Tarsila e a noite estrelada - David Coimbra
Fiquei algum tempo parado diante de uma carta que a pintora Tarsila do Amaral escreveu há quase cem anos para o poeta Oswald de Andrade. A carta está exposta no MoMA, de Nova York, assim como os quadros de Tarsila, é claro.
Gostei de ver as pinturas, mas a carta me comoveu de forma especial. O papel amarelado, a letra cursiva bem desenhada, o carinho que se evolava de cada frase, tudo me pareceu doce e melancólico.
Sentia-me já envolvido pela triste história de Tarsila, quando meu filho me puxou pela manga:
- Vamos?
Ele não queria sair do museu; queria sair daquela sala. Não que desprezasse os quadros de Tarsila. É que estava ansioso para ver outro quadro: Starry Night, A Noite Estrelada, de Van Gogh, exposto mais acima, no quinto andar.
- Espera um pouquinho - pedi.
Naquele momento, a história de Tarsila me fazia especular. Havia chegado à conclusão de que Oswald de Andrade fora o grande amor da vida dela. Construíram juntos o modernismo brasileiro e formaram uma espécie de casal 20 da elite cultural do país. Só que, depois de sete anos de casamento, ele se separou dela para casar-se com uma mulher mais nova, a escritora Patrícia Galvão, a Pagu. Tarsila sofreu muito por causa disso. Examinei o traço de sua letra na velha carta e julguei ter identificado um tipo de resignação dolorida na maneira como ela puxava o rabo das consoantes, mas...
- Vamos? Vamos? - insistia o Bernardo, a angústia se derramando da voz.
Semanas atrás, contei-lhe a história de Van Gogh e assistimos juntos, eu, ele e a Marcinha, a um lindo filme sobre o pintor. O título é Loving Vincent, uma animação inteiramente pintada por mais de cem artistas que empregaram a mesma técnica de Van Gogh. Passou no Brasil, você deve ter visto. Se não viu, veja. No filme, roda a bela música do americano Don McLean, Starry, Starry Night. Disse ao meu filho que o título da música era o título do quadro, ele procurou-o na internet e se apaixonou.
Isso não é incomum. Van Gogh exerce sobre as crianças poder semelhante ao dos Beatles. Apresente a qualquer criança de agora, do século 21, uma música dos Beatles de quarenta e poucos anos ou uma pintura de Van Gogh de cento e tantos e ela vai se encantar. O que, talvez, seja a maior consagração possível para uma obra de arte.
Não se pode dizer o mesmo de Pagu como escritora, por exemplo. Li alguns livros dela e não gostei. São medíocres. Mas sua vida foi trepidante. A respeito dela, o poeta Raul Bopp escreveu:
"Pagu tem uns olhos moles
Uns olhos de fazer doer".
Além disso, era uma intelectual ativa. Tornou-se comunista e, por isso, foi presa e torturada pela ditadura Vargas. Seu casamento com Oswald de Andrade foi tormentoso, pontuado por crises e cenas de ciúme. Pagu acabou se separando dele e do Partido Comunista, trabalhou como jornalista, entrevistou Freud, viajou à China, conheceu Pu Yi, o último imperador, e dele ganhou as primeiras sementes de soja que foram plantadas no Brasil. Tentou suicídio várias vezes e fracassou em todas. Morreu de câncer e virou lenda.
Pensando nessas coisas todas de Pagu, Tarsila e Oswald, eu já estava dançando com fantasias na minha cabeça, quando meu filho insistiu:
- Vamos! Por favor!
Suspirei. Decidi atendê-lo para voltar mais tarde. Minutos depois, estávamos no quinto andar. Passamos por uma sala e por outra e outra e mais outra, e nada do quadro de Van Gogh.
- Será que o Starry Night não está aqui? - reclamava o Bernardo.
Mas estava. Ele foi o primeiro a ver e, ao vê-lo, emitiu um grito de vitória. Correu para lá. Fui atrás. Detive-me em frente ao quadro.
Com Amor, Van Gogh (Loving Vincent)
Pagu
A força da noite estrelada - David Coimbra
Lá estava eu, bem em frente a Starry Night, A Noite Estrelada, de Van Gogh, pendurada em uma parede nobre do quinto andar do MoMA, de Nova York. Meu filho, entusiasmado com a pintura, fazia perguntas, e eu tentava respondê-las. Fui falando sem tirar os olhos do quadro, esforçando-me para me lembrar do que havia lido sobre Van Gogh. Mas não foi disso que mais falei. O que mais falei foi do que estava vendo naquele exato instante, e do que estava sentindo.
Olha, disse para ele, olha bem: esse quadro é uma janela. É a janela de um hospício do interior da França, onde Van Gogh se internou depois de ter cortado um pedaço da própria orelha. Imagina o sofrimento dele, para decidir se internar em um manicômio. O desespero para encontrar ajuda. Esse sofrimento todo ele despejou muitas vezes na tela branca. Muitos quadros de Van Gogh gritam de dor. Mas, neste caso, não. Neste caso, não houve dor, e sim deslumbramento.
Ele escreveu uma carta para o irmão Theo contando que, em uma madrugada de verão, acordou e ficou olhando pela janela do seu quarto no sanatório. Permaneceu ali durante muito tempo, até o amanhecer, e foi essa a noite estrelada.
Lembrei-me de uma madrugada do meu passado, quando tinha vinte e poucos anos e acordei sozinho, deitado em um colchonete que me servia de cama. A luz da lua entrava por uma grande janela francesa sem cortinas. Ao meu lado, no chão, havia um radinho de pilhas, e o liguei, e um pedaço de Paralelas, do Belchior, saiu limpo do aparelho e começou a flutuar pelo quarto. "Como é perversa a juventude do meu coração, que só entende o que é cruel, o que é paixão". A melodia suave e a poesia precisa de Belchior me tocaram, e senti a grandeza do mundo e a pressa da juventude, que só se move pela paixão. Foi algo que me estourou no peito, porque entendi que aquilo não se podia controlar.
Supus que era o que sentia Van Gogh naquela madrugada, em um quarto de hospício, vendo o dia amanhecer. A luz revolta das estrelas, a lua resplandecendo amarela, o céu azul redemoinhado, a paisagem inteira subalterna ao poder da natureza e da vida.
Olha, disse, e pensa que, há cento e trinta anos, num vilarejo desconhecido do interior da França, um homem estava olhando para essa cena pela janela de um hospício. Ele não tinha praticamente ninguém no mundo, ele não tinha sucesso, nem dinheiro, nem mesmo alegria. Ele se achava insignificante, mas era grande. Tanto que, agora, tanto tempo depois, nós estamos olhando para o que ele viu, e tentando entender o que ele sentiu. Não é a realização de uma vida?
Não sei se meu filho entendeu. Mas ele pediu uma reprodução do quadro de Van Gogh e, agora, na parede do seu quarto, abre-se uma pequena janela para um vilarejo da Provence do século 19, e para o coração de um homem que se sentia solitário e pequeno, como todos nós, muitas vezes, nos sentimos. E somos.
A Noite Estrelada - Van Gogh