segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Macho Alfa - Antonio Prata

 

ilustração: Adams Carvalho



Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do século passado, recordam-se de que três, quatro vezes por ano, os pneus furavam. Era um fato corriqueiro na vida familiar. Lembro do meu pai na estrada. Parava de falar. Ficava introspectivo. "Acho que tá puxando pra direita". Era a deixa para a família se calar, num respeito de reza antes da refeição. Ele tirava de leve as mãos do volante e com ares de médico auscultando o pulmão do paciente —os olhos pro alto, para que a visão não atrapalhasse o sensibilíssimo sismógrafo de suas nádegas— sentia se de fato um pneu murcho arrastava o carro para algum lado. Parávamos no acostamento. Ele descia, olhava e orgulhoso de sua precisão nadegal, decretava: "Furou. É o da frente. Da direita."

Sabemos bem, já entrados na terceira década do século 21, que o legado do patriarcado não é exatamente glorioso. A Lei Maria da Penha, o Trump, o Bolsonaro e a estátua do Borga Gato estão aí para nos lembrar disso, mas trocar um pneu era uma bela ação da masculinidade, cuja única toxicidade vinha dos escapamentos dos carros na estrada.

 Era no que eu pensava enquanto carregava o estepe pela calçada. Não sei jogar futebol. Não luto jiu-jítsu. Entre o Adam Driver e o Danny DeVitto, a leitora que, como o motorista dos anos 80, fechar os olhos e auscultar as vibrações austrais de seu corpo, concordará que "puxo" mais para o segundo. No entanto, ali estava eu, carregando a roda de um carro, 30 kg de aço e borracha. Por um segundo, sonhei em ser famoso e ter a presença de um paparazzo para escrever uma nota, no dia seguinte, tipo "Caetano estaciona carro no Leblon": "Antonio troca pneu nos Jardins".

Há muitos homens que, diante de suas frágeis masculinidades, precisam segurar uma arma. Eu, após décadas de análise, preciso apenas de uma chave de boca. Vocês tinham que ver quando a engatei nos parafusos e, com o pé esquerdo —o mesmo que usaria para chutar uma bola, caso soubesse chutar uma— dei o primeiro tranco pra baixo. Olhei em volta na vã esperança não de um paparazzo, o que seria delírio, mas ao menos de um pedestre como testemunha: não passava ninguém.

A ausência de público se tornou uma vantagem assim que me dei conta da razão pela qual trocar um pneu é ao mesmo tempo um ato viril e patético: o cofrinho. Se o cofrinho fosse um personagem numa animação da Pixar, seu momento de glória seria a troca de pneu. Neste "Divertidamente" da anatomia, a troca de pneu seria a Sapucaí do cofrinho. Como sou eu que mando no cofrinho, não ele em mim, resolvi sentar na sarjeta. E sentar na sarjeta, sujando a calça no chorume da cidade, já com as mãos imundas pelo traslado do estepe, fez com que eu me sentisse um Clint Eastwood, um Maguila.

Uma vez afrouxados os parafusos, veio a melhor parte: o macaco. Botei o troço embaixo do carro e com gestos decididos e extremamente másculos, fui girando a manivela. Girando, girando, girando. Até me dar conta de que o carro não levantava, mas a lataria, sim. Uns 15 centímetros, amassada: a porta dianteira não abria mais.

Liguei pro seguro. Clint Eastwood (ou Maguila?) trocou o pneu em dois minutos e quando perguntou sobre o amassado, eu disse, "o carro caiu num buraco enorme ali na Rebouças. Furou o pneu e amassou a lataria. Eu ia botar o estepe, mas tô lesionado do jiu-jítsu". Dei R$ 100 de gorjeta para que não contasse nada aos paparazzi do meu delírio. Chegando em casa, comprei uma AK-47.


domingo, 10 de novembro de 2024

Encadeamento ilógico - Antonio Prata

 

Zenon foi um jogador do Corinthians nos anos 80 e um filósofo na Grécia antiga. O Zenon clássico era famoso por seus paradoxos. O Zenon dos clássicos era famoso por seu bigode. O grego disse que uma flecha atirada por um arco jamais atingiria o alvo, pois não importa a distância que falte, sempre faltará a metade dessa distância. Como toda metade terá, necessariamente, sua metade, a flecha permanecerá eternamente a caminho.

 

Falando em metades: Zenon, o do Corinthians, era meio-campo. Seu xará de dois milênios atrás diria que o corintiano jamais percorreria o campo inteiro, pois sempre haveria meio campo entre o meio-campo e o fim do campo, depois a metade do meio campo e assim por diante. Felizmente, para azar do grego e alegria da Fiel, mais de uma vez o craque atingiu o alvo, balançando as redes – e o bigode.

Outro dia, lendo uma matéria sobre ressaca, vislumbrei o que me pareceu uma aplicação fisiológica do paradoxo de Zenon. O artigo repisava a velha máxima de que, quando ingerimos bebidas alcoólicas, é preciso se hidratar. Considerando-se que uma dose de cachaça é composta por cerca de 40% de álcool e 60% de água, quanto mais cachaça você consome, mais água você bebe. Eis aí um argumento dificilmente refutável pela razão, mas imediatamente derrubado pelo dia seguinte. Prova inconteste, acho eu, de que a despeito das belas proezas da mente, ao fim e ao cabo o corpo sempre vence – como as latas de ervilha no fundo do armário e o desodorante embaixo do braço.

 

Além de Zenon, aquele time do Corinthians tinha outro filósofo, o maior de todos, tanto no campo quanto na pólis: Sócrates. Não parece fortuito, portanto, que, como seus xarás da antiguidade, nossos queridos alvinegros tenham sido os pais da democracia (corintiana).

 

Corinto, aliás, é uma cidade na Grécia, embora tenha sido por influência de um time inglês, Corinthians, que a equipe paulistana escolheu seu nome. Também ingleses são os humoristas do grupo Monty Python. Duvido que John Cleese, Eric Idle, Graham Chapman e companhia tenham ouvido falar no escrete filosófico do Timão, mas, apesar disso, fizeram um esquete hilário sobre uma partida de futebol entre os maiores pensadores gregos e os alemães.

Apita o juiz (Confúcio) e saem todos os jogadores pelo campo, em peripatética reflexão. Até que Arquimedes tem a ideia, grita "Eureka!", chuta a bola pra Sócrates, os dois fazem uma tabelinha e Sócrates marca de cabeça. De todos os 22 sábios helênicos ou teutões, olha que coincidência, justamente o Sócrates manda a bola pra rede. (Nem Zenon, o filósofo, nem Zenon, o meio-campista, estavam na seleção grega do Monty Python).

 

Fosse o jogo do esquete contra pensadores russos, o gol poderia ser de outro craque da democracia corintiana, o Wladimir (Lenin). O arqueiro poderia ser o Leão (Trotsky ou Tolstói). O que me traz à memória Eduardo Jorge, que disse numa entrevista adorar Tolstói, o repórter entendeu Toy Story e escreveu que político do PV era fã da série de animações com Buzz Lightyear.

 

Buzz Lightyear cujo lema "Ao infinito e além!" bem poderia ser a descrição da flecha rumo ao alvo segundo o paradoxo de Zenon. "Infinito" porque não chega nunca e "além" porque segue sempre adiante.

 

E o Biro Biro nessa história toda, onde entra? Não entra. Confesso que tentei encaixá-lo de inúmeras maneiras, mas não teve jeito, mesmo dando voltas e voltas e me enrolando em raciocínios mais tortuosos do que os cachos daquela distinta cabeleira. E fim de papo.

 

Ilustração: Adams Carvalho


The Philosophers' Football Match - Monty Python

https://youtu.be/wrtKc1ZtrGQ

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Era feliz com tão pouco - Fabrício Carpinejar

 

No meu primeiro apartamento, formei a minha estantes de tijolos e tábuas colhidas na rua, e eu era feliz.
Tinha dois bancos feitos de engradados jogados fora por um bar, decorados com almofadas coloridas, e era feliz.
Tinha de cama simplesmente um colchão no chão, e era feliz.
Tinha quatro pratos e quatro pares de talheres e não podia receber mais gente, e era feliz.
Tinha um ventilador que funcionava melhor sem a tampa, e era feliz.
Tinha Bombril na antena da televisão, desespero para capturar três canais, um com tempestade na tela, o segundo com chuvisco e o terceiro com neblina, e era feliz.
Tinha vasos pintados a partir de garrafas de suco, e era feliz.
Tinha um lençol que servia de cortina, a claridade não me permitia dormir depois das 8h, e era feliz.
Tinha como lixo uma sacola plástica presa na torneira do tanque, e era feliz.
Tinha a mania de somente beber água de graça, e era feliz.
Tinha a tática de atrasar o condomínio a cada dois meses, e era feliz.
Tinha como arara as pernas de mesas viradas de escritório, onde aproveitava cinco peças para o mesmo cabide, e era feliz.
Tinha que secar o banheiro depois do banho com o rodo, pois não havia cortina no box, e era feliz.
Tinha abajur informe de papelão, que aprendi na aula de educação artística, e era feliz.
Tinha duas tomadas que produziam choque, e era feliz.
Tinha que esperar acumular mudas sujas por uma semana para lavar na mãe, e era feliz.
Tinha uma geladeira vazia, com lâmpada queimada. Ela imitava o ronco de meu estômago, e era feliz.
Tinha um chuveiro que se assemelhava a uma bomba-relógio, ninho de fios coloridos soltos junto à parede, e era feliz.
Tinha palito de dente como fio dental, prendedor de roupa como pegador de massa, uma panela multifuncional, e era feliz.
Tinha o papel-toalha com vocação de guardanapo e papel higiênico, e era feliz.
Tinha que colocar as cuecas e meias na janela da sala, único lugar em que batia sol, e era feliz.
Tinha um cinzeiro de vidro de maionese, e era feliz.
Tinha uma faca cega, que não enxergava dentro do pão, e era feliz.
Tinha um tapete que embolava quando saía com pressa, e era feliz.
Tinha um gás com sete vidas. Quando acabava, deitava o botijão, e era feliz.
Sobreviver me transbordava de humor. Sempre dava um jeito, não perdia tempo reclamando, ia me adaptando. Ria de meus problemas para não fazê-los importantes.
A verdade é que a pobreza nunca me roubou a felicidade.

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Tio Silas e o pequeno fotógrafo - Denise Fraga

 Toda família tem um médico, um padre e um louco. Tivemos os nossos, ainda que fajutos. Nosso médico, não; foi grande clínico e cuidou de nós gratuitamente durante toda a sua vida. Nosso padre não chegou a terminar o seminário e provavelmente esqueceu de rezar por nós criando os seus cinco filhos. E nosso louco comportou-se muito bem, trabalhando na pacata prefeitura de sua pequena cidade. Era meu tio Silas.

Não chegava a ser louco, é difícil estabelecer tal fronteira. Não namorou, não se casou, não teve filhos. Vivia só, em companhia de sua velha mãe, minha avó. Depois que ela morreu, só Deus sabe de sua exata rotina vivendo sozinho na velha casa da cidadezinha mineira, que nos orgulhávamos de não achar no mapa. Lia muito, escrevia sonetos, decorava verbetes do dicionário, ficava dias tomando só leite e mandava escrever com tinta azul textos de grandes filósofos pelas paredes da casa. Fazia verdadeira arquitetura com os números, arregalando os olhos ao descobrir grandes coincidências como que a metade da idade de fulano dava o número da porta de cicrano. Nós, crianças, o achávamos muito engraçado.
Certo dia, caiu no banheiro e, a partir de então, passou a tomar banho de capacete. É mesmo uma imagem para não esquecer a de um tio magrela de toalha enrolada na cintura e capacete na cabeça passando pela sala em direção ao banheiro. Tinha uma letra linda com que escrevia cartas imensas para minha mãe, sua cunhada, talvez a pessoa desse mundo que lhe tenha destinado mais os ouvidos. Lia-lhe novas poesias por horas ao telefone, enquanto ela, com os olhos virados de santa paciência, continuava a nos dar ordens por sinais.
No fim de uma de suas cartas, assinou com um "ósculo santo". Me lembro de, menina, mais me preocupar com o porquê do "santo" do que me alegrar com o significado de ósculo, que corri a buscar no dicionário. Talvez o velho e louco tio Silas fosse mesmo platonicamente apaixonado por minha mãe.
Esta semana, no meio de uma sessão de fotos, o jovem fotógrafo me perguntou:
—Você tem alguma coisa a ver com uma cidade em Minas que se chama Carangola?
Contou que morou alguns anos por lá quando criança e que conversava com um senhorzinho da vizinhança que lhe dizia ser meu tio.
Meu tio Silas ficou perdido no tempo para mim. Depois que minha avó morreu, a força dos dias e a separação de meus pais foram nos afastando e eu nunca mais o vi. Me lembro da notícia de sua morte, mas não era capaz de dizer se, no lusco-fusco de sua sanidade, saberia que sua sobrinha tinha virado atriz e que carregava seu sobrenome por aí. Sim, ele sabia. E contava pro menininho na calçada. Precisei de um lenço para continuar a fotografar.

segunda-feira, 27 de maio de 2024

No aeroporto - Antonio Prata

 Sete meninas altas, de uniforme esportivo, passam à minha frente. Tento ler nas mochilas, perto do logo do Banco do Brasil, umas letrinhas que devem revelar a modalidade. Não consigo, elas se movem rápido, com a pressa de seus dezesseis ou dezoito anos. Penso: é um pouco irônico os jovens terem pressa e os velhos, paciência. Não deveria ser o contrário?

Acho que elas jogam vôlei, são todas altas, mas não tão altas como as profissionais. Imagino-as daqui a algumas décadas —advogadas, veterinárias, engenheiras— contando para amigos, namoradas ou namorados surpresos, "sim, eu era federada, cheguei a ficar em terceiro no sub-17 paulista".

Dois homens bebem cerveja e comem x-burgers. São nove e quarenta e sete da manhã —fora do aeroporto. Ali dentro o tempo é outro. Quem sabe eles estejam no fuso da Alemanha? De Kiribati? Ou talvez seja apenas a licenciosidade concedida pela proximidade da morte. (Uma proximidade apenas imaginada, claro, é muito mais perigoso andar de carro do que de avião, mas vai explicar isso para nossos cérebros que se formaram durante milhares de anos com os pés no chão.).

Não só a gula decola nos aeroportos. Um cara de uns 30 anos, tênis Vert e coletinho estilo XP, com a segurança de quem acaba de receber 10 milhões de investimento em sua startup, troca olhares com uma moça mais ou menos da mesma idade, calça preta, paletó e salto alto, com a segurança de quem acaba de aportar 20 milhões numa startup. (Gostaria de obter dados comparando as vendas de camisinha e Viagra nas farmácias dos aeroportos às das existentes fora dali. Certeza que deve comprovar a minha teoria).

Com todo respeito à sacrossanta Igreja Católica, não pretendia passar do citrato de sildenafila às freiras em um parágrafo, mas três delas cruzam meu caminho. Por que será que freira viaja tanto? Eu nunca as vejo caminhando pelas ruas. Passeando num shopping. Tomando sol num parque. Mas basta eu pisar num aeroporto que elas brotam, sempre aos cachos. (Não existe a freira individual, assim como não existe padre em grupo).

Uma vez viajei ao lado de uma freira. Confesso que, apesar de ateu, me deu uma certa segurança. É sempre bom, numa situação tensa, ter ao lado alguém que fala diariamente com Deus. Mas bastou o avião correr na pista pra ela puxar um papo não muito tranquilo com o divino: começou a rezar fervorosamente, apavorada. Quase a repreendi. "Minha senhora, se você que acredita ir pro céu depois da morte fica assim, o que espera de nós outros que imaginamos virar minhoca? Por favor! Recomponha-se!". Acabei não falando nada, apenas olhei em volta, instintivamente, procurando as outras freiras, que obrigatoriamente estariam no voo. Uma dormia, outra comia uma barra de cereais —o que me pareceu, não sei explicar porquê, uma atitude repreensível.

Um piloto cruza o salão com seus passos imperiais. Gosto de ver o orgulho com que os pilotos transitam pelos aeroportos. Não gosto de como os médicos se portam em hospitais. Há neles uma arrogância que não vejo nos pilotos. Os pilotos são os mágicos da festa. Os médicos são domadores de leão.

Um cara de uns quarenta e cinco anos abre o notebook sobre a mesa de um café. Pensa no trabalho que precisa ser feito. Pensa nos filhos que deixou em casa, dormindo. Pensa numa moça de mansos olhos verdes e revoltos cabelos negros de quem não queria se afastar. Sete meninas altas, de uniforme esportivo, passam à sua frente.


Adams Carvalho



Por que é célebre o poema de William Carlos Williams sobre as ameixas? - Ricardo Araújo Pereira

 

Por que será célebre o poema de William Carlos Williams sobre as ameixas? Traduzo, mais ou menos. Título: "É só para dizer".

 

"Comi/ as ameixas/ que estavam/ na geladeira/ e que / provavelmente você estava/ guardando/ para o café da manhã/ desculpe / eram deliciosas/ tão doces/ e tão frescas".

 

Comer ameixas não é uma atividade notável, e sobretudo está longe de ser um crime, mesmo sendo as ameixas de outra pessoa.

Mas há qualquer coisa no poema que nos faz sentir que quem comeu as ameixas cometeu uma infracção grave, da qual nem está arrependido (comunicar à dona das ameixas que elas estavam mesmo boas parece uma provocação desnecessária), e que essa transgressão vai indispor a legítima proprietária das ameixas.

 

Mas, vamos lá, são ameixas. Estas comeram-se, amanhã haverá outras. Sim, a dona das ameixas tinha, ao que parece, planos para elas. Mas não era propriamente um projeto grandioso, cuja não concretização vá produzir um transtorno irreparável.

 

Quem se preocupa assim tanto com fruta? Bom, a resposta é: Deus. Quando cria o homem e a mulher, Deus faz-lhes uma única advertência. Não há mandamentos (isso virá mais tarde), nem instruções de funcionamento do paraíso, nem cuidados a ter com os seus corpos novinhos em folha, nada.

 

A única preocupação de Deus é: vocês não podem comer o fruto de determinada árvore. Minto. Quando Deus emite essa lei, a mulher ainda não existe.

 

Eva só conhece esse ditame por interposta pessoa. Deus nunca lhe disse diretamente. Talvez seja por isso que a manhosa serpente se dirige a ela, e não a Adão.

 

O resto da história é conhecido: a serpente convence Eva, que convence Adão, e eles comem o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.

 

Depois, Deus aparece, e Adão culpa Eva, que culpa a serpente. E Deus castiga-os a todos —mas apenas por terem desobedecido à ordem de não comer aquele fruto.

 

O delito bem mais feio de se denunciarem mutuamente, Deus deixa passar sem fazer uma punição.

 

Há um pormenor muito curioso nessa história: a bíblia não especifica qual o fruto que Adão e Eva comeram, mas todo o mundo supõe que era uma maçã.

 

Erradamente, parece-me. Cá para mim, eram ameixas.

 

Ilustração de Luiza Pannunzio




terça-feira, 16 de abril de 2024

Um brinde às inimigas - Manuela Cantuária

 Duas amigas em uma mesa de bar. Uma delas ergue seu copo.

"Um brinde às inimigas, que elas tenham saúde em dobro para aplaudir nosso sucesso de pé!"

Elas brindam. E a amiga continua a falar.

"Tira uma foto minha? Quero exibir meu colar novo. É um amuleto contra inveja e mau-olhado. Rebate energia negativa."

Ela posa para a foto e, em seguida, confere o resultado.

"Ficou ótima. Vou ter que postar, em tempo real. Já sei até qual vai ser a legenda. ‘Dia difícil para as inimigas…’ Hashtag: blindada. Hashtag: elas que lutem. Hashtag: você reclama do meu apogeu."

"Amiga, posso te perguntar? Quem são essas inimigas?"

"Não vale a pena perder tempo. São um bando de recalcadas que não têm o que fazer."

"Só me fala o nome de uma delas. Uma só, que seja."

"Se eu fizer isso, vou ter que limpar a boca com alvejante logo em seguida, para tirar o ranço. Elas não merecem."

"Você não é a Coreia do Norte  para ter tantas inimigas assim. Que bobagem ficar alimentando essa competição. Rivalidade entre mulheres hoje em dia é tão demodê."

"Concordo cem por cento. Não tenho inimizade com ninguém. São os outros que têm contra mim. E agora eu que estou sendo julgada? Por que você não cobra sororidade delas, em vez de cobrar de mim?"

"Delas quem?!"

"Não é com elas que você deveria se importar. Cadê a sua empatia? Você fala assim porque não sabe o que é ser alvo constante da inveja alheia."

"Inveja de quê? Sou eu que vou pagar sua conta, amiga. Você está com o nome mais sujo que banheiro de rodoviária. Sua filha de 13 anos que te sustenta, monetizando vídeos no TikTok, enquanto você passa a maior parte do tempo correndo atrás de macho que não tem nada a te acrescentar além de chifre e clamídia. Já que você gosta tanto de pegar bandido, por que não faz um concurso para a Polícia Militar? Seria mais digno que enganar os outros com esquema de pirâmide."

"Não é pirâmide. É um grupo de ajuda mútua para mulheres bem-sucedidas. Era só o que me faltava. Mais uma tomando conta da minha vida. Eu não tenho nem um segundo de paz."

"Só estou tentando te ajudar."

"Com amigas assim, quem precisa de inimigas…?"


Ilustração de Silvis



Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...