onde elevador também era uma raridade. 
Quem vinha de Paris falava muito nas “caves”, porões em que se conversava, se bebia vinho, às vezes se ouvia jazz e, acima de tudo, se fumava, se fumava muito. Falava das “concierges” dos velhos prédios, uma raça conhecida pela sua misantropia, que só perdia em rabugice para motoristas de táxi, mas que era quem fazia a cidade funcionar. Parisienses eram irritadiços e impacientes com estrangeiros. Em compensação, você podia sentar numa mesa do Café de Flore ou do Les Deux Magots, no Boulevard Saint-Germain, pedir um cafezinho e passar a tarde, esperando que o Sartre e a Simone de Beauvoir começassem uma briga na mesa ao lado. 
Algumas coisas não têm mais. Não se sabe que fim levou as velhas “concierges”, todas substituídas por portuguesas ou portugueses. Especula-se que estejam todas num retiro onde passam o tempo se intrigando mutuamente. Os motoristas de táxi, pelo menos na nossa experiência, civilizaram-se. Há água quente para quem quiser. Um problema persistente é o despreparo da cidade para enfrentar o calor: só agora o ar refrigerado se banaliza, certamente por exigência dos turistas. O Café de Flore e o Deux Magots continuam lá, mas são poucas as probabilidades de o turista ver alguém conhecido. A não ser algum turista da sua própria cidade, claro.
Quando conheci Paris, os ônibus ainda eram aqueles com uma sacada atrás. Se você perdesse o ônibus podia persegui-lo e tentar pular na sacada – coisa que, mesmo com 60 anos menos, eu nunca fiz. Lembro da primeira vez em que saí do buraco do metrô e dei com o Champs Elysées e, de repente, tudo que eu tinha ouvido contar da cidade e seu cosmopolitismo se materializou ali na minha frente, na grande avenida. Eu estava, decididamente, em outra ideia de urbanismo, em outra ideia de civilização. Um pouco disso pode ter desabado com o teto da Notre Dame, mas sua reconstrução estará em breve em alguma outra lista de memórias. 

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Telefonistas - Luis Fernando Verissimo

Uma importante evolução na história da telefonia, paralela ao avanço técnico, foi no linguajar das telefonistas. O “alô” varia de língua para língua – “olá”, “hello”, “pronto”, o enigmático “está lá” de Portugal, etc. – mas o que vem depois, ou o que a telefonista diz antes de dizer que quem você procura está em reunião, também vem se modificando com o tempo. Consagrou-se, por exemplo, o “quem gostaria?”. É uma abreviação da frase “Quem gostaria de falar com o Dr. Fulano se ele não estivesse em reunião?”, claro, mas, mesmo assim, é uma frase inquietante, como todas as frases incompletas. Você sabe que só precisa dizer o seu nome, mas fica com a impressão de que estão falando de outro. De alguém de quem você é apenas um porta-voz.
Você hesita. Ela repete:
– Quem gostaria, por favor?
– Ahn... ele.
– Quem é ele?
– Eu. “Ele” sou eu.
– E quem é o senhor?
– Eu sou o que gostaria.
– Seu nome, por favor.
– Por que não disse isso antes? Meu nome é...
Resolvida a questão de quem gostaria, passa-se para outra questão, mais difícil.
– De onde?
– Como?
– De onde?
– Bem... Daqui.
– Daqui onde, por favor?
– De onde eu estou falando!
Ela quer saber que empresa, que organização, que entidade privada ou pública, que interesses, que outra esfera de realidade além da sua insignificante pessoa física, está por trás da sua chamada. Não adianta tentar brincar, e dizer coisas como “Da barriga da mamãe”. Telefonistas não estão ali para brincadeiras. Telefonistas estão ali para saber quem gostaria, e de onde gostaria.
– De onde?
– É particular.
– Um momentinho, por favor.
Aí entra a musiquinha. Outra novidade relativamente recente no mundo da telefonia é essa: momentinhos têm musiquinhas. Como o momentinho raramente faz jus ao diminutivo, a musiquinha se prolonga e já houve casos de um momentinho durar por todo o ciclo dos Nibelungen de Wagner e mais um pouco de Djavan. Finalmente:
– O dr. Fulano está em reunião.
– Obrigado.
Você liga de novo. Identifica-se como quem gostaria e diz de onde.
– O senhor não acabou de telefonar? Eu disse que o dr. Fulano está em reunião.
– Eu sei, mas desta vez só quero ouvir a musiquinha.
*
Não se queixe. Se você conseguiu falar com uma secretária, é um dos afortunados do mundo.
As secretárias estão sendo substituídas por uma voz mecânica, que lhe dá instruções, não quer conversa e, por alguma razão, lhe odeia. “Se quiser falar com o dr. Fulano tecle 1 mas não adianta porque ele está em reunião. Relações públicas, tecle 2, Novos negócios, tecle 3. Propinas e delações, tecle...”
– Pare! Não é possível ter um contato humano com alguém nessa empresa?
“Contato humano, tecle 5.”
Você finalmente desiste e tenta ser simpático.
– Essa sua voz... Eu não conheço você de algum GPS?

domingo, 14 de abril de 2019

Corruptelas - Luis Fernando Verissimo

“Corrupção” vem do latim “rumpere”, ou romper, quebrar. Da mesma origem latina vem a palavra “rota”, através de “ruptura”, que virou “rupta” (um caminho aberto) no latim vulgar e está na origem do francês “route”, rota, e também de “rotina”. “Corrupção” e “rotina” vão se encontrar no Brasil moderno. A culpa não é do nosso caráter, é da etimologia
Quem busca as origens das palavras pode, muitas vezes, se ver atacado por elas, por trás. O francês que for procurar no Google, como eu, a origem do anglicismo “cocktail” esperando descobrir alguma coisa envolvendo o galo e seu rabo descobrirá que a palavra vem de “cocklay”, uma corruptela, na língua “creole” do sul dos Estados Unidos, de “coquetier”, um cálice para ovos, em francês.
O que não o impedirá de continuar pedindo “um coctel” sempre que quiser “um dry Martini” ou “um old fashioned” antes de comer “um biftek”, que vem do inglês “beefstake”, ou steak de “beef”, corrupção inglesa do francês “boeuf”.
O mesmo francês, enquanto joga golf acompanhado de “um caddie”, palavra que vem da Escócia mas só estava lá de passagem porque é uma adaptação do francês “cadet”, pode comentar que esteve no México e se maravilhou com as bandas de “mariachis”, sem saber que “mariachi” vem de “marriage”, pois era a música tocada nos casamentos durante a ocupação do México por quem? Pelos franceses.
O mesmo francês, quando usa “les jeans” pensando que são uma invenção americana não sabe que a palavra vem da pronuncia inglesa de “Gênes”, Genova em francês, pois era em Genova que fabricavam o tipo de tecido usado nas primeiras calças jeans.
E você quer saber de onde vem a palavra “sicofanta”, também muito em moda no Brasil de hoje? Antigamente queria dizer informante, ou, em grego, quem mostrava onde estavam os figos. “Sukon” era figo e “phantes”, o que mostra. Isto porque havia um animado tráfico de figos na época e os contrabandistas da fruta eram perseguidos pelas autoridades. Sempre o tráfico.
O que seria de nós sem o Google?

quinta-feira, 11 de abril de 2019

A visita do marajá - Luis Fernando Verissimo

O nosso quintal é bem frequentado por pássaros. Alguns vistosos e certamente famosos, que ornitoleigos como eu não saberiam identificar pela plumagem e o porte. Muitos sabiás – os únicos que eu conheço o nome – em constante atividade, catando material e comida para os seus ninhos. Pelo seu número e movimento, desconfiamos de que existe um condomínio de sabiás por aqui, e que o nosso quintal é o centro comercial mais próximo. Mas a maioria é do gênero “passarinho comum”, pequeno e sem graça, da cor, assim, de passarinho. É o povão.
Certa tarde, houve um pequeno alvoroço doméstico. Aparecera um pássaro estranho, nunca visto antes, pousado na pereira. Entre o médio e o grande, com uma longa cauda bifurcada, cinzenta com círculos brancos, e um ar de nobreza enfarada. Ficamos admirando-o, falando baixo para não espantá-lo, e ninguém da casa sabia o que era. Tive que ir ganhar a vida e não pude assistir a sua partida, mas me contaram que ele decolou com a mesma empáfia com que examinara o quintal e suas circunstâncias durante sua breve estada conosco, claramente insatisfeito. O cenário não estava à sua altura.
A velha pereira ainda dá pera, mas com um grande esforço, e só para não sucumbir à amargura comum aos aposentados sem ocupação. Os outros pássaros mantiveram uma distância reverencial do visitante. Conheciam o seu lugar. Era óbvio que ele pousara no lugar errado.
Fiquei pensando em como o maravilhoso pode nos pegar desprevenidos. Era como se um marajá e seu séquito tivessem batido na nossa porta e só o que tínhamos para lhes oferecer era, sei lá, Coca Zero. Perdemos uma oportunidade, não sei bem de quê. Podíamos ao menos tê-lo fotografado, nem que fosse para uma hipotética futura biografia da pereira, em cuja longa vida o único acontecimento notável até então tinha sido a orquídea misteriosa que lhe nasceu espontaneamente numa forquilha. Agora é tarde. Duvido que o visitante volte. Nós o decepcionamos. Não estávamos preparados para ele.
DISPENSÁVEL
(Da série “Poesia numa hora dessas?!”)
Andávamos na areia de mãos dadas
fazendo o possível para ignorar
o pôr de sol de sete tons,
o arco-íris, a lua cheia e o mar,
tudo como num mau pastiche...
Nosso amor dispensava
o kitsch.

PEC & Pague - Antonio Prata

Vanda vinha do interior da Bahia e de dentro de um livro de Charles Dickens. Caçula de nove filhos, aos sete anos foi dada pela mãe, incapaz de sustentá-la, a uma conhecida. Trabalhou de graça na casa da mulher até os 15, então pegou um ônibus e fugiu para São Paulo. Quando eu ou minhas irmãs a importunávamos com nossas demandas de criança mimada, nos contava histórias da infância de gata borralheira, fazia-nos apertar seu nariz, quebrado por uma das filhas da "patroa" com um rolo de amassar pão e nos expulsava da cozinha: "Sai pra lá, peste, e me deixa acabar essa janta!".
Vanda cozinhava, limpava, lavava roupa e passava. Morava num quartinho nos fundos da casa, ao lado do tanque e da máquina de lavar roupa, aonde era vedada a minha entrada. Às vezes, a via pela porta entreaberta: de bobes na cabeça, falando ao telefone ou pintando as unhas dos pés, sob o lusco-fusco da TV preto e branco.
Nos fins de semana, arrumava-se toda e ia para a casa de umas primas, na periferia. Um domingo, levou-me junto, para um churrasco. Lembro de ter me saído estranhamente bem no futebol com os meninos da rua, lembro de mulheres curiosas pegando no meu cabelo loiro, lembro das gargalhadas que explodiram quando apontei a carne na grelha e perguntei se era picanha.
Levei muitos anos para entender a graça da minha pergunta. Levei muitos anos, também, para entender por que não nos referíamos à Vanda como "nossa empregada", mas como "a moça que trabalha lá em casa" --tentativa inútil de contornar o incômodo daquela anacrônica e persistente relação.
Vanda viveu e trabalhou conosco por 15 anos. Depois que crescemos e saímos de casa, minha mãe e meu padrasto resolveram não ter mais uma empregada morando lá. Falaram com amigos e arrumaram outra família para Vanda trabalhar. A patroa nova foi pegá-la uma noite, depois do jantar --a mudança da Vanda coube no porta-malas do carro.
Fiquei dez anos sem vê-la. Em 2011, caminhando por uma praia do litoral norte, ouvi um grito: "Tunim!". Ali estava ela, fazendo um castelo de areia, com os filhos da patroa. "Meu menino, meu menino!", ela repetia, me abraçando e chorando --eu fiquei tocado, mas não chorei. Naquela tarde, contou-me que ia se aposentar e voltar pra Bahia, onde estava terminando de construir uma casa, com suas economias. Ano passado, ela voltou: aos 60 e tantos anos, pela primeira vez desde os sete, dormiu num quarto que não pertencia a seus patrões.
Estranha sensação ao escrever esta crônica. Parece que falo da minha infância de menino de engenho, no interior de Pernambuco, no século 19, não da infância de um filho de jornalistas, numa casa geminada no Itaim Bibi, no final do século 20. Estranheza que confirma a profecia de Joaquim Nabuco (relembrada por Caetano Veloso, em "Noites do Norte"): "A escravidão permanecerá por muitos anos como a característica nacional do Brasil".
Característica que, lentamente, vamos deixando para trás, no início do século 21. Lentamente, pois ser empregada com FGTS, caixa de supermercado ou atendente de telemarketing ainda é muito pouco diante do que a vida pode oferecer -mesmo comendo picanha ou tomando banho com sabonete Dove.

Do nada - Luis Fernando Verissimo

É inescapável. Em todas as teorias sobre a origem do Universo sempre se chega a um ponto em que a única explicação possível é a geração espontânea. Do nada se criou a matéria. Acontece o mesmo com as anedotas. Você não conhece ninguém que tenha inventado uma anedota.
Elas surgem do nada, aparentemente autogeradas. Quem conta uma anedota sempre a ouviu de outro, que a ouviu de outro, que a ouviu de outro, que não se lembra onde a ouviu. Se contar anedota fosse crime, sua repressão seria dificílima. Prenderiam os traficantes, a arraia-miúda, mas jamais chegariam ao distribuidor, ao capo. Ao autor.
Os humoristas profissionais não fazem anedotas. Fazem piadas, frases, cenas, histórias. Mas as anedotas que correm o país não são deles. Uma boa anedota geralmente tem o rigor formal de um teorema: exposição, desenvolvimento, desenlace. Elas variam de acordo com quem conta. Grande parte do sucesso de uma anedota depende do estilo de quem a conta. Existem contadores de anedotas eméritos. E casos pungentes de grandes contadores que, com o tempo, perdem sua habilidade até chegarem ao vexame de, um dia, esquecerem o fim de uma anedota.
– E aí o anão pega o desentupidor de pia e...
– E o quê? – Espera. Como é mesmo? Já me vem...
– Não! Pior do que esquecer o fim da anedota é só se lembrar do fim.
– Como é mesmo aquela? Termina com o homem dizendo pro índio “Fica com o escalpo mas me devolve a peruca”. Puxa...
Há quem diga que todas as anedotas são variações sobre dez situações básicas que não mudam há séculos. Deus, depois de dar a Moisés a tábua com os Dez Mandamentos, o teria chamado de volta e dito:
– E esta é a das anedotas.
Contam que, preocupado com a imagem de sombria falta de graça do regime comunista, Stalin teria formado um Ministério do Humor para incentivar a produção de anedotas em todo o território da União Soviética. Vários ministros tentaram mas não conseguiram fazer com que surgissem boas anedotas, e foram mandados para a Sibéria por terem fracassado. Finalmente, um ministro acertou, criou um concurso e, com promessas de prêmios como fins de semana no Mar Negro para os vencedores, provocou uma onda de anedotas, todas contra o Stalin, que tiveram grande aceitação popular. E assim o ministro escapou de ser mandado para a Sibéria por ter fracassado. Foi mandado para a Sibéria por ter espalhado anedotas sobre o Stalin.
A anedota costuma ser uma grande manifestação de inteligência clandestina, que mantém vivo o espirito crítico – o que não justifica que seja estudada com rigor acadêmico, o que só lhe tiraria a graça. Mas quem quiser saber o que pensavam os brasileiros dos seus líderes desde o primeiro Pedro deve procurar nas anedotas, não na história oficial.
O fato é que um computador poderá, um dia, escrever sozinho teses e romances, mas duvido que possa inventar anedotas. Não adiantará alimentá-lo com os ingredientes necessários, ele jamais saberá o que fazer com o anão e o desentupidor de pia.

A Mordaça - Nílson Souza

Sábado é o meu dia livre. Esse descompromisso semanal me torna melhor observador do mundo. Então, capto histórias corriqueiras da vida, no passeio pelo calçadão, na feira, na vizinhança.
Caminho em marcha acelerada, como fazia no quartel e como recomendava o doutor Moriguchi. Ainda assim, ouço fragmentos de conversas de outros frequentadores do local:
– Dói tanto, que não consigo nem abrir os olhos – diz a senhora da bengala, passos lentos, amparada pela acompanhante.
– Não corre, Dudu! – grita a mãe para o menininho que cai na grama e prossegue engatinhando na direção da pracinha.
– Ele disse que eu era lindinha e que queria dançar comigo – conta uma adolescente para a outra, ambas sentadas num banco de madeira.
Penso na esfinge da lenda: três pernas ao anoitecer, quatro ao amanhecer e duas ao meio-dia.
Sou semianalfabeto em verduras e legumes, mas não perco a feira de produtos orgânicos. Observava intrigado uma espécie de capim grosso numa das bancas quando dois fregueses falaram ao mesmo tempo:
– Quanto é o alho-poró?
A vendedora olha para ambos:
– Custa três e cinquenta, mas só tem esse maço.
Os pretendentes, uma mulher e um homem, se fitam. Quem levará? – me pergunto. Ela toma a iniciativa:
– Três ramos para você, três para mim.
A solidariedade entre estranhos custou pouco: R$ 1,75 para cada um.
O menino tem cinco anos e descobriu uma fórmula para ser ouvido: inventa raps. A mãe já não suporta a chorumela diária. É o rap do motorista, o rap do futebol, o rap da escola, tudo o que passa por sua rotina vira discurso cantado. É o próprio bardo das aventuras de Asterix. Qualquer coisa é motivo para uma cantoria que ninguém quer ouvir. Com uma diferença: ele sempre pede licença para a mãe antes de soltar o verbo. Já ouvi várias vezes esse diálogo:
– Mãe, posso cantar?
– Não, agora não. Vê se fica quieto um pouco.
– Mas eu não consigo...
Outro dia ele obteve a licença e repetiu 150 vezes a mesma frase, mais ou menos como fazem os rappers profissionais, até que a plateia de dois ouvidos chegou à exaustão.
– Vou te botar uma mordaça! – disse a mãe.
A resposta do gabrielzinho pensador foi demolidora:
– Aí eu não vou poder mais dizer que te amo.

Beatriz (Uma palavra enorme) - Mario Benedetti


Liberdade é uma palavra enorme. Por exemplo, quando terminam as aulas, pode-se dizer que uma pessoa fica em liberdade. Enquanto a liberdade dura, você passeia, brinca, não tem por que estudar. Dizem que um país é livre quando uma mulher qualquer ou um homem qualquer pode fazer o que lhe der na cabeça. Mas até nos países livres tem coisas proibidas. Matar, por exemplo. Mas aí que está, matar mosquitos e baratas pode e vacas também, para fazer churrasco. Por exemplo, é proibido roubar, mas não é tão grave ficar com umas moedinhas quando Graciela, que é minha mãe, me manda fazer alguma compra. Por exemplo, é proibido chegar tarde à escola, embora nesse caso tenha que escrever uma cartinha, ou melhor, Graciela tem que escrever uma cartinha justificando por quê. É o que diz a professora: justificando.

Liberdade quer dizer muitas coisas. Por exemplo, se você não está presa se diz que está em liberdade. Mas meu pai está preso e no entanto está em Liberdade, pois é assim que se chama a prisão onde está há muitos anos. Tio Rolando chama isso de sarcasmo. Um dia, contei a minha amiga Angélica que a prisão em que meu pai está se chama Liberdade e que tio Rolando tinha dito: que sarcasmo, e minha amiga Angélica gostou tanto da palavra que quando seu padrinho lhe deu um cachorrinho ela botou o nome de Sarcasmo. Meu pai é um preso, mas não porque tenha matado ou roubado ou chegado tarde à escola. Graciela diz que meu pai está em Liberdade, ou seja preso, por suas ideias. Parece que meu pai era famoso por suas ideias. Eu também tenho ideias, às vezes, mas ainda não sou famosa. Por isso não estou em Liberdade, ou seja não estou presa.


Se estivesse presa, gostaria que minhas bonecas, Toti e Mónica, também fossem presas políticas. Porque gosto de dormir abraçada pelo menos com a Toti. Com a Mónica nem tanto, porque é muito resmungona. Eu nunca bato nelas, sobretudo para dar bom exemplo a Graciela.


Ela já me bateu umas poucas vezes, mas quando faz isso eu queria ter muitíssima liberdade. Quando me bate ou ralha comigo eu a chamo de Ela, porque ela não gosta que a chame assim. É claro que tenho que estar de muito mau humor para chamá-la de Ela. Se, por exemplo, meu avô chega e pergunta onde está sua mãe e eu respondo Ela está na cozinha, todo mundo sabe que estou de mau humor, porque quando não estou de mau humor digo só Graciela está na cozinha. Meu avô sempre me diz que sou a mais mal-humorada da família e isso me deixa muito contente. Graciela também não gosta muito que eu a chame de Graciela, mas eu chamo porque é um nome lindo. Só quando gosto muito, muito dela, quando a adoro e a beijo e a aperto e ela diz ai pequerrucha não me aperte assim, então eu a chamo de mamãe ou mami, e Graciela se comove e fica toda derretida e faz carinho no meu cabelo, e isso não seria assim tão bom se eu a chamasse de mamãe ou mami por qualquer besteira.


De forma que liberdade é uma palavra enorme. Graciela diz que ser um preso político como meu pai não é nenhuma vergonha. Que é quase um orgulho. Por que quase? É orgulho ou é vergonha? Gostaria que eu dissesse que é quase vergonha? Estou orgulhosa, não quase orgulhosa, de meu pai, porque teve muitíssimas ideias, tantas e tantas que foi preso por causa delas. Acho
que agora meu pai vai continuar tendo ideias, ideias espetaculares, mas é quase certo que não fale sobre elas com ninguém, porque se falar, quando sair da Liberdade para viver em liberdade, podem fechá-lo outra vez na Liberdade. Estão vendo como é enorme?
 



* Este texto é um dos capítulos  do livro "Primavera Num Espelho Partido"

A máquina de costura da vó - Fabrício Carpinejar

Minha avó se refugiava na máquina de costura preta de tardezinha. Antes do crepúsculo. No quartinho dos fundos de sua casa, em Guaporé. Consistia em um dos poucos períodos em que ela ficava absolutamente calada. Quando cozinhava, ela conversava. Quando varria, cantava. Quando costurava, emudecia completamente.

Ela fazia os seus próprios vestidos. E os vestidos floridos das filhas. Não se gastava com roupa naquela época, só em casos extremos como velório. Só na morte de alguém é que se ia na loja, numa espécie de deferência a quem partiu.

Todos na cidade eram alfaiates de seus trajes. Alfaiates de seus corpos. Conheciam as medidas e os respectivos pesos de cada integrante da família.

Aquele barulho me tranquilizava, acredito que seja o som mais terno da minha vida. Nem a chuva nas calhas se mostrava tão melódica. Nada se igualava à sinfonia da agulha cerzindo, em linha reta. Parando, voltando, a roldana sendo girada para prensar o pano.

Nona Elisa de óculos, a conferir o caminho preciso do esquadro de seus dedos. Virava o tecido, desvirava. Ajeitava, retomava. Parecia que não ia dar certo a operação, tamanha as idas e vindas, mas ninguém notava depois onde estava a linha. Invisível. Trabalho secreto de anjo.

Eu gostava de me sentar embaixo da mesinha. No espaço apertado dos seus chinelos. Como um cachorro. Um cachorro menino. Às vezes, ela fazia carinho em meus cabelos e unia as nossas imaginações por um breve momento.

O vestido descia da mesa assim que o trabalho evoluía. Fechava as frestas de luz como uma cabana. Em seguida, ele subia de novo, trazendo a claridade. Brincava assim de noite e dia, de claro e escuro. Como se a máquina de costura também fosse uma máquina de tempo, permitindo folhear o calendário dentro de mim.

Permanecia eternidades naquele esconderijo sem me mexer, atento aos rompantes sonoros, aos trovões dos ganchos de metal. A vó vestia a minha solidão. Repartia com ela o que há de mais precioso numa amizade: o silêncio. A doçura do silêncio. Estar junto, quieto, sem a necessidade das palavras para amar.

Calçadas - Luis Fernando Verissimo

O inglês tem um verbo curioso, “to loiter”, que quer dizer, mais ou menos, andar a esmo, ficar à toa, vagabundear, zanzar (grande palavra), ou simplesmente não transitar. E, nos Estados Unidos (não sei se na Inglaterra também), “loitering” é uma contravenção. Você pode ser preso por “loitering”, ou por estar parado em vez de transitando, numa calçada.

O que constitui “loitering” e portanto crime e o que é apenas inocente ausência de movimento ou direção depende da interpretação do guarda. Ou da mesma sutil percepção que define o que é e o que não é “atitude suspeita”.

É difícil imaginar outra coisa que divida mais nitidamente o mundo anglo-saxão do mundo latino do que o “loitering”, que não tem nem tradução exata em língua românica, que eu saiba. Se “loitering” fosse contravenção na Itália, onde ficar parado na rua para conversar ou apenas para ver os outros transitarem é uma tradição tão antiga quanto a sesta, metade da população viveria na cadeia. Na Espanha, toda a população viveria na cadeia.

Talvez a diferença entre os Estados Unidos e a Europa e a América latinas e a vantagem econômica dos americanos sobre os povos que zanzam se expliquem pelos conceitos diferentes de calçada: um lugar utilitário por onde se ir e vir ou um lugar para se estar, de preferência com outros. Os franceses, apesar de latinos, não usam tanto a calçada como sala, mas lá os cafés costumam invadir as calçadas, e temos o “loitering” sentado.

Não tenho nada contra shopping centers. Acho mesmo que são o lado positivo da americanização do mundo. Mas as grandes cidades brasileiras que perderam seus centros com a proliferação dos xópis perderam também o prazer da calçada como ponto de encontro e de papo ocioso. Sem falar na falta de segurança que nos transformou em bichos assustados que hesitam em sair da toca. O resultado é que, nas nossas calçadas, não somos mais latinos folgados nem americanos apressados. Somos no máximo transeuntes (horrível palavra).

Que fatos? - Luis Fernando Verissimo

A máxima do Marx, segundo a qual a História só se repete como farsa, tem uma versão brasileira: aqui a História não se repete, se corrige. Discute-se se o que houve em 64 foi um golpe ou uma revolução redentora, e o que veio depois foi ou não foi uma ditadura de 20 anos. Uma facção sustenta que houve, sim, um golpe e uma ditadura e que os fatos confirmam isso, outra facção sustenta que nunca houve golpe e os 20 anos de ditadura foram um mal-entendido, uma terceira facção aceita que houve um golpe e uma ditadura e os fatos confirmam isto, mas que não se deve dar importância demais aos fatos. O fatos são volúveis, os fatos são tiranos, não é justo que a memória de uma nação se submeta aos fatos sem poder reagir. 
Por exemplo: por que devemos conviver com a lembrança cruel dos 7 a 1 na Copa de 2014 só por respeito aos fatos, que não tiveram nenhum respeito por nós e nosso futebol pentacampeão? Poderíamos eliminar os fatos da memória um por um, sem escrúpulos, pois se trataria da nossa paz de espírito, da autoestima nacional. Com a derrota dos fatos mandaríamos os alemães pra casa, humilhados. Não precisaríamos nem ganhar a Copa, bastaria nos livramos do 7 a 1. 
Quem acredita que podemos corrigir o passado pode se aproveitar do fato de termos um presidente que também acredita, e já anunciou isso várias vezes. Bolsonaro é da linha “Fatos? Que fatos?” como a maioria dos militares, que preferem exorcizar um passado incômodo ou insistir que salvaram a pátria, e só divergem na quantidade de truculência justificável para cumprir a missão. Não se sabe se Bolsonaro vai endossar a linha oficial de que a História se corrige ou vai deixar pra lá. De qualquer maneira, continuar negando que houve um golpe e 20 anos de um regime discricionário é continuar vivendo uma farsa.
“Marxismo cultural” é uma frase ominosa, aproxima-se demais de “macartismo cultural”, e é um pretexto para os estragos que pode fazer na educação e na produção intelectual brasileiras, se obscurantismo se impor. 

sábado, 6 de abril de 2019

O desabafo do apresentador - Marcelo Rubens Paiva

- Nosso tempo infelizmente acabou. Obrigado aos convidados de hoje...
Encerra a entrevista, olha para a câmera dois, vira a cadeira para ficar de frente, em plano americano, como indica o roteiro, e inicia sua despedida original, num texto que há anos segue à risca e se tornou já uma marca registrada, quase um bordão:
– E obrigado sobretudo você, assinante, sempre ligado no nosso programa. Sem você, nós não estaríamos aqui. Sem você, saiba que a síntese não se constrói no debate entre opiniões contrárias, e não chegamos a lugar algum. Sua audiência é o que nos faz refletir, buscar não apenas verdade, mas uma possível resposta que nos leve a aprofundar a visão que temos do todo e a elaborar mais perguntas, porque nosso papel é sempre questionar o que devemos questionar e ajudá-lo a encontrar um projeto, para florescer e germinar o consenso. Continue conosco.
Zoom in da câmera dois, para a despedida derradeira, o “boa-noite” cativante que faz fama e é imitado até pelas crianças. Mas que é surpreendentemente adiado. Ele continua:
– Deixa eu esclarecer uma dúvida. Nós não o estamos enganando. Assim como você, também temos questões, queixas. Fazer escolhas erradas faz parte do processo de aprendizagem. Porque a história não nasce pronta. Ela é construída por cada um de nós, de acordo com sucessos e fracassos. Tentativa e erro é uma experiência da essência humana. E, não, não somos robôs, apesar de muitos acreditarem que somos dispensáveis, já que alguns de nós apenas leem um roteiro previamente pautado, preparado, decorado ou visualizado no TP, diante da lente...
Indeciso, sem comando do diretor, mais o silêncio no estúdio e nos fones de ouvido conectados à sala de controle de cortes, o switcher, o operador da câmera dá um zoom out por conta própria, percebendo que o bordão sai do planejado. A deixa não é dada, e o apresentador não encerra o programa.
– Você no fundo não nos conhece. Não sabe no que acreditamos. Não sabe o que estamos sentindo. Nossos valores... Você acha que sim, conhece, afinal, nos prestigia há tantos anos com a sua audiência. Viu algum de nós na privacidade do lar, em matéria de revista de celebridades, mas era o personagem que você via, com a mesma máscara e sorriso cuja voz todo dia dizia boa-noite num estrondoso e potente grave, como o meu. Viu fotos dele na banheira. Mas não tem ideia de como ele é, o que pensa. E é por isso que você, telespectador, deve ficar atento e não cair na tentação de negar seus valores. Estamos aqui para ajudá-lo a encontrar uma saída para seus dilemas pessoais. Você que nos faz acordar todas as manhãs com uma missão. Você que nos exige apurar a notícia, checar informações, elaborar pesquisas, recolher dados confiáveis. Você que dá sentido à nossa grade, programação, investimento, fé. A você, meu muito obrigado e...
A voz pausada faz o câmera voltar seu zoom in, crente de que, agora sim, vem a despedida, o grande final, já que o tempo estourou com o inesperado improviso do apresentador. Close nele. Que olha fixamente para a lente.
– Vai se surpreender ao saber que estou só, muito só, perdido, quase desesperado... Milhões me assistem. Mas sou solitário. É, não tenho ninguém em quem me apoiar, a quem recorrer, nesse momento de quase pânico em que vivemos. Os dias estão contados.
Câmera desiste, abre um zoom out. Olha os entrevistados convidados. Um, o ex-ministro, dorme sentado. A especialista da universidade se distrai fazendo selfies e postando no que aparenta ser uma rede social. O terceiro tenta se livrar do seu microfone na lapela, cujo cabo se enrolou no seu ombro. Continua o silêncio abissal nos fones conectados à sala de controle. Ele não pode perguntar o que fazer, pois aquele diretor proíbe que se fale no estúdio, mesmo em tom moderado. 
Olha para os outros câmeras. O três abandonou o posto. Com pressa, pois estará no telejornal do estúdio vizinho. O câmera um desplugou seu fone, travou o tripé e foi se servir de café da garrafa térmica no fundo escuro do estúdio. O dois enfim o imita. Deixa a câmera ligada e o foco em plano americano. E vai tomar o café.
O apresentador abaixa a cabeça, toma um gole da garrafa de água que mantém no pé da mesa, que ninguém sabe o que tem dentro, mas fofocas dizem que é batizada, olha fixamente para a câmera dois. E continua:
– Quem não foi golpista? Ninguém mais estuda História. Toda a imprensa apoiou. O país estava indo para o buraco, à beira do precipício, um caos na economia, uma anarquia política. A polarização. Algo tinha que ser feito. Todos voltaram atrás. Era apenas para trocar a Presidência... 
Pausa, dá outro lado, como que para tomar coragem.
– CNN no Brasil, AT&T juntando Turner com HBO, Disney se juntando com a FOX, NBC, Hulu, esses malditos streamings, estava tudo tão bem, tão acabando com a gente. Netflix domina o mercado. Como vamos competir? Cadê a reserva de mercado? O brasileiro não é um patriota. Tem Google com YouTube, a Amazon, até a Apple, que estava feliz só com seus iPhones... Me sinto o dono de uma livraria, de uma empresa de motoboy, de uma locadora de vídeo. Me sinto um fax! Minha solidão só aumenta. Meu drama chegou ao limite. Quer saber de uma coisa?
Respira, dá outro gole de sua água batizada e conclui.
– Vão plantar banana! Vão pentear macaco! Vocês não são fiéis a nada, audiência de m... Vão pra...!
Piiiiiii...

terça-feira, 2 de abril de 2019

O poeta e seus bichos - Humberto Werneck

O cão Puck no traço de Drummond     
Foto: Carlos Drummond de Andrade

O amor de Carlos Drummond de Andrade pelos animais não era um amor qualquer. Foi posto à prova. Para começar, resistiu a uma queda de cavalo em Itabira, quando menino, pequeno desastre que descreverá, já maduro, em carta à sobrinha Flávia, como tendo acontecido, para mal de seus pecados, “diante de janelas e sacadas cheias de gente”, num episódio do qual saiu “mais encabulado do que machucado”. Com o vexame adicional de que se tratava de cavalo manso – tão pacato quanto outro pocotó que, no Pontal, a fazenda da família, lhe mordeu as costas. “Passear na fazenda”, contou Drummond numa entrevista, era um “castigo”: “As quedas de cavalo induziram-me a desconfiar dos encantos da vida ao ar livre”.
Mais que cicatrizes, das duas ocorrências lhe ficaram sequelas poéticas, uma delas no sarcasmo de Coro Familiar: “O cavalo mordeu o menino?/ Por acaso o menino ainda mama?/ Vamos rir, vamos rir do cretino,/ e se chora, que chore na cama”. Ou no tom de profecia em Os Bens e o Sangue: “Pedimos pelo menino porque já se ouve planger o sino/ do tombo que ele levar quando monte a cavalo./ – Vai cair do cavalo/ de cabeça no valo”. Em matéria de montaria, nada que se possa equiparar àquela outra, figurada, que também se desdobrou em versos, no fecho de O Quarto em Desordem – o soneto com que, tendo derrapado “na curva perigosa dos cinquenta”, o poeta festejou os deleitosos solavancos de um novo amor: “E esse cavalo solto pela cama/ a passear o peito de quem ama”.
No prosaísmo do dia a dia, Carlos Drummond de Andrade não se limitou a participar de iniciativas em defesa dos animais, quase sempre em companhia da amiga Lya Cavalcanti, conforme se contou aqui na semana passada. Seu engajamento nada tinha de platônico. Ele militou, por exemplo, na seção carioca da Sociedade União Internacional Protetora dos Animais, a Suipa, da qual foi a certa altura conselheiro. “Sou candidato ao Conselho Consultivo”, escreveu ele na véspera de eleições ali, em 1957 – e debulhou um compromisso de campanha: “Prometo aconselhar sempre com sabedoria, prudência e justiça, depois de ouvir, é claro, meus queridos conselheiros particulares: Puck (um cãozinho velho) e Inácio (um gatinho novo)”. 
No dia, porém, 13 de junho, em que aquela crônica foi publicada no Correio da Manhã, o conselheiro Puck já não vivia: na manhã de 5, o poeta e sua mulher, Dolores, o tinham levado a uma clínica veterinária na avenida Atlântica, envolto num lençol, para que, caso perdido, fosse piedosamente sacrificado. “Com 15 anos de vida, seu estado era lastimável, e não havia esperança de recuperação”, anotou Drummond em seu diário. “Uma injeção – e mais nada. Deixamos o corpo na clínica, e trago para casa, com o sentimento de perda, o de ingratidão.” Do veterano Puck – seria um samoieda, um spitz ou simplesmente um plebeu, fruto de emaranhada mestiçagem? – haveriam de ficar, além de lembranças de longa duração, algumas fotografias, numa das quais ele aparece aconchegado no abraço de seu dono. E como este era dotado também para as artes visuais, de Puck ficou ainda o delicado retrato a crayon que acompanha esta crônica.
O mesmo diário registrou também, entre os bichos de estimação do poeta, um canário que seu tio Elias deu à sobrinha-neta Maria Julieta. “Passarinho sem sorte”: um dia o vento derrubou a gaiola e lhe quebrou uma perna – problema que seria agravado quando o poeta teve a má ideia de promover uma confraternização do canário com “um periquito estúpido”, daí resultando ferimento ainda mais sério. Restou a Drummond esperar que a filha voltasse do colégio e sepultasse o passarinho nos fundos da casa, embalado numa caixinha de sabonete. Mesmo em Copacabana, havia quintais, naquele tempo. 
A família morava ainda no 81 da Rua Joaquim Nabuco, no Posto 6, em outubro de 1959, quando lá chegou Inácio, gato amarelo com listras brancas. Por um tempinho dividiu o espaço e o coração dos donos com Puck, que, a ano e meio do fim, o recebeu “com indiferença de senhor maduro”. Ambos já não viviam quando veio Crispim, felino “preto, barriga e pescoço brancos, focinho branco”, permanentemente “disposto à confraternização”. Se o nome lhe foi dado pelo dono, não terá sido escolha casual: Antônio Crispim foi um de seus pseudônimos nos anos em que foi cronista do diário oficial Minas Gerais, até trocar Belo Horizonte pelo Rio, em 1934. “Tenho hoje um grande amigo no escritório”, consignou Drummond em seu diário, e agregou ilustração: “No momento, aos 3 meses e meio de idade, ele me acaricia o queixo”. 
O trono de gato dos Drummond de Andrade teria um derradeiro ocupante, Garrincha. Dele se sabe que em meados de 1961 se transformara em “problema”: “Além de sujar constantemente na sala de estar e outros cômodos, com evidente descontrole nervoso, começou a procurar tensamente uma gata para amar”. Passava o tempo a miar, faminto, para as gatas do vizinho, “sem correspondência com a época do cio” de suas pretendidas. 
Para completar, Garrincha contraiu micose braba que ameaçava propagar-se não só para gatos das redondezas como para os bípedes da casa, entre estes um netinho que, vindo de Buenos Aires, onde viviam Maria Julieta e o genro Manolo, passava um tempo com os avós maternos. Drummond foi aconselhado a abandonar Garrincha no Passeio Público ou no Campo de Santana – mas repeliu a alternativa: “Com desfazer-me de um animalzinho que veio novo para nossa casa e que tanto se afeiçoou a mim, fazendo-me tão gentil companhia?”. O gato lhe resolveu o problema, desaparecendo de uma vez por todas. 
Uma grave decisão, àquela altura, já estava tomada: “Nunca voltarei a ter nenhum animal em casa”. 

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...