sexta-feira, 27 de abril de 2018

Ex-pajés, seitas e crenças - Contardo Calligaris

Mariza Dias Costa/Folhapress



"Ex-Pajé”, de Luiz Bolognesi (menção especial no Festival de Berlim), entra em cartaz no Brasil hoje. É uma obra-prima: a câmera narra e comenta a história melhor do que qualquer voz em off.
Os índios paiter-suruís se apresentam assim: “Desde 1968, quando Nós, os Paiter, começamos a ter contato ‘oficial’ com o homem branco, as relações com não indígenas vêm provocando profundas mudanças em nossa sociedade. Essas mudanças, porém, não apagaram o nosso espírito guerreiro, que nos motivou a lutar pelo reconhecimento e integração de nosso território” (www.paiter.org).
E o filme começa com uma citação de Pierre Clastres, antropólogo, lembrando que, para cometer etnocídio, não é preciso matar os membros de uma comunidade, basta matar sua alma.
Bolognesi conta a história do pajé de uma aldeia paiter que é levado a ser bedel da Igreja Batista, a qual trouxe novas crenças e impôs que as antigas fossem abandonadas. Quando a realidade aperta, alguns membros da aldeia resgatam o pajé, na esperança de que o deus antigo ainda o escute.
O filme é perfeito para pensar na facilidade com a qual os brancos modernos acreditam na superioridade de suas crenças e assassinam culturas (curei-me um pouco dessa culpa histórica lendo “O Remorso do Homem Branco”, de Pascal Bruckner, ed. Dom Quixote, que ainda aconselho).
O cristianismo é a religião perfeita para o imperialismo cultural.
Antes do cristianismo, cada povo tinha seu deus. Um povo era derrotado porque seu deus era mais fraco que o deus dos outros —ou porque o povo tinha pecado, e seu próprio deus tinha deixado de protegê-lo.
O cristianismo inventou uma religião que podia ser proposta aos derrotados como uma verdadeira consolação. Nós acabamos com suas crenças e seu deus, mas nosso Deus, justamente, adora os derrotados, pois Ele mesmo triunfou sendo crucificado.
Mais um detalhe: o pastor mantém sua fé convertendo os outros, enquanto o pajé não sairia da aldeia para propagar a crença no deus do rio. O cristianismo, pretendendo-se universal e sendo essencialmente missionário, precisava de um deus que consolasse os que seriam derrotados e convertidos.
O que é trazido pelo pastor não é menos bizarro do que as antigas crenças. A existência do espírito do rio, de onde vêm os peixes que alimentam a aldeia, é mais provável que um Espírito Santo que viria encher apenas nosso coração.
Mas uma nova crença não ganha da antiga fazendo apelo à razão. As crenças (novas e antigas) proporcionam atalhos para dar sentido ao mundo. Elas servem para evitar a descoberta de que o mundo não tem sentido algum ou, no mínimo, para nos poupar os esforços que faríamos para encontrar, na nossa própria vida, uma migalha de sentido.
O pastor e o pajé não são diferentes: eles estão lá para compensar o medo e a preguiça da aldeia inteira. Seguindo as instruções deles, todos ganham o direito de não pensar.
Um exemplo. A serpente que te morde é o espírito de teu inimigo. Ou, então, a serpente é o Diabo. Tanto faz. O que importa é não pensar que a serpente é só um bicho assustado, que passava por aí e te picou: você vai morrer, e isso não faz sentido algum.
Acabo de ler “Seita”, de Paula Picarelli (Planeta), que talvez seja um romance ou talvez um relato documental (muito divertido, aliás) de como a narradora se envolveu no Portal da Divina Luz (centro de ayahuasca na São Paulo de hoje) a ponto de não saber mais se era dependente da droga ou se tinha se perdido num culto religioso.
De fato, o Portal tem tudo para ser um culto: campanhas de doações, grupos de estudo, anjos, rituais emprestados do psicodrama, segredos, hierarquias, doutrinas sobre extraterrestres e espíritos etc.
Mas o mais surpreendente e inquietante para mim, no livro de Picarelli, foi a docilidade dos personagens, a espécie de predisposição que faz com que eles sejam imediatamente seduzidos pela “espiritualidade” do Portal.
Eu pensava assim: o mundo perdeu seu encanto —não tem gnomos, não tem elfos, não tem demônios nem anjos, e é bem possível que não tenha Deus e que não haja além onde continuar vivendo depois da morte. É uma perda, mas, em compensação, não tem inquisidores, e somos mais livres para fazer o que outrora e alhures seria punido como pecado.
Pois é, estava errado: os vagos anseios espirituais dos anos 1970 estão vivos como nunca. A Era de Aquarius mal começou.

EX-PAJÉ - Luiz Bolognesi (menção especial no Festival de Berlim)
Um poderoso pajé passa a questionar sua fé depois do primeiro contato com brancos que julgam sua religião como demoníaca. No entanto, a missão evangelizadora comandada por pastor intolerante é posta em cheque quando a morte passa a rondar a aldeia e a sensibilidade do índio em relação aos espíritos da floresta mostra-se indispensável.

Luiz Bolognesi fala sobre intolerância religiosa contra índios


Luiz Bolognesi fala sobre o som de Ex-Pajé






Uma história sobre mecanismos de manipulação e algumas doses de ayahuasca
Sinopse de Seita:
Fui vítima de pelo menos duas ameaças de morte. Fico em dúvida do número exato, porque as ameaças eram disfarçadas de “lições e ensinamentos”. Numa dessas vezes, me disseram que o trabalho que estávamos fazendo era muito parecido ao realizado lá atrás, na Grécia Antiga. Naquele tempo, quem participasse de algo assim e saísse, ou contasse a alguém sobre o que era feito e discutido ali, era morto. Morto pelos deuses, pelas entidades enviadas por um deus... nesse caso, Dionísio. As pessoas acreditam em muitas ficções. Por que acreditam em umas e não em outras é uma coisa que me intriga muito. Mas de uma coisa eu tenho certeza: é mais fácil embarcar numa história mirabolante se você estiver sob o efeito de uma bebida alucinógena.

Eu era uma atriz promissora. Paula. Outra Paula, Paulinha. Meu livro é um relato – ficcional – de como me envolvi em um novo culto religioso, o Portal da Divina Luz. Posso dizer que as pessoas entram numa seita por várias razões. Mas todas saem pelos mesmos motivos.


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