quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Quero avisar que o viaduto está para cair - Ignácio de Loyola Brandão

“O senhor sabe a quem pertence aquela ponte?
“Aquela? Não sei. Por quê?”
“Passei por baixo e vi que as juntas e parafusos e umas cordas velhas estão podres, ela vai cair.”
“E o que pretende fazer?”
“Avisar o departamento competente, antes de uma tragédia. Quem o senhor acha que cuida dela?”
“Quem cuida não sei, nunca se sabe. Ela pode ser da cidade, do Estado, da União, da ONU, da União Europeia, da Unesco, do Mercosul, do Dnit, da Vale, essa que nada vale agora, de alguma igreja, de uma ONG, de um catador de papelão, de um sem-teto.”
“Sabe de alguém que saiba?”
“Não sei, não.”
“Mas alguém precisa saber.”
“Imagine se alguém sabe. Tem ideia de quantas pontes e viadutos e passagens e pranchas e pontões e pinguelas e passadeiras e passadiços existem nesta cidade? Ou no País?”
“Não tenho a mínima.”
“Então não me venha com essa! Saiba primeiro de qual ponte, pontão, passadiço, pinguela, prancha, viaduto, passagem o senhor está falando. E não me confunda ponte com mata-burro. Depois, vá à Prefeitura, vá às Regionais, às secretarias, vá ao Trânsito, ao Ministério Público, ao Supremo, vá às Procuradorias que cuidam de pontes, pontilhões, passagens, passadiços, pranchas, pontões, pinguelas e faça um requerimento, pedindo a informação, reconheça a firma, pague os emolumentos, as propinas, as gorjetas, o que for necessário.”
“Não tem um departamento que cuide de tudo?”
“Tem, mas ninguém sabe qual. Precisa saber a que distrito a ponte pertence, em que ano foi construída, vão ter de procurar os projetos, as plantas, as licitações, os contratos, os alvarás, os aditivos, os pedidos de vista, as CPIs inúteis, localizar os processos no Tribunal de Contas, localizar onde estão, em que gavetas ou prateleiras, estantes ou escaninhos, cofres, receptáculos ou compartimentos, câmaras, camarinhas, concavidades, reservados, gabinetes, cofres ou algum caixote, caixinha, cestinho, vaso, alguidar, vasilha, lata, palangana, gomil, jarro, âmbula, cantil, concha, cumbuca, cápsula, gruta, água-furtada, sótão, bojo, boião, matraz, barrenhão, cuba, alcarraza, artóforo, edícula, sacrário.”
“Nossa, deixe-me anotar.”
“Não precisa, porque essa ponte ou viaduto ou pontilhão a que o senhor se refere vai ficar como está, vai até cair, porque esta cidade, meu senhor, está sem prefeito há décadas. Teve até um que, eleito, olhou, se desinteressou e deu às de vila Diogo...”
“O que é isso?”
“Uma expressão antiquíssima que quer dizer, tirou o dele da reta, caiu fora, deixou um substituto que nunca varreu a cidade, nunca fechou um buraco, limpou um bueiro, uma praça, não corta o mato. Ninguém fez nada pela cidade, mas se fez eu estava viajando, ou dormindo.”
“O que faço com a ponte, viaduto, pontilhão, pinguela que vi, está começando a cair?”
“Não faz nada, o senhor não vai conseguir fazer nada, tanta burocracia, embromação. E acaba sobrando para você. E eles lá não querem nada que os chateie. Ninguém quer. Melhor arranjar um emprego no gabinete de algum político, receber seu salário, depositar a porcentagem devida na conta que te mandarem, e ir ao cinema. Tem bons filmes passando, quase todos concorrendo ao Oscar. Por que não vamos juntos assistir a Nasce uma Estrela, com a Lady Gaga?”
“Mas, e a minha ponte?”
“Vai cair, não tem jeito.

Doença - Luis Fernando Verissimo


Santo Agostinho escreveu que, entre as tentações do homem, nenhuma era mais perigosa do que a “doença da curiosidade”. Era ela que nos levava a tentar descobrir os segredos da natureza, “que estão além da nossa compreensão, que em nada nos beneficiarão e que o Homem não deve saber”. Em outras palavras, o mesmo conselho que Deus deu a Adão e Eva no Paraíso, advertindo-os a não comer o fruto da árvore do saber para não contrair a doença. Eva – sempre elas – não se aguentou e comeu o fruto proibido. Resultado: perdemos o paraíso da ignorância satisfeita e estamos, desde então, tentando descobrir que diabo de Universo é este em que nos meteram, esta bola girando entre outras bolas num espaço imensurável, sem manual de instrução. Santo Agostinho e outros tentaram nos convencer a aceitar os limites da fé como os limites do conhecimento. Tentar compreender mais longe só nos traria perplexidade e angústia e nenhum benefício. Mas a doença da curiosidade já estava adiantada demais.
A fase mais aguda da doença chegou com a inauguração, há dez anos, num subterrâneo na fronteira da Suíça com a França, do tal acelerador gigante que jogaria prótons contra prótons em condições inéditas para tentar reproduzir a origem do mundo, liberar uma partícula subatômica que até então só existia em teoria e chegar mais perto de descobrir como funciona o Universo. Quer dizer, os descendentes de Adão e Eva pretendiam levar a rebeldia do casal ao máximo e espiar por baixo do camisolão de Deus. Mas dez anos e alguns bilhões de dólares depois, fora a importante descoberta da subpartícula presumida chamada bóson de Riggs, o acelerador não tem muito a festejar no seu décimo aniversário. Não vieram o prometido redimensionamento do espaço, a explicação dos buracos negros, as revelações sobre a origem de tudo. Etc.
Quanto mais se sabe sobre o funcionamento do Universo mais aumentam a perplexidade e a angústia das quais Santo Agostinho quis nos poupar. Pois não se pode compreender tudo – pelo menos não com este cérebro que mal compreende a si mesmo. 
Mas os efeitos da fruta proibida ainda são fortes. E a doença da curiosidade não tem cura. 

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

RG E CPF DO ASSASSINO, POR FAVOR - Antonio Prata

Quinta-feira, 5 de janeiro, 19h27min, passando ao lado do estádio do Pacaembu, ouço uns gritos: do outro lado da rua, diante de um predinho, um homem e uma mulher se estapeiam. Um menino de uns oito anos, assustado, tenta separá-los. O homem está sem camisa e parece bêbado. Não consigo entender quem bate e quem apanha, pois se engalfinham num clinch e, arrastando o menino junto, somem porta adentro.
A porta é de ferro, com retângulos compridos de vidro opaco, não dá pra ver lá dentro. Parece o depósito ou uma pequena garagem. Os gritos continuam, juntam-se a eles barulhos de coisas caindo. Ou seriam pessoas? Abre-se um basculante na lateral da porta, surge o rosto do menino, “Socorro! Socorro!”, mas alguém o puxa pra dentro. Fecha-se o basculante.
Penso em tocar a campainha, em arrombar a porta, mas me acovardo. Disco 190. Atendem rápido. Disparo pra atendente: “Oi, tem um casal se batendo e uma criança gritando ‘socorro’ na Rua Capivari, número xxx, bem na frente do portão 23 do estádio do Pacaembu”. Depois de alguns segundos: “Esse endereço é Consolação?”. “Não, é Pacaembu, Capivari, número xxx, bem na frente do portão 23 do estádio.” “O senhor teria uma rua de referência?” “Rua? Eu tô dando um estádio de referência!”
Algo atirado de dentro do prédio faz um buraco no vidro. Não ouço mais os gritos. “Eu preciso de uma rua de referência.” “Tá, Doutor Arnaldo. A Capivari é uma das ruas laterais do Pacaembu! Rua Capivari, número xxx!” Mais uns segundos. Os gritos voltam. Somem. Ouço barulhos. Não ouço a criança. “O senhor poderia me passar o CEP?” “Cara, eu tô vendo um casal se espancar e uma criança gritando por socorro, eu tô te dando a rua e o número e falando que é na frente do portão 23 do Pacaembu e você quer o CEP? A polícia não tem Google? Não tem Waze? Vai morrer alguém aqui! Vocês que têm que achar o CEP!”
A atendente, no entanto, tem tarefas mais importantes do que salvar a vida de uma criança de oito anos, de uma mulher ou de um homem, ela tem que defender o seu orgulho ferido. “Olha, se o senhor estivesse tão aflito assim o senhor descobria esse CEP pra mim.”
Desligo e disco 190 de novo. Falo a mesma coisa. O novo atendente tampouco parece ter ouvido falar nesse tal estádio do Pacaembu. Pergunta se a rua fica na Consolação. Dessa vez, digo que pode ser, que o Pacaembu é perto da Consolação, difícil existirem duas ruas Capivari tão próximas. Ele diz que vão mandar uma viatura. Chego perto da porta. Penso em tocar a campainha, em arrombar, mas me acovardo. Grito lá pra dentro “A polícia tá chegando! A polícia tá vindo!” e sigo pra casa.
Alguns quarteirões adiante, passa uma viatura. Eu aceno. Eles param. Explico a situação, me dizem que a ocorrência já foi atendida. Aliviado, me esqueço de perguntar o que aconteceu, se alguém foi preso, se alguém se machucou.
Em casa, meia hora depois, meu telefone toca. “Boa noite, o senhor ligou pra polícia militar relatando uma ocorrência na Rua Capivari, número xxz?” “Número xxz?! Não! Número xxx! Eu disse várias vezes o número!” Será que eles foram no número errado? Será que ninguém ajudou aquele menino? “Hm”, resmunga o atendente, não muito preocupado. “Certo. Escuta, essa Rua Capivari: por acaso fica em Itaquera?”

domingo, 27 de janeiro de 2019

A luta pelas almas - Leandro Karnal

A educação das crianças e jovens é fundamental. Há duas maneiras de pensar a frase anterior. A primeira é um pouco mais abstrata e altruísta: nosso dever de formar valores, transmitir conceitos adequados e preparar nossos filhos e alunos para a vida. Essa é a parte que ninguém duvida ou questiona. Nenhum governo, nenhum político, nenhum pai ou escola suspeita da afirmativa. Todavia, existe um segundo sentido. Educar é colaborar para formar uma atitude original, fornecer filtros que interpretarão dados, construir posturas e marcar, quase sempre de forma indelével, uma visão de mundo (Weltanschauung). O segundo sentido não contradiz o primeiro, apenas reforça o conteúdo estratégico e político de toda educação. Controlar escolas, currículos e jovens é, em última análise, controlar o futuro. Toda educação é um projeto de poder. 
As religiões entenderam muito cedo o papel fundamental das escolas para a sua sobrevivência. A partir do mundo moderno, ordens católicas fizeram da sala de aula seu foco principal. Antes restrita a mosteiros e universidades medievais, a educação teve de ser ampliada como parte de uma estratégia para vencer a Reforma Protestante. Os jesuítas, surgidos no século 16, fizeram dos colégios uma ponta de lança fundamental para formar um novo homem católico da Contrarreforma. Só para pegar um exemplo, o colégio jesuíta Luís, o Grande (Paris) formou o poeta Baudelaire, o enciclopedista Diderot, o literato Marquês de Sade, os filósofos Sartre e Derrida, pintores como Degas e Delacroix, políticos como Robespierre e Turgot e matemáticos como Évariste Galois. A lista poderia até depor contra a eficácia da adequação dos alunos ao modelo da Ratio Studiorum, diretriz fundamental dos modelos pedagógicos da Companhia de Jesus. Fenômeno francês? Do colégio São Luís, em São Paulo, emergiram figuras distintas como Ayrton Senna, Paulo Maluf e meus amigos Maria Fernanda Cândido e Clóvis de Barros Filho. Em resumo, nem todos os egressos dos modelos de Santo Inácio de Loyola viraram católicos militantes, mas são biografias de relevo. Eu próprio me orgulho muito da minha formação jesuítica. 
A Contrarreforma também é feminina. Hoje, 27 de janeiro, é dia de Ângela de Mérici (1474-1540), fundadora das ursulinas. O carisma italiano da santa acabou florescendo muito em terras francesas e no Brasil. Igualmente, fizeram sucesso diversas ordens femininas na Terra de Santa Cruz, como os colégios das Cônegas de Santo Agostinho, inclusive o afamado colégio paulistano Des Oiseaux, que teve entre tantas alunas a falecida antropóloga Ruth Cardoso. 
O mundo reformado também deu imensa importância à educação. Escolas confessionais luteranas (e de outras vertentes) enfatizavam a alfabetização para ler as Escrituras. Onde abundaram calvinistas e luteranos, diminui o analfabetismo médio. 
Em grande parte, a disputa por almas do mundo moderno foi um incentivador das escolas para o público em geral. Não bastava aprimorar a formação de padres e pastores, urgia moldar meninos e meninas para garantir a continuidade das instituições. 
As ditaduras de esquerda e de direita entenderam, igualmente, a necessidade de tornar a escola uma arma de moldagem do futuro. O Estado Totalitário começava nas cartilhas. Os conteúdos da área de humanas foram, desde sempre, os mais afetados. Ditadores sempre pareceram muito mais interessados em História, Antropologia, Sociologia e Filosofia do que em Geometria ou Química. Comento com os futuros professores que, caso eles tenham dúvidas sobre o valor e utilidade da História, observem a ação de ditadores, pois eles parecem acreditar mais no potencial da nossa área do que as democracias. 
Em resumo, jovens nas salas de aula são a matéria-prima desejada para moldar as novas estátuas coerentes com os projetos religiosos e políticos. O problema? Pessoas não são argila moldável ao gosto do escultor. A educação influencia, porém não determina. A cada geração, os projetos variados surgem e morrem com seus anelos de mudar as cabeças dos alunos. O cérebro humano continua mais complexo do que religiosos, políticos e professores imaginam. 
Sim, há a tal da contradição do mundo: foi em uma aula de Educação Moral e Cívica que eu, pela primeira vez, ouvi uma crítica ao governo militar brasileiro, justamente na disciplina que deveria formar o jovem cidadão da ordem pós-1964. Foi estudando teologia bíblica que comecei a abandonar minha fé. Foi em bancos de doutos e esforçados jesuítas que o jovem Voltaire decidiu dedicar a vida ao combate à Igreja Católica. A tal da “natureza humana”, que Machado de Assis diz ser contrária a regras (veja o conto A Igreja do Diabo), parece brotar dos mais sólidos projetos educacionais. Uma lição de humildade para nós professores e para o Ministério da Educação: o projeto educativo pode ser nosso, o anseio de poder e controle pode nos tomar; porém, o resultado tem de dialogar com o imponderável dos alunos. As almas e os corpos continuarão rebeldes. Felizmente. 

Sambuca - Luis Fernando Verissimo

A lembrança mais forte que tenho da Sicília é a do perfume das laranjeiras. As memórias olfativas tendem a nos enganar, talvez as árvores que margeavam as estradas não fossem exatamente como eu me lembro, talvez nem fossem laranjeiras. Mas mantenho: eram cheirosas. Do momento em que pegamos o carro no aeroporto de Palermo até devolvê-lo, uma semana depois, em Taormina, andamos mergulhados em aromas doces como bailarinas turcas.
*
Nas estradas, entre uma ruína grega e outra, passamos várias vezes por placas que indicavam “Sambuca”, ora como direção para um lugar logo ali na frente, ou ora como propaganda do lugar.
“Sambuca, Sambuca... De onde eu conheço esse nome?”
“De ontem à noite”, disse minha mulher.
“O quê?!”
“Aquele licor que nós tomamos depois do jantar, no hotel. Gosto de anis. Meio enjoativo.”
“Enjoativo, nada. Muito bom. Lembra que o maître nos ensinou a tomar com um grão de café flambado ou sem o grão de café? ‘Com la mosca ou sem a mosca?’ Vamos pedir outra vez! Garçom! Prego! Due sambuca!”
“Não sei se eu quero...”
“Quer sim. Quando é que nós vamos ter outra oportunidade de tomar sambucas em Sambuca? Garçom, due sambuca. Com la mosca!”
Saímos a caminhar por Sambuca, depois do jantar. Sugeri à minha mulher que fôssemos espiar o clarão do vulcão Etna em erupção permanente, no horizonte, mas ela não achou graça. Perguntei se ela não se imaginava vivendo em Sambuca e ela gostou da ideia. Quem sabe, um dia...
*
Estou contando tudo isso porque acabo de ler no jornal Guardian, da Inglaterra, que a cidade de Sambuca está à venda, em alguns casos em condições especiais, como um dólar por habitação. O objetivo é repovoar a cidade, já que a maioria da sua população foi embora. O comprador se compromete a fazer reformas caras no imóvel, dentro de um prazo razoável, mas durante um período vive como um sambuquense nato, fazendo footing na praça principal e se reunindo com os amigos para o sambuca do fim da tarde, não muito perto do Etna e longe do Bolsonaro.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Frontal com Fanta - Jorge Furtado


Ela me perguntou quantas pessoas eu já vi morrer. Quantas pessoas você já viu morrer? Nenhuma, eu disse. Ela sorriu e disse eu vou ser a primeira. Eu disse vai. Ela disse boa sorte.
— Boa sorte.
E morreu. Os lábios dela continuavam vivos, vermelhos. Parecia que ela estava dormindo. Ela morreu e pronto. Era bom ficar olhando seu corpo, bonito. A enfermeira entrou, viu que ela tinha morrido e me disse para sair do quarto, chamou o médico, eu saí do quarto.
Uns dias depois o enfermeiro me disse que ela estava grávida. Ele disse também que achou melhor ela ter morrido, imagina ela com um filho.
Eu imaginei ela com um filho, um filho meu, e agarrei o enfermeiro pela garganta.
Dois enfermeiros correram e me seguraram e me deram uma injeção. Eu acordei amarrado e fiquei ali alguns dias. Eles mudaram meu remédio. Eu me lembrei que ela havia me pedido para ficar vivo pra me lembrar dela e resolvi não tomar o remédio, não tomar mais remédio nenhum. Passei mais seis meses na clínica, fingi que estava curado, saí, voltei a estudar. Fiz o supletivo do segundo grau, passei no vestibular, me formei, casei, tive um filho, me separei. Hoje trabalho nesta farmácia. Continuo vivo e me lembrando dela.
Eu não me lembro muito bem se tinha 13 ou 14 anos na primeira vez em que fiquei invisível. Eu acho que tinha 14, estava frio, devia ser inverno e eu faço aniversário no verão. Também podia ser no inverno antes de eu fazer 14, mas eu acho que não, porque a minha irmã já estava usando aparelho e estes dias eu perguntei e ela tem certeza que tinha dez anos quando começou a usar. É muito provável que eu já tivesse ficado invisível muitas vezes antes, tenho certeza que sim. Quando a minha mãe e o meu pai discutiam, quando ele gritou que ela é que quis ter filho e agora não gosta de ficar com as crianças e só quer viajar, quando ela bebia e andava quase nua pela casa, quando o meu irmão punha a mão nos peitos da namorada, quando o meu pai mudava a televisão de canal pouco antes do fim do filme que eu estava assistindo havia mais de uma hora, é claro que eu estava invisível, só que não percebia.
Eu estava na escola na primeira vez que percebi que estava invisível. O professor mandou todo mundo se apressar para o passeio. Eu demorei a me levantar juntando as coisas, todos saíram e o professor olhou para a sala, olhou na minha direção, apagou a luz, saiu e fechou a porta. Talvez eu tenha ficado invisível para não ir naquele passeio, não queria passar o dia vendo as meninas mais lindas me virando a cara, e todos aqueles meninos idiotas gritando e correndo e se batendo. Fiquei algum tempo parado, peguei minhas coisas e saí da sala. Caminhei pelo corredor, cruzei com alguns alunos, olhei bem para eles e eles não me viram. Saí do colégio e caminhei seis quadras até a minha casa, passando por muitas pessoas que não me viram. Entrei em casa sem ser visto, fui para o meu quarto.
Saí do quarto e minha mãe estava jantando, com minha irmã. Meu irmão mais velho vai chegar no próximo fim de semana e elas querem arrumar a casa. Ele vem com a namorada e vai dormir no meu quarto, eu vou dormir com a minha irmã, no chão do quarto dela. Elas falaram todo o tempo, decidindo o que ia acontecer comigo, sem me ver. Comi frango com arroz e legumes e fui ao banheiro. Abri o armário dos remédios, peguei um remédio da minha mãe, frontal. Li a bula. "Componente ativo: alprazolam. Indicado no tratamento de estados de ansiedade. Seu mecanismo de ação exato é desconhecido." Talvez fosse isso, ansiedade se cura com remédio. Não é recomendado a pacientes psicóticos. Os sintomas da ansiedade são: tensão, medo, aflição, agonia, intranqüilidade, dificuldades de concentração, irritabilidade, insônia e ou hiperatividade. Os sintomas da ansiedade sou eu. Peguei o vidro e fui para o meu quarto. Tomei dois, devia ter pegado água, não é bom tomar remédio com fanta. Deitei e dormi.
Acordei, era outra pessoa. E continuava invisível. Minha irmã, minha mãe e a empregada não me viram. Tomei café e mais um comprimido e fui para a escola caminhando sem ninguém me ver. Assisti às três primeiras aulas sem ser visto. Entendi tudo, anotei, gostei de estar aprendendo coisas. Estava feliz, feliz e invisível. No recreio fui até o banheiro e tomei outro comprimido.
Saí do banheiro, o sol batia no pátio, nos cabelos das meninas, nas pernas das meninas. Duas delas, das mais lindas, passaram na minha frente, entraram no banheiro. Entrei atrás delas. É claro que elas não me viram. Uma delas baixou a calcinha e sentou no vaso, mas não deu para ver nada, ela estava de saia. A outra abriu a blusa na frente do espelho e ficou ajeitando os peitos dentro do sutiã. Eu estava muito feliz de estar ali, pensei em gritar ou botar a mão nos peitos dela, mas ela ia levar um susto, achei melhor não. Elas falaram de uma festa e saíram sem me ver.
Passei o resto da semana invisível e feliz. Comecei a economizar os comprimidos, tomava três por dia, um antes de ir para a escola, outro depois do almoço, outro antes de dormir. Não sonhava com nada, acordava feliz. No sábado tinha a festa e eu estava louco para ir, invisível.
Levei o remédio para a festa para tomar um lá. Não conseguia entrar no banheiro das meninas, era muito apertado, mas escutei todas as conversas, histórias incríveis de quem deu ou queria dar para quem. Tomei dois comprimidos com vinho, vários copos de vinho. Resolvi entrar no banheiro das meninas, seguindo uma das mais lindas. Ela entrou, eu entrei junto. Ela tirou a blusa e tirou da bolsa um desodorante roll-on. Começou a passar desodorante, erguendo os braços e se olhando no espelho, muito linda, a coisa mais linda que eu já tinha visto. Não consegui me controlar e lambi seu braço.
Ela deu um grito, começou a me bater, gritar. Abriu a porta, gritando, um monte de gente veio correndo, o pai dela, o namorado dela, todos começaram a me bater enquanto ela gritava que eu tinha entrado no banheiro e lambido ela e todos me batiam. Aparentemente minha invisibilidade tinha passado, talvez por causa da lambida. A mãe dela, que me conhecia, me ajudou a levantar do chão. Ficou me olhando, assustada. E aí eu vomitei.
Quebrei dois dedos da mão esquerda, acho que foi um dos chutes. Todos em casa me viram, me olharam muito bem. Meu pai olhava para mim com medo, minha irmã com nojo e minha mãe chorava.
Meu irmão chegou com a namorada, ninguém disse nada para ela que eu era um drogado e maníaco sexual. Minha irmã não quis me deixar dormir no chão do quarto dela e eu dormi uma semana na sala, no sofá. Dormia ouvindo meu irmão e a namorada trepando no meu quarto. Um dia acordei e fiquei parado, no escuro. Ela passou pela sala só de calcinha, ótimos peitos, bunda boa. Voltou da cozinha e ficou parada no meio da sala, tomando água no bico da garrafa, sem me ver. Me levantei e fiquei olhando para ela, ela não me viu. Eu estava invisível outra vez. Me aproximei e toquei no peito dela. Ela deu um grito.
Me levaram num médico que me disse que eu precisava aprender a relaxar e outras coisas que eu já sabia e me receitou paxon. Li a bula. Princípio ativo: cloridrato de buspirona. Agente ansiolítico indicado no alívio a curto prazo dos sintomas da ansiedade e da apreensão, do medo e dos maus pressentimentos. Era o meu caso. Cinco a dez miligramas duas vezes por dia. Perfeito. Não estava mais invisível mas continuava feliz.
Mudei de escola e passei o resto do ano feliz. No final do ano fiquei preocupado com as provas e com as festas e comecei a tomar três comprimidos por dia, às vezes quatro. Às vezes tomava com vodca, nas festas. Depois comecei a tomar também o frontal da minha mãe, ela descobriu e escondeu no armário. Achei e tomei. Meu pai disse que ia me internar, minha irmã disse que eles deviam chamar a polícia.
O médico cortou o ansitec e me deu valium. Li a bula. O princípio ativo do valium é o diazepam. Indicado para distúrbios emocionais, especialmente ansiedade, e distúrbios comportamentais, como a má adaptação social. Agora sim. Um antes de dormir, às vezes dois.
Um dia eu tomei dois no almoço, com cerveja, e depois fui para o supermercado. Tinha uma menina, bonitinha, acho que com menos de
três anos, no corredor dos biscoitos. Ela pegou um pacote grande de biscoitos, quase maior que ela, e tentou botar no carrinho. A mãe estava falando no celular e não viu. Ela chamava, mãe, mãe, bicoito, mãe, mãe. A mãe caminhava pelo corredor e falava no celular, discutia com alguém sobre prazo de entrega, horário de entrega de alguma coisa. A menina tentava botar o pacote, não alcançava no carrinho. O pacote caiu no chão, a mãe empurrou o carrinho que passou por cima do pacote. A menina se desequilibrou e caiu sentada no chão. A mãe gritou, disse que a menina tinha derrubado tudo no supermercado, desligou o celular e começou a gritar com a menina, que começou a chorar. A mãe viu os biscoitos quebrados, botou na prateleira, ergueu a menina pelo braço e continuou gritando enquanto ela chorava. Eu me aproximei, queria estar invisível. Não estava, a mulher olhou para mim e perguntou o que foi. Eu dei um soco no rosto dela, acho que acertei a boca e o nariz. Ela caiu, gritando de dor. A menina começou a gritar e a chorar. Tinha sangue na minha mão, não sei se meu ou dela. A mulher me olhava, apavorada, gritando e tapando o nariz e a boca com a mão. Ela viu sangue na mão dela e começou a gritar, a menina chorando. Um casal saiu correndo, algumas pessoas se aproximaram. Um garoto de uniforme me olhou com medo. Um segurança se aproximou, me olhando e falando num rádio.
Um segurança do supermercado me deu um tapa na cabeça. Me assustei, mas não doeu muito. Um policial veio e foi embora. Meu pai chegou, muito nervoso. Pediu desculpas para todo mundo, disse que eu era doente. Olhei para o meu pai, sofrendo, triste, tentando não aparentar toda a tristeza que realmente sentia, com vergonha de imaginar uma parte dele em mim, e tive certeza de que ele estava falando a verdade, eu era doente mesmo.
Meu pai, minha mãe e meu irmão sugeriram que eu fosse internado, ficasse um tempo numa clínica. Achei ótimo, eu não queria mais ficar olhando para as pessoas que estavam sofrendo por minha causa. Meu irmão me ajudou a fazer a mala. Meu pai me deu um beijo, fazia muito tempo que eu não via ele tão feliz. Minha mãe chorou um pouco mas também estava feliz. Só quem parecia triste era a minha irmã. Eu disse que ia me tratar e ia voltar logo. Ela perguntou se podia pegar o meu videogame, eu disse que sim.
Eu falei com um médico e com uma médica. Contei de tudo, dos remédios e do fato de eu ficar invisível. Eles me disseram que eu nunca fiquei invisível e eu acabei concordando. Ele perguntou se eu tinha tremores, dor ou tensão muscular, se eu me irritava ou ficava nervoso com facilidade, se eu sentia as mãos frias e pegajosas, se às vezes eu tinha dificuldade para engolir, sentia aquele nó na garganta, se às vezes sentia a boca seca, suor, enjôo ou diarréia. Eu disse que tinha tudo, menos diarréia. Ela perguntou se eu ficava muito preocupado com as minhas notas na escola ou num jogo de futebol, se eu me preocupava muito em chegar na hora, se costumava chegar muito cedo nas festas, se eu me preocupava com terremotos ou com a guerra, se eu costumava refazer uma coisa muitas vezes, até achar que estava perfeito, se eu costumava perguntar para as pessoas se o que eu fiz estava bem-feito ou não. Eu respondi sim para tudo, menos para a guerra.
Eles tinham certeza de que eu era um sessenta ponto seis, personalidade ansiosa. Eles me disseram que os sintomas da personalidade ansiosa são um sentimento de tensão constante, um sentimento de insegurança e inferioridade, um desejo permanente de ser amado, de ser aceito, hipersensibilidade à crítica e à rejeição, uma dificuldade ou desconforto para encontrar pessoas ou para sair da rotina, sempre com medo que aconteça alguma coisa de ruim.
É perfeito, é exatamente isso. Finalmente eu encontrei alguém que descobria o que eu tinha. Só que eles tinham dúvidas se a minha ansiedade era generalizada e já se manifestava na infância, ou se era induzida por substância. A ansiedade induzida por substância surge com a intoxicação ou a abstinência. A ansiedade primária, que vem da infância, pode provocar o uso da substância. Enfim, eles tinham dúvidas se eu era louco porque me drogava ou me drogava porque era louco. Perguntaram se eu tinha ataques de pânico ou alguma fobia. Contei da vez que eu ataquei a menina no banheiro da festa, da namorada do meu irmão e do soco na mulher no supermercado, mas isso eles já sabiam. Eles conversaram um pouco e concordaram que eu devia tomar nervium. Princípio ativo: bromazepam. Indicado para distúrbios emocionais, tensão nervosa, agitação e insônia, ansiedade e humor depressivo ansioso. É exatamente o meu caso, humor depressivo ansioso.
Antes de sair da clínica e encontrar meus pais e minha irmã, e todo mundo ficar feliz por eu fingir tão bem que estava curado, eu achei um disquete no lixo da clínica. O ferrinho do disquete estava um pouco torto mas eu trouxe para casa e um dia consegui abrir dois arquivos. Um era uma tabela, sem graça. O outro tinha várias anotações, nenhuma sobre mim. Todas eram parecidas.
J.S. estava aparentemente saudável. H.M.C tinha o comportamento normal. T.H.N vinha aparentemente bem. J.M.R. havia começado a ingerir álcool combinado com o uso de codeína (xarope para tosse) três anos antes da primeira hospitalização. N.T. vinha apresentando alterações do comportamento social associado à ingestão progressiva de álcool desde quatro anos antes da primeira hospitalização. Oito semanas antes da internação, ela fez uso de amineptina com álcool pela primeira vez. O paciente M.C.S. usou cannabis durante dois anos. O paciente N.G.F. mostra o semblante apreensivo. A paciente M.F, cuja mãe é esquizofrênica, vinha consumindo cannabis e, ocasionalmente, diazepam com álcool há três anos. O paciente B.T. vinha consumindo ecstasy regularmente durante dois anos e, ocasionalmente, cocaína. Uma grave perda da capacidade de conviver socialmente foi a causa de sua internação. A paciente D.J. teve alucinações auditivas importantes seguidas de delírios. Gesticula muito ao falar. Olhar triste. Uma grave disfunção cognitiva foi percebida pelos pais da paciente, que encaminharam a internação. Segundo a mãe do paciente, dois meses antes de ser internado o filho apresentou idéias paranóides e uma importante perda de função intelectual. Gesticula muito ao falar. Não consegue se concentrar. Quatro dias antes da hospitalização, ela tomou um comprimido de certralina associado com álcool e cannabis e apresentou imediatamente delírios e alucinações auditivas. Tomou LSD por um ano antes de ser hospitalizado. Não consegue ficar parado, gesticula muito ao falar. Ouvia vozes imperativas. Alucinações auditivas, delírios e disfunção cognitiva, percebida por seus pais. Esses sintomas persistiram durante nove meses e cessaram espontaneamente. Não tem energia para nada. Ao narrar suas brigas com a mãe, fica exaltada, com o olhar brilhante. Experimentou cogumelos alucinógenos. Afirma que não confia na namorada e que seu maior desejo é desmascará-la. Tem delírios e alucinações permanentes. Seis meses antes da internação, fez uso de LSD. Gesticula muito ao falar. Medos difusos e delírios culminaram com sua hospitalização. A partir daí, houve uma mudança em seu comportamento caracterizada por uma perda de sociabilidade seguida da presença de delírios, segundo declarações dos pais da paciente. Tem um olhar triste, perdido. Um dia antes de ser internada experimentou cocaína pela primeira vez. Um mês antes da internação, ela começou a ter idéias paranóides e hiperatividade motora. Tem a testa franzida, o olhar baixo, as mãos crispadas. Cinco semanas depois da ingestão de drogas, ela apresentou delírios paranóicos persistentes. Mostra-se muito aflito e exaltado durante a consulta. No dia da hospitalização, apresentava alucinações visuais. O uso de hipofagin com álcool culminou com delírios, alucinações e comportamento agressivo em relação aos pais. Gesticula muito ao falar. Foi observada uma diminuição de sua capacidade intelectual com problemas de concentração, segundo os pais da paciente. De acordo com os pais do paciente. Descrito pelos pais do paciente. Os pais do paciente. São eles que pagam as contas e limpam a sujeira. São eles que pagam para você ficar longe, normal. Um dia meus pais conversaram com os médicos e eles me mandaram para casa. Provavelmente acharam que eu era um efe treze ponto oito, transtorno de ansiedade induzido por ingestão de sedativos, hipnóticos ou ansiolíticos. Eu podia ir para casa, provavelmente não ia sujar nada nem atacar ninguém. Estava curado. Precisava estudar, cuidar da vida, me concentrar. Foi o que eu fiz.

Frases - Luis Fernando Verissimo

Anedotas, ditados, máximas e piadas têm, digamos, uma narrativa axial de significado evidente – exemplo: coelho para a coelha: “Vai ser bom, não foi?” – e significados radiais implícitos e/ou subevidentes. No caso do coelho e da coelha, o sentido da narrativa está na rapidez do enunciado “Vai ser bom, não foi?”. Coelhos são, notoriamente, animais sexualmente hiperativos, mas cuja conjunção carnal se completa em uma fração de segundo, justamente o espaço de tempo representado, na frase, pela vírgula.
A quase justaposição do primeiro e do segundo segmento da frase, separados apenas por uma vírgula providencial, é que produz o humor da piada. A frase é a piada. São dispensadas informações secundárias tipo onde se deu o encontro do coelho com a coelha, detalhes (caráter, vida pregressa etc.) dos dois e do pós-coito – a coelha, por exemplo, se sentiu frustrada com a rapidez da conjunção, esperava algo mais romântico e preliminares mais prolongadas, ou já estava resignada ao sexo relâmpago típico da sua espécie e só esperava que pelo menos o coelho não tivesse ejaculação precoce, o que só encurtaria ainda mais o evento?
Como o humor está na frase rápida e não inclui detalhes adicionais comuns em outras anedotas – que geralmente contêm uma história, um cenário identificável e personagens humanos –, o caso do coelho e da coelha requer muita atenção do ouvinte. Ele pode não entender da primeira vez.
E, se quiser, pode buscar outras interpretações da piada além do comentário jocoso sobre a vida sexual do coelho. A frase pode conter um comentário maior e mais abrangente sobre este tempo em que vivemos, em que passamos da antecipação do prazer para a crítica do prazer sem a etapa intermediária do prazer. O coelho e a coelha seriam um casal prototípico da era da ansiedade, do estresse e da rapidinha.
Não se sabe bem a origem do ditado “Pra baixo, todo santo ajuda”. Especula-se que veio da Idade Média. Ignora-se quem disse a frase pela primeira vez e qual foi seu destino, mas é quase certo que morreu queimado. Talvez ele nem tenha se dado conta, quando disse a frase, do que estava fazendo. Estava inaugurando o cinismo. Claro, o cinismo existia desde os gregos, talvez desde as cavernas pré-históricas.
Mas nunca tinha sido empregado daquela maneira. Sem saber, ele destruiu mais de mil anos de pregação religiosa. Digamos que a frase foi entreouvida e fez sucesso. Boa, boa. Ela apenas expressava, com humor, o que as pessoas pensavam, só tendo o cuidado de não envolver os santos na sua queixa. E pode-se imaginar que não demorou para a frase chegar ao conhecimento dos inquisidores. E seu autor ser chamado para se explicar.
– Não se insultam os santos!
– Eu não insultei, eminência.
– Chamou-os de preguiçosos. De omissos. De safados que só ajudam quem não precisa de ajuda.
– Foi uma maneira de dizer que...
– Não existem maneiras de dizer. O que foi dito está dito. E o que você disse foi uma blasfêmia.
– Foi uma piada.
– Não se fazem piadas com os santos!
Fogueira com ele. Hoje já se pode fazer piadas com santos, mas a natureza da blasfêmia, como se vê, ainda está sendo discutida.

Amanheceres - Luis Fernando Verissimo

Em inglês, existe uma expressão bonita para dar-se conta, ter uma revelação, entender: “It dawned on me”. Amanheceu em mim. A expressão descreve o sentimento de subitamente ver com clareza o que antes era obscuro, como uma aurora interior. Ideias e pensamentos amanhecem dentro de nós. Dizer que os olhos de uma pessoa se iluminam quando ela tem uma percepção nova não é um clichê literário, é a luz deste alvorecer saindo pelos olhos.
Não sei se existe expressão parecida em outras línguas, mas ela deveria ser universal. Afinal, sua origem é a experiência mais comum da humanidade desde que ela viu, pela primeira vez, o sol afastando as trevas e a noite dando lugar ao dia, e à maior dádiva do dia, que é a de nos permitir enxergar.
O amanhecer é uma metáfora pronta, e reincidente. A usamos para escrever a História: o Renascimento como um novo dia depois da noite medieval, o Iluminismo como o sol resgatando o espírito humano das sombras da ignorância e da superstição etc. Mas, tanto como figura de linguagem quanto como alegoria histórica, todo amanhecer tem sua consequência, também reincidente e inescapável.
Nenhum dia é para sempre, todo amanhecer anoitece. Não importa quantas auroras pessoais você experimentar, e quantas revelações e verdades vierem iluminá-lo por dentro, elas não são permanentes, nem farão muita diferença fora da sua pele. A lição do mundo é que as auroras não duram. O que se vê por aí são fundamentalismos em conflito, religiões recaindo nos seus hábitos, sem trocadilho, mais retrógrados, as pessoas se retribalizando e acreditando em feitiços cada vez mais estranhos. Não é exatamente no que se esperava que desse a Idade da Razão, antes parece ser um fim de dia. Que noite está por vir, ninguém sabe.

Saltos morais - Roberto da Matta

Eu, um menino de 9 anos, quando papai, fiscal do consumo, foi transferido de Maceió para Belo Horizonte. Corria o ano de 1945 e, graças à paixão de papai pelos exercícios físicos, fomos – meus quatro irmãos e eu – apresentados ao mundo da ginástica e da natação. Morávamos em frente do Minas Tênis Clube e, apesar dos meus 9 anos, guardo uma lembrança nítida dessa experiência. Não tive medo da água porque Niterói, com sua Praia das Flechas de águas transparentes, já me havia ensinado a nadar, mas entrei em pânico quando os instrutores de ginástica nos ensinaram a dar cambalhotas abraçando as pernas. Um treino fundamental para aprendermos a realizar o “salto de peixe” impulsionados por um pequeno trampolim acompanhado de uma cambalhota que, na verdade, era um meio salto mortal. 
A expressão “salto mortal” até hoje me assusta, mas naqueles tempos simbolizava o desafio a ser vencido com o encorajamento do pai que, risinho, forte e bonito, nos levava a “ser bons atletas” como ele fora durante toda a sua vida. Treinávamos o “salto mortal” (se cair de mau jeito, como temos testemunhado no mundo político, viciado em mortais, pode-se “quebrar a espinha”) com cintos e cordas na cintura com dois instrutores nos apoiando e encorajando. Passei uma noite sem dormir, mas consegui, numa manhã de radiante luz, quando menino, desafiar a morte no meu primeiro mortal.
Fomos premiados com sorvetes. Recompensa suprema recebida quando arrancávamos dentes...
*
A eleição em democracias é, como apontava Tocqueville, equivalente a uma passagem dramática – um salto mortal; tanto quanto o audaz primeiro beijo, até chegar aos exames orais e, no meu caso, à primeira aula do professor noviço, nervoso com suas fichas e com um medo danado de não ter o que dizer. A isso só se compararam, tempos depois, as primeiras visitas ao tal “estrangeiro” para estudo, aulas, cursos e conferências.
Hoje, com muitos saltos realizados por obrigação e circunstância, penso no maior salto mortal de minha vida, quando decidi pela profissão de “estudar sociedades tribais”. Não essas tribos de Ipanema, Leblon e Itacoatiara, onde surfistas realizam as manobras mágicas que admiro e invejo; mas aquelas da pesquisa entre os que chamamos de “índios”. Esse conjunto de povos sem escuta, forçados, pela opressão do nosso sistema, a enfiar numa mesma gaveta línguas, rituais, direitos e costumes diversos do nosso.
Aos 20 e pouco anos, a partir de 1960, dei esse salto mortal quando comecei esse aprendizado. O que o movia? – pergunta o velho que sou ao jovem tímido, disposto a viver com essas sociedades satisfeitas consigo mesmas. Sistemas nos quais os objetos mecânicos consistem no tipiti, no marcará da música e no arco e flecha das sobrevivências? Como é que fez essa escolha de viver sem sequer ter sido convidado por essas humanidades incrustadas na mata amazônica ou no grande cerrado do Brasil Central, hoje possuído pelo “agro” que é tudo?
Quando cheguei à primeira aldeia indígena, em 1961, e lá fiquei estoicamente por quatro meses, testemunhei vários saltos mortais. O meu era voluntário, mas o mortal dos gaviões e dos apinajés era obrigatório. Era saltar ou morrer. 
Todos sabemos que cada qual salta e morre como pode. Mas se o alvo é um Brasil diferenciado, mas ciente das suas diversidades, é preciso insistir para os riscos quando se salta de um sistema a outro. Saltos são inevitáveis, mas é preciso ensiná-los. Com humanidade e sem as lentes da ignorância – a marca dos fortes e dos arrogantes. 
A questão é universal: como saltar para cair elegantemente em pé, como foi o meu caso quando menino, e como promover isso no salto forçado de grupos tribais, que têm pulado para descobrir que suas terras não mais lhes pertenciam? Agora, são de uma poderosa entidade chamada “governo”? 
O que vi e vivi com meus mestres e irmãos de jornada; e com a minha família – pois fui daqueles pioneiros que, quando comuniquei e aos meus superiores que ia viajar com mulher e filhos, causei o espanto dos malucos – foi o salto mortal dos “índios”. Eu testemunhei a generosidade no limite da extinção e do genocídio. 
Vale lembrar que naqueles anos de golpes, censura e repressão eram tempos de grandes saltos. Como ocorre hoje, discutimos os saltos do Brasil, mas continuamos esquecidos dos pulos dessas sociedades humildes que o acaso histórico entregou ao nosso poder. 
Se é dramático reformar um sistema por ele mesmo, como é o nosso caso; imagine o que se passa quando “estrangeiros” agentes de mudança chegam mais para mandar, oprimir e destruir do que para garantir um nobre e justo futuro. Um salto mortal, sem dúvida, mas sem a preocupação com a queda.

Urutus - Luis Fernando Verissimo

Urutu é uma cobra rápida e venenosa que, por isso mesmo, no Brasil, deu nome a um blindado muito útil em ações militares e controle de multidões. A versão brasileira do bicho foi elogiada até pelos americanos, que a consideram superior à deles e a usaram no Iraque até há pouco tempo. Os urutus têm prestado bons serviços às forças amadas e na contrainsurgência, mas ficarão na história também por outra razão.
Não sei se alguém já se deu o trabalho de calcular quanto foi gasto no deslocamento dos blindados liderados pelo general Olympio Mourão Filho, de Juiz de Fora para onde mesmo? Gasolina, mantimentos, munição – pois havia o risco real de um enfrentamento com tropas leais ao presidente João Goulart – o transporte dos insurrectos... Uma nota.
Os urutus do Mourão Filho na estrada eram um desafio à nação: sigam-nos porque isso não tem volta e preparem-se porque pode ter sangue. O golpe vitorioso inaugurava um período de exceção que feriria a instituição militar tanto quanto suas vítimas na sociedade civil, e deixaria manchas na sua própria consciência como um legado incômodo. Tanto que ninguém se surpreendeu mais com as primeiras faixas pedindo intervenção militar durante as manifestações da direita brasileira subitamente energizada do que a extrema direita brasileira subitamente levada a sério. O que, outro golpe? Onde estão os urutus? Que entrem os urutus.
A ironia de tudo isso é que os urutus não são mais necessários. Como parecemos estar a caminho de uma revisão geral de currículos e princípios para adaptá-los à moral dos novos tempos, será interessante saber como os novos tempos tratarão a nossa História. O que dirão do progresso de um golpe que não se chamava golpe e podia ter sangue para um golpe que conseguiu botar mais generais na ativa do governo do que durante a ditadura? Pense só no que se economizou em combustível para urutu. 

A felicidade de Margô - Drauzio Varella

Quando voltou para casa às quatro da madrugada, Margô estava feliz como quase nunca.
–Eu devia ter desconfiado. Felicidade, assim, na minha vida?
Nascida na periferia de Feira de Santana, havia experimentado com a mãe e os quatro irmãos as agruras da penúria, desde que o pai decidiu tentar a sorte em Serra Pelada e sabe lá em quantos garimpos do Norte.
Aos oito anos, conseguiu emprego de doméstica. Na casa dos patrões varria, tirava pó, arrumava as camas, lavava os banheiros e o quintal.
–Se a patroa passasse a mão numa prateleira e encontrasse um cisco ia me buscar pela orelha.
Quando completou 15 anos, um vizinho a surpreendeu com a boca no sexo de um rapaz das redondezas. A vida virou um inferno:
–Debochavam e me xingavam na rua. A molecada me passava a mão na bunda e corria.
Intimidada, trancou-se em casa, mas quando saía para o trabalho não escapava das agressões, que suportava calada. Na tarde em que xingou a mãe de três marmanjos que a humilharam quando passou na frente de um botequim, apanhou até ficar com o rosto deformado.
O episódio causou tamanha revolta em seu espírito, que resolveu andar com uma faca de cozinha no cinto.
Duas semanas mais tarde, viu dois dos agressores na porta do mesmo bar. Mudou de calçada, mas eles atravessaram a rua, queriam saber se a putinha não tinha ficado feliz com os carinhos recebidos.
De cabeça baixa, ela tentou seguir em frente, mas eles impediram. O mais magro caiu na primeira facada, o outro ainda quis reagir antes de levar a segunda.
Margô fugiu para Salvador, atrás da boate em que trabalhava uma amiga de infância, a única pessoa que conhecia na capital.
Em Salvador, as duas foram presas por assaltar clientes que atraíam para as espeluncas mais sórdidas da cidade baixa. Passou dois anos e oito meses em celas apinhadas.
Seis meses mais tarde, estava presa outra vez. Pegou três anos. Libertada, veio para São Paulo.
–Tinha que mudar, vivia metida em confusão. Não levava desaforo para casa. A polícia não largava do meu pé.
Na cidade grande, começou a vida na prostituição de rua. Não lhe faltavam clientes. Morava com quatro colegas de trabalho, num prédio decadente na esquina da General Osório com Santa Ifigênia, no coração da antiga Boca do Lixo.
Passou mais uma temporada na cadeia. Quando saiu, jurou que nunca mais voltaria para trás das grades.
Amparada pelos dotes físicos, pôde frequentar um inferninho nas imediações da Augusta. Com o acesso à clientela mais endinheirada, alugou uma quitinete para ficar distante das fofocas e das contravenções das companheiras de moradia.
Uma noite, o dono da boate lhe fez uma oferta:
–Você é a única da casa que não usa cocaína. Trabalha aqui há dois anos e nunca deu alteração. Estou precisando de ajuda.
Margô quase caiu de costas quando recebeu o convite para gerenciar a casa. Aos 35 anos, teria carteira assinada e um salário quase igual ao da prostituição.
No primeiro dia colocou o vestido mais festivo e chegou na boate bem antes de abrir. Recebeu as orientações do patrão e uma mesa no escritório dos fundos.
–Uma mesa cheia de gavetas só para mim.
Estava radiante no caminho de casa às quatro da madrugada daquele dia. Empolgada com o trabalho, só lembrou da fome quando passou pelo bar da esquina de casa. Sentou num banquinho do fundo do balcão e pediu peito de frango grelhado, com arroz e salada de tomate, o prato predileto.
Nessa hora entrou Bentão, ex-policial que extorquia os comerciantes da área. Com andar de bêbado, veio na direção dela:
–Onde pensa que vai o veado com esse vestido de lantejoula?
Margô abaixou a cabeça, brigar naquela noite era o que menos desejava. O brutamontes insistiu:
–Não vou com a tua cara, seu traveco de merda.
Ela continuava cabisbaixa quando levou o soco que lhe abriu o supercílio. Sangrando, correu para a quitinete, sentou na cama e chorou feito criança.
–Logo quando eu estava feliz.
Tinha um lenço amarrado na testa quando voltou ao bar. Entretido com o copo de conhaque, o ex-policial só se deu conta da aproximação quando o punhal lhe penetrou as costas pela primeira vez.



Crônica publicada na Folha de São Paulo em 24/01/2015

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Por que os ETs não nos visitam? - Mário Corso

A chance de vida extraterrestre é numericamente enorme, mas então: onde estão? Por que não nos visitam? Chama-se Paradoxo de Fermi - em homenagem ao famoso físico italiano - a aparente contradição entre o extraordinário número de planetas habitáveis da vastidão do universo, portanto altíssimas chances de existirem lugares com vida inteligente, e a falta de evidências de tal possibilidade.

Um amigo, que sabe tudo sobre ETs, deu a melhor explicação sobre por que eles não dão as caras por aqui. É simples, ele diz: "Você visitaria aqueles parentes atrapalhados que vivem te achacando, que têm mãe no hospital, filho na cadeia e tudo é precário na vida deles? Claro que não. Eles vão pedir dinheiro emprestado mais uma vez...".

Em resumo, a tese do meu amigo é de que eles não querem treta com gentinha. Não teríamos nada a oferecer e iríamos pedir muito. Temos que encarar que, entre os povos das galáxias, talvez tenhamos péssima reputação.

Ele acrescenta: imagine quando surgir o "leve-nos ao seu líder", que é a primeira coisa que os ETs fazem quando chegam a um planeta. Eles teriam que, depois de dirigirem por zilhões de léguas cósmicas evitando asteroides, desviando de buracos negros, sem parada em lanchonete, sem nenhum restaurante decente no caminho, ter que aguentar o Trump, o Xi Jinping ou o Putin. Sinceramente, nenhum ET merece, nem mesmo um Vogon...

Eu discordo do meu amigo. Acho que poderíamos explorar nosso potencial para turismo cômico. Os ETs poderiam pagar para vir nos conhecer melhor e dar boas risadas.

Como? Simples, ministrando-lhes aulas. Para os humanos, não existe nenhuma ideia, mesmo que escandalosamente idiota, que não possa angariar seguidores. Escolhemos algumas delas e chamamos seus defensores para ensiná-las aos ETs.

Acho que a melhor introdução seria o Terraplanismo. Risos espasmódicos na certa. Ou, nas variações recentes, aqueles que dizem não haver provas de que a Terra gira ao redor do Sol. No campo da saúde, traríamos gente para explicar-lhes que cigarro faz bem e vacina faz mal.

Acho que uma das boas histórias seria explicarmos o nosso Deus. Ele é todo- poderoso, onisciente, onipotente, mas por estranhas razões - embora assexuado - teria a mesma obsessão por sexo que nós, suas criaturas. O Criador de tudo, segundo alguns, ficaria imensamente ofendido se não fizéssemos sexo de acordo com suas regras.

E já que estamos no campo do divino: imagine explicar para os ETs que esse mesmo Deus teria nos feito a sua imagem e semelhança. Mas, sei lá, vai que acordou preguiçoso naquele fatídico dia, tanto que usou o mesmo material genético de um projeto anterior. Por isso temos um DNA quase idêntico ao dos grandes primatas, mas não seríamos parentes. Dá para entender?

Então, caríssimo leitor, consegues imaginar uma inteligência superior nos levando a sério?

domingo, 20 de janeiro de 2019

Contrição - Luis Fernando Verissimo

J. Robert Oppenheimer foi o físico americano que dirigiu o Projeto Manhattan, responsável pela construção das primeiras – e únicas, até agora – bombas atômicas usadas numa guerra. Ele também ficou famoso pelo seu ato de contrição, ao se dar conta dos efeitos terríveis das armas cuja eficiência ele e sua equipe tinham acabado de festejar. “Funcionaram!”, foi o grito triunfal ouvido em Los Alamos, sede do projeto tão secreto que o mundo só ficou sabendo da sua existência quando Hiroshima e Nagasaki já estavam arrasadas.
Depois do grito triunfal veio a tomada de consciência do Oppenheimer, o único que se opôs à extensão do projeto para incluir bombas de hidrogênio. Oppenheimer foi chamado a depor diante de uma comissão do Congresso americano para explicar sua posição política, e houve até quem o chamasse de traidor da pátria por ser contra a bomba de hidrogênio. Ele escapou da caça às bruxas comunistas da época, mas perdeu seu acesso a pesquisas nucleares, o que não o impediu de continuar participando ativamente das discussões sobre a neutralidade moral da ciência, que é a grande questão da era nuclear. Oppenheimer citou um trecho do livro sagrado Bhagavad Gita, “eu me transformei na Morte, destruidora de mundos”, de certa maneira convocando para sua contrição pessoal a culpa de uma geração.
Quando só uma meia dúzia de pessoas no mundo sabia o que era o Projeto Manhattan, ele causava controvérsia e dúvidas. Seria verdade que um programa nuclear adiantado já existia na Alemanha nazista enquanto o projeto americano recém-começava? A misteriosa visita de um físico alemão a um físico dinamarquês no meio da Segunda Guerra Mundial fora para sondar o estágio em que estava o projeto americano, ou – como especulou-se depois – o alemão teria ido propor uma espécie de aliança de consciências entre os físicos do mundo, que se comprometeriam a não despertar o monstro nuclear? E seria verdade que o próprio Hitler vetara a pesquisa nuclear porque achava que física era coisa de judeu, como provava o fato de a mulher de Enrico Fermi, um dos pais da bomba, ser judia? Fermi fugira da Itália com a mulher para Los Alamos, Hitler ficara sem a bomba, e sobrara remorso, preconceito e contrição para todo o mundo.

Ministério da Família - Antonio Prata

Adams Carvalho/Folhapress

Sei que o assunto já é velho, mas venho tentando não escrever sob o calor dos acontecimentos: sopesar as ações do novo governo me permite compreendê-las melhor e, às vezes, até, encontrar nelas algo de positivo. Foi o que fiz com a transformação do Ministério dos Direitos Humanos em Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. 
O primeiro aspecto alvissareiro que me saltou à vista foi o nome não ter mudado para Ministério dos Direitos Humanos para Humanos Direitos. Num governo que foi eleito por slogans, não por propostas, o risco era grande. (Há quem afirme, inclusive, que se a reforma da Previdência der chabu, o primeiro ato do Bolsonaro será juntar os ministérios da Educação e das Relações Exteriores numa superpasta: o Ministério d'A Nossa Bandeira Jamais Será Vermelha). 
Outro aspecto que me pareceu acertado foi a inclusão de "Família" no nome do ministério. Ora, é inegável que a família brasileira encontra-se diante de sérias ameaças e a pasta, rebatizada, deve combatê-las. Resta saber se a ministra terá coragem e força política para encarar de frente os perigos que rondam a célula primordial da sociedade.
O papel do cunhado, por exemplo: é inadmissível que em pleno século 21 ainda não haja uma legislação estipulando os deveres e, principalmente, limitando os direitos do cunhado. Pode o cunhado aparecer sem ser convidado? Pode o cunhado que apareceu sem ser convidado ligar a televisão? Pode o cunhado que apareceu sem ser convidado e ligou a televisão pegar uma cerveja na geladeira? Pode o cunhado —vou poupá-los da enumeração—, durante um churrasco na sua casa, aproveitar-se de uma ida ao banheiro e virar uma lata de Skol sobre a picanha —"pra dar uma amaciada"?
Outra questão tão —ou mais— importante: irá o Ministério da Família colocar limites ao tio do pavê? Figura obrigatória em toda festa familiar, vítima da alopecia, entre o sobrepeso e a obesidade, geralmente alcoolizado, exímio exibidor do cofrinho e proprietário vitalício de garbosas micoses nas unhas dos dedões dos pés, o sujeito espera a sobremesa, muge "é pavê ou pacomê?!" e nossos menores, desprotegidos, imediatamente tomam horror à família.
"Irei me transformar nisso?!", pergunta-se o menino; "terei que casar com um desses?!", horroriza-se a menina; "ainda dará tempo pro divórcio?!", indaga-se a esposa —e assim, paulatinamente, vão-se trincando os pilotis que sustentam a nação.
Precisamos falar sobre o amigo secreto, Damares. O ministério desenvolverá um aplicativo universal para organizar a troca de presentes no fim de ano ou cada família continuará ao Deus dará, tendo que reinventar a roda todo Natal; o tio do pavê ganhando dois presentes, o cunhado tirando ele mesmo e o menino aos prantos porque não ganhou presente algum?
Primo e prima: pode ou é parente? Sei que Damares está mais preocupada com o azul e o rosa, mas a zona cinzenta entre primos e primas é um aspecto cromático que também merece sua atenção. Pelo menos, é o que eu acho. E a minha prima Magali, idem.
A lista de perigos que rondam a família é longa, a crônica é curta, vão aqui, portanto, uns últimos toques para o ministério: cônjuge que pega o carregador do outro merece o divórcio? Filho que faz canoinha no queijo pode ser deserdado? Obrigatoriedade de chope em buffet infantil: será lei? 
Conto com a atenção do governo. Ainda mais porque está claro que o ministério, criado pelos que desprezam o mimimi das mulheres e não acreditam no blá-blá-blá dos direitos humanos, estará 100% a serviço da família. Espero que encare as questões aqui apontadas. (E a minha prima Magali, idem).

Contos de Terror - Cristovão Tezza

Vânia Medeiros/Folhapress


E ao tentar entender o incompreensível, tudo parece pouco; um dos filhos recomenda, do alto do seu vazio, com a arrogância, a estupidez e a boçalidade que já são o autêntico logotipo da Presidência, que os professores do ensino médio do ano que se inicia não devem falar sobre feminismo, "linguagens outras que não a língua portuguesa ou história conforme a esquerda", e eu releio a patacoada analfabeta atrás de um sentido, me perguntando quem seria esse alguém para "recomendar" alguma coisa aos professores, e me ocorre a palavra "idiota", é claro!


O Brasil conta com os préstimos intelectuais daquele pensador que é, por autodeclaração, o maior especialista em idiotas do país, e que acaba de espetacularmente emplacar o poder (ou "lacrá-lo", para usar um termo da moda —"Eles me levaram a sério!", ele deve estar repetindo, ainda incrédulo, com orgulho legítimo).
E, como numa história da Bíblia, não se passaram ainda seis dias, mas não há descanso no sétimo —o mesmo filho divulga ao país e ao mundo sua imagem feliz com um revólver à mão dando tiros com volúpia, em defesa da liberação de armas no país que conta com mais de 60 mil homicídios por ano, um recorde mundial.
Volto aos arcanos de Montague Summers, tentando inutilmente escapar do noticiário: "É verdade que em certas nações parece haver uma indiferença à vida humana, um desprezo pela própria morte que com frequência assume as formas mais extravagantes e ultrajantes".
Decido pular da rigorosa ciência dos vampiros, excessiva para mim, aos prazeres da ficção, que dá maior nitidez à realidade, e, para sintonizar com o espírito da coisa e do país, abro os "Contos Clássicos de Terror" (Companhia das Letras; seleção e apresentação de Julio Jeha).
Pela inquietude da razão que me assombra e faz minha cabeça, nunca me atraiu especialmente a temática do terror (Isso não existe!, diz minha lógica miúda), mas o medo ainda não me transformou num covarde. Vou abrindo corajosamente as páginas, e de tudo que leio (só texto bom!), paro abismado em "A Causa Secreta", relembrando esta obra-prima sobre o mal, do sempre inacreditável Machado de Assis.
É um conto perfeito, que, décadas antes do cinema, começa com um recorte de um vaivém cinematográfico ("Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha."), avança com uma elegância narrativa absurda, vivíssima um século depois e enxuta como um punhal, e termina com uma cena sobre os prazeres da tortura, que é a essência do terror.
Como a tortura é um dos assuntos de aguda predileção da Presidência, o conto de Machado ganha uma inesperada dimensão didática.
Um dos contos do livro, de Villiers de L'Isle-Adam, chama-se justamente "A Tortura pela Esperança", em que o protagonista o tempo todo se pergunta, enquanto se arrasta nas trevas em direção à luz: dá para sair dessa?

A CAUSA SECRETA  - Machado de Assis
 GARCIA, EM PÉ, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o tecto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, — de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço. 
 Tinham falado também de outra cousa, além daquelas três, cousa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da situação. 
 Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele. 
 A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo beco do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada. 
 Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este que alguns homens conduziam, escada acima, ensangüentado. O preto que o servia acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico. 
— Já aí vem um, acudiu alguém. 
 Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu às pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se passara. 
— Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo. 
— Conhecia-o antes? perguntou Garcia. 
— Não, nunca o vi. Quem é?  
— É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouvêa. 
— Não sei quem é. 
 Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o médico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dous saíram, ele e o estudante ficaram no quarto. 
Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios. 
 Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número. 
— Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente. 
 Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouvêa, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu. 
— Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se. 
O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como uma simples idéia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão. 
 Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum. 
 Tempos depois, estando já formado e morando na rua de Matacavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a freqüência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi. 
— Sabe que estou casado? 
— Não sabia. 
— Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo. 
— Domingo? 
— Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo. 
Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. 
Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos,  perguntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido. 
— Não, respondeu a moça. 
— Vai ouvir uma ação bonita. 
— Não vale a pena, interrompeu Fortunato. 
— A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico. 
 Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco. 
 " Singular homem!" pensou Garcia. 
 Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir a dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo. 
— Valeu? perguntou Fortunato. 
— Valeu o quê? 
— Vamos fundar uma casa de saúde? 
— Não valeu nada; estou brincando. 
— Podia-se fazer alguma cousa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve. 
 Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a idéia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estréia para ele, e podia vir a ser um bom negócio para ambos. Aceitou finalmente, daí a dias, e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a idéia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele o próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas. 
 Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos. 
— Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele. 
 A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada. 
 No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a  situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como cousa sua, alcançasse do marido a cessação de tais experiências. 
— Mas a senhora mesma... Maria Luísa acudiu, sorrindo: 
— Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz... 
Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada. 
— Deixe ver o pulso. 
— Não tenho nada. 
 Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo. 
 Dois dias depois, — exatamente o dia em que os vemos agora, — Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita. 
— Que é? perguntou-lhe. 
— O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se. 
 Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunado queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôsse a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado. 
— Mate-o logo! disse-lhe. 
— Já vai. 
 E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensangüentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida. 
 Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue. 
 Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida. 
 "Castiga sem raiva", pensou o médico, "pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem". 
 Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula. 
 Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente: 
— Fracalhona! 
E voltando-se para o médico: 
— Há de crer que quase desmaiou? 
 Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar. 
 Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custavalhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal. 
Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só. 
 De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco. 
— Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois. 
Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado. 
 Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento. 
Olhou assombrado, mordendo os beiços. 
 Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.

A tortura pela esperança -  Villiers de l´Isle Adam 
Tradução de Roberto Schmitt-Prym 
Ao Senhor Edouard Nieter 
"Oh! Uma voz, uma voz, para gritar!..." Edgar Poe - O Poço e o Pêndulo. 
Há muitos anos, ao cair da tarde, nos cárceres do Santo Ofício de Saragoça, o venerando Pedro Arbuez de Espila – sexto prior dos dominicanos de Segóvia, terceiro Grande Inquisidor de Espanha –, seguido de um frade redentor (mestre torturador) e precedido de dois encarregados da Inquisição, os quais seguravam duas candeias, descia para uma enxovia perdida. Rangeu a fechadura de uma enorme porta; entraram num mefítico in pace, no qual a janela gradeada lá em cima deixava entrever, entre os anéis chumbados à parede, um cavalete escuro de sangue, um queimador, um cântaro. Sobre uma cama de palha, preso por grilhões, canga de ferro ao pescoço, sentava-se, desfigurado, um homem em trapos, de idade incerta. 
O prisioneiro não era outro senão o rabino Aser Abarbanel, judeu aragonês acusado de usura e de impiedoso desdém pelos pobres, que tem sido diariamente submetido a torturas, há mais de um ano. Todavia, "sua cegueira é tão dura quanto o seu couro", e ele recusa-se a abjurar sua fé. 
O rabino, brioso de uma ascendência milenar, orgulhoso de seus antepassados - pois todos os judeus dignos desse nome são ciosos do seu sangue -, descendia talmudicamente de Othoniel e, por conseguinte, de Ipsiboe, mulher desse último Juiz de Israel, circunstância em que também sustentara a sua coragem diante de incessantes suplícios. 
Foi com lágrimas nos olhos, ao pensar que essa alma tão firme se escusava à salvação, que o venerando Pedro Arbuez de Espila, tendo se aproximado do fremente rabino, pronunciou as seguintes palavras: 
– Meu filho, alegra-te: vão acabar agora as tuas provações neste mundo. Embora, em face de tanta obstinação, eu tenha sido forçado, com lástima, a permitir o emprego de tantos rigores, o meu encargo de fraterna correcção tem seus limites. És a figueira, que passando tanto tempo sem frutificar, vem a mirrar, e só Deus lhe pode julgar a alma. Quem sabe se a infinita Misericórdia te iluminará no teu último instante! Esperemos que assim seja. Tem havido exemplos. Dorme, pois, em paz esta noite. Serás incluído amanhã no auto-de-fé: isto é, serás submetido ao queimadeiro, fogueira premonitória das Chamas Eternas; como sabes, meu filho, só arde à distância e a Morte leva duas horas para chegar (muitas vezes três), por causa dos panos molhados e gelados com que temos o cuidado de proteger a frente e o coração dos holocaustos. Serão apenas quarenta e três. Considere que, estando colocado na última fila, disporás do tempo necessário para invocar Deus, para te ofertar esse baptismo do fogo, que é do Espírito Santo. Tem assim, esperança na Luz e dorme. 
Ao acabar este discurso, dom Arbuez, depois de, com um gesto, mandar desagrilhoar o infeliz, abraçou-o ternamente. Depois coube a vez ao frade redentor, que, sussurrando, pediu ao judeu perdão pelo que o obrigara a sofrer para o redimir; por fim, cingiram-no os dois encarregados cujo beijo, dado através dos capuzes, foi silencioso. Terminada a cerimónia, deixaram o cativo nas trevas, só e atónito. 
* * * 
O rabino Aser Abarbanel, de boca seca e olhar embrutecido de sofrimento começou por fitar, sem muita atenção, a porta fechada. – "Fechada?..." Esta palavra, no mais íntimo de si, despertava, nos seus confusos pensamentos, um devaneio. Acontecia que entrevira por um instante, pela fresta entre a porta e a muralha, o cintilar de lanternas. Uma ideia mórbida de esperança, devido à fraqueza do seu cérebro, convulsionou-lhe todo o ser. Arrastou-se para a insólita coisa que aparecera! E, suavemente, inserindo um dedo com grande cautela na nesga, puxou a porta para si. Que assombro! Por extraordinário acaso, o encarregado que a fechara rodara a grossa chave um pouco antes do embate contra os montantes de pedra, de modo que a lingueta enferrujada não entrara no seu encaixe, e a porta voltou a rodar nos gonzos. 
O rabino arriscou um olhar para fora. 
Encoberto por uma espécie de obscuridade lívida, distinguiu primeiro um semicírculo de paredes terrosas recortadas por degraus em espiral; e, diante dele, cinco ou seis degraus de pedra acima, um portal escuro, aberto para imenso corredor, do qual apenas as primeiras arcadas lhe eram visíveis. 
Deitando-se rastejou até ao rés desse limiar – sim, era mesmo um corredor, mas de comprimento desmedido! Iluminava-o uma luz pálida, um brilho onírico: suspensas das abóbadas, chamas de vigia banhavam de tons azuis, a intervalos, o ar pardacento: – o fundo longínquo era todo sombra. Nem uma porta lateral em toda essa extensão! De um só dos lados, à esquerda, havia seteiras, com grelhas em cruz, abertas nas paredes, que deixavam perpassar o crepúsculo – que devia estar anoitecendo, dadas as réstias rubras que de quando em quando riscavam o lajeado. E que silêncio assustador!... Contudo, ao fundo, nas profundas dessas brumas, uma saída poderia dar para a liberdade! A vacilante esperança do judeu era tenaz, pois era a última. Sem hesitar, avançou, conservando-se junto à parede, e procurou camuflar-se com o tom sombrio das longas muralhas. Avançou lentamente, arrastou-se com a respiração contida, e reprimia um grito, quando lhe martirizava uma chaga mais recente. 
De súbito, chegou até ele, no eco da senda de pedra, o ruído de sandálias que se aproximava. Tremeu; a ansiedade abafava-o; escureceu se lhe a vista. Não era possível! Seria o fim? Agachou-se num côncavo e, quase morto, esperou. 
Era um encarregado apressado. Passou rapidamente, de lacerador na mão, de capuz rebaixado, terrível, e desapareceu. A agonia do rabino parecia ter-lhe interrompido a própria vida, e ali ficou ele, quase uma hora, incapaz de mover-se. Receando redobrados tormentos caso fosse apanhado, assaltou-o a ideia de voltar ao calabouço. Mas a velha esperança sussurrou-lhe na alma o divino talvez, que nos conforta sempre, nas mais dolorosas circunstâncias. Acontecera um milagre! Não havia que duvidar mais! Pôs-se a rastejar de novo, para a possível fuga. Avançava extenuado de sofrimento e de fome, trémulo de angústias - e esse sepulcral corredor parecia alongar-se misteriosamente! E ele, avançando sem parar, continuava mirando a sombra distante, onde tinha de estar a saída salvadora. 
– Oh! Oh! – voltavam a soar passos, mas, desta vez, mais lentos e mais pesados. Surgiram, ao fundo, emergindo no ar pardacento, com os seus chapéus compridos e de abas enroladas, as formas brancas e negras de dois inquisidores. Conversavam em voz baixa e pareciam discutir sobre um ponto importante, pois gesticulavam veementemente. 
Ao vê-los, o rabino Aser Abarbanel fechou os olhos: batia-lhe tão desordenadamente o coração que quase o sufocava; os seus andrajos estavam húmidos do suor da agonia; conservou-se imóvel, estendido ao longo da parede, a boca aberta, sob os raios luminosos de uma chama de vigia, orando ao Deus de David. 
Diante dele, os dois inquisidores detiveram-se sob luz fraca da lâmpada – e isto certamente por um acaso da discussão. Um deles, escutando o seu interlocutor, pôs-se a olhar para o rabino. E, sob esse olhar, cuja expressão absorta começou por não compreender, o infeliz julgava sentir as tenazes quentes a lacerarem-lhe de novo as pobres carnes; então ia voltar a ser um grito e uma chaga! Desfalecendo, oprimido, com as pálpebras vibrantes, arrepiava-se ao roçar do burel do outro. Mas, coisa estranha, mas natural, o olhar do inquisidor era evidentemente o de alguém profundamente absorto na resposta que daria, absorto pelo que ouvia: estava fixo – e parecia olhar o judeu sem o ver! 
Com efeito, passados alguns minutos, os dois sinistros debatedores continuaram o seu caminho, a passos lentos, sempre conversando em voz baixa, em direcção ao compito de onde viera o prisioneiro: NÃO FORA VISTO!... No meio da horrível confusão dos pensamentos, brotou-lhe do espírito esta ideia: "Não me vêem porque estou morto?" Uma horrível impressão tirou-o da letargia: ao fitar o muro, junto ao rosto, julgou ver, diante dos seus, dois olhos ferozes que o espreitavam!... Voltou a cabeça num súbito frenesi de pavor, arrepiando-se-lhe os cabelos!... Mas, não! Não. 
Esfregou a argamassa com a mão: era o reflexo dos olhos do inquisidor, ainda impressos nos seus, e deles projectados sobre duas manchas na muralha.
 Adiante! Ele precisava apressar-se para a meta que imaginava (absurdamente, sem dúvida) ser a sua salvação, para as sombras das qual não distava agora mais de trinta passos. Atirou-se de joelhos, com as mãos espalmadas arrastou-se penosamente, e dai a pouco entrava no trecho escuro daquele horrível corredor. De súbito, o miserável sentiu um frio nas mãos que apoiava nas lajes: uma lufada de ar frio, vinda de baixo de pequena porta, aonde iam ter as duas paredes. – Ah, Deus! Se esta porta desse para o lado de fora! Sentiu-se invadido de uma vertigem de esperança! Examinou a porta de alto a baixo, sem conseguir distingui-la bem, dada a escuridão que reinava à volta. – Pôs-se a tactear: nem ferrolho, nem fechadura. – Uma simples aldrava!... Endireitou se: o trinco cedeu-lhe ao polegar: a silenciosa porta abriu-se diante dele. 
* * * 
– ALELUIA!... – murmurou, num imenso suspiro de acção de graças, o rabino, que estava agora em pé no limiar, contemplando a cena que tinha diante dos olhos. 
Ao abrir se, a porta deixara ver jardins, uma noite estrelada! A primavera, a liberdade, a vida! Dava para os campos que se prolongavam para as serras, cujas sinuosas linhas azuis se perfilavam no horizonte – enfim, era a salvação! Ah, fugir! Havia de correr toda a noite por entre os limoeiros cuja fragrância chagavam até ele. Uma vez nas montanhas, estaria salvo! Inalou o bom ar sagrado; o vento reanimava-o, expandiram-se-lhe os pulmões. Sentiu, no coração dilatado, o Veni foras de Lázaro! E, para voltar a abençoar o Deus que lhe concedia tal misericórdia, estendeu os braços à sua frente, elevando os olhos ao firmamento. Era o êxtase da alegria! 
Então, julgou ver a sombra dos seus braços virar-se para ele: – julgou sentir que esses braços o abraçavam, o enlaçavam, e que o cingiam ternamente ao peito de alguém. De fato, havia uma alta figura junto da sua. Confiante, desceu o olhar para essa figura – e ficou imóvel, ofegante, estarrecido, de olhar baço, tremendo, de faces inchadas e espumando de terror. 
– Horror! – estava nos braços do Grande Inquisidor, o venerável Pedro Arbuez de Espila, que o fitava, com grossas lágrimas nos olhos, e um ar de bom pastor que voltou a encontrar a ovelha tresmalhada!... 
O tenebroso dominicano apertava o judeu ao peito com tão fervoroso impulso de caridade, que os picos do cilício monástico lhe esgadanharam a pele. E, enquanto o rabino Aser Abarbanel, de olhos revoltos sob as pálpebras, estrebuchava de angústia entre os braços do ascético Dom Arbuez e percebia confusamente que todas as fases da fatal noite mais não eram do que um suplício previsto, o da Esperança!, o Grande Inquisidor, num tom de pungente censura e de olhar consternado, murmurava-lhe ao ouvido, com o hálito ardente e debilitado pelos jejuns: 
– Então, meu filho, o que é isso? Então, na véspera talvez da salvação... querias deixar-nos?

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...