sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Calor? / É o Calor - Luis Fernando Verissimo

Calor
Calor, hein?”
Ou, opcional:
“E esse calor?”
Respostas padrões:
“Nem me fale.”
“Putz!”
“O Senegal é aqui.”
“E a sensação térmica?”
“Você sabe o que é, não sabe? Aquecimento global. Só pode ser. E só vai piorar”.
“Tá brabo!”
“Estou tomando três banhos frios por dia e não adianta.”
“Olha como eu estou suando. Pega aqui a minha camisa. Não, só pega.”
“País tropical, meu filho. País tropical.”
“Dizem que tem um país europeu que quando sopra um determinado vento as pessoas ficam tão irritadas, tão irritadas que, se cometerem um crime, como matar alguém, ou sair pela rua chutando cachorros, crianças e velhinhos e quebrando tudo, são automaticamente perdoadas, porque a culpa é do vento. Um calor como este também deveria ser atenuante para qualquer crime. Mas com um calor como este quem tem energia para praticar crimes?”
“Haja chope.”
“Tá brincando? Meu ar condicionado fugiu pro Caribe.”
“Vamos todos derreter”. “Sabe o que eu sinto quando vejo fritarem um ovo no asfalto para mostrar como está quente? Inveja. Penso: pelo menos pro ovo foi rápido...”.
Agora, todos juntos (ou pelo menos os mais de 60):
“Alá-la-ô, ooô, ooô
Mas que calô, ooô, ooô.”
Sim, a sensação é a de atravessar o deserto de Saara, com o sol forte queimando a nossa cara, como na marchinha de Carnaval. Pouca água e nenhuma sombra à vista. A noite ainda custará a chegar com o seu frio envigorante. Talvez nunca chegue, talvez estejamos condenados a um dia de calor eterno.
E os camelos nos olham com seu ar superior e a empáfia de séculos. Viemos do Egito, onde ao menos havia primavera, e não foram poucas as vezes em que no caminho rogamos a Alá, nosso bom Alá: mande água pra iaiá. Sim, mande água pra ioiô,ooô. Mas antes de mais nada mande água, com ou sem gás, e se possível gelo, para nós, neste deserto. Um oásis, Alá. Pode ser de uma palmeira só. Serve até uma miragem, se houver sombra. Salve-nos da sensação térmica, Alá-la-ô.
Ooô, ooô!



É o calor
Pode acontecer. A moça do tempo na TV entra no bar com um grupo de amigos. É recebida com óbvio desconforto pelos frequentadores do bar. Ouve-se um zum-zum-zum de desaprovação à sua presença. O grupo da moça ocupa uma mesa. Depois de algum tempo, um homem da mesa ao lado não se contem e pergunta:
– Você não é a moça do tempo, na TV?
A moça diz que é, sorrindo, mas o homem não sorri. Pergunta:
– Até quando vai esse calor?
– Pois é – diz a moça, ainda sorrindo. – Está difícil de prever. Tem uma zona de pressão na...
– Não – interrompe o homem – não me venha com zona de pressão. Chega de enrolação.
Uma mulher de outra mesa se manifesta:
– Há dias que você põe a culpa pelo calor nessa zona de pressão. E não toma providências.
– Minha senhora, eu...
Outros começam a gritar.
– Sensação térmica de 51 graus. Onde já se viu isso?
– Não dá mais para aguentar!
– Faça alguma coisa!
A moça do tempo na TV agora está em pânico.
– O que eu posso fazer? Eu só descrevo o tempo. Não tenho o poder de...
– Alguém tem que assumir a culpa, minha filha! Sensação térmica de 51 graus, alguém tem que ser responsável.
– A culpa é da Natureza!
– Rá. Natureza. Muito bonito. Muito conveniente. É como culpar a corrupção na índole do brasileiro. Aqui ninguém tem culpa de ser corrupto, é a índole. A índole do tempo, num país tropical, é essa. E quem pode reclamar da índole? Ou da Natureza? De você nós podemos reclamar, querida.
– Mas a culpa não é minha!
– Estamos cansados do seu distanciamento enquanto mostra no mapa que o calor só vai aumentar. Seu ar superior, como se não tivesse nada a ver com aquilo. Chega!
A mesa da moça do tempo na TV está cercada. Caras raivosas. Ameaça de violência. A moça do tempo na TV se ergue e grita:
– Está bem! Está bem! Amanhã eu faço chegar uma frente fria. Eu prometo!
As pessoas se acalmam. Todos voltam para as suas mesas. O garçom vem tirar o pedido do grupo da moça do tempo na TV e tenta explicar:
– É o calor... O pessoal fica meio louco.

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