segunda-feira, 23 de abril de 2018

Cuidado, que mancha - Luis Fernando Verissimo


“Cuidado, que mancha” era uma das três ou quatro frases mais usadas pela mãe da gente.
Mais do que “come tudo, que espinafre faz bem” e “não esquece de baixar a tampa”. Manchar uma camisa ou, crime ainda mais hediondo, uma camisa nova, era imperdoável. A reprimenda da mãe incluía uma lista de consequências do nosso desleixo, cada uma mais carregada de culpa. Uma camisa estragada, para sempre irrecuperável, horas gastas na escolha, compra, estocagem e manutenção da camisa jogadas fora.
Você não tinha noção do que provocara com seu comportamento desastrado. Horror, horror.
É verdade que o escândalo durava pouco. A camisa maculada nunca estava totalmente perdida, voltaria como pano de prato ou coisa parecida.
Mas nossa culpa não acabava. Vivíamos entre dois medos, o de manchar outra camisa – "Meu Deus, ele se sujou com caqui, mancha de caqui nunca sai!” – e o de ser obrigado a usar babador, como um bebê.
E o trauma permanece, até hoje. O medo da mancha. O terrível medo da mancha que nunca sai.
Tomemos o caso do deputado X. Um político importante, com uma carreira exemplar, mas que por esses dias começou a ter uma sensação estranha, a sensação de ter uma mancha na frente da sua camisa. A camisa podia estar coberta por paletó e gravata, ou por fraque e condecorações, e ele sentia a mancha no peito. E ouvia a voz da sua mãe dizendo “Menino porcalhão!”.
O deputado X foi procurar um psicanalista e contou o que estava lhe acontecendo.
– Acho que tem a ver com a mãe, doutor.
– Tudo tem a ver com a mãe.
– Ela me criticava muito porque eu sujava a frente da camisa, quando comia.
– “Cuidado, que mancha”. Conheço bem. – A sua mãe dizia a mesma coisa, doutor?
– Oitenta por cento da minha clientela é de traumatizados por essa frase.
– E o que provoca essa sensação de culpa, doutor?
– Você deve ter feito alguma coisa que, inconscientemente, lhe deu culpa. Algo que manchou sua vida. A voz que você ouve é a da sua mãe, repreendendo-o através dos tempos.
– Mas eu não fiz nada para me sentir culpado. – Tem certeza? – Bom, eu estava em Brasília na semana passada e votei pelo... Hum, deve ter sido isso. Essa mancha sai, doutor?
– Sai, sai. No Brasil, nenhuma culpa dura muito.

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