sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Contardo Calligaris

Estupros, assédios, investidas e paqueras

Mariza Dias/ Editoria de Arte/Folhapress




Esta é só uma contribuição à discussão entre as mulheres de #MeToo e as mulheres (francesas e não) para quem investidas e paqueras, por desagradáveis que sejam, devem ser preservadas, sem confundi-las com assédios ou estupros.

Não há como diferenciar estupros, assédios, investidas e paqueras catalogando vários comportamentos. No primeiro ano de ensino médio, minha classe aturou um camarada que, sentado na última fileira, mostrava e masturbava seu pênis, gozando duas ou três vezes por dia. Talvez o espetáculo fosse "engraçado" para algumas e alguns, mas era traumático para outras e outros. Ainda hoje, não sei se, para mim, a experiência foi só risível.

No outro extremo do leque, uma mão que se pousa carinhosamente sobre um braço pode valer como verdadeira chicotada moral (basta que seja a mão abusiva de um superior, tio, padrasto). Tentemos, então, diferenciar abusos, paqueras etc. do lado dos perpetradores.

A bibliografia sobre a psicologia do estuprador é contraditória, mas um primeiro fato é indiscutível: o verdadeiro estuprador não age por excesso de desejo ou por frustração ("a quero tanto que não me aguento").

Estuprador propriamente é quem não está atrás de sexo ou atrás daquela mulher que deseja. O estuprador gosta da própria violência que ele exerce sobre sua vítima. O gozo do meu camarada do ensino médio era o nosso constrangimento, e só.

Poucos são estupradores nesse sentido restrito, mas muitos homens são capazes de violência sexual, assédio etc. No que esses seriam diferentes dos estupradores?

Com um pletismógrafo (instrumento que mede variações de volume no pênis), a pesquisa clássica de Barbaree & Marshall, "Journal of Consulting and Clinical Psychology", 59 (5), 621-630 (Revista de Consultoria e Psicologia Clínica), mostrou que, na ampla maioria dos homens, a visão de cenas de violência sexual corta o embalo pela metade.

A mesma experiência entre estupradores condenados descobriu que as cenas de violência sexual só excitavam 10% dos detentos.

Convenhamos, então: há uma minoria, inclusive de estupradores condenados, que gozam da própria violência de seus atos.

E os outros? A perspectiva desses é seu prazer sexual e ainda mais, paradoxalmente, o das mulheres que violentam. Esses (que são a maioria) são pedagogos de araque: imaginam que vão forçar a vítima a se dar conta de que, contrariamente ao que ela grita, ela "adora" aquilo (a violência que lhe é imposta).

Antes de ser violentos, são idiotas e convencidos de seu extraordinário poder de seduzir uma mulher, inclusive à força –"à força", no caso, significa, contra as resistências que ela mostra e das quais ela será grata de ser liberada. Essa convicção está na maioria dos homens por causa de suas mães –dica para as mães que queiram diminuir a idiotice masculina: parem de se extasiar com tudo que seus meninos fazem.

Nas pesquisas de um volume também clássico, Prenky e Vernon ed., "Human Sexual Aggression: Current Perspectives", "Annals of the New York Academy of Sciences", 1998 (Agressão Sexual Humana: Perspectivas Atuais, Anais da Academia de Ciências de Nova York) aparecia que 25% dos estupradores eram presos porque, após o estupro, tentavam se relacionar sentimentalmente com as vítimas, convencidos de que elas os amariam justamente por ter descoberto sei lá o quê graças a eles.

Ou seja, poucos homens são estupradores no sentido que gozam de sua própria violência. Mas muitos podem estuprar por idiotice –porque acham que a mulher vai gostar.

Em suma, os homens podem ser estupradores ou idiotas. Os idiotas também podem estuprar, mas não por gosto: eles acreditam que a mulher precisa dessa "força" para descobrir enfim o que ela sempre quis.

Entendo a irritação de muitas mulheres com a carta das francesas em defesa da paquera e da investida: há uma boa chance de que esse discurso mantenha a maioria dos homens na sua perigosa idiotice.

Agora, se você acha que essa história toda é picuinha, reconsidere. O patriarcado, a falta de paridade, a idiotice das investidas e a brutalidade dos estupros são apenas sintomas: a doença é que nossa cultura, há 3.000 anos (desde as histórias de Eva e de Pandora), é fundada no ódio à mulher, como encarnação do mal e voz tentadora do demônio.

Se isso mudasse, seria uma transformação cultural como nenhuma outra que vi. E uma que adoraria ver.

O ódio pelas mulheres

Mariza Dias/ Editoria de Arte/Folhapress


Concluindo a coluna da semana passada, lembrei que nossa cultura, há 3.000 anos, é fundada no ódio pela mulher como encarnação do mal e voz tentadora do demônio. Ou seja, a misoginia (o ódio pelas mulheres) está no centro de nossa cultura. Tomás C. de Arruda e outros leitores sugeriram que eu continuasse o tema.
O único livro que eu conheço sobre a misoginia de nossa cultura é o excelente "Misogyny - The World's Oldest Prejudice" (misoginia, o preconceito mais antigo do mundo), de Jack Holland (Robinson, 2006).
Holland constata: "O mito da criação como é contado no Gênesis está agora no centro das crenças de 2 bilhões de cristãos em 260 países –ou seja, um terço da população do mundo herdou um mito que culpa as mulheres pelos males e os sofrimentos dos homens" (p. 68).
E, Holland observa, a figura de Eva, cúmplice da serpente e tentadora de Adão (que se perde por causa dela), não é uma exclusividade judeu-cristã: Pandora, a primeira mulher mortal da mitologia grega, também não respeita uma proibição divina e é causa de todos os males entre os homens.
Começa assim uma espécie de paranoia que está no senso comum: precisamos perseguir as mulheres para puni-las (por causa delas fomos expulsos do paraíso) e porque elas são as tentadoras –representantes do demônio e do mal.
Cuidado, qualquer tentador seria inócuo se ele nos propusesse pecados que não nos interessam: ele só deve ser perseguido porque ele nos tenta com nosso próprio desejo.
Holland reconstitui os últimos 3.000 anos de misoginia, mostrando que a caça às bruxas não é fenômeno que durou do século 15 ao 18 e matou 60 mil mulheres: a caça às bruxas é constante na história. Mas por que inventamos mitos originários geradores de tamanho ódio?
A hipótese de Holland é notável. O ódio pela mulher e a vontade de dominá-la nasceriam da diferença que separa os humanos dos outros mamíferos: nas fêmeas humanas, a ovulação é escondida.
Holland, citando Jared Diamond, lembra que, até 1930, mal se sabia em que momento a mulher era fecunda –os machos de outros mamíferos sabem instintivamente quando a fêmea é fértil e, por sorte deles, é bem quando ela está no cio.
As mulheres, com a ovulação escondida, são livres da compulsão (ou da obrigação) de estarem automaticamente disponíveis para a reprodução na hora em que são férteis. Elas ganham assim o poder de escolher os parceiros que preferem.
Ao homem resta a árdua tarefa de se propor e de decifrar se a mulher está ou não disposta a aceitar suas investidas. Nessa tarefa, os homens tentam influenciar as escolhas femininas: arte, cultura, guerra, procura de riquezas e poder, até a própria linguagem, podem ter surgido na tentativa de os homens agradarem uma ou mais mulheres.
Mas, ao mesmo tempo, os homens parecem não ter nunca desistido de acabar com a liberdade feminina de escolher os parceiros sexuais (e se deitar com eles).
Breve parênteses. Há uma excelente razão para sugerir um pouco de decência e silêncio aos homens que opinam a favor da criminalização do aborto: faz 3.000 anos (no mínimo) que os homens da nossa cultura estão inevitavelmente envolvidos no projeto de acabar com o desejo feminino e sua liberdade –eles esperam que as mulheres "voltem" à compulsão do cio, em que a reprodução seria o único horizonte da sexualidade feminina. Não seria sensato imaginar que um homem possa julgar em matéria de aborto sem seguir, querendo ou não, o declive natural da cultura ocidental.
Na nossa cultura, a mulher, em suma, seria odiada por excitar um desejo ao qual ela pode se recusar –ela é o alvo do desejo masculino e também ela decide se esse desejo será frustrado ou satisfeito.
O cristianismo, a partir de seus primeiros séculos (São Paulo, Tertuliano, Agostinho –nada a ver com Cristo), decretou que o prazer era um pecado e os desejos carnais deveriam ser reprimidos. A frustração produzida pela eventual recusa feminina foi assim substituída por uma combinação de repressão de nosso próprio desejo e ódio pela mulher, herdeira de Eva, que nos tenta e, ainda por cima, nos regula.
Com esse passe de mágica, as mulheres se tornaram (e continuam sendo) representantes de nossos desejos reprimidos. Quem gosta de se reprimir pode assim odiá-las como ele odeia seu próprio desejo.

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