Mais umas semanas e estará fazendo 70 anos que Albert Camus pegou um navio em Marselha e veio dar com os costados no Brasil. Em junho de 1949, o escritor francês era ainda escassamente conhecido por aqui, mas aos 35 já havia publicado alguns dos livros – A Peste, O Estrangeiro, O Mito de Sísifo – que oito anos mais tarde lhe valeriam o Nobel.
Em missão cultural de seu país, Camus dividiu 50 dias entre Brasil, Argentina, Uruguai e Chile. Suas impressões permaneceriam em cadernos de notas, publicados postumamente em 1978 como Diário de Viagem, que sete anos mais tarde teria tradução brasileira. São, na verdade, dois relatos de viagem – aos Estados Unidos, em 1946, e à América do Sul, em 1949. Mais da metade das páginas é dedicada ao Brasil, onde o jovem escritor passou cinco semanas.
Às voltas com uma gripe que o calor dos trópicos e a asfixiante efusão dos anfitriões só fizeram piorar, Albert Camus é um viajante quase sempre depressivo, entediado, irritadiço, que ainda a bordo cogitou matar-se. Mal pôs os pés no Rio de Janeiro, foi engolfado por ensandecedora maratona de conferências, entrevistas, passeios e rega-bofes. Não escapou de ver tudo o que então se exibia a um intelectual estrangeiro em visita ao País: favela, macumba, candomblé, bumba meu boi. Viu dançar o frevo e pediu – não tivesse sido goleiro em sua juventude – para ir ao futebol. Os brasileiros, registrou, “literalmente deliram” ao saber que ele tivera “uma longa carreira” sob o travessão. “Encontrei, sem querer, sua paixão principal.”
Na contramão da maioria dos turistas, Camus não se embasbacou ante os cartões-postais do Rio de Janeiro. Viu com desgosto o Corcovado e seu “imenso e lamentável Cristo luminoso”. Considerou a Baía de Guanabara “espetacular” demais para seu gosto – haverá de preferir a de Salvador, que, “pelo menos, tem uma medida e uma poesia”.
Em terra, escandalizou-se instantaneamente com a sandice do trânsito carioca. “Os motoristas brasileiros ou são alegres loucos ou frios sádicos”, horrorizou-se Camus – que, por ironia, viria a morrer, 11 anos depois, num acidente de automóvel.
Não lhe faltou, porém, um ponta de humor acre, como na impiedosa descrição que fez de “Federico”, o poeta Augusto Frederico Schmidt, seu oferecido acompanhante em giros cariocas, o tempo todo acolitado por um jovem que Camus apresenta como “um señorito”, criatura que o levou à exasperação com a insistência em lhe empurrar uns camarões fritos. Otto Lara Resende, que ajudou a editora brasileira a identificar personagens do livro, não descobriu (ou não quis revelar) quem era o caricato “señorito”.
Tomado de antipatia, Camus descreve Schmidt a cuspir no prato as espinhas do peixe, lá do alto, sem curvar o corpanzil, com “destreza maravilhosa”, pois só uma vez não acertou no alvo. O poeta, anos mais tarde, passará recibo da hostilidade do visitante, e na morte dele, em 1960, rememorou horas “penosas” vividas na companhia de Camus, de quem guardou “uma impressão de dureza, de implacabilidade”.
Outras personalidades locais povoam o Diário de Viagem, quase sempre com a grafia estropiada que os franceses tantas vezes dão aos nomes estrangeiros. O jornalista Barreto Leite Filho virou “Barleto”, Manuel Bandeira (“pequeno homem extremamente fino”) perdeu o i, Murilo Mendes (“espírito fino e resistente”) se afrancesou em “Murillo Mendès” e Dorival Caymmi ganhou contornos árabes como “Kaïmi”, “um negro que compõe e escreve todos os sambas que o País canta”. Na pena de Camus, Madureira é “Maidedura”, “cachado” é cachaça e “junsahés”, sabe Deus o quê.
O forasteiro não esconde simpatia pelo ator e futuro escritor negro Abdias do Nascimento, que encenou sua peça Calígula e o introduziu aos mistérios da macumba. Em São Paulo, Oswald de Andrade lhe pareceu ser “um personagem notável (a desenvolver)”. Na companhia do antropófago, agora inapetente, visitou Iguape, no litoral paulista, experiência que lhe inspirou A Pedra Que Cresce, relato incluído em O Exílio e o Reino, de 1957.
Camus achou o Rio caótico, Porto Alegre feia e Recife, não uma Veneza brasileira, mas uma “Florença dos Trópicos”. São Paulo lhe caiu como “cidade estranha”, impressão quem sabe acentuada pelo fato de que o levaram, “não sei bem por que”, para conhecer o hoje demolido presídio do Carandiru, a ele apresentado como sendo “a mais bela” penitenciária do Brasil. Em Salvador, foi submetido a “pratos tão apimentados que fariam andar um paralítico”. Gostou do “barroco harmonioso” das velhas igrejas coloniais, mas não se impressionou com a música brasileira, a seu ver – e ouvir – igual a “qualquer outra”.
Vinte e quatro horas depois de haver desembarcado, o escritor já acreditava ser o Brasil “uma terra sem homens” – e anotava: “Tudo é criado aqui à custa de esforços desmedidos. A natureza sufoca o homem”. Da janelinha de um avião, concluiu que “a terrível solidão dessa natureza explica muitas coisas deste país”. A certa altura, indagou-se: “Será que sinto vontade de passar alguns anos no Brasil?” – e cravou sem titubeio: “Não”.
Despreocupado de produzir análises profundas, Camus mesmo assim largou no papel um diagnóstico dos nativos: “Observo”, escreveu, “a refinada polidez brasileira, talvez um pouco cerimoniosa, mas que, mesmo assim, é melhor que a malandragem europeia”. Deixou também uma profecia de fazer inveja à retórica mais incendiária: “O Brasil, com sua armadura moderna, como uma chapa metálica sobre este imenso continente de forças naturais e primitivas, me faz pensar num edifício, corroído cada vez mais de baixo para cima por traças invisíveis. Um dia, o edifício desabará, e todo um pequeno povo agitado, negro, vermelho e amarelo espalhar-se-á pela superfície do continente, mascarado e munido de lanças, para a dança da vitória”.