segunda-feira, 30 de abril de 2018

Objetos – Fabrício Corsaletti



Régua

Régua de cortar folhas de sulfite já impressas na frente, mas com o verso em branco, em oito pedaços iguais. Pequenos quadrados que empilho ao lado do computador e fazem as vezes de bloco de notas. Régua ecológica de não desperdiçar madeira. Régua mais próxima das éguas. Éguas reais que atravessam os sonhos. Que agora circulam no meu escritório. E talvez nem dependam desta régua banal.

Latas

Latas de azeite. Latas de sardinha. Latas de refrigerante. Latas de atum. Latas de salsicha. Latas de feijoada. Latas de tomate pelado. Latas de milho. Latas de sopa. Latas de pêssego em calda.
Latas de tinta. Latas de querosene.
Latas de aguarrás.
Latas ou não latas.
Latas em prateleiras.
Latas com que os bateristas natos fabricam seus primeiros instrumentos.

Tesoura

Tenho duas tesouras em casa.
E uma terceira que imagino. A tesoura perfeita, sem psicanálise. A tesoura e o besouro inoxidável. Alforriada sob a lua mansa. Vallejiana e antitumular.

Copo

Meu avô deixava o copo de geleia em que tomava café no canto da pia, ao lado da garrafa térmica. Bebia café das cinco da manhã às três da tarde em pequenas doses de um dedo. Usava o mesmo copo de segunda a segunda, passando uma água nele depois de cada gole. Uma vez por semana o lavava com bucha e sabão. Meu avô era um homem revoltado. Sei que não dá pra perceber. Mas as pessoas também não percebiam.

Ventilador

Sonho com um apartamento quase vazio: um colchão, uma mesa, duas cadeiras, um laptop sem acesso à internet e um ventilador portátil de pás verdes ou azuis. Num país latino-americano que ainda não conheço. Ou então no centro de São Paulo -contanto que nenhum amigo soubesse que estou no Brasil. Desse ventilador viriam as melhores ideias. Com seu barulho hipnótico eu me concentraria como nunca. Escrever seria o mesmo que pensar e pensar seria o mesmo que viver. Preciso desesperadamente de um ventilador assim.

domingo, 29 de abril de 2018

Médicos e monstros - João Pereira Coutinho

Angelo Abu/Folhapress






Se o leitor viajar para Nova York e der um passeio no Central Park, a estátua de J. Marion Sims já não está no lugar. Quem?
Entendo. Também eu desconhecia o nome e nunca prestei atenção à estátua nas minhas deambulações por lá. Mas parece que o dr. Sims foi um importante médico do século 19 e, abreviando a história, é considerado "o pai da ginecologia moderna".
Aplausos?
Nem por isso. Segundo os especialistas, as proezas científicas do dr. Sims foram testadas em mulheres escravas que nunca deram o seu consentimento para serem ratinhos de laboratório. Antes de ser médico, o dr. Sims foi um torturador.
A Prefeitura de Nova York, confrontada com as denúncias, decidiu remover a estátua. Hoje, os admiradores do dr. Sims devem rumar ao cemitério de Green-Wood, no Brooklyn, onde está a sua sepultura —e onde estará a infame figura.
Perante este caso, a pergunta óbvia não é saber se o dr. Sims foi um monstro moral. Qualquer pessoa com a sanidade em dia responde afirmativamente sem hesitar. O mesmo poderia ser dito sobre outro médico, Hans Asperger, que pelos vistos não se limitou a dar o seu nome a uma perturbação autista. Soube-se agora que também enviou muitas crianças com deficiência para o matadouro do Terceiro Reich.
A questão é outra: será que devemos remover da paisagem estátuas, monumentos ou edifícios que surgem manchados pela ignomínia do passado? Com a devia vênia à sensibilidade histérica dos contemporâneos, penso que não. Por dois motivos.
O primeiro é prático: apagar o passado que nos ofende com seu cortejo de horrores seria uma missão paranoica e infinda. Não falo da estátua. Falo das mil provas materiais que ficaram para os vindouros e que, analisadas à lupa, revelam sempre uma mácula qualquer, cometida sobre algo ou alguém.
Quando o leitor, turista extasiado, tira fotos nas pirâmides de Gizé ou no coliseu de Roma, será preciso lembrar que na sua "selfie" vão também os escravos egípcios e os cristãos devorados?
Não sou um fã incondicional de Nietzsche. Mas como discordar da sua premissa trágica de que a toda a civilização contém em si sementes de barbárie?
Ironicamente, as patrulhas de esquerda ou de direita tendem a reagir de formas igualmente falsas perante essa evidência. A esquerda, reduzindo a civilização aos seus atos de barbárie; a direita, extirpando a barbárie de qualquer relato glorioso sobre a civilização. Como é evidente, é possível acomodar essas duas dimensões para explicar o que somos —e fomos: bárbaros e civilizados.
Outro autor que verdadeiramente aprecio —Robert Louis Stevenson— já nos tinha revelado isso com outro médico e outro monstro: os famosos Dr. Jekyll e Mr. Hyde, que conviviam no mesmo corpo em tensão permanente.
A história do Ocidente é a história dessa tensão. Pretender um mundo higienizado, onde nenhuma memória nos agride, remeteria os homens para o deserto do Saara. Isso, claro, se esquecêssemos os rios de sangue que um dia cobriram aquelas areias aparentemente imaculadas.
Mas existe um segundo problema com a pretensão de negar o passado: é não aprender nada com ele.
Disse que o médico e o monstro habitam o mesmo corpo em tensão permanente. Isso significa que a singularidade da civilização ocidental não está na capacidade para produzir monstros --um talento extensível a qualquer outra civilização conhecida.
A singularidade está na capacidade para suplantar esses monstros. Creio que era o filósofo Pascal Bruckner quem avisava: não podemos falar da inquisição sem falar do iluminismo. Não podemos falar da escravidão sem lembrar os movimentos abolicionistas. Não podemos falar dos totalitarismos políticos sem lembrar as democracias liberais.
Criamos venenos e curas para eles. E isso só será possível pela exposição dos nossos males, não pela sua piedosa ocultação. Não passaria pela cabeça de ninguém arrasar Auschwitz-Birkenau e construir por cima um campo de golfe.
A estátua de J. Marion Sims deveria ter ficado onde estava. Com uma explicação pública e suplementar sobre o médico: ali também havia maldade humana.
De resto, essa opção seria a única forma de prestar uma verdadeira homenagem às vítimas. Quem remove estátuas incômodas também leva para o silêncio quem não merece o esquecimento.

A vida que se leva - Ruth Manus

Uma das muitas – tantas, várias, quase intermináveis – dificuldades da saga de quem tenta escrever uma tese de doutorado (ou uma dissertação de mestrado, ou uma monografia de pós, ou um TCC, ou um pós-doc, ou uma livre-docência, ou qualquer outra coisa que exija foco, pesquisa e concentração) é encontrar uma boa biblioteca. Não apenas por causa dos livros, mas por causa de tudo. 
É muito longe? Tem tomada perto da mesa? Pode entrar com a mochila? Fica muito lotada? Pode entrar com garrafinha de água? É muito abafada? É muito gelada? Tem adolescentes que vão estudar juntos e ficam dando gargalhadas? Tem lugar para almoçar? Tem Wi-Fi? Tem cadeira acolchoada para aguentar 12 horas sentada? Realmente não é uma tarefa fácil.
Em meio a essa sedenta busca, fui, então, pela primeira vez, pesquisar e escrever em uma biblioteca municipal perto da minha casa, aqui em Lisboa. Caminhei uns 20 minutos pela manhã fria, até chegar ao Campo Pequeno, carregando nos ombros uma mochila preta cheia de livros, computador, carregador, marmita, garrafa de água, óculos, nécessaire e tudo mais que me faria apanhar de qualquer ortopedista, fisiatra ou fisioterapeuta, com toda razão.
Ao chegar, fiquei absolutamente maravilhada. A biblioteca, instalada num antigo palácio cheio de afrescos, era quentinha, confortável e tinha inúmeras obras interessantes para a tese. Não tinha grupos de adolescentes barulhentos, era permitido entrar com a mochila, tinha tomada em todas as mesas e, de quebra, ainda havia uma linda varanda ensolarada onde se podia almoçar.
Estava verdadeiramente radiante com minha nova descoberta, acomodada na minha mesa, rodeada de livros gorduchos, novos e antigos, em português, inglês, francês, espanhol, uma maravilha. Tudo corria lindamente. Até que – pausa dramática, música de filme de suspense – começou a entrar na sala uma excursão de escola com cerca de 50 crianças na casa dos seus 6 anos. Fiquei paralisada. Não sabia o que sentir acerca daquela situação. A alma cinzenta e rabugenta que existe dentro de todos nós ameaçou gritar dentro do meu peito “Vo. Cê. Tá. De. Sa. Ca. Na. Gem. Co. Mi. Go”. 
Mas assim que baixei o livro do Stiglitz, dei de cara com o primeiro menino da fila, ao lado da professora. Uma belezinha banguela, de óculos de grau azuis e bem descabelado, como quem acordou na última meia hora e ainda não entendeu nada. Ainda que eu não estivesse com a expressão mais amigável do mundo, o menino sorriu para mim na hora. Eu, desarmada, sorri de volta e dei um tchauzinho. 
Nisso, o menino que estava atrás dele – gordinho e igualmente sem o dente da frente – também me deu tchau. E eu devolvi. E assim eu fui fazendo até o final da fila. Todos – meninos, meninas, brancos, negros, asiáticos, tímidos, desinibidos, curiosos – sorriram, devolveram o tchau e olharam para os meus livros quase infinitos, empilhados na mesa.
A excursão escolar não demorou nem 10 minutos para sair da sala na qual eu estava. Voltei para o Stiglitz e percebi que meu astral era outro, abastecido por pelo menos uns 48 sorrisos banguelas. Podia ter mantido a cara amarrada, considerado que perdi 10 sagrados minutos de trabalho com aquelas crianças que me atrapalharam o raciocínio. Ou podia beber a energia daqueles pequenos sorridentes naqueles 10 sagrados minutos da presença deles.
E, no fundo, acho que eles foram embora pensando que é possível ser feliz dentro de uma biblioteca. Não acharam que aquele é um lugar amargo, que deixa todo mundo mal-humorado, aborrecido e de cara feia. Talvez meu sorriso também tenha valido alguma coisa para eles.
De fato, tem muita coisa na vida que está fora do nosso controle. Mas a verdade é que a gente tem essa grande e preciosa liberdade de poder decidir se vamos viver de um jeito ou de outro.

Jovem demais pra envelhecer - Antonio Prata

 Adams Carvalho/Folhapress


Eu já tinha cruzado a barreira dos 20 havia vários anos, trabalhava, pagava as contas, morava sozinho, mas continuava me vendo como adolescente e a coleção de latinhas seguia na estante atrás da minha cama. Até que, num Pão de Açúcar 24 horas, lá pelas duas da manhã de uma quarta, empurrando um carrinho com pão integral e Sapólio, cruzei com uns garotos e garotas de preto, cabelos estranhos, comprando Doritos e Smirnoff Ice.
Meu reflexo foi achar-me um deles, mas num segundo momento percebi que não entendia bem suas roupas, não captava o significado daquelas franjas. Eles compravam Smirnoff Ice e Doritos: eu, pão integral e Sapólio. Eles estavam querendo ficar bêbados sem passar mal. Eu estava preocupado com o sistema digestivo e o asseio do fogão.
Não havia como negar, habitávamos faixas etárias diferentes. Voltei pra casa e guardei a coleção de latas no fundo de um armário. O choque é compreensível. Durante os primeiros 20 e tantos anos de vida o panorama humano que se apresenta aos nossos olhos é aparentemente estático. Você chega no mundo e os adultos já estão aí. Eles envelhecerão, mas continuarão a ser mais ou menos como já eram quando você surgiu. (Uma geração que está na faixa dos 50 não faz uma revolução cultural ao passar pros 60).
E as crianças, bom, crianças são sempre crianças. (Na quinta série você não olha a nova turma do jardim de infância e diz, “Cara, olha que apropriação bizarra que esses moleques fazem da gangorra!” ou “Eles criaram um significado completamente novo pra pintura com guache!”). Mas chegando perto dos 30, numa madrugada, num supermercado 24 horas, você percebe que o jogo mudou. Ou melhor, o jogo continua o mesmo, você é que mudou de time.
O segundo susto veio em 2008, assistindo ao filme “Apenas o Fim”, do Matheus Souza, com a Érika Mader e o Gregório Duvivier. Se no supermercado eu entendi que não era mais adolescente, no filme saquei que os adolescentes já tinham virado adultos. Já faziam filme e o filme era lindo e eu não entendia metade das referências. (Até o He-Man eu cheguei, mas quando o personagem do Gregório pergunta pra namorada “Qual o seu Pokémon favorito?” eu me senti como um Austregésilo de Athayde perdido na Comic Con).
Pois hoje, voltando do Rio de Janeiro, recebi uma terceira facada de Cronos, esse deus que devora os filhos —mas que, ao contrário do mito, parece preferir nos deglutir não ao nascermos, baby beefs, mas curtidos no dry-age das décadas.
Entrei no avião, sentei na minha poltrona e meus olhos grudaram num cara vindo pelo corredor. Era um cara bem normal. Meio careca, fios grisalhos em cima das orelhas. Barrigudo. Tinha umas rugas nos cantos dos olhos. Um ar cansado. Nada de especial. Por que, então, eu estava vidrado nele? Pois percebi, ó juventude dourada, ó ogivas de queratina, ó lépidos girinos na tépida lagoa do tempo, percebi que aquele sujeito aparentemente velho era mais novo do que eu. É isso aí: cheguei a uma idade em que os jovens já estão velhos. 
Fiquei mal. Eu me achava novo demais pra ficar velho —e tal constatação, parece, é o principal sintoma da crise de meia idade. Tivesse muito dinheiro, comprava um carro esportivo, mas como a conta corrente não acompanhou a corrente dos anos, só me resta abrir um Smirnoff Ice e, do fundo de um armário, resgatar a velha coleção de latinhas.

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Ex-pajés, seitas e crenças - Contardo Calligaris

Mariza Dias Costa/Folhapress



"Ex-Pajé”, de Luiz Bolognesi (menção especial no Festival de Berlim), entra em cartaz no Brasil hoje. É uma obra-prima: a câmera narra e comenta a história melhor do que qualquer voz em off.
Os índios paiter-suruís se apresentam assim: “Desde 1968, quando Nós, os Paiter, começamos a ter contato ‘oficial’ com o homem branco, as relações com não indígenas vêm provocando profundas mudanças em nossa sociedade. Essas mudanças, porém, não apagaram o nosso espírito guerreiro, que nos motivou a lutar pelo reconhecimento e integração de nosso território” (www.paiter.org).
E o filme começa com uma citação de Pierre Clastres, antropólogo, lembrando que, para cometer etnocídio, não é preciso matar os membros de uma comunidade, basta matar sua alma.
Bolognesi conta a história do pajé de uma aldeia paiter que é levado a ser bedel da Igreja Batista, a qual trouxe novas crenças e impôs que as antigas fossem abandonadas. Quando a realidade aperta, alguns membros da aldeia resgatam o pajé, na esperança de que o deus antigo ainda o escute.
O filme é perfeito para pensar na facilidade com a qual os brancos modernos acreditam na superioridade de suas crenças e assassinam culturas (curei-me um pouco dessa culpa histórica lendo “O Remorso do Homem Branco”, de Pascal Bruckner, ed. Dom Quixote, que ainda aconselho).
O cristianismo é a religião perfeita para o imperialismo cultural.
Antes do cristianismo, cada povo tinha seu deus. Um povo era derrotado porque seu deus era mais fraco que o deus dos outros —ou porque o povo tinha pecado, e seu próprio deus tinha deixado de protegê-lo.
O cristianismo inventou uma religião que podia ser proposta aos derrotados como uma verdadeira consolação. Nós acabamos com suas crenças e seu deus, mas nosso Deus, justamente, adora os derrotados, pois Ele mesmo triunfou sendo crucificado.
Mais um detalhe: o pastor mantém sua fé convertendo os outros, enquanto o pajé não sairia da aldeia para propagar a crença no deus do rio. O cristianismo, pretendendo-se universal e sendo essencialmente missionário, precisava de um deus que consolasse os que seriam derrotados e convertidos.
O que é trazido pelo pastor não é menos bizarro do que as antigas crenças. A existência do espírito do rio, de onde vêm os peixes que alimentam a aldeia, é mais provável que um Espírito Santo que viria encher apenas nosso coração.
Mas uma nova crença não ganha da antiga fazendo apelo à razão. As crenças (novas e antigas) proporcionam atalhos para dar sentido ao mundo. Elas servem para evitar a descoberta de que o mundo não tem sentido algum ou, no mínimo, para nos poupar os esforços que faríamos para encontrar, na nossa própria vida, uma migalha de sentido.
O pastor e o pajé não são diferentes: eles estão lá para compensar o medo e a preguiça da aldeia inteira. Seguindo as instruções deles, todos ganham o direito de não pensar.
Um exemplo. A serpente que te morde é o espírito de teu inimigo. Ou, então, a serpente é o Diabo. Tanto faz. O que importa é não pensar que a serpente é só um bicho assustado, que passava por aí e te picou: você vai morrer, e isso não faz sentido algum.
Acabo de ler “Seita”, de Paula Picarelli (Planeta), que talvez seja um romance ou talvez um relato documental (muito divertido, aliás) de como a narradora se envolveu no Portal da Divina Luz (centro de ayahuasca na São Paulo de hoje) a ponto de não saber mais se era dependente da droga ou se tinha se perdido num culto religioso.
De fato, o Portal tem tudo para ser um culto: campanhas de doações, grupos de estudo, anjos, rituais emprestados do psicodrama, segredos, hierarquias, doutrinas sobre extraterrestres e espíritos etc.
Mas o mais surpreendente e inquietante para mim, no livro de Picarelli, foi a docilidade dos personagens, a espécie de predisposição que faz com que eles sejam imediatamente seduzidos pela “espiritualidade” do Portal.
Eu pensava assim: o mundo perdeu seu encanto —não tem gnomos, não tem elfos, não tem demônios nem anjos, e é bem possível que não tenha Deus e que não haja além onde continuar vivendo depois da morte. É uma perda, mas, em compensação, não tem inquisidores, e somos mais livres para fazer o que outrora e alhures seria punido como pecado.
Pois é, estava errado: os vagos anseios espirituais dos anos 1970 estão vivos como nunca. A Era de Aquarius mal começou.

EX-PAJÉ - Luiz Bolognesi (menção especial no Festival de Berlim)
Um poderoso pajé passa a questionar sua fé depois do primeiro contato com brancos que julgam sua religião como demoníaca. No entanto, a missão evangelizadora comandada por pastor intolerante é posta em cheque quando a morte passa a rondar a aldeia e a sensibilidade do índio em relação aos espíritos da floresta mostra-se indispensável.

Luiz Bolognesi fala sobre intolerância religiosa contra índios


Luiz Bolognesi fala sobre o som de Ex-Pajé






Uma história sobre mecanismos de manipulação e algumas doses de ayahuasca
Sinopse de Seita:
Fui vítima de pelo menos duas ameaças de morte. Fico em dúvida do número exato, porque as ameaças eram disfarçadas de “lições e ensinamentos”. Numa dessas vezes, me disseram que o trabalho que estávamos fazendo era muito parecido ao realizado lá atrás, na Grécia Antiga. Naquele tempo, quem participasse de algo assim e saísse, ou contasse a alguém sobre o que era feito e discutido ali, era morto. Morto pelos deuses, pelas entidades enviadas por um deus... nesse caso, Dionísio. As pessoas acreditam em muitas ficções. Por que acreditam em umas e não em outras é uma coisa que me intriga muito. Mas de uma coisa eu tenho certeza: é mais fácil embarcar numa história mirabolante se você estiver sob o efeito de uma bebida alucinógena.

Eu era uma atriz promissora. Paula. Outra Paula, Paulinha. Meu livro é um relato – ficcional – de como me envolvi em um novo culto religioso, o Portal da Divina Luz. Posso dizer que as pessoas entram numa seita por várias razões. Mas todas saem pelos mesmos motivos.


Redescobrindo Pólvora, delicioso cronista - Ignácio de Loyola Brandão

“Carlos Drummond de Andrade era formal, seco, distante, dava a ponta dos dedos, quando instado a um cumprimento, e logo fechava a cara para evitar abordagens do possível interlocutor. Essa frieza chegou a espantar Graciliano Ramos, que foi sertanejo desconfiado, mais espinhento que um cacto. “Um osso”, dele disse Graciliano, referindo-se, naturalmente, não apenas à secura de carnes, mas à secura de gestos.”
Vocês podem pensar que esta é mais uma descoberta de Humberto Werneck que há anos pesquisa a literatura mineira. Não, não é de Werneck e sim de Hélio Pólvora, escritor baiano, cronista, contista romancista, crítico e tradutor, que morreu em 2015, aos 86 anos. Eu costumava ler Pólvora no Jornal do Brasil, certa época. Ele tinha o mesmo sabor e humor de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga e João Ubaldo Ribeiro.
Eis (sempre quis começar uma frase assim) que uma editora da Bahia traz Hélio Pólvora à tona. É a Casarão do Verbo, de Anagé, mantida a ferro e fogo por Rosel Soares, em uma edição que justifica a palavra primorosa. A Casarão colocou em cena nada menos do que sete livros do Pólvora. Peguei logo Como Morrem os Nossos Escritores, atraído pelo título e pela curiosidade. Para saber se invejo certas mortes ou se fico amedrontado diante da certeza dela.
Cronistas são historiadores do cotidiano. Neles serão encontradas no futuro as informações sobre como somos hoje. Os interessados em história da literatura vão encontrar nessas páginas de Hélio Pólvora um mundo de curiosidades sobre usos, costumes e personagens célebres. Do poeta e cronista Paulo Mendes Campos sabemos sobre seus bares preferidos: o Alcazar, “de onde contemplava o mar e logo chegava ao lar”. O Juca’s Bar, o Bar do Luis, o Vermelhinho, “reduto da esquerda diurética, hoje esquerda caviar” e o Amarelinho “da direita elitista e reacionária”. Ao morrer, em 1991, Paulo Mendes Campos deixou um aviso aos abstêmios: “A velhice é uma ressaca diária. E sem cura”.
Pequena obra-prima de Pólvora é o relato do documentário que o cineasta Joaquim Pedro realizou sobre Manuel Bandeira, que “vive sozinho em sua limpa solidão”. A crônica relata os comentários que duas senhoras fazem durante o filme, analisando o poeta, cena a cena: “Ele não tem empregada doméstica... nem faxineira, vive só... É um risco na idade dele... Pobrezinho, a ferver o leite... pois se é solteirão”. A câmera mostra os livros, brochuras, capas soltas, as duas sentem compaixão: “Livro só vale a pena encadernado. Ajuda na decoração... Talvez não tenha dinheiro para encadernar”.
Bandeira abre um livro, lê. As duas: “Começa a ler bem cedo... É, parece que não trabalha... Esses poetas são boêmios”. Bandeira para de ler, olha para a câmera e diz: “Vou-me embora para Pasárgada...”. Uma das duas: “Onde fica Passárada? ... Acho que em São Paulo, ou na Bahia... Já ouvi esse nome, fica no sul de Minas”. O poeta continua a ler o poema para a câmera: “Aqui eu não sou feliz?”. Uma delas: “Por que não casou? Não fez família?”.
Esse livro delicioso do Hélio devia ser adotado em faculdades de jornalismo. Para ensinar a escrever, a fazer perfis curtos e objetivos de entrevistados, para aprender a ter humor e a definir pessoas em uma frase. Para o autor, Antonio Callado era “o único inglês da vida real”; o feroz e odiado crítico Agripino Grieco era um “obstinado garimpeiro dos erros e bobagens alheias”; Rubem Braga foi “um esperançado que não tardou a se desiludir”; Jorge Amado, “um animador ímpar de noites de autógrafos”, ao sugerir que mulheres célebres e bonitas fossem madrinhas dos escritores. William Faulkner, “um homem em luta com o coração humano”. Macedo Miranda, hoje um nome esquecidíssimo, mas bom escritor, era “discreto, silencioso. Na redação sentia-se que ele sobrava. Sobrava porque queria, porque lhe parecia conveniente”. Sei o que é sobrar, passei por isso.
Quando comecei em jornal, em 1957, trabalhei com Samuel Wainer, que me ensinou muito. Era um homem magro, cabelos brancos e muito charme, sedutor (casou-se com a deslumbrante Danuza e certa noite entrou na redação do Anhangabaú de braços com Kim Novak), apaixonado por jornalismo. Sorria muito e nos mantinha em estado de permanente efervescência. Com a ditadura militar, Samuel foi exilado, envelheceu, voltou ao Brasil, buscou emprego. Hélio Pólvora encontrou-se com ele em 1970, em São Paulo. 
“Wainer, então enfermo e com dificuldades financeiras, depois de fulgurante período político e jornalístico, dirigia um semanário. O velho mestre parecia encolhido, como um pássaro molhado, numa cadeira. Tive a impressão de que as roupas, um tanto enxovalhadas, eram penas que uma água a escorrer tentava em vão alisar. Voz cava. A expressão de alegria lhe sumia do semblante. Ofegava. Era quase uma ruína em pé. E tossia, vítima de um enfisema pulmonar.” Samuel deu a Hélio uma carona, mergulharam no feroz trânsito paulistano. Foi quando se viram pela última vez. Ele, Samuel, “furava o tráfego com o velho ímpeto de quem cava a vida. Obstinado, com uma obstinação que martelava o peito em busca de ar”.
Samuel me ensinou a ter essa obstinação que ainda me martela. E também a definição de que ao jornalista só interessa aquilo que está oculto e cabe a ele desvendar. 

Recados - Luis Fernando Verissimo


Do jeito que vai, os últimos seres humanos a escrever a mão serão os grafiteiros. Todas as outras formas de escrita, fora o computador e a lata de spray, estarão obsoletas em pouco tempo. Uma razão para se saudar a moda de deixar recados em adesivos colados na porta da geladeira, talvez o último suspiro da caligrafia antes de desaparecer para sempre.
Se os adesivos de porta de geladeira prevalecerem, a cultura humanística do Ocidente talvez ainda lhe deva a sobrevida. Há lógica na escolha da geladeira para deixar adesivos. É o lugar da casa que todos, de um jeito ou de outro, frequentam, tem espaço de sobra para os recados, uma superfície lisa e, normalmente, um fundo branco ou de cor neutra para realçar as mensagens. Mas é claro que os adesivos podem ser colocados em qualquer lugar, inclusive na testa das pessoas.
Aquela coisa urgente que você não pode deixar de lembrar de manhã deve ser colada no espelho do banheiro, para ser vista na hora de escovar os dentes, que é quando a humanidade geralmente retoma o contato com a vida. Se bem que, para muita gente, o período entre sair da cama e tomar o primeiro gole de café é um vago nevoeiro, dentro do qual a pessoa não se fixa em nada e só consegue escovar os dentes porque sabe, mais ou menos, onde eles estão.
Os recados colados se dividem em duas categorias: recados para os outros e recados para você mesmo. Seria até possível contar a historia de um casamento através de mensagens deixadas pelo casal na geladeira, começando com escritos de amor em adesivos na forma de coração, assinados com “uma bitoca da sua Buzunga” e terminando em sóbrios quadrados protocolares anunciando “Meu advogado quer falar com o seu”. Recados para você mesmo podem ser listas de supermercado, lembretes de coisas para fazer e telefonemas para dar e, no caso de dietas, reprimendas por você estar sequer perto da geladeira.
Os adesivos dirigidos a outros se dividem em práticos como “acabou o gás” ou “o gato anda estranho”, e inspiradores, como “o mundo é dos decididos”, “sorria e a vida lhe sorrirá de volta” ou esperançosos: “Rezem para que saia o meu aumento”. E, claro, os adesivos também servem para piada, insultos, sugestões eróticas (“Não esqueça o desentupidor de pia e o creme chantili para esta noite”) e, importantíssimo, a lembrança para não deixar de comprar mais adesivos. Pode ser na forma de porquinhos ou galinhas.


A Vida na Porta da Geladeira - Alice Kuipers
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quinta-feira, 26 de abril de 2018

Posteridades - Luis Fernando Verissimo


O túmulo do Herbert Spencer fica em frente ao do Karl Marx no cemitério Highgate, em Londres. Spencer morreu em 1903, o que significa que os dois são vizinhos há 115 anos.
Pode-se especular que, vez por outra, cheguem na sacada dos seus respectivos monumentos para uma conversa de fim de tarde.
- Que tempo, hein Herbert?
- Horrível, Karl. Eu sempre digo que a única vantagem de estar morto na Inglaterra é que nos livramos do clima.
- Não me refiro ao clima, Herbert. Me refiro a esse tempo que estamos vivendo. Ou que os vivos estão vivendo. Essa crise...
- Imaginei que você estaria contente com ela, Karl. Você sempre disse que o capitalismo ia acabar...
- Mas não assim, não num desastre sem qualquer significado histórico. Causado pela pura ganância, pela intolerância, pelo fascismo redivivo, pela simples cupidez humana. Há algo menos científico do que a cupidez humana, Herbert? 
- Bem...
- O que eu tinha previsto era o fim de um processo, a síntese final de uma inevitável progressão dialética que terminaria com o proletariado livre para sempre dos seus grilhões numa sociedade sem classes. Não com a classe média fazendo as contas para comprar um novo micro-ondas. Que consciência revolucionária pode nascer de uma insatisfação com a falta de crédito?
- Pois eu baseei toda uma filosofia na defesa da cupidez humana, como você deve se lembrar, Karl. Nada é mais natural do que a cupidez humana, e a ciência deve reconhecer que as leis da Natureza também regem o comportamento humano. E a primeira lei da Natureza é cada um por si e por suas ambições. É o desejo do micro-ondas que move, metaforicamente, a humanidade.
- Você e o seu darwinismo social. Como é mesmo a sua frase famosa? A sobrevivência dos mais capazes...
- Que hoje todo mundo pensa que é do Darwin, e é minha. Infelizmente, não podemos controlar nossa posteridade do túmulo.
- Mas a sua posteridade está ganhando da minha, Herbert. O capitalismo em crise não comprova a minha teoria, comprova a sua. A fome do mundo não é de igualdade e justiça, é de eletrodomésticos e férias no verão. Quem manda no dinheiro e, portanto, no mundo são três ou quatro gerentes financeiros que sonham com um novo Porsche. Não foi a reação que derrotou o comunismo, foi o consumismo. Nunca uma troca tão pequena de letras significou tanto.
- Não se deprecie, homem. Que importa se o capitalismo acabará com uma revolução ou um gemido, se se autodestruirá ou se regenerará? Aconteça o que acontecer, ainda virá mais gente visitar o seu túmulo do que o meu. Aliás, nenhum dos neoliberais que vinham prestar suas homenagens ao seu filósofo favorito tem aparecido, ultimamente. Como você vê, as flores que deixaram da última vez no meu túmulo estão mais murchas do que os prognósticos econômicos para 2018. Você ainda é o cara. 
- Obrigado, Herbert. Mas você não está querendo ver o paradoxo. Se o capitalismo cair por acaso, por nenhum determinismo científico, eu caio junto com ele. Terei sido o pior tipo de profeta, o que acerta por engano.
- O acaso, o acaso... Neste ponto nós sempre concordamos, discordando do Darwin. Ele atribuía a evolução ao acaso. Nós sempre achamos que havia um fim previsível para as nossas respectivas explicações do mundo, que nossas evoluções tinham um objetivo que as redimiria.
- Mas num ponto Darwin teria razão em defender o acaso, Herbert.
- Qual?
- Foi por puro acaso que enterraram você aí, na minha frente, e podemos ter essas nossas conversas de fim de tarde.
- É verdade, Karl. 
https://pt.wikipedia.org/wiki/Herbert_Spencer

quarta-feira, 25 de abril de 2018

A Noite Estrelada

Tarsila e a noite estrelada - David Coimbra


Fiquei algum tempo parado diante de uma carta que a pintora Tarsila do Amaral escreveu há quase cem anos para o poeta Oswald de Andrade. A carta está exposta no MoMA, de Nova York, assim como os quadros de Tarsila, é claro.

Gostei de ver as pinturas, mas a carta me comoveu de forma especial. O papel amarelado, a letra cursiva bem desenhada, o carinho que se evolava de cada frase, tudo me pareceu doce e melancólico.

Sentia-me já envolvido pela triste história de Tarsila, quando meu filho me puxou pela manga:

- Vamos?

Ele não queria sair do museu; queria sair daquela sala. Não que desprezasse os quadros de Tarsila. É que estava ansioso para ver outro quadro: Starry Night, A Noite Estrelada, de Van Gogh, exposto mais acima, no quinto andar.

- Espera um pouquinho - pedi.

Naquele momento, a história de Tarsila me fazia especular. Havia chegado à conclusão de que Oswald de Andrade fora o grande amor da vida dela. Construíram juntos o modernismo brasileiro e formaram uma espécie de casal 20 da elite cultural do país. Só que, depois de sete anos de casamento, ele se separou dela para casar-se com uma mulher mais nova, a escritora Patrícia Galvão, a Pagu. Tarsila sofreu muito por causa disso. Examinei o traço de sua letra na velha carta e julguei ter identificado um tipo de resignação dolorida na maneira como ela puxava o rabo das consoantes, mas...

- Vamos? Vamos? - insistia o Bernardo, a angústia se derramando da voz.

Semanas atrás, contei-lhe a história de Van Gogh e assistimos juntos, eu, ele e a Marcinha, a um lindo filme sobre o pintor. O título é Loving Vincent, uma animação inteiramente pintada por mais de cem artistas que empregaram a mesma técnica de Van Gogh. Passou no Brasil, você deve ter visto. Se não viu, veja. No filme, roda a bela música do americano Don McLean, Starry, Starry Night. Disse ao meu filho que o título da música era o título do quadro, ele procurou-o na internet e se apaixonou.

Isso não é incomum. Van Gogh exerce sobre as crianças poder semelhante ao dos Beatles. Apresente a qualquer criança de agora, do século 21, uma música dos Beatles de quarenta e poucos anos ou uma pintura de Van Gogh de cento e tantos e ela vai se encantar. O que, talvez, seja a maior consagração possível para uma obra de arte.

Não se pode dizer o mesmo de Pagu como escritora, por exemplo. Li alguns livros dela e não gostei. São medíocres. Mas sua vida foi trepidante. A respeito dela, o poeta Raul Bopp escreveu:

"Pagu tem uns olhos moles

Uns olhos de fazer doer".

Além disso, era uma intelectual ativa. Tornou-se comunista e, por isso, foi presa e torturada pela ditadura Vargas. Seu casamento com Oswald de Andrade foi tormentoso, pontuado por crises e cenas de ciúme. Pagu acabou se separando dele e do Partido Comunista, trabalhou como jornalista, entrevistou Freud, viajou à China, conheceu Pu Yi, o último imperador, e dele ganhou as primeiras sementes de soja que foram plantadas no Brasil. Tentou suicídio várias vezes e fracassou em todas. Morreu de câncer e virou lenda.

Pensando nessas coisas todas de Pagu, Tarsila e Oswald, eu já estava dançando com fantasias na minha cabeça, quando meu filho insistiu:

- Vamos! Por favor!

Suspirei. Decidi atendê-lo para voltar mais tarde. Minutos depois, estávamos no quinto andar. Passamos por uma sala e por outra e outra e mais outra, e nada do quadro de Van Gogh.

- Será que o Starry Night não está aqui? - reclamava o Bernardo.

Mas estava. Ele foi o primeiro a ver e, ao vê-lo, emitiu um grito de vitória. Correu para lá. Fui atrás. Detive-me em frente ao quadro. 


Com Amor, Van Gogh (Loving Vincent)





Pagu


A força da noite estrelada - David Coimbra

Lá estava eu, bem em frente a Starry Night, A Noite Estrelada, de Van Gogh, pendurada em uma parede nobre do quinto andar do MoMA, de Nova York. Meu filho, entusiasmado com a pintura, fazia perguntas, e eu tentava respondê-las. Fui falando sem tirar os olhos do quadro, esforçando-me para me lembrar do que havia lido sobre Van Gogh. Mas não foi disso que mais falei. O que mais falei foi do que estava vendo naquele exato instante, e do que estava sentindo.

Olha, disse para ele, olha bem: esse quadro é uma janela. É a janela de um hospício do interior da França, onde Van Gogh se internou depois de ter cortado um pedaço da própria orelha. Imagina o sofrimento dele, para decidir se internar em um manicômio. O desespero para encontrar ajuda. Esse sofrimento todo ele despejou muitas vezes na tela branca. Muitos quadros de Van Gogh gritam de dor. Mas, neste caso, não. Neste caso, não houve dor, e sim deslumbramento.

Ele escreveu uma carta para o irmão Theo contando que, em uma madrugada de verão, acordou e ficou olhando pela janela do seu quarto no sanatório. Permaneceu ali durante muito tempo, até o amanhecer, e foi essa a noite estrelada.

Lembrei-me de uma madrugada do meu passado, quando tinha vinte e poucos anos e acordei sozinho, deitado em um colchonete que me servia de cama. A luz da lua entrava por uma grande janela francesa sem cortinas. Ao meu lado, no chão, havia um radinho de pilhas, e o liguei, e um pedaço de Paralelas, do Belchior, saiu limpo do aparelho e começou a flutuar pelo quarto. "Como é perversa a juventude do meu coração, que só entende o que é cruel, o que é paixão". A melodia suave e a poesia precisa de Belchior me tocaram, e senti a grandeza do mundo e a pressa da juventude, que só se move pela paixão. Foi algo que me estourou no peito, porque entendi que aquilo não se podia controlar.

Supus que era o que sentia Van Gogh naquela madrugada, em um quarto de hospício, vendo o dia amanhecer. A luz revolta das estrelas, a lua resplandecendo amarela, o céu azul redemoinhado, a paisagem inteira subalterna ao poder da natureza e da vida.

Olha, disse, e pensa que, há cento e trinta anos, num vilarejo desconhecido do interior da França, um homem estava olhando para essa cena pela janela de um hospício. Ele não tinha praticamente ninguém no mundo, ele não tinha sucesso, nem dinheiro, nem mesmo alegria. Ele se achava insignificante, mas era grande. Tanto que, agora, tanto tempo depois, nós estamos olhando para o que ele viu, e tentando entender o que ele sentiu. Não é a realização de uma vida?

Não sei se meu filho entendeu. Mas ele pediu uma reprodução do quadro de Van Gogh e, agora, na parede do seu quarto, abre-se uma pequena janela para um vilarejo da Provence do século 19, e para o coração de um homem que se sentia solitário e pequeno, como todos nós, muitas vezes, nos sentimos. E somos.


A Noite Estrelada - Van Gogh



Boa briga - Luis Fernando Verissimo



Certas coisas são mais importantes pelo que evocam do que pelo que são. Têm um significado simbólico que às vezes suplanta a sua realidade. Foi o caso da pesquisa neurológica entre detentos de menor idade para estudar as causas da criminalidade e do comportamento agressivo, realizada não faz muito por uma universidade do Sul.

A reação ao projeto foi forte. Estudos desse tipo, segundo seus críticos, buscam argumentos para os que propõem razões biológicas e genéticas, ao contrário de culturais e sociais, para a criminalidade, e eximem a sociedade da sua culpa. Os defensores da pesquisa alegam que avanços havidos na investigação neurológica, da base puramente biológica do comportamento anômalo, tornaram obsoleta a velha questão natureza x cultura que dividia - grosseiramente entre direita e esquerda - os psicólogos e os analistas sociais. 

E que uma maior compreensão do funcionamento de um cérebro criminoso não exclui a influência do meio na sua existência. O outro lado defende que pesquisas assim já partem do pressuposto de que o social não importa e só querem camuflar seu reacionarismo - no fundo, quase uma volta a teorias criminalísticas do século 19 - com pseudorrigor científico. Reacionário é quem não aceita o progresso da ciência por preconceito político, dizem os outros. Enfim, uma boa briga.

Mas o que informa, e talvez distorça, o debate mais do que tudo é que nada que se faça ou discuta nessa área deixa de evocar as experiências nazistas com a eugenia. Pode ser injusto, mas o fato de a pesquisa proposta ser com detentos e seu fim não declarado mas implícito ser a "cura" individual do desvio de conduta pela intervenção biológica ou química reforça a evocação incômoda.

Ninguém gosta de lembrar que a monstruosa experimentação dos nazistas em cobaias humanas foi predecessora direta do que viria a ser o mais revolucionário ramo da especulação científica do pós-guerra, o da manipulação genética, que abre a possibilidade de a espécie humana premeditar a prole ou programar sua progenitura - e, supostamente, seu caráter e sua índole, além de sua saúde. Mas, mais de 60 anos depois do fim da II Guerra Mundial, todas as experiências cujo objetivo seja procurar no corpo e nos genes as causas da imperfeição humana e na transformação da sua natureza a solução ainda têm que conviver com a memória dos horrores nazistas. Merecendo ou não, a evocação é inescapável.

Que lado do debate tem razão? Felizmente eu não preciso decidir. A política é sempre má palpiteira em assuntos de ciência, mas a ciência arregimentada para provar preceitos políticos é pior. E acho bom que perdure por muitos mais anos na memória do mundo o que aconteceu na Alemanha nazista, quando uma presunção de neutralidade moral levou a ciência a romper todos os limites da humanidade.

Controlar o purgatório? - Roberto DaMatta


A noção de um lugar intermediário, marcado por intensidades e definido por pertencer simultaneamente a dois hemisférios (céu e inferno, culpa e inocência, casa e rua, pessoalidade e impessoalidade), manifesta uma óbvia visão relacional. Um ponto de vista no qual o elo (o meio ou a ponte) é mais saliente do que regras e indivíduos. Não há nenhum cisma social sem relações, mas não é em todo lugar que elas são valor e ética, como no caso brasileiro.
Da beatitude celestial ninguém sai, tal como acontecia com as arcaicas garantias legais dos senhores sobre seus escravos ou a das generosas aposentadorias dos funcionários do Estado que, sendo seus filhos, passavam seus cargos para seus descendentes. Da punição que o grande Dante etnografou descrevendo em detalhes os castigos do inferno, ninguém igualmente sai exceto, talvez, no maravilhoso dia do Juízo Final, no qual os vivos e os mortos vão se reunir e, quem sabe, a misericórdia de Nosso Senhor Jesus Cristo vai redimir esse vale de lágrimas no qual estamos encerrados.
A grande novidade do purgatório, como só um erudito francês - Jacques LeGoff - foi capaz de aquilatar, introduz no cosmo cristão a intensidade ambígua de um brasileirismo. Com o purgatório legitima-se o “mais ou menos”; reacende-se o elo entre os puros e os pecadores que se comunicam e têm a oportunidade de adiar, anular ou diminuir suas penas graças a instâncias, recursos e demandas dos seus parentes, amigos, companheiros e advogados terrenos.
Lutero mudou o curso da religiosidade ocidental no seu protesto contra todo tipo de meio-termo, sobretudo das indulgências como um comércio. Esse vosso cronista tem vergonha de um sistema judiciário no qual o larápio da coisa pública é diferenciado do bandido comum e‚ colocado no purgatório legal dos que cometem crimes especiais, eufemisticamente chamados de “colarinho branco” - delitos obviamente superiores; livram-se da cadeia por meio de embargos, protelações e recursos - essas indulgências brasileiríssimas vigentes no grande purgatório que é o sistema jurídico nacional. Na Europa do século 16, elas acenderam a Reforma; no Brasil do século 21 elas podem ou não confirmar a impunidade dos poderosos ou a grande transformação igualitária desejada pela maioria.
*
Seria um delírio do cronista sugerir que no mundo global o mais ou menos do purgatório existe a seu modo no Brasil?
Esse Brasil republicano que não deixou de ser imperial nas práticas políticas e nos estilos de manter privilégios e empenhos - uma sobrevivência aristocrática num sistema destinado a ser meritocrático, competitivo e impessoal. 
A grande tarefa do Supremo Tribunal Federal é a de conjugar e balizar o que vem da sociedade e o que está consagrado na Lei Maior.
O bom senso é contrariado quando se tenta mudar jurisprudência sobre a prisão após julgamento em segunda instância e quando se passa por cima da Lei da Ficha Limpa, uma norma popular e inovadora. Teria o STF a índole de ser contra esses marcos da experiência democrática brasileira?
Penso que é imprudente ficar tanto ao lado das hermenêuticas atadas à lei vigente quanto ouvir as demandas da sociedade convulsionada e revoltada precisamente pelos privilégios e conchavos facilitados por um sistema legal ultrapassado. Nem tanto ao céu nem tanto ao inferno e nem tanto ao brasileiríssimo purgatório. Não se fica contra a Lei Maior, mas a quem serve a Constituição senão à sociedade brasileira? Ouvir a sociedade não é abandonar a Constituição.
A grande demanda é acabar com a transformação da política numa atividade compadresco-partidária desonesta e alérgica ao republicanismo que exige a igualdade meritocrática e eficiente na distribuição de recursos públicos. Não se trata de acabar com a política pelo legalismo. A questão é não deixar que o legalismo jurídico afeito ao purgatório acabe com a política!

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Cuidado, que mancha - Luis Fernando Verissimo


“Cuidado, que mancha” era uma das três ou quatro frases mais usadas pela mãe da gente.
Mais do que “come tudo, que espinafre faz bem” e “não esquece de baixar a tampa”. Manchar uma camisa ou, crime ainda mais hediondo, uma camisa nova, era imperdoável. A reprimenda da mãe incluía uma lista de consequências do nosso desleixo, cada uma mais carregada de culpa. Uma camisa estragada, para sempre irrecuperável, horas gastas na escolha, compra, estocagem e manutenção da camisa jogadas fora.
Você não tinha noção do que provocara com seu comportamento desastrado. Horror, horror.
É verdade que o escândalo durava pouco. A camisa maculada nunca estava totalmente perdida, voltaria como pano de prato ou coisa parecida.
Mas nossa culpa não acabava. Vivíamos entre dois medos, o de manchar outra camisa – "Meu Deus, ele se sujou com caqui, mancha de caqui nunca sai!” – e o de ser obrigado a usar babador, como um bebê.
E o trauma permanece, até hoje. O medo da mancha. O terrível medo da mancha que nunca sai.
Tomemos o caso do deputado X. Um político importante, com uma carreira exemplar, mas que por esses dias começou a ter uma sensação estranha, a sensação de ter uma mancha na frente da sua camisa. A camisa podia estar coberta por paletó e gravata, ou por fraque e condecorações, e ele sentia a mancha no peito. E ouvia a voz da sua mãe dizendo “Menino porcalhão!”.
O deputado X foi procurar um psicanalista e contou o que estava lhe acontecendo.
– Acho que tem a ver com a mãe, doutor.
– Tudo tem a ver com a mãe.
– Ela me criticava muito porque eu sujava a frente da camisa, quando comia.
– “Cuidado, que mancha”. Conheço bem. – A sua mãe dizia a mesma coisa, doutor?
– Oitenta por cento da minha clientela é de traumatizados por essa frase.
– E o que provoca essa sensação de culpa, doutor?
– Você deve ter feito alguma coisa que, inconscientemente, lhe deu culpa. Algo que manchou sua vida. A voz que você ouve é a da sua mãe, repreendendo-o através dos tempos.
– Mas eu não fiz nada para me sentir culpado. – Tem certeza? – Bom, eu estava em Brasília na semana passada e votei pelo... Hum, deve ter sido isso. Essa mancha sai, doutor?
– Sai, sai. No Brasil, nenhuma culpa dura muito.

domingo, 22 de abril de 2018

Turistas imaginários - Luis Fernando Verissimo

Do diário imaginário de um turista do futuro.
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“As fotografias não fazem justiça a Titã, a lua de Saturno. Nossa primeira surpresa foi na chegada: Titã é cor de beterraba! Imagine-se pisando numa enorme beterraba gelada. Foi o que sentimos o tempo todo. Tudo tem cor de beterraba em Titã. Não sei que cor terá a beterraba. Mas não há indício de vida na lua de Saturno e duvido que existam legumes. Na verdade não tem nada para comer em Titã. Nada para fazer. Nada para ver, a não ser vastos espaços gelados, cor de beterraba. Dizem que Titã é como era a Terra, antes de surgir a vida orgânica. Especula-se que a vida na Terra começou assim, com a visita de turistas de outro planeta. Com as bactérias do lixo deixado por visitantes do espaço na beira de um rio de lava. Todas as espécies terrestres descenderiam de um piquenique. Tome cuidado, portanto. Quando limpar a meleca do dedo numa pedra de Titã, você pode estar começando uma civilização.
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Afinal, Titã vale ou não vale uma visita? Sim e não. É longe e a viagem é cara, mas é preciso lembrar o seguinte: Titã é uma lua de Saturno. O que significa que, para todos os efeitos, Saturno é a lua de Titã. Saturno e seus anéis ocupam metade do céu de Titã, quando saem. Um espetáculo inesquecível. 
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Cotações. Comida: zero. Divertimento: zero. Atrações culturais: zero. Cartões de crédito: nenhum. Natureza: demais.
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Uma dica: leve roupa quente. A temperatura pode chegar a menos 300 fora do hotel, mas você não vai querer perder as noites de Saturno cheio.
Cruzeiro. Do diário imaginário de um passageiro num navio de luxo.
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“Assim que chegamos na cabine, levados por um simpático rapaz (filipino? cearense?) a Luana vestiu o biquíni e foi procurar uma das piscinas. Eu fui explorar o interior do navio. Suas dimensões são realmente impressionantes: levei quatro dias para encontrar o caminho de volta à cabine. Só então fiquei sabendo que a Luana tivera uma acidente na cascata artificial entre as piscinas do Deck Maraviglia e do Deck Stupendo, torcera o pé, fora atendida por um médico (italiano? grego?) que lhe propusera casamento, mas ela já estava boa e, inclusive, inscrita na maratona do dia seguinte, duas voltas inteiras no Deck Bravíssimo, competindo por um BMW. Naquela noite jantamos num dos 17 restaurantes do navio, comida sueco-napolitana, com direito a show do Frank Sinatra, ressuscitado especialmente para o cruzeiro, e depois fomos olhar as estrelas. No planetário, pois não havia lugar nos decks, ainda mais com os campeonatos simultâneos de hula-hula e “celebrity jiu-jítsu”. O concerto do dia seguinte, da Filarmônica de Berlim, foi entre o café e o lanche da manhã. À tarde, depois dos blinis com caviar e antes do buffet de lagostas nas piscinas, o Circo de Moscou. Enquanto Luana corria na maratona, fui para a sauna, onde a atração eram os três tenores cantando completamente nus. À noite, jantar no bistrot “L’Intime”, penumbra gostosa, pianinho simpático (Brad Mehldau) – e cama. Luana e eu sabíamos que o dia seguinte seria muito especial: o navio zarparia.
Avaliação: altamente recomendável. Só uma observação: tente evitar a comida. Não é que seja ruim, é demais. Não só há 11 refeições por dia, sem contar os lanches entre uma e outra, como Luana e eu éramos constantemente acordados no meio da noite por um dos chefs sentado na nossa cama, com um espetinho ou uma tigela na mão, dizendo “Vocês precisam provar isto”. 

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...