sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Meninas - Fernanda Torres

Marta Mello/Editoria de Arte/Folhapress




Foi na capa de uma revista "Time" de 1985 que vi, pela primeira vez, uma foto ampliada do vírus da Aids. Tratava-se do anúncio oficial de uma peste que mudaria o comportamento da humanidade pelas próximas décadas.
Para uma garota recém chegada à maioridade, a notícia pesou como um #whynow?, com sérias chances de se transformar num #whyme?
A orgia libertária, vivida pelos que tiveram a sorte de terem sido jovens antes de mim, terminava ali, naquela manchete hedionda. Tudo o que os Dzi e a Leila conquistaram, Sônia e Gal experimentaram, tudo o que pregavam as divas da nouvelle vague foi temperado com o sabor de perigo e medo.
Vi muita gente morrer e adoecer.
Foi foda.
O risco de contaminação do que começou com a pecha de praga gay, logo se confirmou entre heterossexuais. A penetração, o falo, o sangue, o sêmen, o macho, enfim, tornou-se sinônimo de contágio.
Dentre todas as formas de amar, apenas uma resistiu ilesa, como símbolo de pureza e segurança: a do sexo entre mulheres.
Bem menos disseminada do que a homossexualidade masculina, a relação afetiva entre moçoilas foi, pouco a pouco, tornando-se aceita, e até desejada, por aquelas que atingiam a puberdade.
Nos meus tempos de ginásio e científico –olha como eu sou passada– o namoro entre meninas era algo raro, quase inexistente. Mas ele viria a se tornar costume nas gerações subsequentes, que passaram a praticar a fluidez de gêneros no recreio, sem o peso de uma opção sexual definida.
Eu suspeito que muito do conceito de sororidade tenha vindo daí, da canonização pós-Aids do afeto entre moças. De meninas que desenvolveram, na parceria entre iguais, um campo a salvo, independente da aprovação masculina.
A luta pela equiparação de salários, pela legalização do aborto e a condenação do estupro sempre existiram, mas a militância feminista do terceiro milênio é muito mais calcada na solidariedade do que na liberdade sexual que vigorava outrora.
Daí o estranhamento das francesas influentes do "Le Monde", na sua maioria senhoras maduras, que não se reconhecem no repúdio a toda e qualquer forma de assédio e veem traços de puritanismo no #MeToo das americanas.
Num mundo onde imperavam machos alfa como Millôr Fernandes, autor da máxima "o melhor movimento feminista ainda é o dos quadris", musas do calibre de Catherine Deneuve fizeram da sedução uma arma, pleiteando liberdade igual à dos ex-senhores.
Estamos mais puritanos, é vero, não há como negar.
Os meus 52 anos me situam a meio caminho entre as senhoras sexy de 70 e 80, e as garotas pans de 20 e 30. Compreendo o desconforto de Deneuve, pois cresci numa sociedade herdada dela.
Mas, depois de levar uma ou outra surra de consciência e de ver o tarado destruidor de carreiras, Harvey Weinstein, ser afastado do trono em Hollywood, percebo que não se pode desmerecer o caráter solidário do "mexeu com uma, mexeu com todas" global.
Como não suporto mais explicar as mudanças do mundo através do advento das redes sociais, deixo aqui esse palpite: o de que a Aids ajudou a tirar as meninas do closet, santificou suas relações, criou laços de companheirismo, diminuiu a competição e a necessidade de atenção masculina.
Um processo lento que terminou por desembocar num movimento político que pretende agir para além dos grupos de exceção.

Contardo Calligaris

Estupros, assédios, investidas e paqueras

Mariza Dias/ Editoria de Arte/Folhapress




Esta é só uma contribuição à discussão entre as mulheres de #MeToo e as mulheres (francesas e não) para quem investidas e paqueras, por desagradáveis que sejam, devem ser preservadas, sem confundi-las com assédios ou estupros.

Não há como diferenciar estupros, assédios, investidas e paqueras catalogando vários comportamentos. No primeiro ano de ensino médio, minha classe aturou um camarada que, sentado na última fileira, mostrava e masturbava seu pênis, gozando duas ou três vezes por dia. Talvez o espetáculo fosse "engraçado" para algumas e alguns, mas era traumático para outras e outros. Ainda hoje, não sei se, para mim, a experiência foi só risível.

No outro extremo do leque, uma mão que se pousa carinhosamente sobre um braço pode valer como verdadeira chicotada moral (basta que seja a mão abusiva de um superior, tio, padrasto). Tentemos, então, diferenciar abusos, paqueras etc. do lado dos perpetradores.

A bibliografia sobre a psicologia do estuprador é contraditória, mas um primeiro fato é indiscutível: o verdadeiro estuprador não age por excesso de desejo ou por frustração ("a quero tanto que não me aguento").

Estuprador propriamente é quem não está atrás de sexo ou atrás daquela mulher que deseja. O estuprador gosta da própria violência que ele exerce sobre sua vítima. O gozo do meu camarada do ensino médio era o nosso constrangimento, e só.

Poucos são estupradores nesse sentido restrito, mas muitos homens são capazes de violência sexual, assédio etc. No que esses seriam diferentes dos estupradores?

Com um pletismógrafo (instrumento que mede variações de volume no pênis), a pesquisa clássica de Barbaree & Marshall, "Journal of Consulting and Clinical Psychology", 59 (5), 621-630 (Revista de Consultoria e Psicologia Clínica), mostrou que, na ampla maioria dos homens, a visão de cenas de violência sexual corta o embalo pela metade.

A mesma experiência entre estupradores condenados descobriu que as cenas de violência sexual só excitavam 10% dos detentos.

Convenhamos, então: há uma minoria, inclusive de estupradores condenados, que gozam da própria violência de seus atos.

E os outros? A perspectiva desses é seu prazer sexual e ainda mais, paradoxalmente, o das mulheres que violentam. Esses (que são a maioria) são pedagogos de araque: imaginam que vão forçar a vítima a se dar conta de que, contrariamente ao que ela grita, ela "adora" aquilo (a violência que lhe é imposta).

Antes de ser violentos, são idiotas e convencidos de seu extraordinário poder de seduzir uma mulher, inclusive à força –"à força", no caso, significa, contra as resistências que ela mostra e das quais ela será grata de ser liberada. Essa convicção está na maioria dos homens por causa de suas mães –dica para as mães que queiram diminuir a idiotice masculina: parem de se extasiar com tudo que seus meninos fazem.

Nas pesquisas de um volume também clássico, Prenky e Vernon ed., "Human Sexual Aggression: Current Perspectives", "Annals of the New York Academy of Sciences", 1998 (Agressão Sexual Humana: Perspectivas Atuais, Anais da Academia de Ciências de Nova York) aparecia que 25% dos estupradores eram presos porque, após o estupro, tentavam se relacionar sentimentalmente com as vítimas, convencidos de que elas os amariam justamente por ter descoberto sei lá o quê graças a eles.

Ou seja, poucos homens são estupradores no sentido que gozam de sua própria violência. Mas muitos podem estuprar por idiotice –porque acham que a mulher vai gostar.

Em suma, os homens podem ser estupradores ou idiotas. Os idiotas também podem estuprar, mas não por gosto: eles acreditam que a mulher precisa dessa "força" para descobrir enfim o que ela sempre quis.

Entendo a irritação de muitas mulheres com a carta das francesas em defesa da paquera e da investida: há uma boa chance de que esse discurso mantenha a maioria dos homens na sua perigosa idiotice.

Agora, se você acha que essa história toda é picuinha, reconsidere. O patriarcado, a falta de paridade, a idiotice das investidas e a brutalidade dos estupros são apenas sintomas: a doença é que nossa cultura, há 3.000 anos (desde as histórias de Eva e de Pandora), é fundada no ódio à mulher, como encarnação do mal e voz tentadora do demônio.

Se isso mudasse, seria uma transformação cultural como nenhuma outra que vi. E uma que adoraria ver.

O ódio pelas mulheres

Mariza Dias/ Editoria de Arte/Folhapress


Concluindo a coluna da semana passada, lembrei que nossa cultura, há 3.000 anos, é fundada no ódio pela mulher como encarnação do mal e voz tentadora do demônio. Ou seja, a misoginia (o ódio pelas mulheres) está no centro de nossa cultura. Tomás C. de Arruda e outros leitores sugeriram que eu continuasse o tema.
O único livro que eu conheço sobre a misoginia de nossa cultura é o excelente "Misogyny - The World's Oldest Prejudice" (misoginia, o preconceito mais antigo do mundo), de Jack Holland (Robinson, 2006).
Holland constata: "O mito da criação como é contado no Gênesis está agora no centro das crenças de 2 bilhões de cristãos em 260 países –ou seja, um terço da população do mundo herdou um mito que culpa as mulheres pelos males e os sofrimentos dos homens" (p. 68).
E, Holland observa, a figura de Eva, cúmplice da serpente e tentadora de Adão (que se perde por causa dela), não é uma exclusividade judeu-cristã: Pandora, a primeira mulher mortal da mitologia grega, também não respeita uma proibição divina e é causa de todos os males entre os homens.
Começa assim uma espécie de paranoia que está no senso comum: precisamos perseguir as mulheres para puni-las (por causa delas fomos expulsos do paraíso) e porque elas são as tentadoras –representantes do demônio e do mal.
Cuidado, qualquer tentador seria inócuo se ele nos propusesse pecados que não nos interessam: ele só deve ser perseguido porque ele nos tenta com nosso próprio desejo.
Holland reconstitui os últimos 3.000 anos de misoginia, mostrando que a caça às bruxas não é fenômeno que durou do século 15 ao 18 e matou 60 mil mulheres: a caça às bruxas é constante na história. Mas por que inventamos mitos originários geradores de tamanho ódio?
A hipótese de Holland é notável. O ódio pela mulher e a vontade de dominá-la nasceriam da diferença que separa os humanos dos outros mamíferos: nas fêmeas humanas, a ovulação é escondida.
Holland, citando Jared Diamond, lembra que, até 1930, mal se sabia em que momento a mulher era fecunda –os machos de outros mamíferos sabem instintivamente quando a fêmea é fértil e, por sorte deles, é bem quando ela está no cio.
As mulheres, com a ovulação escondida, são livres da compulsão (ou da obrigação) de estarem automaticamente disponíveis para a reprodução na hora em que são férteis. Elas ganham assim o poder de escolher os parceiros que preferem.
Ao homem resta a árdua tarefa de se propor e de decifrar se a mulher está ou não disposta a aceitar suas investidas. Nessa tarefa, os homens tentam influenciar as escolhas femininas: arte, cultura, guerra, procura de riquezas e poder, até a própria linguagem, podem ter surgido na tentativa de os homens agradarem uma ou mais mulheres.
Mas, ao mesmo tempo, os homens parecem não ter nunca desistido de acabar com a liberdade feminina de escolher os parceiros sexuais (e se deitar com eles).
Breve parênteses. Há uma excelente razão para sugerir um pouco de decência e silêncio aos homens que opinam a favor da criminalização do aborto: faz 3.000 anos (no mínimo) que os homens da nossa cultura estão inevitavelmente envolvidos no projeto de acabar com o desejo feminino e sua liberdade –eles esperam que as mulheres "voltem" à compulsão do cio, em que a reprodução seria o único horizonte da sexualidade feminina. Não seria sensato imaginar que um homem possa julgar em matéria de aborto sem seguir, querendo ou não, o declive natural da cultura ocidental.
Na nossa cultura, a mulher, em suma, seria odiada por excitar um desejo ao qual ela pode se recusar –ela é o alvo do desejo masculino e também ela decide se esse desejo será frustrado ou satisfeito.
O cristianismo, a partir de seus primeiros séculos (São Paulo, Tertuliano, Agostinho –nada a ver com Cristo), decretou que o prazer era um pecado e os desejos carnais deveriam ser reprimidos. A frustração produzida pela eventual recusa feminina foi assim substituída por uma combinação de repressão de nosso próprio desejo e ódio pela mulher, herdeira de Eva, que nos tenta e, ainda por cima, nos regula.
Com esse passe de mágica, as mulheres se tornaram (e continuam sendo) representantes de nossos desejos reprimidos. Quem gosta de se reprimir pode assim odiá-las como ele odeia seu próprio desejo.

Calor? / É o Calor - Luis Fernando Verissimo

Calor
Calor, hein?”
Ou, opcional:
“E esse calor?”
Respostas padrões:
“Nem me fale.”
“Putz!”
“O Senegal é aqui.”
“E a sensação térmica?”
“Você sabe o que é, não sabe? Aquecimento global. Só pode ser. E só vai piorar”.
“Tá brabo!”
“Estou tomando três banhos frios por dia e não adianta.”
“Olha como eu estou suando. Pega aqui a minha camisa. Não, só pega.”
“País tropical, meu filho. País tropical.”
“Dizem que tem um país europeu que quando sopra um determinado vento as pessoas ficam tão irritadas, tão irritadas que, se cometerem um crime, como matar alguém, ou sair pela rua chutando cachorros, crianças e velhinhos e quebrando tudo, são automaticamente perdoadas, porque a culpa é do vento. Um calor como este também deveria ser atenuante para qualquer crime. Mas com um calor como este quem tem energia para praticar crimes?”
“Haja chope.”
“Tá brincando? Meu ar condicionado fugiu pro Caribe.”
“Vamos todos derreter”. “Sabe o que eu sinto quando vejo fritarem um ovo no asfalto para mostrar como está quente? Inveja. Penso: pelo menos pro ovo foi rápido...”.
Agora, todos juntos (ou pelo menos os mais de 60):
“Alá-la-ô, ooô, ooô
Mas que calô, ooô, ooô.”
Sim, a sensação é a de atravessar o deserto de Saara, com o sol forte queimando a nossa cara, como na marchinha de Carnaval. Pouca água e nenhuma sombra à vista. A noite ainda custará a chegar com o seu frio envigorante. Talvez nunca chegue, talvez estejamos condenados a um dia de calor eterno.
E os camelos nos olham com seu ar superior e a empáfia de séculos. Viemos do Egito, onde ao menos havia primavera, e não foram poucas as vezes em que no caminho rogamos a Alá, nosso bom Alá: mande água pra iaiá. Sim, mande água pra ioiô,ooô. Mas antes de mais nada mande água, com ou sem gás, e se possível gelo, para nós, neste deserto. Um oásis, Alá. Pode ser de uma palmeira só. Serve até uma miragem, se houver sombra. Salve-nos da sensação térmica, Alá-la-ô.
Ooô, ooô!



É o calor
Pode acontecer. A moça do tempo na TV entra no bar com um grupo de amigos. É recebida com óbvio desconforto pelos frequentadores do bar. Ouve-se um zum-zum-zum de desaprovação à sua presença. O grupo da moça ocupa uma mesa. Depois de algum tempo, um homem da mesa ao lado não se contem e pergunta:
– Você não é a moça do tempo, na TV?
A moça diz que é, sorrindo, mas o homem não sorri. Pergunta:
– Até quando vai esse calor?
– Pois é – diz a moça, ainda sorrindo. – Está difícil de prever. Tem uma zona de pressão na...
– Não – interrompe o homem – não me venha com zona de pressão. Chega de enrolação.
Uma mulher de outra mesa se manifesta:
– Há dias que você põe a culpa pelo calor nessa zona de pressão. E não toma providências.
– Minha senhora, eu...
Outros começam a gritar.
– Sensação térmica de 51 graus. Onde já se viu isso?
– Não dá mais para aguentar!
– Faça alguma coisa!
A moça do tempo na TV agora está em pânico.
– O que eu posso fazer? Eu só descrevo o tempo. Não tenho o poder de...
– Alguém tem que assumir a culpa, minha filha! Sensação térmica de 51 graus, alguém tem que ser responsável.
– A culpa é da Natureza!
– Rá. Natureza. Muito bonito. Muito conveniente. É como culpar a corrupção na índole do brasileiro. Aqui ninguém tem culpa de ser corrupto, é a índole. A índole do tempo, num país tropical, é essa. E quem pode reclamar da índole? Ou da Natureza? De você nós podemos reclamar, querida.
– Mas a culpa não é minha!
– Estamos cansados do seu distanciamento enquanto mostra no mapa que o calor só vai aumentar. Seu ar superior, como se não tivesse nada a ver com aquilo. Chega!
A mesa da moça do tempo na TV está cercada. Caras raivosas. Ameaça de violência. A moça do tempo na TV se ergue e grita:
– Está bem! Está bem! Amanhã eu faço chegar uma frente fria. Eu prometo!
As pessoas se acalmam. Todos voltam para as suas mesas. O garçom vem tirar o pedido do grupo da moça do tempo na TV e tenta explicar:
– É o calor... O pessoal fica meio louco.

Lembrar de esquecer - Gregorio Duvivier

Acontece todo dia. Desço para a portaria e, habituado a esquecer as chaves em casa, subo para buscá-las. Só depois de subir e não encontrá-las percebo que já estavam no meu bolso –milagrosamente, não as tinha esquecido.
Saindo novamente de casa me deparo com a mochila que, essa sim, tinha sido esquecida –tinha esquecido de me perguntar se a estava esquecendo. "Menos mal", penso, "não subi pra nada".
Desço com a mochila nas mãos e ao chegar no carro, apalpo meu bolso e percebo que deixei as chaves em casa, quando peguei a mochila. Subo para buscar as chaves e percebo que não as tinha deixado no sofá.
Estavam no bolso da mochila, o tempo todo.
Saio de casa atrasadíssimo, até perceber, no meio do caminho, que estou sem celular. É só no meio do dia, na hora de pagar o almoço, que percebo que estava, esse tempo todo, sem carteira.
O leitor maldoso –redundância– dirá que a culpa é da maconha –a maconha, leitor maldoso, certamente não ajuda. Mas não me conheceste, leitor maldoso, aos nove anos de idade. O armário de achados e perdidos da escola era uma espécie de locker particular no qual poderiam botar uma placa: "coisas do Gregorio". Quando precisava de algo, bastava dar uma passada lá: "Tem alguma tesoura minha por aí?". Sempre tinha.
A solução era enganar o esquecimento. Percebi que esquecer a mochila na escola era a única maneira de ter certeza de que ela estaria lá no dia seguinte. O problema era lembrar de esquecê-la. Quase sempre, esquecia de olvidá-la e acabava voltando para casa com ela. No dia seguinte, invariavelmente, não me lembrava de lembrá-la.
Talvez tenha algum traço genético envolvido no esquecimento crônico. Dia sim dia não, meus pais me esqueciam na escola. Cansei de ver os amigos indo embora, os professores, os funcionários. Ficávamos eu e o vigia, enternecido, vendo a noite cair. Sentia na pele o que era ser uma mochila minha. Será que aquilo era um castigo divino orquestrado pelos meus pertences, sempre relegados ao esquecimento? Prometia ter mais cuidado com meus objetos. Não cumpria.
O lado bom disso tudo: fui assaltado e roubaram minha mochila. Num primeiro momento, me desesperei porque tinha tudo lá dentro: carteira, chaves, documentos. Volto para casa e percebo que a mochila devia estar vazia. Tinha esquecido tudo isso em casa.

Colecionadores - Jaime Cimenti

Muita gente coleciona muita coisa. No fundo, acham que, guardando pessoas, dinheiro, carros antigos, diplomas, latas de cerveja, selos, rótulos, quadros, esculturas, sonhos, filhos, amantes, livros, medalhas, títulos, imóveis, navios, condecorações, pregos, antiguidades, dívidas, xícaras de café, galinhas de porcelana e CDs do Roberto Carlos ou dos Beatles, eles, colecionadores, não vão morrer. Doce ilusão. Depois desse jogo rápido de xadrez aqui no planeta, reis, rainhas, cavalos, bispos, torres e peões vão todos para a mesma caixa.
Nem os muito vivos são imortais. Esses dias, vi no jornal que o Jian Yang, 33 anos, que trabalha em Cingapura numa empresa de comunicação, coleciona bonecas Barbie desde os 5 anos de idade. Ele tem 9 mil Barbies e quer mais. Quando ele se apaixonou pela loira, vendo um comercial, não sabia que existiam normas sociais para brinquedos de meninos e meninas. Cada um, cada um, né?
Não posso falar muito, tenho uns 15 ou 20 mil livros e a coleção aumenta, aumenta, mesmo depois de fazer doações. Sei de outros bibliófilos que têm milhares de exemplares, aqui mesmo em Porto Alegre. Não sou o único. Sei de uma senhora aqui da Capital que tem um apartamento cheio de elefantes. Imagino que todos com os bumbuns voltados para a porta, para dar sorte. Há quem colecione jornais velhos e revistas, tudo bem, mas tem umas pessoas que colecionam lixo dentro de casa e aí o buraco é mais embaixo.
Tem um conto famoso sobre um cara que colecionava filhos: legítimos, adulterinos, adotados, gêmeos, doentes e, por último, quis um filho póstumo e morreu antes do filho nascer... ou se suicidou, não lembro bem. Coleções, colecionadores, a coisa vai longe. Tento colecionar amigos e leitores. Nunca fiz a conta de quantos são. Melhor não contar. Pode não dar sorte. Pode dar...
Não uso aquela palavra de quatro letras. Bom, mas o melhor é não colecionar medos. Medo de altura, de amar, de se entregar, de ter filhos, de sair pra rua, de multidão, medo de ter medo, medo de ficar doente e, o pior de todos, o medo de morrer. Colecione aí o que achar bom: chácaras, caixas de fósforos, fotografias, máquinas de escrever e telefones velhos, corujas feitas de gesso, pano, madeira, pedra sabão, mármore, latão, bronze ou ouro.
Enfim, colecione, se ache imortal. De preferência, não colecione medos e conselhos gratuitos e inúteis. Colecione esperanças, sonhos, amores, amizades, desejos e o que você gosta mais. Colecione auroras, crepúsculos, luares, vinhos, pessoas, paisagens, palavras e momentos eternos.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Na Outra Noite no Meio-Fio - Ana Cristina Cesar




“The other night I had a dream that I
was sitting on the sidewalk on Moody
Street, Pawtucketville, Lowell, Mass.,
with a pencil and paper in my hand
saying to my self ‘Describe the
wrinkly tar of this side walk, also
the iron pickets of Textile Institute,
or the doorway where Lousy and you and
G.J.’s always sitting and don’t stop
to think of words when you do
stop, just stop to think of the
picture better – and let your mind off
yourself in this work.”
Jack Kerouac, Dr. Sax


Na outra noite sonhei que estava sentada no meio-fio com papel, lápis e assobios vazios me dizendo: “Você não é Jack Kerouac apesar das assombrações insistirem em passar nas bordas da cama exatamente como naquele tempo”. Eu era menina e já escrevia memórias, envelhecida. O tempo se fazia ao contrário. De noite não dormia enquanto meus olhos viam as luzes dos automóveis velozes no teto. Quando me virava de bruços vinha o diabo e me furava as costas com o punhal de prata. As mãos se interrompiam à meia-noite quando chegava o anjo mais escuro que o silêncio. Não havia mais sonho e eu e Jack brincávamos de paixão escondida. O caso rendia por cima dos balcões. Eu era rainha das cobras. Jack com sobrolho carregado e ar desentendido. Ninguém devia saber de nada, nem a gente. Eu era a freira de nariz arrebitado e boquinha vermelha. Jack doente e eu cuidava dele no hospital. Me dá a mão. Ângela, segura a minha mão, ele falava angustiado como se estivesse delirando. Eu segurava a mão dele porque era irmã Paula mas Ângela não me chamava. Ele torcia meus dedos e suava nos lençóis. Eu sentia um calor terrível, inquieta na cadeira branca de ferro coberta de hábitos pretos. O colarinho engomado pinicava. Com a outra mão eu pegava nos meus seios que não eram grandes como a angústia de Jack. Altas horas lá ia eu atender a luzinha vermelha do quarto que piscava. De manhã Jack partia para sempre e eu tinha calores na madrugada seguinte sem luzinha. Na confissão virava Jack sofrendo na enfermaria e chamava Ângela de olhos fechados. O confessor era careca e não dizia nada, suportava meus dedos retorcidos entre as grades. Sozinha imitava o jeito de Jack tirando livros da estante gravemente. Quando dava por mim estava amparando a cabeça para não cair de sono igual ele fazia depois de falar muito. Andava de perna meio aberta e batia a porta. O hábito ficava preso no vão; eu não saía do lugar.
Nessa época começaram os bombardeios. Tivemos que nos esconder todos dentro de um trem apagado no meio da floresta. Tinha mais gente que espaço e todos deitavam no chão meio embolados e tentavam descansar os peitos fatigados, os corações exaustos, os olhares carregados etc. Jack vigiava os céus de insônia por uma fresta no teto. Um homem gordo roncava aos meus pés. Ao lado dele uma mulher carnuda se remexia. Não deitei tensa de medo de fazer caridade pelos porcos. Jack barbado e cabeludo movia a cabeça de um lado para o outro. Quando as explosões recomeçavam Jack se atirava no chão e rolava por cima de seus protegidos até no meu cantinho acocorado. A rainha das cobras era cruel com olhos flamejantes. Capturava Jack na floresta e torturava com chicotes, embebia feridas com água e sal. Não pessoalmente, mas comandando soldados cabeçudos, barris de obediência. Na hora do aperto tinha de aguentar os cheiros de Jack colados no meu braço. Dava as costas e fingia que não sentia o aperto do perigo. Jack também me dava as costas e as explosões sacudiam as paredes do trem. Ninguém podia se mexer só se juntar mais e mais até os ossos estalarem, gemidos imperceptíveis. Jack me pegou desprevenida durante o descanso vespertino. Subiu nas minhas costas e desceu a boca nas dobras grudentas do pescoço. Não mexi e deixei que os dentes trincassem preso o corpo todo. As mãos de Jack parece que entenderam e vieram muito por cima pros meus peitos. As pernas de Jack entenderam e mudas deram voo rasante pelas minhas. Meus dentes seguraram: não me movi pela tesoura. Jack entendeu e não passou de mariposa. Rasteiro se afastou e era como se tivéssemos dormido a noite inteira sem reparos.
Finalmente a mulher carnuda acordou, superiora, madre, dona dos soldados, dona da pensão. Quando Jack subia nas costas dela não se dormia mais no casarão, no trem, no hospital. Fiquei à escuta, tentei brincar de acordar sozinha, chamei Ângela cortante, às tesouradas, touradas, trovoadas de verão, punhal de prata. De fato recebi visitas discretas da nova enfermeira de plantão, enfermeira de enfermeiras que contraíam a peste que curavam. Ainda toda ouvidos só de insônias povoadas. Jack no coro franzia a cara e só eu percebia na plateia; mas não mudo, não falo, não mexo. Tinha suor, não tinha palmas.


O Feio - Antonio Prata


Era uma vez um coelhinho criado por uma família de cangurus. Os cangurus cresciam, o coelhinho não, e por isso o apelidaram de Canguruzinho Feio e passaram a chamá-lo de pulga, pula-migalha, salta-formiga e todas essas coisas ofensivas que os cangurus altos reservam para os cangurus baixinhos. Um dia, porém, toda a família de cangurus foi passear em Adelaide.
E era páscoa. E o Canguruzinho Feio descobriu, maravilhado, que não era um Canguruzinho Feio, mas um belo coelho, animal fantástico, capaz de pôr ovos coloridos de chocolate e, por esta razão, merecer dos humanos um tratamento de semideus. De início, os cangurus o olharam com toda a admiração, até que um deles – não muito alto, por sinal – provocou: “Ah, é, bonitão? Bota um ovo de chocolate aí, então, pra gente ver!”.
O coelho se agachou, fechou os olhos, mentalizou um ovo de 500 g da Lindt, fez toda a força de que seu pequeno esfíncter era capaz, mas o resultado foi apenas uma bolinha de cocô. Os cangurus explodiram numa gargalhada. O coelho ainda apertou o cocozinho com a ponta da unha e uma ponta de esperança: vai que era um MM marrom? Não era.
Morto de vergonha, o Canguruzinho Feio abandonou a família e passou a viver mendigão pelas ruas de Adelaide.
Era uma vez uma lesma criada por uma família de minhocas. As minhocas pararam de crescer, mas a lesma seguia inchando, por isso a apelidaram de Minhocona Feia e passaram a chamá-la de bisnaga, linguiça, isca de baleia e todas essas coisa ofensivas que as minhocas magras reservam para as minhocas gordas. A Minhocona Feia vivia fazendo regime, jejuava por dias inteiros, tentou cortar carboidratos, glúten, frituras, mas nada adiantava. O que mais a envergonhava, porém, não era o peso: era produzir, em vez do húmus – orgulho e alegria de toda minhoca –, uma baba humilhante que a seguia por onde fosse.
Um dia choveu muito, o gramado alagou e as minhocas tiveram que se abrigar na varanda. Neste dia, a Minhocona Feia olhou para a vidraça da casa e viu duas Minhoconas Feias iguais a ela, na ponta de dois rastros iguais ao seu. Neste dia, ela descobriu que não era uma Minhocona Feia, mas uma bela jovem lesma.
Por umas semanas, a bela jovem lesma viveu feliz com seus pares, babando na vidraça e comendo como uma condenada. E uma condenada, de fato, ela se tornou: de tanto comer para compensar os tempos de penúria, passou a ter problema de colesterol, diabetes, pressão alta e acabou enfartando não muito depois da sua redenção.
Era uma vez um ouriço que nasceu próximo a uma família de polvos. Por uns dez segundos, ele acreditou que pudesse ser um polvo esquisitíssimo, mas pensou melhor e percebeu que não.
Era uma vez um filhote de tigre criado por uma família de gatos. Os gatinhos pararam de crescer, mas o tigre não, por isso o apelidaram de... De nada, pois assim que percebeu as risadinhas, o filhote de tigre almoçou os quatro irmãos, a mãe, uma lesma moribunda que encontrou na varanda, um coelho bebum que trombou na esquina e só não comeu o ouriço e a família de polvos porque não nasceu no fundo do mar, não se achava um peixe tigre e sequer sabia nadar.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

É pavê ou pacomê?! - Antonio Prata

Tem gente que se irrita, que suspira e vira os olhos como um filósofo vendo TV ou um cientista lendo o horóscopo, mas eu, não. Eu sorrio feliz e contente toda vez que escuto alguém perguntar, diante de um pavê, com a certeza do primeiro ser humano tocado pela luz da inspiração: "É pavê ou pacomê?!".
Que coragem. Veja, vivemos sob a égide do grande Deus Photoshop. Começamos tirando as celulites das bundas, passamos a cortar as estrias dos discursos e, hoje, removemos manchinha por manchinha de nossas facebúquicas personalidades. Nesta era da performance, em que cada ideia é cuidadosamente escanhoada antes de ser posta no mundo, em que cada julgamento é miligramicamente pesado para se avaliar os seus efeitos --seus likes, deslikes e retuítes--, enfim, nestes tempos bicudos em que a canalhice é perdoada, mas a ingenuidade, não, o cidadão me sai com essa: "É pavê ou pacomê?!". Que coragem.
Trata-se, evidentemente, de um espírito superior. Um homem acima da moral de sua época, que não tem vergonha de baixar a guarda e mostrar-se desprotegido, como aqueles peladões que, antigamente, surgiam correndo no meio de um jogo de futebol.
Como eram felizes os peladões de antanho, livres e despropositados, ziguezagueando entre jogadores perplexos e policiais furibundos. Agora, os peladões têm objetivos, estratégias, método. Desnuda-se pelo fim da corrupção, pelos golfinhos, pela bicicleta. Tudo bem, é sempre melhor ver ativistas ucranianas em pelo (ou sem pelo nenhum) defendendo uma causa nobre do que ruralistas (vestidos, felizmente) atacando as leis ambientais.
Sejamos anarquistas ou sojicultores, despidos ou de burca, contudo, fomos todos cooptados pela cartilha do cálculo. No século 21, até adestrador de cachorro tem assessor de imprensa, pipoqueiro faz coaching, refém de assalto a banco imagina, com uma arma na cabeça, como vai capitalizar a experiência, saindo dali: palestra motivacional? Biografia? Autoajuda? Só nosso amigo do pavê não pensa nos efeitos e consequências de seu ato: simplesmente segue o impulso. É o último romântico, filho temporão de Jacques Tati, neto do Charlie Chaplin, lutando contra as catracas do bom (sic) gosto, da etiqueta, da inteligência.
Ah, a inteligência, superestimada virtude! Goebbels, Stalin, Kalashnikov e o inventor do telemarketing eram todos inteligentíssimos e o mundo passaria bem melhor se, em seus lugares, tivéssemos um punhado de figuras capazes de desafiar a família, os amigos, os chefes e colegas de trabalho, sem medo do ridículo ou de retaliações, em nome de uma piada (dita) infame.
"Bem-aventurados os do 'pavê ou pacomê', pois verão a face de Deus", diria Jesus, na Galileia, se na Galileia já houvesse pavê. Não havia --mal havia pacomê--, de modo que os bravos iconoclastas seguem na luta sem o beneplácito de Deus, enfrentando com a cara e a coragem o desdém da sociedade. Não desanimem, irmãos: saibam que, se não têm o testemunho de Mateus, contam ao menos com o apoio deste modesto cronista, sempre disposto a responder, com a colher em riste e a fé no futuro: "Pacomê!".
Bem-aventurados os puros de coração.

Memórias tombadas - Humberto Werneck


A idade a que São Paulo chega nesta quinta-feira pode não ser número redondo, desses que requerem comemoração especial. Mas não deixa de ter sua graça, e graça bem comemorável, quando menos porque 464 é uma capicua – nome esquisitinho, com jeito de coisa inventada em mesa de boteco, e que na verdade tem origem nobre, mais que isto, latina, ainda que se trate de latim vulgar. 
Quem dá esse show de sabença etimológica não sou eu, evidentemente, é o dicionário Houaiss, capaz de aclarar uma vez mais minha trevosa ignorância. Ele ensina, ainda, que capicua, substantivo feminino cujo primeiro registro escrito conhecido data de 1913, designa uma sequência de algarismos que, lida da esquerda para a direita ou no sentido inverso, permanece a mesma. Fossem letras e não algarismos, o nome seria palíndromo. 
Derradeiro ensinamento do mestre Houaiss, antes que você bata asas, julgando ter vindo parar, não numa crônica, mas na veneranda seção Enriqueça Seu Vocabulário, da revista Seleções: capicua resultou da soma de “capi”, que dá a ideia de “cabeça”, e, me perdoe o calão, “cu”, no sentido de “parte traseira”. Desconfio que o “a” final possa ter entrado com a função de atenuar a crueza do monossílabo em “u”. Em resumo, tanto faz partir de uma extremidade como da outra, pois a coisa é a mesma. E mais não digo. Limito-me a comemorar, neste 25 de janeiro, os 464 anos da cidade de São Paulo, não importando se de cá pra lá ou de lá pra cá. Até porque nova capicua só teremos em 2028, nos 474 anos da antiga aldeia de Piratininga.
*
Para as comemorações de data mais redonda, os 450 anos, em 2004, outros tantos cidadãos paulistanos foram convidados a escrever frases sobre a aniversariante, a serem estampadas em estações do metrô. Honrado com minha inclusão naquele grupo, mobilizei sete palavras e um ponto de exclamação: “Danada de feia, mas cozinha como poucas!”. Frase da qual não tardei a me penitenciar, não exatamente por soar politicamente incorreta, mas por não fazer justiça às belezas de que minha cidade adotiva, quando quer, é fartamente capaz. 
Com o que resta de prudência a este mineiro não praticante, aqui enraizado há quase meio século, pai e avô de paulistanos, vou desta vez me limitar a sugerir algo que de resto seria desejável em qualquer outra cidade brasileira; nenhuma novidade: um esforço para assinalar, na pedra ou no bronze, a memória daquilo que de relevante tenha acontecido num prédio, numa casa, numa rua. Aqui viveu Fulana, aqui faleceu Fulano, aqui tal coisa se passou. 
Não, não estou enganado de país, a pretender que se reproduzam aqui cuidados e delicadezas de Paris, exemplo de cidade cravejada de registros históricos. O Tietê não é o Sena, e o empenho em preservar memória muito provavelmente esbarraria no problema de onde afixar a placa, se o imóvel em questão, e são tantos, foi tombado no pior sentido da palavra. 
Alguns, felizmente, ainda estão de pé. Sempre haverá quem passe pelo prédio da rua Líbero Badaró, 67, no centro de São Paulo, e goste de saber que na sala 2 do 3.º andar funcionou, um século atrás, a legendária garçonnière do jovem poeta Oswald de Andrade, 42 m² para uso libertino, como costuma ser, nos braços da Miss Cyclone, mas também literário, “covil” (batizou alguém) que era de um bando de escribas. Saber mais: que aquele prédio foi, conforme anúncio da época, “a primeira casa de apartamentos para solteiros da cidade”, ou seja, o primeiro condomínio de garçonnières da Pauliceia. 
No Rio, não faltaria quem detivesse a caminhada numa rua de Copacabana, se na fachada de um prédio sem especial pedigree, ou na calçada em frente, houvesse placa informando que até 1962 existiu ali uma casa de dois pavimentos onde o poeta Carlos Drummond de Andrade viveu por 21 anos, endereço do qual ficou cicatriz nos versos de um soneto (“Ó esplêndida lua, debruçada / sobre Joaquim Nabuco, 81. / Tu não banhas apenas a fachada e o quarto de dormir, prenda comum. / Baixas a um vago em mim, onde nenhum / halo humano ou divino fez pousada.”).
Se dependesse de mim, e é bom que não dependa, pois eu certamente iria além do razoável, até mesmo informações de interesse infinitamente mais restrito, quando não apenas meu, haveriam de merecer registro em metal ou pedra. Exemplo? Um predinho de três andares no n.º 223 da rua Florêncio de Abreu, a prosaica “rua das ferramentas”, no centro de São Paulo, imóvel abandonado e arruinado, com erva-de-passarinho a vicejar num balcão e nos beirais, e uma inscrição do frontispício: “Anno MDCCCXCII” (1892).
Fuçador que sou, deu vontade de saber mais, e dos alfarrábios consultados saltou a informação de que o casarão foi mandado construir por um médico baiano que ali viveu e provavelmente clinicou até o ano de 1895, certo dr. Eulálio da Costa Carvalho. O prenome pouco encontradiço acendeu em mim a suspeita de que pudesse se tratar de pessoa da qual muita gente, você, inclusive, já ouviu falar, sem saber como se chamava. “O próprio”, confirmou, lacônico, Chico Buarque: o “tataravô baiano” cantado nos primeiros versos de Paratodos, quem sabe também inspirador (isto o tataraneto não confirma) dos sucessivos Eulálios que povoam o romance
Leite Derramado
Vale ou não vale plaquinha na Florêncio de Abreu?

Ânimo! - Luis Fernando Verissimo

Li que, para a raça branca não desaparecer em poucas décadas, teria que manter uma taxa média de natalidade de 2,1 filhos. Fiz a minha parte. Tive três filhos, mais do que o requerido. Mas não sei se eles contam. É tamanho o coquetel de raças que deu nos três, desde uma bisavó tipicamente alemã até um avô com cara de índio, que fica difícil calcular sua branquidão.

Lembro que quando moramos na Itália, há alguns anos, um problema social muito discutido - incompreensível para um brasileiro - era o excesso de vagas nas escolas públicas. Os italianos simplesmente não estavam produzindo alunos suficientes para suprir a capacidade ociosa das escolas. Na França, o governo estimula, com prêmios e subsídios, a fertilidade. As campanhas "faça mais bebês" têm como alvo óbvio nativos brancos, no pressuposto de que imigrantes e outras raças não precisam de incentivo. Implícita nas campanhas está uma mensagem apocalíptica: casais brancos modernos que preferem ter carreiras modernas e vidas domésticas mais fáceis em vez de filhos estão condenando sua raça à extinção.

Nos Estados Unidos, os "survivalists" se preparam há anos para o momento em que os poucos americanos brancos que sobrarem se acastelarão contra os hispânicos e negros que dominarão o país, e já existe uma considerável literatura premonitória sobre essa resistência às hordas escuras. E até revistas especializadas em sobrevivência e guerrilha, para quando o momento inevitável chegar.

Nos anos 1950, na fase mais quente da Guerra Fria, discutia-se nos Estados Unidos se um chefe de família tinha o direito de impedir, a tiros se fosse preciso, que um vizinho invadisse o seu abrigo contra ataque nuclear, pondo em risco a vida dos seus filhos. O consenso nacional era de que o dono do abrigo tinha o direito de negar refúgio para o vizinho, que não fora previdente como ele. Hoje, o perigo não é de guerra nuclear - a não ser para quem leva a sério as ameaças do Kim Jong-un - mas a eliminação da raça branca.

Uma alternativa para as piores previsões para os brancos acuados é um futuro em que os que sobrarem serão mantidos em santuários protegidos, como os gorilas hoje. Um pouco como já se vê nos condomínios fechados no Brasil. Dentro dos santuários, os brancos poderão recriar seu hábitat natural e preservar seus hábitos com segurança, priorizando a procriação, talvez com a distribuição de estímulos sexuais aos sábados, para que não desapareçam por completo.

O fato é que os brancos estão perdendo a guerra demográfica. Não tenho nenhuma simpatia especial pela raça branca, mas torço para que haja uma reação, nem que seja só para manter o interesse da competição. Vamos lá! Ânimo, gente!

Último samurai - Fabricio Carpinejar



Tenho uma nota de R$ 100 na carteira que já vem durando uma semana. Não vou entregá-la.
É só pagar algo, e ela desaparece. É só virar uma de R$ 50 e duas de R$ 20 que ela some e nem sei com o que consumi. É só uma balconista usar a expressão troco – “toma o seu troco” – que ela se sente diminuída e se desintegra. Uma nota de R$ 100 jamais poderia ser insultada de troco, é bullying.
A nota de R$ 100 é o último samurai da família, o derradeiro guerreiro do níquel. Fará a vingança do cofrinho quebrado, do porquinho desmanchado em pedaços, do porta-moedas vazio.
Lutarei por ela, e ela lutará por mim. Não deixarei a garoupa ser pescada ou a efígie da República ser pichada. Mesmo que seja necessário atravessar um shopping inteiro com os filhos, atalhar um parque e encarar as carrocinhas de cachorro-quente e churros como um vegano convertido.
As tentações são muitas, em especial no final de semana. Sábado e domingo são inimigos declarados da nota de R$ 100.
A vontade de cinema apertou, mas não cedi e esperei um bom filme aparecer na tevê. Preparei pipoca no micro-ondas, estendi os pés no sofá e não reclamei que a metade do milho não estourou.
Reclamar esvazia o bolso. É dizer que não está feliz que o descontentamento aumenta. É dizer que não tem dinheiro para nada que você gasta o dinheiro que nem tem.
No dia seguinte, estava cansado, pois dormi tarde, vi os imãs de tele-entrega sorrindo para mim na geladeira, mas resisti aos números fáceis. Guardei as propagandas no armário e fui cozinhar. Preparei uma massa para bodear os pensamentos, jiboiar os desejos, enjaular este safári de impulsos.
Decidi empenhar a faxina senão a nota ia embora na segunda. Pensei com ternura na faxineira que é minha amiga, coitada da Vera, mas as intenções não podem demonstrar misericórdia. Esmurrei os tapetes na janela enquanto o vizinho dormia, empurrei a geladeira e varri até o braço cansar, até desistir de erguer a nota de cem.
Não bastando, desci para lavar o carro todo empoeirado da recente visita à chácara de minha mãe, em Eldorado do Sul. Eldorado é agora a nota de R$ 100. A ânsia para repassar o trabalho ao lavador do bairro era imensa, não sei como me contive. Coloquei música alta para fingir que estava cantando e dançando, e não lavando o carro.
Nota de R$ 100 não é mais papel, não é mais uma simples cédula, mas uma armadura.
Tomara que eu mantenha a abstinência e bata o recorde de minha vida de oito dias com a nota de R$ 100 na carteira.

Uma Galinha / O Ovo e a Galinha - Clarice Lispector


Uma Galinha

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio. 

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se pode­ria contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma. 

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, pare­cia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:

— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!

— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.








O Ovo e a Galinha

De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.
Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe.
Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. – Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo o ovo é óbvio.
O ovo não existe mais. Como a luz de uma estrela já morta, o ovo propriamente dito não existe mais. – Você é perfeito, ovo. Você é branco. – A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.
Ao ovo dedico a nação chinesa.
O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. – Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. – Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. – Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. – A Lua é habitada por ovos.
O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se.- O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. – Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome.
O ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado. Pois ovo é ovo no espaço. Ovo sobre azul. – Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma coisa nem sequer sabe que ama outra coisa. – Não toco nele. A aura de meus dedos é que vê o ovo. Não toco nele – Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida mundana, e eu preciso da gema e da clara. – O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê. É isento da compreensão que fere. – O ovo nunca lutou. Ele é um dom. – O ovo é invisível a olho nu. De ovo a ovo chega-se a Deus, que é invisível a olho nu. – O ovo terá sido talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando. – O ovo é basicamente um jarro? Terá sido o primeiro jarro moldado pelos etruscos ? Não. O ovo é originário da Macedônia. Lá foi calculado, fruto da mais penosa espontaneidade. Nas areias da Macedônia um homem com uma vara na mão desenhou-o. E depois apagou-o com o pé nu.
O ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. – O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. – O ovo por enquanto será sempre revolucionário. – Ele vive dentro da galinha para que não o chamem de branco. O ovo é branco mesmo. Mas não pode ser chamado de branco. Não porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam ovo de branco, essas pessoas morrem para a vida. Chamar de branco aquilo que é branco pode destruir a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era, e foi chamado de Aquele Homem. Não tinham mentido: Ele era. Mas até hoje ainda não nos recuperamos, uns após outros. A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer “um rosto bonito”, mas quem disser “O rosto”, morre; por ter esgotado o assunto.
Com o tempo, o ovo se tornou um ovo de galinha. Não o é. Mas, adotado, usa-lhe o sobrenome. – Deve-se dizer “o ovo da galinha”. Se eu disser apenas “o ovo”, esgota-se o assunto, e o mundo fica nu. – Em relação ao ovo, o perigo é que se descubra o que se poderia chamar de beleza, isto é, sua veracidade. A veracidade do ovo não é verossímil. Se descobrirem, podem querer obrigá-lo a se tornar retangular. O perigo não é para o ovo, ele não se tornaria retangular. (Nossa garantia é que ele não pode: não poder é a grande força do ovo: sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se irradia como um não querer.) Mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria perdendo a própria vida. O ovo nos expõe, portanto, em perigo. Nossa vantagem é que o ovo é invisível. E quanto aos iniciados, os iniciados disfarçam o ovo.
Quanto ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior prova de que o ovo não existe. Basta olhar para a galinha para se tornar óbvio que o ovo é impossível de existir.
E a galinha? O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe o ovo. Se soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o estado de galinha. Ser galinha é a sobrevivência da galinha. Sobreviver é a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva a morte. Então o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se manter luta contra a vida que é mortal. Ser galinha é isso. A galinha tem o ar constrangido.
É necessário que a galinha não saiba que tem um ovo. Senão ela se salvaria como galinha, o que também não é garantido, mas perderia o ovo. Então ela não sabe. Para que o ovo use a galinha é que a galinha existe. Ela era só para se cumprir, mas gostou. O desarvoramento da galinha vem disso: gostar não fazia parte de nascer. Gostar de estar vivo dói. – Quanto a quem veio antes, foi o ovo que achou a galinha. A galinha não foi sequer chamada. A galinha é diretamente uma escolhida. – A galinha vive como em sonho. Não tem senso de realidade. Todo o susto da galinha é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é um grande sono. – A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido é o ovo. – Ela não sabe se explicar: “ sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de erro a vida, “não sei mais o que sinto”, etc.
“Etc., etc., etc.,” é o que cacareja o dia inteiro a galinha. A galinha tem muita vida interior. Para falar a verdade a galinha só tem mesmo é vida interior. A nossa visão de sua vida interior é o que chamamos de “galinha”. A vida interior na galinha consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em escândalo feito uma doida. Tudo isso para que o ovo não se quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro de galinha é como sangue.
A galinha olha o horizonte. Como se da linha do horizonte é que viesse vindo um ovo. Fora de ser um meio de transporte para o ovo, a galinha é tonta, desocupada e míope. Como poderia a galinha se entender se ela é a contradição de um ovo? O ovo ainda é o mesmo que se originou na Macedônia. A galinha é sempre tragédia mais moderna. Está sempre inutilmente a par. E continua sendo redesenhada. Ainda não se achou a forma mais adequada para uma galinha. Enquanto meu vizinho atende ao telefone ele redesenha com lápis distraído a galinha. Mas para a galinha não há jeito: está na sua condição não servir a si própria. Sendo, porém, o seu destino mais importante que ela, e sendo o seu destino o ovo, a sua vida pessoal não nos interessa.
Dentro de si a galinha não reconhece o ovo, mas fora de si também não o reconhece. Quando a galinha vê o ovo pensa que está lidando com uma coisa impossível. É com o coração batendo, com o coração batendo tanto, ela não o reconhece.
De repente olho o ovo na cozinha e vejo nele a comida. Não o reconheço, e meu coração bate. A metamorfose está se fazendo em mim: começo a não poder mais enxergar o ovo. Fora de cada ovo particular, fora de cada ovo que se come, o ovo não existe. Já não consigo mais crer num ovo. Estou cada vez mais sem força de acreditar, estou morrendo, adeus, olhei demais um ovo e ele me foi adormecendo.
A galinha não queria sacrificar a sua vida. A que optou por querer ser “feliz”. A que não percebia que, se passasse a vida desenhando dentro de si como numa iluminura o ovo, ela estaria servindo. A que não sabia perder-se a si mesma. A que pensou que tinha penas de galinha para se cobrir por possuir pele preciosa, sem entender que as penas eram exclusivamente para suavizar, a travessia ao carregar o ovo, porque o sofrimento intenso poderia prejudicar o ovo. A que pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que era para que ela se distraísse totalmente enquanto o ovo se faria. A que não sabia que “eu” é apenas uma das palavras que se desenham enquanto se atende ao telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada. A que pensou que “eu” significa ter um si-mesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um “eu” sem trégua. Nelas o “eu” é tão constante que elas já não podem mais pronunciar a palavra “ovo”. Mas, quem sabe, era disso mesmo que o ovo precisava. Pois se elas não estivessem tão distraídas, se prestassem atenção à grande vida que se faz dentro delas, atrapalhariam o ovo.
Comecei a falar da galinha e há muito já não estou falando mais da galinha. Mas ainda estou falando do ovo.
E eis que não entendo o ovo. Só entendo o ovo quebrado: quebro-o na frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me à minha própria vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem viu o ovo, um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chão e lavam a roupa, servindo sem a glória de função maior, meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.
Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe a casca e forma. E a partir deste instante exato nunca existiu um ovo. É absolutamente indispensável que eu seja uma ocupada e uma distraída. Sou indispensavelmente um dos que renegam. Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem. Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós às vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então, não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar vagamente.
A todos os agentes são dadas muitas vantagens para que o ovo se faça. Não é o caso de se ter inveja pois, inclusive algumas das condições, piores do que as dos outros, são apenas as condições ideais para o ovo. Quanto ao prazer dos agentes, eles também o recebem sem orgulho. Austeramente vivem todos os prazeres: inclusive é o nosso sacrifício para que o ovo se faça. Já nos foi imposta, inclusive uma natureza adequada a muito prazer. O que facilita. Pelo menos torna menos penoso o prazer.
Há casos de agentes que se suicidam: acham insuficientes as pouquíssimas instruções recebidas e se sentem sem apoio. Houve o caso do agente que revelou publicamente ser agente porque lhe foi intolerável não ser compreendido, e ele não suportava mais não ter o respeito alheio: morreu atropelado quando saía de um restaurante. Houve um outro que nem precisou ser eliminado: ele próprio se consumiu lentamente na sua revolta, sua revolta veio quando ele descobriu que as duas ou três instruções recebidas não incluíam nenhuma explicação. Houve outro também eliminado, porque achava que “a verdade deve ser corajosamente dita”, e começou em primeiro lugar a procurá-la; dele se disse que morreu em nome da verdade com sua inocência; sua aparente coragem era tolice, e era ingênuo o seu desejo de lealdade, ele compreendera que ser leal não é coisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto. Esses casos extremos de morte não são por crueldade. É que há um trabalho, digamos cósmico, a ser feito, e os casos individuais infelizmente não podem ser levados em consideração. Para os que sucumbem e se tornam individuais é que existem as instituições, a caridade, a compreensão que não discrimina motivos, a nossa vida humana enfim.
Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir.
E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito. Inclusive, faço um mal aos outros que, francamente. O falso emprego que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro; inclusive o dinheiro que me dão como diária para facilitar a minha vida de modo a que o ovo se faça, pois esse dinheiro eu tenho usado para outros fins, desvio de verba, ultimamente comprei ações na Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo de ter a necessária modéstia de viver. E também o tempo que me deram, e que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minha simplicidade.
Ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça, exatamente para que o ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada? Pois venho notando que tudo que é erro meu tem sido aproveitado. Minha revolta é que para eles eu não sou nada, eu sou apenas preciosa: eles cuidam de mim segundo por segundo, com a mais absoluta falta de amor; sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dão, ando ultimamente bebendo. Abuso de confiança? Mas é que ninguém sabe como se sente por dentro aquele cujo emprego consiste em fingir que está traindo, e que termina acreditando na própria traição. Cujo emprego consiste em diariamente esquecer. Aquele de quem é exigida a aparente desonra. Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu. Ou sou um agente, ou é a traição mesmo.
Mas durmo o sono dos justos por saber que minha vida fútil não atrapalha a marcha do grande tempo. Pelo contrário: parece que é exigido de mim que eu seja extremamente fútil, é exigido de mim inclusive que eu durma como justo. Eles me querem preocupada e distraída, e não lhes importa como. Pois, com minha atenção errada e minha tolice grave, eu poderia atrapalhar o que se está fazendo através de mim. É que eu própria, eu propriamente dita, só tenho mesmo servido para atrapalhar. O que me revela que talvez eu seja um agente é a idéia de que meu destino me ultrapassa: pelo menos isso eles tiveram mesmo que me deixar adivinhar, eu era daqueles que fariam mal o trabalho se ao menos não adivinhassem um pouco; fizeram-me esquecer o que me deixaram adivinhar, mas vagamente ficou-me a noção de que meu destino me ultrapassa, e de que sou instrumento do trabalho deles. Mas de qualquer modo era só instrumento que eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu. Já experimentei me estabelecer por conta própria e não deu certo; ficou-me até hoje essa mão trêmula. Tivesse eu insistido um pouco mais e teria perdido para sempre a saúde. Desde então, desde essa malograda experiência, procuro raciocinar desse modo: que já me foi dado muito, que eles já me concederam tudo o que pode ser concedido; e que os outros agentes, muito superiores a mim, também trabalharam apenas para o que não sabiam. E com as mesmas pouquíssimas instruções. Já me foi dado muito; isto, por exemplo: uma vez ou outra, com o coração batendo pelo privilégio, eu pelo menos sei que não estou reconhecendo! Com o coração batendo de emoção, eu pelo menos não compreendo! Com o coração batendo de confiança, eu pelo menos não sei.
Mas e o ovo? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre o ovo, eu tinha esquecido do ovo. “Falai, falai”, instruíram-me eles. E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito, é uma das instruções, estou tão cansada.

Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Se eu fizer o sacrifício de esquecê-lo. Se o ovo for impossível. Então – livre, delicado, sem mensagem alguma para mim – talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha palidez.



Sinopse
Num espaço cênico reduzido e com coreografias sutis, a ênfase do espetáculo é dada à palavra. O corpo da atriz vive um lugar de reflexão, angústia e indagação da personagem.


Ficha Técnica
Interpretação e Idealização: Angélica di Paula
Direção: Vanessa Bruno
Preparação Corporal: João Otávio
Iluminação e Fotos de Cena: Lenise Pinheiro
Direção de Fotografia e adaptação da iluminação ao Teatro Para Alguém: Nelson Kao
Cenário e Adereços: Maria Fernanda Filardi Ferreira
Figurino: Eliana Saletti
Trilha sonora: Edson Secco
Videomaker: Cris Lyra
Operação de luz: Leandro Xavier
Operação de som: Roberta Siviero
Agradecimentos: Dalma Oliveira, Nena Rodrigues e Roberta Lotti

Sobre o espetáculo
Dentro da filosofia do Teatro Para Alguém de ser um espaço aberto para diversos coletivos teatrais, seclecionamos para o projeto "Teatro dos Outros" a peça "O Ovo e a Galinha", um espetáculo que rejeita saídas estéticas fáceis, para ser exibido em todo o país, online.
Apresentado inicialmente no SESC Consolação, em São Paulo, e no FENTEPP (Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente), "O Ovo e a Galinha" foi elogiado por grandes especialistas em cultura, como Nelson de Sá e Márcio Marciano.

Angélica di Paula é atriz, formada pela Unesp em Licenciatura em Artes Cênicas. Integrou o Centro de Pesquisa Teatral (CPT) coordenado por Antunes Filho, de 2005 a 2008, atuando em Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues, Prêt-à-Porter 9 e Pedra do Reino. Participou das series de TV Trago Comigo e Dilemas de Irene. E no cinema atou em Transeunte, dirigido por Erick Rocha, e Boca do Lixo, dirigido por Flávio Frederico.





Melhor que Clarice Lispector - Heloisa Pait


FICHA TÉCNICA:
Autoria: Heloisa Pait
Elenco: Priscila Gontijo
Direção Geral: Renata Jesion 
Direção de Fotografia: Nelson Kao

O texto, adaptado especialmente para a web, é parte do volume de contos "How deep is your love?", em que Heloisa Pait resgata aspectos cômicos - e muito humanos - da personalidade de seu pai, o arquiteto Henrique Pait, falecido em 2002. No processo de elaboração do luto, Heloisa contava histórias sobre seu pai aos amigos que lhe ofereciam apoio, mas notou que a solidariedade vinha na forma de risadas. Foi então que surgiram os contos que neste espetáculo são apresentados e falam exatamente da relação entre a autora, seu pai e os grandes artistas que os inspiram.

Macho Alfa - Antonio Prata

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