segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Matusalém - Luis Fernando Verissimo

Há algum tempo, convidaram o Zuenir, o Ziraldo e eu para escrever uma peça de teatro. O assunto, já que a soma das nossas idades dava mais de 250 anos (eu era o caçula!) seria a velhice, suas misérias, seus estragos, seus terrores, suas indignidades - tudo tratado com humor. 
*
Fizemos reuniões para planejar a participação de cada um no roteiro da peça. E reuniões, e reuniões, e mais reuniões, no fim das quais tínhamos exatamente nada. Nem um título. Os produtores nos lembraram, gentilmente, que a produção andava, que já havia uma atriz principal e um teatro contratados, que o espetáculo dependia do texto para ser encenado. Concordamos. O texto era essencial. O texto sairia. Só precisávamos de mais duas ou três reuniões. 
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Finalmente, o alívio. Para nós e para os produtores, que chamaram um dramaturgo profissional para fazer o texto, aproveitando ideias que - milagrosamente - nós lhe déssemos durante os ensaios. Até hoje não sei a causa daquele branco tripartido que nos embotou o cérebro. Talvez a obrigação de encarar suas velhices e ainda fazer piadas a respeito tenha emburrado os três.
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Algumas ideias do Zuenir e do Ziraldo chegaram ao palco. Nenhuma ideia minha sobreviveu. Pensei numa entrevista para a TV do Matusalém, o personagem mais longevo da Bíblia, avô de Noé. Matusalém, ao contrário do que todos pensam, ainda não morreu. Vive no Brasil, mais especificamente em Madureira, e chegou para a entrevista na TV de bicicleta.
- E aí, Matusalém. Quantos anos?
- Só vou dizer uma coisa. Na última vez que me fizeram um bolo de velas, a casa incendiou.
- A Bíblia diz que você morreu com mais de 900 anos.
- Vá acreditar na imprensa.
- Você... Posso chamá-lo de “você”?
- Lá na zona me chamam de “Matu”.
- Vivendo tanto tempo, Matu, você certamente se encontrou com muita gente importante...
- Iiiiih ... Diz um aí.
- Noé, seu neto.
- Grande safado. Quase me deixou fora da Arca, só porque eu estava sem mulher na ocasião e só aceitavam duplas.
- Jesus Cristo.
- Amigaço. Numa mesa com Jesus, nunca faltava vinho. 
- Como está se dando no Brasil?
- Mais ou menos. O INSS não aceita meus documentos porque o papiro está se esfarelando e não querem me pagar.
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A peça não foi um grande sucesso nas teve uma carreira respeitável. Sobraram da experiência três autores penitentes.

sábado, 29 de dezembro de 2018

Tática de guerrilha (para homens distraídos) - Fabrício Carpinejar

O que uma mulher mais reclama do homem é sua distração: esquece de observá-la, não valoriza os detalhes, não identifica surpresas e passa reto em datas importantes e comemorações amorosas.
Com objetivo de salvar casamentos e namoros, encontrei a saída do labirinto.
O homem deveria confessar que tem déficit de atenção já no primeiro encontro. Na verdade, déficit de atenção é um outro nome para egoísmo - ele só escuta o que quer e só faz o que deseja -, mas rebatizando o defeito terá uma nova vida sem atribulações e julgamento, sem críticas e implicâncias.
Tente, funciona perfeitamente.
Está começando uma relação, chame sua garota para perto, faça o olhar triste do Gato de Botas do Shrek, e puxe uma conversa séria:
— Antes de tudo, preciso expor algo, você tem o direito de não ficar comigo, eu entenderia, mas não desejo esconder nada: eu tenho déficit de atenção!
É óbvio que ela aceitará, todo mundo admite qualquer coisa que é dita na primeira semana de relacionamento (é a fase da tolerância e impunidade). Ela arregalará os olhos, lamentará a dificuldade, prometerá ajuda e não terá mais como cobrar absolutamente nada daqui por diante de seus lapsos e apagões. Será o paraíso fiscal, a redefinição mágica de sua rotina.
Você não reparou que ela cortou os cabelos, daí você diz:
— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!
Você não lembrou que completam um ano de relacionamento, não comprou presente e flores.
— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!
Você saiu com os amigos para beber, e não avisou.
— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!
Você não gravou quando ela avisou que não gostava de azeitonas e buscou servi-la.
— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!
Você não reconheceu o sogro de sunga e a sogra de biquíni.
— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!
Você troca risos e bocas com uma estranha.
— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!
Você não notou que a casa está tomada de velas e que sua mulher dança sensualmente, e ligou a televisão no canal de esporte.
— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!
Mas, se ela se depilou e você não viu, por favor, não culpe o déficit de atenção, é o único caso que ele não pode ser usado. Vai voar um tabefe na sua orelha para voltar a ouvir. Ou para ensurdecê-lo de vez.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Ciceros - Luis Fernando Verissimo

Cicero era o cara. Orador brilhante, político atuante, filósofo, poeta, republicano exemplar... Foi o intelectual que dominou duas eras de transição, a do ocaso do mundo pré-cristão e a da passagem do grego para o latim como língua civilizatória. Li em algum lugar que se não fosse as traduções que Cicero fez do grego para a língua de Roma, a história do mundo teria sido outra. Uma especulação “un po exaggerata”, diriam em Roma.
Shakespeare botou Cicero na sua peça Julio Cesar, mas como um coadjuvante que pouco aparece, embora seja muito citado. Os conspiradores que se preparam pra assassinar Cesar e frear sua ambição autocrática discutem se Cicero deve ser convidado para o golpe. Afinal, nenhum romano era mais republicano do que ele. Mas a razão para convocá-lo não seria sua oratória inflamadora ou sua predisposição para derrubar possíveis tiranos.
Luis Fernando Verissimo, O Estado de S.Paulo
27 Dezembro 2018 | 02h00
Cicero era o cara. Orador brilhante, político atuante, filósofo, poeta, republicano exemplar... Foi o intelectual que dominou duas eras de transição, a do ocaso do mundo pré-cristão e a da passagem do grego para o latim como língua civilizatória. Li em algum lugar que se não fosse as traduções que Cicero fez do grego para a língua de Roma, a história do mundo teria sido outra. Uma especulação “un po exaggerata”, diriam em Roma.
Shakespeare botou Cicero na sua peça Julio Cesar, mas como um coadjuvante que pouco aparece, embora seja muito citado. Os conspiradores que se preparam pra assassinar Cesar e frear sua ambição autocrática discutem se Cicero deve ser convidado para o golpe. Afinal, nenhum romano era mais republicano do que ele. Mas a razão para convocá-lo não seria sua oratória inflamadora ou sua predisposição para derrubar possíveis tiranos.
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“Vamos chamá-lo porque seus cabelos prateados nos comprarão boas opiniões e vozes que elogiarão nossos feitos”, diz um dos conspiradores. “Dirão que o julgamento dele guiou nossas mãos, e que nossa juventude e loucura não aparecerão, pois estarão enterradas na sua gravidade.” Cabelos prateados e gravidade são o que Cicero, que está vivendo seu próprio ocaso, tem para oferecer aos conspiradores, que não o convidam para ajudar a matar Cesar. Mas mesmo não participando do golpe, Cicero não escapa da terrível vingança de Antonio, que pede para lhe trazerem a cabeça e as mãos do poeta decepadas. 
Cicero foi um exemplo do perigo de incorporar virtudes cívicas quando todos à sua volta só querem é poder, e a emprestar seu prestígio – ou seus cabelos brancos – a causas incertas. A redescoberta da era clássica pela Renascença resgatou Cicero da obscuridade, mas é outro Cicero que aparece agora, o inspirador da República das Letras, que surgirá para compensar os horrores de um mundo em ebulição e defender um humanismo transnacional. Infelizmente, um ideal que depende da política como uma atividade de cavalheiros, governos por uns poucos iluminados e todas as práticas antidemocráticas que você pode imaginar. Esse Cicero não nos serve. 

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

“A morte dos girassóis” - Caio Fernando Abreu



Anoitecia, eu estava no jardim. Passou um vizinho e ficou me olhando, pálido demais até para o anoitecer. Tanto que cheguei a me virar para trás, quem sabe alguma coisa além de mim no jardim. Mas havia apenas os brincos-de-princesa, a enredadeira subindo tenta pelos cordões, rosas cor-de-rosa, gladíolos desgrenhados. Eu disse oi, ele ficou mais pálido. Perguntei que-que foi, e ele enfim suspirou: “Me disseram no Bonfim que você morreu na Quinta-feira.” Eu disse ou pensei em dizer ou de tal forma deveria ter dito que foi como se dissesse: “É verdade, morri sim. Isso que você está vendo é uma aparição, voltei porque não consigo me libertar do jardim, vou ficar aqui vagando feito Egum até desabrochar aquela rosa amarela plantada no dia de Oxum. Quando passar por lá no Bonfim diz que sim, que morri mesmo, e já faz tempo, lá por agosto do ano passado. Aproveita e avisa o pessoal que é ótimo aqui do outro lado: enfim um lugar sem baixo-astral.”
Acho que ele foi embora, ainda mais pálido. Ou eu fui, não importa.
Mudando de assunto sem mudar propriamente, tenho aprendido muito com o jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples, fáceis, até um pouco brutas.
Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir.
Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada. Viajei por quase um mês no verão, quando voltei, a casa tinha sido pintada, muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados. Fiquei uma fera. Gritei com o pintor: “Mas o senhor não sabe que as plantas sentem dor que nem a gente?” O homem ficou me olhando tão pálido quanto aquele vizinho. Não, ele não sabe, entendi. E fui cuidar do que restava, que é sempre o que se deve fazer.
Porque tem outra coisa: girassol quando abre flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então, como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra, exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto.
Na manhã seguinte, juro, ele havia feito um giro completo sobre o próprio eixo e estava com a corola toda aberta, iluminada, voltada exatamente para o sorriso do Buda. Os dois pareciam sorrir um para o outro.Um com o talo torto, outro com as mãos quebradas. Durou pouco, girassol dura pouco, uns três dias. Então peguei e joguei-o pétala por pétala, depois o talo e a corola entre as alamandas da sacada, para que caíssem no canteiro lá embaixo e voltassem a ser pó, húmus misturado à terra, depois não sei ao certo, voltasse à tona fazendo parte de uma rosa, palma-de-santa-rita, lírio ou azaléia, vai saber que tramas armam as raízes lá embaixo no escuro, em segredo.Alguns amarrei com cordões em estacas, mas havia um tão quebrado que nem dei muita atenção, parecia não valer a pena. Só apoiei-o numa espada-de-são-jorge com jeito, e entreguei a Deus. Pois no dia seguinte, lá estava ele todo meio empinado de novo, tortíssimo, mas dispensando o apoio da espada. Foi crescendo assim precário, feinho, fragilíssimo. Quando parecia quase bom, cráu! Veio uma chuva medonha e deitou-se por terra. Pela manhã estava todo enlameado, mas firme. Aí me veio a ideia: cortei-o com cuidado e coloquei-o aos pés do Buda chinês de mãos quebradas que herdei de Vicente Pereira. Estava tão mal que o talo pendia cheio dos ângulos das fraturas, a flor ficava assim meio de cabeça baixa e de costas para o Buda. Não havia como endireitá-lo.
Ah, pede-se não enviar flores. Pois como eu ia dizendo, depois que comecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas é que não se deve decretar a morte de um girassol antes do tempo, compreendeu? Algumas pessoas acho que nunca. Mas não é para essas que escrevo.
Caio F. Abreu – foto: Adriana Franciosi

Partidário do nada - Mario Vargas Llosa

“Partidário do nada”, afirmou Jorge Edwards no segundo volume de suas memórias, que acaba de ser publicado como Esclavos de la Consigna (Escravos do slogan, Lumen). A frase é muito boa, mas não é verdade, porque ele tem suas ideias políticas e literárias muito claras e as defende corajosamente. Mas sempre houve nele uma objetividade e um comedimento que se refletem exatamente neste estilo sereno, prolongado, claro e inteligente escrevendo suas esplêndidas histórias e memórias.
Nos anos narrados neste livro, sua juventude literária até o momento em que Salvador Allende, recém-eleito presidente do Chile, manda-o para Cuba como encarregado de negócios para reabrir a embaixada que estava fechada desde o rompimento das relações entre os dois países durante o regime de Eduardo Frei Montalva, os sectarismos políticos eram tão apaixonados na América Latina que alguém tão discreto, tão bem educado, tão respeitoso das formas, poderia parecer inexistente. A boa prosa de Edwards é carregada de uma boa ironia que dá um charme especial a tudo o que conta neste livro.
Ovelha negra de uma antiga família chilena por seus amigos de esquerda e por ele mesmo ser de esquerda na sua adolescência e em sua maturidade precoce, os primeiros capítulos de Esclavos de la Consigna referem-se principalmente aos seus primeiros passos no domínio da literatura, como essa vocação se impôs sobre tudo o resto – seus estudos de Direito, o ano da pós-graduação em Princeton que o marcou profundamente, seu ingresso na diplomacia, o entusiasmo com que ele leu Unamuno e outros escritores da geração de 1898, seus primeiros livros de contos e a boemia pertinaz, feita de vida noturna, álcool e travessuras com chilenas, talvez as primeiras a alcançar uma margem de liberdade e independência ainda desconhecida pelas outras mulheres latino-americanas.
Uma figura central na vida de Jorge Edwards foi Pablo Neruda; tornaram-se amigos desde que ele era muito jovem, e a amizade permitiu que Jorge conhecesse Neruda de forma muito mais íntima, e ele o descreve nestas páginas com admiração e carinho pela grandeza da sua poesia, mas também o mostra cercado de dúvidas e angústias políticas secretas que o devoravam em alguns momentos (“Eu estava equivocado”, confessou nos últimos anos). Além disso, ele narra os esforços feitos para evitar que Jorge escrevesse Persona Non Grata, seu testemunho crítico sobre a Revolução Cubana que seria lido em todo o mundo e que levaria, como previu o poeta, a uma tempestade de críticas de uma ferocidade sem precedentes por uma esquerda cativada pela suposta “revolução com pachanga (festa)” de Cuba. Aqui, conta como o próprio Julio Cortázar, recém-convertido à Revolução naqueles anos, confessou que, apesar de serem amigos, ele preferiu não voltar a encontrá-lo por ter escrito aquela memória.
Eu conheci Jorge naqueles anos, recém-chegado de Paris como o terceiro secretário da embaixada chilena. Nós nos tornamos muito amigos, fazíamos visitas literárias nos fins de semana e trocávamos livros. Era então bem mais tímido, mas depois de uns dois uísques, saltava sobre uma mesa e, muito sério, interpretava uma diabólica “dança indiana” que consistia em mover ao mesmo tempo a cabeça, mãos e pés. Tenho certeza de que ele cumpriu suas funções diplomáticas de maneira meticulosa, mas a literatura sempre foi sua primeira prioridade; e desde então acostumou-se a levantar de madrugada para escrever – sempre à mão em folhas brancas e canetas de tinta azul – e assim que eu li seu primeiro romance, O Peso da Noite, que está sempre vivo na minha memória, como estão nossas discussões sobre quem era melhor escritor, Dostoievski ou Tolstoi (eu defendia Tolstoi).
Pelo livro desfilam uma série de personagens fascinantes como o brasileiro Rubem Braga, Carlos Fuentes “com sua cara de eminência da Revolução Mexicana” ou Enrique Bello, um sibarita que me confessou uma noite estar feliz porque ele conseguiu realizar um sonho epônimo; perguntei o que era e ele disse, muito sério: “dar à carne de boi um tratamento que a faça parecer carne de caça”. Talvez o mais terno deles seja o apelidado Queque Sanhueza, intelectual erudito e biógrafo que parecia tão perdido neste mundo (a não ser dentro de uma biblioteca), pequenino ele mesmo e enamorado por mulheres muito altas e musculosas, que se acidentou ao cair de uma bicicleta na ilha grega de Leros e morreu em Santiago, sem entender uma palavra desta terra e, sim, depois de ter lido milhares de livros. Seu diálogo com o padre que descobre ao seu lado, após o acidente naquela pequena ilha grega, é memorável.
Há também a fugaz aparição de Pepe Bianco, o eterno secretário de redação da revista SUR, de Buenos Aires, que “aspirava a ser pobre, e então era menos que pobre, era miserável”. Que eu me lembre, Pepe Bianco só publicou alguns livros – de qualquer forma, são os únicos que eu li dele –, mas era um daqueles intelectuais argentinos que tinham lido a melhor literatura do mundo em cinco idiomas e opinava sobre ela com um gosto literário requintado e infalível. García Márquez não aparece pessoalmente, mas simCem Anos de Solidão, cuja “fantasia excessiva”, diz Edwards, “o entediava”. (Sobre isso também poderíamos ter uma daquelas discussões apaixonadas de nossa juventude). E é perverso o aparecimento do poeta e escritor hispânico-sueco, Artur Lundqvist, “que parecia estar convencido por um curioso axioma político e literário: o escritor partidário de Fidel Castro e do castrismo era necessariamente um bom escritor, e vice-versa”. Também é inesquecível a imagem, durante o Congresso Cultural de Havana, do pintor Roberto Matta e outros surrealistas dando pontapés no traseiro do veterano David Alfaro Siqueiros e “gritando ‘por Trotsky!’ em cada chute”.
Uma dimensão muito especial neste livro é o testemunho político. É surpreendente saber que se houvesse alguém que alertasse sobre a catástrofe que poderia acontecer com a eleição de Salvador Allende e as reformas prometidas pela Unidade Popular, esse alguém era Neruda. Eles perguntaram se ele ia votar em Allende e ele respondeu, desanimado: “desculpe, não há outra escolha”. Mas Matilde Neruda votou em Radomiro Tomic. E aqui aparece o poeta angustiado por pesadelos sobre o que poderia acontecer no Chile – isto é, o flagelo de Pinochet – com a perspectiva de o radicalismo da Unidade Popular desestabilizar a força democrática do seu país. Essas instituições estavam profundamente enraizadas, de fato. Somente no Chile democrático de então poderia haver um diplomata, como Edwards, indo comigo para a embaixada de Cuba em Paris em 26 de julho para celebrar a revolução de um país com o qual seu governo estava sob uma censura muito intensa (Tanto que haviam rompido relações). E, apesar do esquerdismo de Edwards na época, o ministro das Relações Exteriores de Frei Montalva, o democrata cristão Gabriel Valdés, chamou-o para consultá-lo sobre os escritores e a política cultural do governo. Bons hábitos que, felizmente, após o pesadelo da ditadura militar, voltaram ao Chile e que recria este livro com delicadeza e humor. / TRADUÇÃO POR RENATO PRELORENTZOU

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Araminhos / O araminho de fechar pão - Antonio Prata


Araminhos

Um dia, na quarta série, ao lado da cantina, o Douglas me contou uma piada. Vou resumir, porque o espaço é curto e a piada é péssima. Os americanos estavam construindo um super caça e tinham um problema: nos testes, a asa sempre quebrava, no mesmo lugar. Os melhores engenheiros da NASA foram chamados. Mexeram no projeto, usaram aço, titânio, até diamante: nada resolvia.
Então um servente que varria o hangar sugeriu fazerem vários furinhos no lugar em que a asa costumava quebrar. Os furos foram feitos. A asa não quebrou. Quando perguntaram pro cara de onde havia tirado aquela solução bizarra, ele respondeu: “Simples, é a velha lógica do papel higiênico: nunca rasga na linha picotada”.
Pois é, eu avisei que a piada era péssima. Eu já achei péssima na quarta série e continuo achando péssima, hoje. Por que, então, Jesus amado, guardo essa tralha na memória, por tantos anos? Não foi um momento marcante. O Douglas nem era muito meu amigo. Não me tornei engenheiro, brigadeiro ou fabricante de papéis higiênicos. De tempos em tempos, contudo, a cena é reexibida na tela da consciência, como um desses filmes mala que reprisam todo ano, desde 1988, na Sessão da Tarde.
Ontem, procurando o saca-rolhas numa gaveta da cozinha, lembrei de novo da piada. É que encontrei, entre facas, escumadeiras e abridores de lata, um desses araminhos de fechar pão. Eu não guardei o araminho na gaveta. Minha mulher também não. Ou seja: ele deve ter caído ali um dia e, como ninguém jamais se preocupou em tirá-lo, foi ficando. A piada do Douglas é como esse araminho, pensei. Minha cabeça é uma gaveta cheia de araminhos.
Na primeira série eu tinha um estojo jeans, com zíper. Durante as aulas, eu ficava mordendo o zíper. Depois de um tempo, sentia os dentes meio que latejando. Pareciam imantados. Alguns anos mais tarde, fui a uma praia em Ubatuba, a areia estava coberta de sargaço e o cheiro (metálico?) daquelas algas fez com que eu sentisse nos dentes o mesmo latejar. De vez em quando topo com uma praia cheia de sargaços, sinto os dentes meio que latejando, resmungo, mentalmente, “ah lá o negócio do zíper”, depois me esqueço.
A minha amiga Letícia detesta peixe. Odeia tanto que chega a sentir gosto de peixe em alimentos nada piscosos. Biscoitos de polvilho, por exemplo. É raro, mas acontece. Faz 10 anos, desde que ela me contou dessa alucinação gustativa, que sempre que eu como biscoito de polvilho, lembro da Letícia e da história do peixe. Gosto da Letícia. Lembrar dela não é ruim. Mas ser obrigado a rememorar a história sempre que como um biscoito de polvilho me parece um desvio desnecessário, um pedágio mental que sou obrigado a pagar.
Qual o sentido dessas três insignificâncias, dessas três caspinhas mentais que, pela primeira vez, espano da minha cabeça e faço pousarem na folha do jornal? Não tenho a menor ideia. Desconfio, aliás, que não haja sentido algum – eu, que sou viciado em sentido, que acredito que tudo tem um porquê e um como e um pra onde. Freud, Darwin, os genes, a ressonância magnética e a semiótica: eles explicam as facas, as escumadeiras e abridores de lata, na gaveta, mas e os araminhos? Por que, Jesus amado, guardo essa tralha na memória, por tantos anos?

NÍQUEL NÁUSEA   -   FERNANDO GONSALES



Adams Carvalho/Folhapress


O araminho de fechar pão

Se aceitarmos que de segunda a sexta-feira os dias são úteis, devemos necessariamente aceitar que sábado e domingo são dias inúteis. É inútil, portanto: ir ao cinema, ao teatro, fazer piquenique no parque com os filhos, almoçar com a família, tomar cerveja com os amigos, ler um livro, passar a madrugada acordado vendo “Seinfeld” ou “Amarcord”.  
De fato, todas as atividades supracitadas são inúteis se medidas pela régua da produtividade. Claro que se pode defender filmes, séries, peças e livros afirmando que o enriquecimento cultural faz de você um melhor profissional. Também deve ser possível defender o piquenique com os filhos ou a cerveja com os amigos afirmando que pessoas que cultivam laços familiares e sociais são mais estáveis, seguras e resilientes no trabalho. Mas essa lógica que avalia as experiências culturais e as relações afetivas por seus incrementos à carreira, que justifica a própria felicidade por sua contrapartida laboral, é a lógica dos que batizaram os “dias úteis”. Prefiro, em vez de tentar encontrar o que há de útil no supostamente inútil, enxergar o que há de inútil no útil. 
Embora o senhor ou a senhora certamente discordem, são absolutamente inúteis. Não se ofendam, eu também sou. Daqui a cinquenta, cem, mil, dez mil anos, ninguém vai se lembrar de nós. Talvez, inclusive, porque talvez daqui a cinquenta, cem, mil, dez mil anos, já não haja mais ninguém aqui para se lembrar de coisa alguma, pois a humanidade pode já ter se extinguido. A humanidade, aliás, também é inútil. A Terra não só viveria perfeitamente sem nós como certamente viveria melhor. A Terra, aliás, também é inútil. Uma bolinha perdida girando em torno de uma estrela entre outros 200 bilhões de estrelas de uma galáxia entre outros 2 trilhões de galáxias. 
Apesar de nossa astronômica insignificância, andamos por aí afobados, crentes de sermos os centros do universo, conferindo o WhatsApp a cada trinta segundos e falando orgulhosos “desculpa mandar áudio, é que eu tô correndo pra uma reunião, preciso da planilha de custos da mudança no material de revestimento do araminho de fechar pão até sexta, isso é muito importante, tá ouvindo?! Até sexta!”
Às vezes eu penso no cara que inventou o araminho de fechar pão. Imagino-o esbaforido pelos corredores de uma de suas fábricas, dizendo pra secretária ligar para a sua esposa e avisar que não volta para jantar, terá uma reunião crucial para seu império de araminho de fechar pão, ele não descansará enquanto em algum canto do globo um pão ainda for fechado de outra forma que não com seu araminho de fechar pão. Um gênio, ele devia se achar. O centro do universo. O homem que revolucionou a maneira de fechar pão.
Cada um de nós tem seu araminho de fechar pão e se dedica de segunda a sexta a essa missão tão crucial e inútil para o futuro do cosmos. A juventude escoando, os filhos crescendo, os amigos se distanciando e a gente aqui, se achando super cool por estar suando às bicas sob esses antolhos contemporâneos, acreditando piamente que há mais virtude em pagar um boleto na internet às oito da manhã de segunda do que em assistir “Seinfeld” ou “Amarcord” na madrugada de domingo. Eta vida besta, meu Deus.



segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

O ano da glória de José Saramago - Humberto Werneck

Numa das curvas da entrevista – e foram tantas, em mais de seis horas de conversa, ao longo de três finais de tarde, sem contar o papo que rolou ao largo do gravador –, achei que era tempo de botar na roda o assunto de que muito se falava, e que, também por isso, me levara a Lanzarote, nas ilhas Canárias. 
Foi eu pronunciar as duas palavras e José Saramago abanou um gesto de enfado: fazia, disse, três ou quatro anos que seu nome entrava no fervedouro das cogitações do Prêmio Nobel da Literatura. “Nunca fiz nada para que isso sucedesse”, acrescentou, semicerrando os olhos por detrás da formidanda armação dos óculos. 
Reagi de pronto: por favor, não diga que tanto faz ganhar o Prêmio Nobel! 
Provocado, ele se encheu de súbita vivacidade: “Não, não, não é tanto faz” – e admitiu que o Nobel, se não melhora a obra de ninguém, ao menos engorda a conta bancária do autor. E não era gordura pouca: naquele ano, quase 1 milhão de dólares. 
“Agora, se vem o Prêmio Nobel...” 
“... o senhor o aceita resignadamente, não é?” 
Sorriu: “Sim, posso dizer, resignadamente...”. 
Estávamos nos últimos dias de junho de 1998. De volta ao Brasil, sugeri ao comando da Playboy deixarmos a entrevista para a edição de outubro, mês em que a Academia da Suécia anuncia o ganhador do prêmio. Vai que... 
E não é que foi? Na véspera, 7 de outubro, com a revista já nas bancas, liguei para um amigo em Paris, e ele, como sempre bem informado, contou que os favoritos eram dois lusitanos, José Saramago e António Lobo Antunes. 
Fiquei apreensivo: um e outro eram merecedores do mais alto galardão literário, mas o repórter entrevistou apenas um – e, se der o outro, terá, digamos, cometido um erro de português...
Madruguei na redação, onde o mesmo informante me deu a notícia tranquilizadora. 
No mês seguinte, Saramago fez saber que planejava incluir passagens da entrevista no discurso que faria, em dezembro, ao receber o diploma e o cheque das mãos do rei Carlos Gustavo, da Suécia: Tê-lo-á feito?, poderia indagar o atual ocupante do Palácio do Planalto (que, aliás, não deixa de ser um caso de mesóclise histórica, imprensado que está entre Dilma e Bolsonaro). Com o perdão dos maus-tratos à língua, checá-lo-ei dia desses. 
*
Faz 20 anos o Nobel de Saramago, e para assinalar a data redonda sua editora brasileira, a Companhia das Letras, acaba de lançar uma esmerada caixinha contendo dois volumes. Num deles, Um País Levantado em Alegria, o brasileiro Ricardo Viel, da Fundação José Saramago, de Lisboa, selecionou textos e imagens que documentam e ilustram a premiação, aí incluído o discurso em Estocolmo.
O outro livro, Último Caderno de Lanzarote, tira da gaveta o derradeiro volume dos diários de José Saramago. Cobre o ano do Nobel, após o qual o escritor, falecido em 2010, provavelmente já não dispôs de tempo, sossego e/ou paciência para anotar fatos e impressões no dia a dia. 
A notícia da premiação, em 8 de outubro, foi apanhá-lo em Frankfurt, durante a feira anual do livro. Impressiona o laconismo de Saramago ao registrar, enigmático, os sucessos de seu maior dia de glória: “Aeroporto de Frankfurt. Prêmio Nobel. A hospedeira. Teresa Cruz. Entrevistas”. Sua prosa só voltará a ser fluente em 7 de dezembro, data em que empalmou o diploma e embolsou seu quase milhão de dólares. 
Para o repórter da finada Playboy, uma boa surpresa: se não tiver aproveitado trechos da entrevista no discurso de Estocolmo, Saramago ao menos quis que parte dela entrasse no Último Caderno de Lanzarote, onde ocupa 15 páginas. 
Duas décadas depois, a exumação parcial daquela conversa veio reavivar lembranças de horas passadas numa casa que se chama, exatamente, A Casa, construída por Saramago e sua mulher, Pilar del Río, na localidade de Tías, em Lanzarote.
A piscina, com apenas 7 metros e meio de comprimento, que ele cruzava pelo menos 30 vezes por dia. O fino cascalho vulcânico, negro ou cor de tijolo, a recobrir retalhos do jardim e boa parte da ilha. A agitação de Greta, Camões e Pepe, os três pequenos cães do casal, que à noite, na cozinha, postavam-se ao pé do dono, o qual, meticuloso até nisso, ia cortando e distribuindo rodelas de banana. Um deles, Camões, contou-me Saramago, comia também livros, tendo dado cabo de duas biografias de Nelson Mandela. Na ocasião de minha visita, estava a roer um álbum com reproduções de Goya. Outro, Pepe, assim fora batizado para que não sobrasse para o dono o apelido de que na Espanha poucos josés escapam.
As gravações transcorreram no escritório, no segundo piso, onde Saramago produzia, pela manhã e no final da tarde, sua quota diária de prosa, nunca mais de duas laudas. Pode parecer pouco, disse ele, mas no final do ano terão sido mais de 700. 
Àquela altura, o texto em que trabalhava era As Pequenas Memórias (2006), e em torno dele deu-se um episódio a meu ver ilustrativo do humor peculiar – para dizer o mínimo – de José Saramago. 
O relato chamava-se, então, O Livro das Tentações, e ao ouvir o título não tive como não pensar no seu primeiro romance, Terra do Pecado, obra de juventude. Este gajo quis ser galhofeiro: não é curioso, perguntei, que alguém comece no pecado para chegar às tentações? 
No rosto do escritor, nada que lembrasse um sorriso. “Mas são tentações de outra ordem”, corrigiu José Saramago, como quem passasse um pito, conferindo tons de imbecilidade a uma observação que, além de jocosa, se pretendia fina. Quem manda ser engraçadinho com um oceano de permeio? 

Rajaonarimampianina - Luis Fernando Verissimo

Cansado do aquecimento global, entediado com o gabinete em formação do Bolsonaro, cheio da direita, cheio da esquerda, aborrecido com o centro, querendo distância de todos e de tudo, principalmente do Brasil? Faça o seguinte: pense em Madagáscar.
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Madagáscar é uma ilha no Oceano Índico, do tamanho do Estado de Minas Gerais castrado. Isto é, sem o triângulo. Tem o formato aproximado dela mesma. Como se não bastasse isso, o nome da sua capital é Antananarivo. A ilha já foi dos franceses, que saíram deixando um cheiro de escargô com alho no ar e uma dificuldade dos nativos em pronunciar o erre. 
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Madagáscar esteve no noticiário por esses dias porque encontraram na sua costa os destroços de um galeão do século 18 que, especula-se, seria do Capitão Kidd, nosso velho conhecido do tempo em que ainda havia filmes de piratas. Kidd era escocês, e tinha a permissão da coroa inglesa para abordar quem quisesse, no mar que escolhesse, desde que parte do roubo fosse para ela, seguindo uma velha tradição britânica. Entre outros tesouros, o galeão carregava uma chapa de prata, com inscrições a serem decifradas. 
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E Madagáscar esteve no noticiário por outra, também misteriosa, razão. Há pouco, uma onda sísmica varreu o planeta, com seu epicentro em Madagáscar, percorrendo literalmente todos os mares em círculos concêntrico em questão de minutos. O que intrigou os cientistas foi que o fenômeno foi detectado quase por acaso. Os sismógrafos não o registraram. Sua origem continua desconhecida. Foi vulcão submarino? Deslocamento de placas tectônicas? Por que os aparelhos não sentiram sua passagem? 
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Quem sabe invasores espaciais teriam cuidado para que sua chegada não fosse notada? Já nos dominam, e o centro do seu domínio é Madagáscar. Ou talvez o monstro do abismo, chateado com o mundo como você, tenha decidido emergir e nos pegar desprevenidos? Talvez as inscrições na chapa de prata do Capitão Kidd tenham a resposta.
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E há um complicador. Na minha pesquisa sobre Madagáscar, descobri que seu atual presidente se chama Hery Rajaonarimampianina! Sério. É da única família de Madagáscar que quando faz um cheque precisa de um anexo para a assinatura.

A cara dos caretas - Martha Medeiros

O Brasil se apresenta ao mundo como um país moderno: não é. Nossa imagem lá fora se reduz a algumas mulatas de peito de fora sambando no Carnaval, símbolo de uma "irreverência" para gringo ver. Ora, nem o topless pegou nesse Brasil com 8 mil quilômetros de orla. Se uma mulher tirar a parte de cima do biquíni na praia, vão dizer que é coisa de comunista.

Tudo que sai do quadrado é coisa de comunista. Amamentar em público, adoção de crianças por casais homoafetivos, debater as mudanças climáticas, exposições sem censura, lutar pelos benefícios dos trabalhadores, oportunizar aos negros as chances de ascensão que não tiveram, respeitar a sexualidade de cada indivíduo. Tudo que alinharia nosso país com os mais avançados, aqui é visto como coisa de comunista por quem acredita que só se evolui por meio da economia.

Precisamos de uma economia forte, gerar empregos e combater a corrupção: quanto a isso, estamos de acordo. Divergimos é na visão social, quando fica evidente nosso subdesenvolvimento. O exemplo está aí, nas declarações da futura ministra dos Direitos Humanos, que tenta nos alinhar com o que há de mais retrógrado.

É muito difícil mudar a mentalidade de um país. Fomos criados achando que existem cidadãos bem nascidos, tementes a Deus - e o resto. Achando que uma pessoa que ama alguém do mesmo sexo é uma aberração, e que se alguém não se sente feliz dentro do próprio corpo é por falta de laço. Achando graça quando um homem diz que não sabe por que está batendo, mas a mulher sabe por que está apanhando. Achando que se gays forem vistos se beijando numa festa nossos filhos vão "querer" ser gays também. Sabe o que aconteceu nos últimos anos? 

Avançamos muito. Não é fácil assimilar novos padrões de comportamento, mas eles se impõem. Não fosse assim, as mulheres ainda estariam casando virgens e aprendendo bordado em vez de fazerem faculdade. Já tivemos a revolução industrial, a revolução feminista e estamos em plena revolução tecnológica - não há como deter o futuro. No máximo, atrasar sua chegada. É o que acabamos de fazer: demos poder a quem despreza a evolução dos costumes, e lá vamos nós para o fim da fila, perder um pouco mais de tempo.

Chovendo no molhado: ninguém precisa ser gay, ninguém tem que assistir a uma exposição que lhe choca, ninguém tem que abrir mão da sua religião, ninguém é obrigado a fazer aborto. Você é livre para ser quem é, e, se for uma pessoa justa, vai colaborar para que os outros também sejam, reduzindo os conflitos. O Brasil gosta de se apresentar como um país feliz, então vale lembrar que a felicidade é leve, arejada e expandida. Ninguém é feliz sendo repressor e reprimido. Não vejo nenhum caminho de progresso para o Brasil se seguirmos agindo como bobalhões infantilizados que se recusam a amadurecer.

Cardeal Arcoverde - Daniel Furlan

Luciano Salles/Folhapress



Descendo de Celta a Cardeal, um menino com uma camisa do Manowar (ou talvez Belle & Sebastian, não deu pra ver direito) começou a atravessar a rua e eu parei. Ele desistiu. Eu falei pra ele ir. Ele foi. Um fusca muito bem cuidado dirigido por um rapaz de cabelo estranho me cortou gesticulando palavrões. Acabou parando no sinal logo à frente e eu ao lado esquerdo dele.
Seria feio nos ignorarmos depois do laço criado. Abri lentamente a janela do meu lado direito (é de manivela e tive que me debruçar sobre o banco do carona, demora um tempo). Ele estava me encarando, bufando de ódio, com as pontas ressecadas de seus cabelos se mexendo: “O que que foi??!!”.
Olhei e fiquei me perguntando se ele não estaria usando o xampu errado para seu tipo de cabelo. Mas só respondi: “Calma”.
Havia uma moça bonita ao seu lado, com um cabelo muito brilhoso, e talvez ele quisesse se mostrar para ela, mas do jeito errado, como quando a gente está na sexta série e faz algo nojento na frente da menina com o cabelo mais brilhoso da sala porque não sabe chamar a atenção de um jeito melhor. Tipo cuspir o aparelho móvel dentro do próprio copo de refrigerante e depois beber, mas não necessariamente isso.
“Você dirige muito devagar!”, ele falou. “Ficou uma fila atrás de você ali em cima!”
Eu queria dizer que se demoramos quatro segundos a mais para descer a rua, isso não chega a ser digno de aborrecimento; que gente como ele é a prova de que vai dar tudo errado no mundo e nós só estamos aqui para nos matarmos; que gente como ele é esmagada por um guindaste logo no começo dos filmes do Stallone porque o espectador consegue rir da morte quando é com um personagem babaca; que ele nem sabe que é babaca justamente por ser babaca. Mas o sinal ia abrir e eu só disse: “Calma”.
“Você deveria aposentar sua carta e andar de bike!”
Aí não. Antes ele tivesse saído do carro e metido a sola do pé na minha cara. Mas fui atingido por um conselho. Fechei o vidro e ele acho que me xingou, não deu para ouvir. Abri de novo e perguntei se ele tinha dito alguma coisa.
“É isso mesmo!”
Não entendi. Mas respondi “ah, tá”. Fechei o vidro de novo e ele aparentemente voltou a me xingar. Me arrependo muito de não ter conseguido introduzir o assunto da importância do xampu correto.

Questões de 'famiglia' - Antonio Prata

Adams Carvalho

Há duas categorias com as quais convém honrar os nossos compromissos: a máfia e os filhos pequenos. Os filhos pequenos, principalmente. Afinal, se você promete à Cosa Nostra que no sábado às 18h pagará a mesada pela "proteção" da sua quitanda e aparece sem a bufunfa, é sempre possível protelar a dívida mediante uma perna quebrada ou trocar o valor pela execução de um ou outro soldado raso da família rival. Mas se garantiu aos filhos de cinco e três anos que no sábado às 18h vai chamar os primos e botar colchões na sala para assistirem a "Esqueceram de Mim 2" e não conseguiu encontrar "Esqueceram de Mim 2" para compra ou streaming em lugar algum, você cometeu um crime sem perdão; a pedra de concreto com que aqueles quatro olhinhos furibundos emoldurarão seu coração te levará instantaneamente do alto da ponte iluminada do orgulho paterno para o fundo do caudaloso rio da culpa.
Nesta meia década de experiências audiovisuais com meus filhos, nem Galinha Pintadinha, nem Peppa, nem "Frozen" tiveram o efeito de "Esqueceram de Mim". Foi nível beatlemania. Eles assistiram às aventuras do Kevin todos os dias por duas semanas e riam em cada cena como se fosse a primeira vez. Meu filho mais novo chegou a pedir ao Papai Noel que trouxesse para mim um frasco de loção pós-barba. Então, numa atitude tão bem intencionada quanto impensada, revelei que o filme tinha continuação e anunciei que eles a veriam no próximo sábado. Com os primos. Em colchões, na sala.
Só na sexta à tarde descobri que não havia "Esqueceram de Mim 2" na Netflix, no Globo Play, no Now, na Apple TV, na Amazon Prime e que o DVD estava esgotado na Cultura, no Submarino e nas Lojas Americanas. Desesperado, recorri ao Mercado Livre. Esperança: havia ali vários DVDs de "Esqueceram de Mim 2". Desalento: nenhum para retirada. Todos ofereciam enviar a compra por Sedex. Na terça, quando o envelope chegasse em casa, eu já estaria dormindo com os peixes no leito eterno do descrédito familiar. Um dos vendedores, porém, disponibilizava o telefone. 
"Oi, amigo. Aqui é o Antonio. Eu acabei de comprar o 'Esqueceram de Mim 2'. Posso pegar aí?". "Então, é que eu não trabalho com retirada, só com envio". "É, eu sei, mas é que é meio urgente, eu passo aí". "No caso, não tem condição, mesmo". "Amigo, eu prometi pra minha filha de cinco e pro meu filho de três que eles vão ver o filme amanhã à tarde. Eles chamaram os primos. Faz uma semana que só falam disso! Pelo amor de Deus!". Longo silêncio. "Tá ligado o Leroy Merlin da marginal Pinheiros?". "Aham". "Eu te encontro no estacionamento". (Disclosure: eu invento muita coisa em crônica, mas este diálogo é 100% real).
"Aonde, no estacionamento?". "Tem um bagulho branco que vende planta. Tipo uma barraca. Te encontro atrás". "Beleza". 
Foi minha mulher que —como sempre— ​​ me trouxe à sensatez. Nenhuma transação em estacionamento jamais terminou bem. Pelo menos, é o que nos ensina Hollywood. Eu iria ser sequestrado. Extorquido. Acordaria na famosa banheira de gelo, sem os rins. Minha conta bancária, meus órgãos internos e minha dignidade foram salvos pelo Facebook. "Algum amigo ou amiga tem aí um DVD, Blu-Ray ou pendrive contendo o filme "Esqueceram de Mim 2"? É uma emergência!". 
Venho por meio desta agradecer aos generosos Zé e Rosa, pais da minha amiga Mariana, que gentilmente emprestaram o DVD dos netos. Devo a eles duas horas de gargalhadas infantis e a preservação de minha honra: obrigado! (E se não for pedir muito nem fazer mau uso desde nobre espaço de utilidade pública: alguém aí teria o "Esqueceram de Mim 3"?).

A maior rua que existe - Martha Medeiros

Estava descendo uma ladeira do Chiado, em Lisboa, quando passei por um mendigo. Seria mais um entre tantos que ocupam as calçadas, mas percebi que ele estava cercado de cartazes dizendo que a esmola iria para o uísque, o vinho, a cerveja, a ressaca. Um mendigo engraçadinho. Fiquei observando. Os turistas passavam, riam e distribuíam moedas não por caridade ou desencargo de consciência. Era couvert artístico.
Quando o pessoal se afastou, me aproximei dele e conversamos rapidamente. Vi que tinha um cartaz escrito “Ao menos sou sincero”.Perguntei se ele gastava mesmo em bebida e ele disse que comia alguma coisa, claro, e gastava também em locomoção, trocava de ponto, de cidade e até de país (estivera há pouco tempo em Sevilha), mas morava na rua mesmo. Ele estava sozinho naquele momento, mas o “espetáculo” não era solo, havia mais dois ou três amigos nessa onda, e com eles formava os The Lazy Beggers. Tinham até um site.
Um site?? Sim, para donativos online, assim as pessoas não precisariam se aproximar de uns sujeitos sujos e fedorentos, podiam doar dinheiro de forma rápida e segura pelo PayPal. Bem-vindos ao século 21. É a nova geração de mendigos, disse ele.
Como tudo começou? Eram artistas de rua, faziam malabarismo, tocavam alguma música, até que um dia um vira-lata que estava por perto começou a tremer e eles, de gozação, fazendo de conta que era alguma abstinência do bicho, colocaram um chapéu e um cartaz em frente ao cão dizendo “Para cocaína”. Em poucos minutos, o cachorro ganhou mais moedas do que eles na semana inteira. Adotaram-no, cuidaram dele (conheci, chama-se Nemo) e ele virou mascote da trupe.
A quem pergunta por que eles não trabalham, a resposta vem rápida: “Como, não trabalhamos? Passamos de oito a 12 horas nas ruas fazendo os outros rirem”. À noite, eles se recostam em algum canto e muitas vezes conseguem dormir em garagens de amigos conquistados nesses últimos cinco anos em que levam sua miséria na flauta.
No site, há dicas para quem quiser pedir esmola de forma criativa. Vale tudo: tocar um instrumento invisível e expor um cartaz dizendo “roubaram minha guitarra” ou colocar uma máscara com o rosto de alguma celebridade junto a um cartaz dizendo “para outra mansão”.
Funciona mais do que cartazes dizendo que se está passando fome. Lamentos não comovem mais ninguém, ele acha. As pessoas preferem remunerar o bom humor.
Por fim: o site funciona? Ele é franco: “Pouco”. As pessoas gostam de doar pessoalmente, mas como ficar fora da web? A internet é a maior rua que existe.
Dei a ele uns trocos e pedi para tirar uma foto. Ele levantou um cartaz dizendo que fotos custavam 278 euros. Tirei a foto mesmo assim e sorri. Ele respondeu: está pago.


crônica publicada em 17 de dezembro de 2014

Lazy Beggars-www.LazyBeggers.com- At Least We Are Honest !



sábado, 15 de dezembro de 2018

O doutor Chirinos - Mario Vargas Llosa

Por seu histórico, seu narcisismo, seus delírios e seus crimes, ele parece ser um homem inventado, mas o dr. Edmundo Chirinos existiu de fato, e os espanhóis que vão ao teatro acabam de comprová-lo, vendo em cena o espetáculo Sangre en el Diván (Sangue no divã), dirigido e estrelado pelo diretor e ator venezuelano Héctor Manrique.
No monólogo de uma hora e meia que mantém o público aturdido e meio afogado pelo riso, o próprio dr. Chirinos nos conta sua odisseia: era psiquiatra, reitor da Universidade Central da Venezuela, membro da Assembleia Constituinte, candidato à presidência pelo Partido Comunista e teve entre seus pacientes nada menos que três presidentes da República: Jaime Lusinchi, Rafael Caldera e o comandante Hugo Chávez. Homem influente e poderoso, recebeu em seu consultório milhares de pacientes, os quais assediou com frequência e até mesmo assassinou, como a estudante Roxana Vargas, crime pelo qual passou seus últimos anos de vida na prisão.
O mais extraordinário do espetáculo talvez nem seja a esplêndida recriação que Héctor Manrique faz de tal personagem, vestindo-se e despindo-se, cantando, dançando e delirando sem trégua, exibindo sua egolatria e desmesura até extremos de insensatez, mas, sim, o fato de que tudo o que o dr. Chirinos diz no palco ele o disse de verdade a uma jornalista, Ibéyise Pacheco, que o gravou e depois publicou um livro que leva o mesmo título da peça teatral, adaptada e dirigida pelo próprio Héctor Manrique.
Conheci Héctor há alguns anos, em Caracas, porque ele dirigiu uma obra minha, Ao Pé do Tâmisa – uma bela montagem, direi de passagem, que depois ele levou para a Colômbia. O comandante Chávez apenas começava seu trabalho de demolição de uma Venezuela cuja vida cultural ainda florescia por sua diversidade e riqueza. Não só o teatro, mas também a dança, a pintura, a música e a literatura. Mas o país vivia um perigoso alumbramento com o golpista militar, cuja insurreição contra o governo legítimo de Carlos Andrés Pérez fora reprimida por um exército leal à lei e à Constituição. Como se sabe, o comandante sedicioso, em vez de julgado, foi perdoado pelo presidente Rafael Caldera e logo se tornou um líder popular que varreu as eleições.
Era difícil compreendê-lo. Como um país que havia sofrido ditaduras tão ferozes e lutado com tanta nobreza contra o regime espúrio de Marcos Pérez Jiménez poderia se render à demagogia de um novo caudilho truculento, inculto e vulgar? Havia uma exceção, no entanto: os intelectuais. Eles foram muito mais lúcidos que seus compatriotas. Com poucas exceções – que caberiam em uma mão –, eles continuaram fazendo oposição ou, pelo menos, mantendo uma distância prudente, sem participar do encantamento coletivo, da crença absurda, tantas vezes negada pela história, de que um “homem forte” poderia resolver todos os problemas, dispensando os meandros burocráticos da inepta democracia.
A Venezuela daqueles anos, com suas grandes exposições, seus festivais internacionais de música e teatro, suas novas editoras, seus museus e seus encontros e congressos, que atraíram a Caracas os mais célebres pensadores, escritores e artistas do mundo, agora está morta e enterrada. E serão necessários muitos anos e imensos esforços para ressuscitá-la.
Os discursos que o delituoso dr. Edmundo Chirinos regurgita perante o público em Sangre en el Diván são muito semelhantes aos do Comandante Chávez, despejando uma chuva de insultos contra a democracia morosa e corrupta, prometendo o paraíso imediato para seus fiéis. Os venezuelanos que acreditaram nele se saíram tão mal quanto os pacientes do psiquiatra que acabaram deixando sangue no divã. Muitos deles agora comem só o que encontram no lixo.
A peça de Héctor Manrique não foi proibida na Venezuela – pelo contrário, está em cartaz há quatro anos e soma dezenas de milhares de espectadores. Talvez porque os censores sejam menos perspicazes do que seu triste trabalho exigiria. Talvez porque, à primeira vista, Sangre en el Diván poderia parecer um caso isolado, de um indivíduo incomum, a famosa exceção à regra.
Mas não é bem isso. Muito do que viria a acontecer na Venezuela se apresenta, resumido, no palco, na odisseia sinistra do dr. Edmundo Chirinos, em seu poder acumulado a partir da fraude, em sua loquacidade doentia. Renunciar à razão pode trazer resultados extraordinários nos campos da poesia, da ficção e da arte, como provaram o surrealismo e outros movimentos de vanguarda. Mas abandonar-se à irracionalidade, ao puramente emotivo e passional, é perigosíssimo na vida social e política, um caminho seguro para a ruína econômica, para a ditadura, para todos aqueles desastres que levaram um dos países mais ricos do mundo a se tornar um dos mais pobres, com milhões de seus habitantes se lançando ao exílio, mesmo que a pé, para não morrerem de fome.
Não falei sobre nada disso com Héctor Manrique quando desci aos camarins do teatro para lhe dar um abraço e os parabéns. Perguntei se de fato não há em seu monólogo nenhuma palavra que o dr. Chirinos não tenha dito de verdade. Ele disse que sim e ainda me apresentou Ibéyise Pacheco, que entrevistou o doutor durante muitas horas na cela de cadeia na qual o assassinato de uma paciente o confinara. Eu gostaria de ter relembrado com Héctor aqueles belos anos em que a literatura e o teatro nos pareciam as coisas mais importantes no mundo – algo em que também parecia acreditar toda a Venezuela, a julgar pelas revistas culturais que surgiam a cada semana, pela quantidade de novos escritores e artistas e concertos e companhias de teatro que despontavam e disputavam as noites de Caracas. Não acontecia apenas na capital, mas também no interior do país, onde apareciam novas universidades e novos artistas. Naquela época, toda a Venezuela parecia viver uma avidez frenética por cultura e criatividade. Gostaria também relembrar grandes amigos que já não estão conosco, como Salvador Garmendia, Adriano González León – autor de País portátil, romance magnífico, que, segundo me disseram, de repente caiu morto no bar onde sempre tomava o último gole – e aquele revoltoso grupo de jovens, El Techo de la Ballena, que semearam escândalos anarquistas em Caracas.
A única coisa boa das ditaduras é que, apesar de causarem desastres, elas sempre morrem. Com o passar do tempo, sua memória se empobrece e, às vezes, os povos que sofreram com elas chegam a se esquecer de que sofreram. Mas duvido que isso aconteça muito em breve com isso que transformou a Venezuela em um país que não é nem sombra daquele que conheci em meados dos anos sessenta. Espero que o horror que ela viveu todos esses anos, convertido em um dos delírios sanguinários do dr. Edmundo Chirinos, evite que, no futuro, ela volte a renunciar à razão e à sensatez, que na política são a única garantia de não se perder a liberdade. 

TRADUÇÃO:  RENATO PRELORENTZOU

Falta de assunto - Jaime Cimenti


O grande cronista e jornalista Rubem Braga, o Sabiá da Crônica, o pai de todos que, com seu talento, levou a crônica a ser considerada gênero literário, escrevia e opinava sobre fatos importantes do cotidiano.
Muitos ainda dizem que suas melhores crônicas são as que ele escrevia quando não tinha assunto, ou, às vezes, escritas justamente sobre a falta de assunto. Os cronistas de hoje têm milhões de assuntos para tratar e têm a web e as redes sociais para buscar material para preencher, no prazo sem prorrogação dos periódicos, seu espaço de cronista, biógrafo do cotidiano, especialista em generalidades, palpiteiro de plantão e articulista de opinião.
Sim, todo mundo sabe que a crônica, hoje, quase sempre, é um pequeno artigo de opinião. Opinião é o que não falta, sobre tudo, todos, a toda hora do dia ou da noite. Podem faltar fundamentos, razão, emoção ou articulação, mas opinião é o que não falta, neste País de 140 milhões de técnicos de futebol, primeiros-ministros, especialistas em política, segurança, educação e tudo mais.
Estamos parecendo a Torre de Babel, a Itália ou Israel, por exemplo, com muitos falando ao mesmo tempo, em voz alta, sobre tudo quanto é tópico ou utópico. Os cronistas atuais, por vezes, não têm tempo ou vontade de andar nas ruas para ver, sentir o paladar, cheirar, ouvir e tocar a realidade, as coisas e as pessoas. Seria bom que os cronistas e jornalistas voltassem a usar seus cinco sentidos, mais as percepções extrassensoriais e outras percepções a serem descobertas.
Como todo mundo, os cronistas andam com medo de assaltos e outros crimes, e se refugiam no celular e nos tablets. Assaltos, crimes, corrupção, aliás, são temas infelizmente inesgotáveis para os comunicadores e formadores de opinião, mas deles, hoje, quero distância. De crises política, econômica, ética, de valores e dos 40% dos brasileiros que estão negativados, hoje, quero distância. Distância também quero da dívida do estado gaúcho, que aumentou 27 vezes em 27 anos. De futebol não quero falar, pois perdi o interesse sobre o "esporte bretão".
Quero ficar um pouco em silêncio, sentindo a tarde pelo contato com o sol na pele, fitando o lindo céu de brigadeiro, feito só de azul, sem aviões com bombas, rolos de fumaça de incêndio de árvores, prédios ou pneus queimados por manifestantes protestando contra umas coisas que andam infernizando os dias dos viventes. Hoje, fumaça no céu quero só a de algum churrasco que estejam fazendo por aí e para o qual me ofereço para ser convidado, mesmo que eu tenha que levar alguma carne para o "encosta-carne" ou algum trago para a gente beber e soltar a língua. Soltar a língua para falar coisas boas, claro.
Quero permanecer, ao menos por alguns minutos, sem assunto e sem precisar falar sobre a antiga falta de assunto. Quero escrever sobre esses minutos de paz, alegria e harmonia que divido com meus oito leitores, justamente neste período de festas, tempo de sentimentos divididos, mas também de divisão de afeto e presentes.
a propósito...
Comecei falando do Rubem Braga, pai de todos da crônica brasileira, e estava querendo escrever uma crônica sem assunto ou falando da falta de assunto, tipo homenagem ao mestre Sabiá da Crônica. Aí enfiei uns assuntos, dei umas opiniões e, mais para o fim, viram, falei da vontade de não falar nada. É isso, queridos leitores, uma crônica, ou "pequeno artigo de opinião" sem assunto, sobre falta de assunto, com assunto e alguma coisa mais.
Disse a Gloria Steinem: não gosto de escrever, gosto de já ter escrito. O Fernando Sabino afirmou que o melhor de já ter escrito é que aí dá para ir tomar um uisquinho.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Dar cabo - Antonio Prata

Aos oito anos de idade, descobri que o ser humano não prestava. Estava no banco de trás do carro, descendo a 23 de Maio, li “Abaixo a ditadura!” num muro e perguntei pro meu pai o que significava aquilo.
Meu pai, cuja particularíssima pedagogia baseava-se no princípio de que as crianças deviam ser tratadas como os adultos, sem filtros, me deu uma resposta bem detalhada. Meia hora mais tarde, tendo passado pelos porões do DOI-CODI, pelo pau de arara, pela coroa de cristo, pela cadeira do dragão e por minha prima Julieta, aos 20 anos, sendo violentada com um cabo de vassoura enrolado por um fio desencapado, cheguei, lívido, em casa.
Nas décadas de 60 e 70, milhares de brasileiros sofreram horrores semelhantes aos da minha prima: 434 deles não sobreviveram, segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, publicado na última quarta. E, apesar de todas essas histórias serem há muito conhecidas e documentadas, apesar de boa parte de seus responsáveis estarem vivos, há quem ache que o melhor é deixar tudo pra trás.
“Eram outros tempos”, “O mundo estava polarizado”, dizem os que querem minimizar cabos de vassoura com fios desencapados. Verdade, o mundo estava polarizado e o Brasil também, mas o embate ocorria dentro do campo democrático. Então veio o golpe de 64 e aqueles que temiam por aqui uma improvável Cuba de Fidel nos impuseram a certeza de uma Nicarágua dos Somoza, um Haiti de Papa e Baby Doc, uma República Dominicana de Trujillo.
“Ninguém ali era santo”, “A luta armada não queria restituir a democracia, mas instalar uma ditadura de esquerda”, dizem os que acham compreensível deixar um ser humano pendurado a noite inteira de cabeça para baixo, nu. Não vamos entrar no mérito de que muitos dos mortos e torturados sequer estavam na luta armada. Não vamos entrar no mérito de que um golpe militar tende a radicalizar um pouco a postura da oposição. Apenas aceitemos, hipoteticamente, que todos os torturados e mortos quisessem, de fato, instituir uma ditadura de esquerda.
Mais ainda: aceitemos, hipoteticamente, que eles quisessem matar todas as criancinhas brasileiras e comê-las com farinha. Ainda assim, o Estado que os torturasse ou os matasse estaria cometendo um crime. O Estado detém o monopólio do uso da violência justamente para garantir a lei: não pode agir ao largo dela.
“Revanchismo” é o termo que vem sendo usado contra os que desejam ver punidas as violações dos direitos humanos, durante a ditadura. Ora, se você é assaltado e quer ver o bandido na cadeia, está sendo “revanchista”? Se você tem um pai, uma filha ou um irmão morto e quer ver os assassinos na cadeia, está sendo “revanchista”? Pois por 21 anos o Estado brasileiro assaltou, assassinou e violou os direitos de seus cidadãos: com Atos Institucionais, com mentiras, com cabos de vassoura enrolados por fios desencapados. Cabe a ele reconhecer seus crimes e prender os responsáveis. Do contrário, estará não só desrespeitando a todos os que sofreram a sua barbárie, mas, pior, estimulando as torturas e assassinatos que seguem acontecendo Brasil afora, todo dia, pelas mãos da polícia.
Os anos de chumbo não são águas passadas: continuam a mover nossos moinhos de moer gente.

Crônica publicada na Folha de São Paulo em 14 de dezembro de 2014

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...