domingo, 20 de janeiro de 2019

Contos de Terror - Cristovão Tezza

Vânia Medeiros/Folhapress


E ao tentar entender o incompreensível, tudo parece pouco; um dos filhos recomenda, do alto do seu vazio, com a arrogância, a estupidez e a boçalidade que já são o autêntico logotipo da Presidência, que os professores do ensino médio do ano que se inicia não devem falar sobre feminismo, "linguagens outras que não a língua portuguesa ou história conforme a esquerda", e eu releio a patacoada analfabeta atrás de um sentido, me perguntando quem seria esse alguém para "recomendar" alguma coisa aos professores, e me ocorre a palavra "idiota", é claro!


O Brasil conta com os préstimos intelectuais daquele pensador que é, por autodeclaração, o maior especialista em idiotas do país, e que acaba de espetacularmente emplacar o poder (ou "lacrá-lo", para usar um termo da moda —"Eles me levaram a sério!", ele deve estar repetindo, ainda incrédulo, com orgulho legítimo).
E, como numa história da Bíblia, não se passaram ainda seis dias, mas não há descanso no sétimo —o mesmo filho divulga ao país e ao mundo sua imagem feliz com um revólver à mão dando tiros com volúpia, em defesa da liberação de armas no país que conta com mais de 60 mil homicídios por ano, um recorde mundial.
Volto aos arcanos de Montague Summers, tentando inutilmente escapar do noticiário: "É verdade que em certas nações parece haver uma indiferença à vida humana, um desprezo pela própria morte que com frequência assume as formas mais extravagantes e ultrajantes".
Decido pular da rigorosa ciência dos vampiros, excessiva para mim, aos prazeres da ficção, que dá maior nitidez à realidade, e, para sintonizar com o espírito da coisa e do país, abro os "Contos Clássicos de Terror" (Companhia das Letras; seleção e apresentação de Julio Jeha).
Pela inquietude da razão que me assombra e faz minha cabeça, nunca me atraiu especialmente a temática do terror (Isso não existe!, diz minha lógica miúda), mas o medo ainda não me transformou num covarde. Vou abrindo corajosamente as páginas, e de tudo que leio (só texto bom!), paro abismado em "A Causa Secreta", relembrando esta obra-prima sobre o mal, do sempre inacreditável Machado de Assis.
É um conto perfeito, que, décadas antes do cinema, começa com um recorte de um vaivém cinematográfico ("Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha."), avança com uma elegância narrativa absurda, vivíssima um século depois e enxuta como um punhal, e termina com uma cena sobre os prazeres da tortura, que é a essência do terror.
Como a tortura é um dos assuntos de aguda predileção da Presidência, o conto de Machado ganha uma inesperada dimensão didática.
Um dos contos do livro, de Villiers de L'Isle-Adam, chama-se justamente "A Tortura pela Esperança", em que o protagonista o tempo todo se pergunta, enquanto se arrasta nas trevas em direção à luz: dá para sair dessa?

A CAUSA SECRETA  - Machado de Assis
 GARCIA, EM PÉ, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o tecto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, — de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço. 
 Tinham falado também de outra cousa, além daquelas três, cousa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da situação. 
 Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele. 
 A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo beco do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada. 
 Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este que alguns homens conduziam, escada acima, ensangüentado. O preto que o servia acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico. 
— Já aí vem um, acudiu alguém. 
 Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu às pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se passara. 
— Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo. 
— Conhecia-o antes? perguntou Garcia. 
— Não, nunca o vi. Quem é?  
— É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouvêa. 
— Não sei quem é. 
 Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o médico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dous saíram, ele e o estudante ficaram no quarto. 
Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios. 
 Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número. 
— Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente. 
 Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouvêa, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu. 
— Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se. 
O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como uma simples idéia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão. 
 Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum. 
 Tempos depois, estando já formado e morando na rua de Matacavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a freqüência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi. 
— Sabe que estou casado? 
— Não sabia. 
— Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo. 
— Domingo? 
— Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo. 
Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. 
Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos,  perguntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido. 
— Não, respondeu a moça. 
— Vai ouvir uma ação bonita. 
— Não vale a pena, interrompeu Fortunato. 
— A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico. 
 Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco. 
 " Singular homem!" pensou Garcia. 
 Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir a dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo. 
— Valeu? perguntou Fortunato. 
— Valeu o quê? 
— Vamos fundar uma casa de saúde? 
— Não valeu nada; estou brincando. 
— Podia-se fazer alguma cousa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve. 
 Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a idéia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estréia para ele, e podia vir a ser um bom negócio para ambos. Aceitou finalmente, daí a dias, e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a idéia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele o próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas. 
 Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos. 
— Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele. 
 A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada. 
 No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a  situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como cousa sua, alcançasse do marido a cessação de tais experiências. 
— Mas a senhora mesma... Maria Luísa acudiu, sorrindo: 
— Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz... 
Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada. 
— Deixe ver o pulso. 
— Não tenho nada. 
 Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo. 
 Dois dias depois, — exatamente o dia em que os vemos agora, — Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita. 
— Que é? perguntou-lhe. 
— O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se. 
 Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunado queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôsse a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado. 
— Mate-o logo! disse-lhe. 
— Já vai. 
 E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensangüentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida. 
 Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue. 
 Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida. 
 "Castiga sem raiva", pensou o médico, "pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem". 
 Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula. 
 Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente: 
— Fracalhona! 
E voltando-se para o médico: 
— Há de crer que quase desmaiou? 
 Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar. 
 Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custavalhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal. 
Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só. 
 De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco. 
— Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois. 
Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado. 
 Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento. 
Olhou assombrado, mordendo os beiços. 
 Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.

A tortura pela esperança -  Villiers de l´Isle Adam 
Tradução de Roberto Schmitt-Prym 
Ao Senhor Edouard Nieter 
"Oh! Uma voz, uma voz, para gritar!..." Edgar Poe - O Poço e o Pêndulo. 
Há muitos anos, ao cair da tarde, nos cárceres do Santo Ofício de Saragoça, o venerando Pedro Arbuez de Espila – sexto prior dos dominicanos de Segóvia, terceiro Grande Inquisidor de Espanha –, seguido de um frade redentor (mestre torturador) e precedido de dois encarregados da Inquisição, os quais seguravam duas candeias, descia para uma enxovia perdida. Rangeu a fechadura de uma enorme porta; entraram num mefítico in pace, no qual a janela gradeada lá em cima deixava entrever, entre os anéis chumbados à parede, um cavalete escuro de sangue, um queimador, um cântaro. Sobre uma cama de palha, preso por grilhões, canga de ferro ao pescoço, sentava-se, desfigurado, um homem em trapos, de idade incerta. 
O prisioneiro não era outro senão o rabino Aser Abarbanel, judeu aragonês acusado de usura e de impiedoso desdém pelos pobres, que tem sido diariamente submetido a torturas, há mais de um ano. Todavia, "sua cegueira é tão dura quanto o seu couro", e ele recusa-se a abjurar sua fé. 
O rabino, brioso de uma ascendência milenar, orgulhoso de seus antepassados - pois todos os judeus dignos desse nome são ciosos do seu sangue -, descendia talmudicamente de Othoniel e, por conseguinte, de Ipsiboe, mulher desse último Juiz de Israel, circunstância em que também sustentara a sua coragem diante de incessantes suplícios. 
Foi com lágrimas nos olhos, ao pensar que essa alma tão firme se escusava à salvação, que o venerando Pedro Arbuez de Espila, tendo se aproximado do fremente rabino, pronunciou as seguintes palavras: 
– Meu filho, alegra-te: vão acabar agora as tuas provações neste mundo. Embora, em face de tanta obstinação, eu tenha sido forçado, com lástima, a permitir o emprego de tantos rigores, o meu encargo de fraterna correcção tem seus limites. És a figueira, que passando tanto tempo sem frutificar, vem a mirrar, e só Deus lhe pode julgar a alma. Quem sabe se a infinita Misericórdia te iluminará no teu último instante! Esperemos que assim seja. Tem havido exemplos. Dorme, pois, em paz esta noite. Serás incluído amanhã no auto-de-fé: isto é, serás submetido ao queimadeiro, fogueira premonitória das Chamas Eternas; como sabes, meu filho, só arde à distância e a Morte leva duas horas para chegar (muitas vezes três), por causa dos panos molhados e gelados com que temos o cuidado de proteger a frente e o coração dos holocaustos. Serão apenas quarenta e três. Considere que, estando colocado na última fila, disporás do tempo necessário para invocar Deus, para te ofertar esse baptismo do fogo, que é do Espírito Santo. Tem assim, esperança na Luz e dorme. 
Ao acabar este discurso, dom Arbuez, depois de, com um gesto, mandar desagrilhoar o infeliz, abraçou-o ternamente. Depois coube a vez ao frade redentor, que, sussurrando, pediu ao judeu perdão pelo que o obrigara a sofrer para o redimir; por fim, cingiram-no os dois encarregados cujo beijo, dado através dos capuzes, foi silencioso. Terminada a cerimónia, deixaram o cativo nas trevas, só e atónito. 
* * * 
O rabino Aser Abarbanel, de boca seca e olhar embrutecido de sofrimento começou por fitar, sem muita atenção, a porta fechada. – "Fechada?..." Esta palavra, no mais íntimo de si, despertava, nos seus confusos pensamentos, um devaneio. Acontecia que entrevira por um instante, pela fresta entre a porta e a muralha, o cintilar de lanternas. Uma ideia mórbida de esperança, devido à fraqueza do seu cérebro, convulsionou-lhe todo o ser. Arrastou-se para a insólita coisa que aparecera! E, suavemente, inserindo um dedo com grande cautela na nesga, puxou a porta para si. Que assombro! Por extraordinário acaso, o encarregado que a fechara rodara a grossa chave um pouco antes do embate contra os montantes de pedra, de modo que a lingueta enferrujada não entrara no seu encaixe, e a porta voltou a rodar nos gonzos. 
O rabino arriscou um olhar para fora. 
Encoberto por uma espécie de obscuridade lívida, distinguiu primeiro um semicírculo de paredes terrosas recortadas por degraus em espiral; e, diante dele, cinco ou seis degraus de pedra acima, um portal escuro, aberto para imenso corredor, do qual apenas as primeiras arcadas lhe eram visíveis. 
Deitando-se rastejou até ao rés desse limiar – sim, era mesmo um corredor, mas de comprimento desmedido! Iluminava-o uma luz pálida, um brilho onírico: suspensas das abóbadas, chamas de vigia banhavam de tons azuis, a intervalos, o ar pardacento: – o fundo longínquo era todo sombra. Nem uma porta lateral em toda essa extensão! De um só dos lados, à esquerda, havia seteiras, com grelhas em cruz, abertas nas paredes, que deixavam perpassar o crepúsculo – que devia estar anoitecendo, dadas as réstias rubras que de quando em quando riscavam o lajeado. E que silêncio assustador!... Contudo, ao fundo, nas profundas dessas brumas, uma saída poderia dar para a liberdade! A vacilante esperança do judeu era tenaz, pois era a última. Sem hesitar, avançou, conservando-se junto à parede, e procurou camuflar-se com o tom sombrio das longas muralhas. Avançou lentamente, arrastou-se com a respiração contida, e reprimia um grito, quando lhe martirizava uma chaga mais recente. 
De súbito, chegou até ele, no eco da senda de pedra, o ruído de sandálias que se aproximava. Tremeu; a ansiedade abafava-o; escureceu se lhe a vista. Não era possível! Seria o fim? Agachou-se num côncavo e, quase morto, esperou. 
Era um encarregado apressado. Passou rapidamente, de lacerador na mão, de capuz rebaixado, terrível, e desapareceu. A agonia do rabino parecia ter-lhe interrompido a própria vida, e ali ficou ele, quase uma hora, incapaz de mover-se. Receando redobrados tormentos caso fosse apanhado, assaltou-o a ideia de voltar ao calabouço. Mas a velha esperança sussurrou-lhe na alma o divino talvez, que nos conforta sempre, nas mais dolorosas circunstâncias. Acontecera um milagre! Não havia que duvidar mais! Pôs-se a rastejar de novo, para a possível fuga. Avançava extenuado de sofrimento e de fome, trémulo de angústias - e esse sepulcral corredor parecia alongar-se misteriosamente! E ele, avançando sem parar, continuava mirando a sombra distante, onde tinha de estar a saída salvadora. 
– Oh! Oh! – voltavam a soar passos, mas, desta vez, mais lentos e mais pesados. Surgiram, ao fundo, emergindo no ar pardacento, com os seus chapéus compridos e de abas enroladas, as formas brancas e negras de dois inquisidores. Conversavam em voz baixa e pareciam discutir sobre um ponto importante, pois gesticulavam veementemente. 
Ao vê-los, o rabino Aser Abarbanel fechou os olhos: batia-lhe tão desordenadamente o coração que quase o sufocava; os seus andrajos estavam húmidos do suor da agonia; conservou-se imóvel, estendido ao longo da parede, a boca aberta, sob os raios luminosos de uma chama de vigia, orando ao Deus de David. 
Diante dele, os dois inquisidores detiveram-se sob luz fraca da lâmpada – e isto certamente por um acaso da discussão. Um deles, escutando o seu interlocutor, pôs-se a olhar para o rabino. E, sob esse olhar, cuja expressão absorta começou por não compreender, o infeliz julgava sentir as tenazes quentes a lacerarem-lhe de novo as pobres carnes; então ia voltar a ser um grito e uma chaga! Desfalecendo, oprimido, com as pálpebras vibrantes, arrepiava-se ao roçar do burel do outro. Mas, coisa estranha, mas natural, o olhar do inquisidor era evidentemente o de alguém profundamente absorto na resposta que daria, absorto pelo que ouvia: estava fixo – e parecia olhar o judeu sem o ver! 
Com efeito, passados alguns minutos, os dois sinistros debatedores continuaram o seu caminho, a passos lentos, sempre conversando em voz baixa, em direcção ao compito de onde viera o prisioneiro: NÃO FORA VISTO!... No meio da horrível confusão dos pensamentos, brotou-lhe do espírito esta ideia: "Não me vêem porque estou morto?" Uma horrível impressão tirou-o da letargia: ao fitar o muro, junto ao rosto, julgou ver, diante dos seus, dois olhos ferozes que o espreitavam!... Voltou a cabeça num súbito frenesi de pavor, arrepiando-se-lhe os cabelos!... Mas, não! Não. 
Esfregou a argamassa com a mão: era o reflexo dos olhos do inquisidor, ainda impressos nos seus, e deles projectados sobre duas manchas na muralha.
 Adiante! Ele precisava apressar-se para a meta que imaginava (absurdamente, sem dúvida) ser a sua salvação, para as sombras das qual não distava agora mais de trinta passos. Atirou-se de joelhos, com as mãos espalmadas arrastou-se penosamente, e dai a pouco entrava no trecho escuro daquele horrível corredor. De súbito, o miserável sentiu um frio nas mãos que apoiava nas lajes: uma lufada de ar frio, vinda de baixo de pequena porta, aonde iam ter as duas paredes. – Ah, Deus! Se esta porta desse para o lado de fora! Sentiu-se invadido de uma vertigem de esperança! Examinou a porta de alto a baixo, sem conseguir distingui-la bem, dada a escuridão que reinava à volta. – Pôs-se a tactear: nem ferrolho, nem fechadura. – Uma simples aldrava!... Endireitou se: o trinco cedeu-lhe ao polegar: a silenciosa porta abriu-se diante dele. 
* * * 
– ALELUIA!... – murmurou, num imenso suspiro de acção de graças, o rabino, que estava agora em pé no limiar, contemplando a cena que tinha diante dos olhos. 
Ao abrir se, a porta deixara ver jardins, uma noite estrelada! A primavera, a liberdade, a vida! Dava para os campos que se prolongavam para as serras, cujas sinuosas linhas azuis se perfilavam no horizonte – enfim, era a salvação! Ah, fugir! Havia de correr toda a noite por entre os limoeiros cuja fragrância chagavam até ele. Uma vez nas montanhas, estaria salvo! Inalou o bom ar sagrado; o vento reanimava-o, expandiram-se-lhe os pulmões. Sentiu, no coração dilatado, o Veni foras de Lázaro! E, para voltar a abençoar o Deus que lhe concedia tal misericórdia, estendeu os braços à sua frente, elevando os olhos ao firmamento. Era o êxtase da alegria! 
Então, julgou ver a sombra dos seus braços virar-se para ele: – julgou sentir que esses braços o abraçavam, o enlaçavam, e que o cingiam ternamente ao peito de alguém. De fato, havia uma alta figura junto da sua. Confiante, desceu o olhar para essa figura – e ficou imóvel, ofegante, estarrecido, de olhar baço, tremendo, de faces inchadas e espumando de terror. 
– Horror! – estava nos braços do Grande Inquisidor, o venerável Pedro Arbuez de Espila, que o fitava, com grossas lágrimas nos olhos, e um ar de bom pastor que voltou a encontrar a ovelha tresmalhada!... 
O tenebroso dominicano apertava o judeu ao peito com tão fervoroso impulso de caridade, que os picos do cilício monástico lhe esgadanharam a pele. E, enquanto o rabino Aser Abarbanel, de olhos revoltos sob as pálpebras, estrebuchava de angústia entre os braços do ascético Dom Arbuez e percebia confusamente que todas as fases da fatal noite mais não eram do que um suplício previsto, o da Esperança!, o Grande Inquisidor, num tom de pungente censura e de olhar consternado, murmurava-lhe ao ouvido, com o hálito ardente e debilitado pelos jejuns: 
– Então, meu filho, o que é isso? Então, na véspera talvez da salvação... querias deixar-nos?

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