segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Cardeal Arcoverde - Daniel Furlan

Luciano Salles/Folhapress



Descendo de Celta a Cardeal, um menino com uma camisa do Manowar (ou talvez Belle & Sebastian, não deu pra ver direito) começou a atravessar a rua e eu parei. Ele desistiu. Eu falei pra ele ir. Ele foi. Um fusca muito bem cuidado dirigido por um rapaz de cabelo estranho me cortou gesticulando palavrões. Acabou parando no sinal logo à frente e eu ao lado esquerdo dele.
Seria feio nos ignorarmos depois do laço criado. Abri lentamente a janela do meu lado direito (é de manivela e tive que me debruçar sobre o banco do carona, demora um tempo). Ele estava me encarando, bufando de ódio, com as pontas ressecadas de seus cabelos se mexendo: “O que que foi??!!”.
Olhei e fiquei me perguntando se ele não estaria usando o xampu errado para seu tipo de cabelo. Mas só respondi: “Calma”.
Havia uma moça bonita ao seu lado, com um cabelo muito brilhoso, e talvez ele quisesse se mostrar para ela, mas do jeito errado, como quando a gente está na sexta série e faz algo nojento na frente da menina com o cabelo mais brilhoso da sala porque não sabe chamar a atenção de um jeito melhor. Tipo cuspir o aparelho móvel dentro do próprio copo de refrigerante e depois beber, mas não necessariamente isso.
“Você dirige muito devagar!”, ele falou. “Ficou uma fila atrás de você ali em cima!”
Eu queria dizer que se demoramos quatro segundos a mais para descer a rua, isso não chega a ser digno de aborrecimento; que gente como ele é a prova de que vai dar tudo errado no mundo e nós só estamos aqui para nos matarmos; que gente como ele é esmagada por um guindaste logo no começo dos filmes do Stallone porque o espectador consegue rir da morte quando é com um personagem babaca; que ele nem sabe que é babaca justamente por ser babaca. Mas o sinal ia abrir e eu só disse: “Calma”.
“Você deveria aposentar sua carta e andar de bike!”
Aí não. Antes ele tivesse saído do carro e metido a sola do pé na minha cara. Mas fui atingido por um conselho. Fechei o vidro e ele acho que me xingou, não deu para ouvir. Abri de novo e perguntei se ele tinha dito alguma coisa.
“É isso mesmo!”
Não entendi. Mas respondi “ah, tá”. Fechei o vidro de novo e ele aparentemente voltou a me xingar. Me arrependo muito de não ter conseguido introduzir o assunto da importância do xampu correto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Era feliz com tão pouco - Fabrício Carpinejar

  No meu primeiro apartamento, formei a minha estantes de tijolos e tábuas colhidas na rua, e eu era feliz. Tinha dois bancos feitos de engr...