Mariza Dias Costa/Folhapress
"Ex-Pajé”, de Luiz Bolognesi (menção especial no Festival de Berlim), entra em cartaz no Brasil hoje. É uma obra-prima: a câmera narra e comenta a história melhor do que qualquer voz em off.
Os índios paiter-suruís se apresentam assim: “Desde 1968, quando Nós, os Paiter, começamos a ter contato ‘oficial’ com o homem branco, as relações com não indígenas vêm provocando profundas mudanças em nossa sociedade. Essas mudanças, porém, não apagaram o nosso espírito guerreiro, que nos motivou a lutar pelo reconhecimento e integração de nosso território” (www.paiter.org).
E o filme começa com uma citação de Pierre Clastres, antropólogo, lembrando que, para cometer etnocídio, não é preciso matar os membros de uma comunidade, basta matar sua alma.
Bolognesi conta a história do pajé de uma aldeia paiter que é levado a ser bedel da Igreja Batista, a qual trouxe novas crenças e impôs que as antigas fossem abandonadas. Quando a realidade aperta, alguns membros da aldeia resgatam o pajé, na esperança de que o deus antigo ainda o escute.
O filme é perfeito para pensar na facilidade com a qual os brancos modernos acreditam na superioridade de suas crenças e assassinam culturas (curei-me um pouco dessa culpa histórica lendo “O Remorso do Homem Branco”, de Pascal Bruckner, ed. Dom Quixote, que ainda aconselho).
O cristianismo é a religião perfeita para o imperialismo cultural.
Antes do cristianismo, cada povo tinha seu deus. Um povo era derrotado porque seu deus era mais fraco que o deus dos outros —ou porque o povo tinha pecado, e seu próprio deus tinha deixado de protegê-lo.
Antes do cristianismo, cada povo tinha seu deus. Um povo era derrotado porque seu deus era mais fraco que o deus dos outros —ou porque o povo tinha pecado, e seu próprio deus tinha deixado de protegê-lo.
O cristianismo inventou uma religião que podia ser proposta aos derrotados como uma verdadeira consolação. Nós acabamos com suas crenças e seu deus, mas nosso Deus, justamente, adora os derrotados, pois Ele mesmo triunfou sendo crucificado.
Mais um detalhe: o pastor mantém sua fé convertendo os outros, enquanto o pajé não sairia da aldeia para propagar a crença no deus do rio. O cristianismo, pretendendo-se universal e sendo essencialmente missionário, precisava de um deus que consolasse os que seriam derrotados e convertidos.
O que é trazido pelo pastor não é menos bizarro do que as antigas crenças. A existência do espírito do rio, de onde vêm os peixes que alimentam a aldeia, é mais provável que um Espírito Santo que viria encher apenas nosso coração.
Mas uma nova crença não ganha da antiga fazendo apelo à razão. As crenças (novas e antigas) proporcionam atalhos para dar sentido ao mundo. Elas servem para evitar a descoberta de que o mundo não tem sentido algum ou, no mínimo, para nos poupar os esforços que faríamos para encontrar, na nossa própria vida, uma migalha de sentido.
O pastor e o pajé não são diferentes: eles estão lá para compensar o medo e a preguiça da aldeia inteira. Seguindo as instruções deles, todos ganham o direito de não pensar.
Um exemplo. A serpente que te morde é o espírito de teu inimigo. Ou, então, a serpente é o Diabo. Tanto faz. O que importa é não pensar que a serpente é só um bicho assustado, que passava por aí e te picou: você vai morrer, e isso não faz sentido algum.
Acabo de ler “Seita”, de Paula Picarelli (Planeta), que talvez seja um romance ou talvez um relato documental (muito divertido, aliás) de como a narradora se envolveu no Portal da Divina Luz (centro de ayahuasca na São Paulo de hoje) a ponto de não saber mais se era dependente da droga ou se tinha se perdido num culto religioso.
De fato, o Portal tem tudo para ser um culto: campanhas de doações, grupos de estudo, anjos, rituais emprestados do psicodrama, segredos, hierarquias, doutrinas sobre extraterrestres e espíritos etc.
Mas o mais surpreendente e inquietante para mim, no livro de Picarelli, foi a docilidade dos personagens, a espécie de predisposição que faz com que eles sejam imediatamente seduzidos pela “espiritualidade” do Portal.
Mas o mais surpreendente e inquietante para mim, no livro de Picarelli, foi a docilidade dos personagens, a espécie de predisposição que faz com que eles sejam imediatamente seduzidos pela “espiritualidade” do Portal.
Eu pensava assim: o mundo perdeu seu encanto —não tem gnomos, não tem elfos, não tem demônios nem anjos, e é bem possível que não tenha Deus e que não haja além onde continuar vivendo depois da morte. É uma perda, mas, em compensação, não tem inquisidores, e somos mais livres para fazer o que outrora e alhures seria punido como pecado.
Pois é, estava errado: os vagos anseios espirituais dos anos 1970 estão vivos como nunca. A Era de Aquarius mal começou.
EX-PAJÉ - Luiz Bolognesi (menção especial no Festival de Berlim)
Um poderoso pajé passa a questionar sua fé depois do primeiro contato com brancos que julgam sua religião como demoníaca. No entanto, a missão evangelizadora comandada por pastor intolerante é posta em cheque quando a morte passa a rondar a aldeia e a sensibilidade do índio em relação aos espíritos da floresta mostra-se indispensável.
Luiz Bolognesi fala sobre intolerância religiosa contra índios
Luiz Bolognesi fala sobre o som de Ex-Pajé
Sinopse de Seita:
Fui vítima de pelo menos duas ameaças de morte. Fico em dúvida do número exato, porque as ameaças eram disfarçadas de “lições e ensinamentos”. Numa dessas vezes, me disseram que o trabalho que estávamos fazendo era muito parecido ao realizado lá atrás, na Grécia Antiga. Naquele tempo, quem participasse de algo assim e saísse, ou contasse a alguém sobre o que era feito e discutido ali, era morto. Morto pelos deuses, pelas entidades enviadas por um deus... nesse caso, Dionísio. As pessoas acreditam em muitas ficções. Por que acreditam em umas e não em outras é uma coisa que me intriga muito. Mas de uma coisa eu tenho certeza: é mais fácil embarcar numa história mirabolante se você estiver sob o efeito de uma bebida alucinógena.
Eu era uma atriz promissora. Paula. Outra Paula, Paulinha. Meu livro é um relato – ficcional – de como me envolvi em um novo culto religioso, o Portal da Divina Luz. Posso dizer que as pessoas entram numa seita por várias razões. Mas todas saem pelos mesmos motivos.
Eu era uma atriz promissora. Paula. Outra Paula, Paulinha. Meu livro é um relato – ficcional – de como me envolvi em um novo culto religioso, o Portal da Divina Luz. Posso dizer que as pessoas entram numa seita por várias razões. Mas todas saem pelos mesmos motivos.
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