sexta-feira, 5 de julho de 2024

Era feliz com tão pouco - Fabrício Carpinejar

 

No meu primeiro apartamento, formei a minha estantes de tijolos e tábuas colhidas na rua, e eu era feliz.
Tinha dois bancos feitos de engradados jogados fora por um bar, decorados com almofadas coloridas, e era feliz.
Tinha de cama simplesmente um colchão no chão, e era feliz.
Tinha quatro pratos e quatro pares de talheres e não podia receber mais gente, e era feliz.
Tinha um ventilador que funcionava melhor sem a tampa, e era feliz.
Tinha Bombril na antena da televisão, desespero para capturar três canais, um com tempestade na tela, o segundo com chuvisco e o terceiro com neblina, e era feliz.
Tinha vasos pintados a partir de garrafas de suco, e era feliz.
Tinha um lençol que servia de cortina, a claridade não me permitia dormir depois das 8h, e era feliz.
Tinha como lixo uma sacola plástica presa na torneira do tanque, e era feliz.
Tinha a mania de somente beber água de graça, e era feliz.
Tinha a tática de atrasar o condomínio a cada dois meses, e era feliz.
Tinha como arara as pernas de mesas viradas de escritório, onde aproveitava cinco peças para o mesmo cabide, e era feliz.
Tinha que secar o banheiro depois do banho com o rodo, pois não havia cortina no box, e era feliz.
Tinha abajur informe de papelão, que aprendi na aula de educação artística, e era feliz.
Tinha duas tomadas que produziam choque, e era feliz.
Tinha que esperar acumular mudas sujas por uma semana para lavar na mãe, e era feliz.
Tinha uma geladeira vazia, com lâmpada queimada. Ela imitava o ronco de meu estômago, e era feliz.
Tinha um chuveiro que se assemelhava a uma bomba-relógio, ninho de fios coloridos soltos junto à parede, e era feliz.
Tinha palito de dente como fio dental, prendedor de roupa como pegador de massa, uma panela multifuncional, e era feliz.
Tinha o papel-toalha com vocação de guardanapo e papel higiênico, e era feliz.
Tinha que colocar as cuecas e meias na janela da sala, único lugar em que batia sol, e era feliz.
Tinha um cinzeiro de vidro de maionese, e era feliz.
Tinha uma faca cega, que não enxergava dentro do pão, e era feliz.
Tinha um tapete que embolava quando saía com pressa, e era feliz.
Tinha um gás com sete vidas. Quando acabava, deitava o botijão, e era feliz.
Sobreviver me transbordava de humor. Sempre dava um jeito, não perdia tempo reclamando, ia me adaptando. Ria de meus problemas para não fazê-los importantes.
A verdade é que a pobreza nunca me roubou a felicidade.

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Tio Silas e o pequeno fotógrafo - Denise Fraga

 Toda família tem um médico, um padre e um louco. Tivemos os nossos, ainda que fajutos. Nosso médico, não; foi grande clínico e cuidou de nós gratuitamente durante toda a sua vida. Nosso padre não chegou a terminar o seminário e provavelmente esqueceu de rezar por nós criando os seus cinco filhos. E nosso louco comportou-se muito bem, trabalhando na pacata prefeitura de sua pequena cidade. Era meu tio Silas.

Não chegava a ser louco, é difícil estabelecer tal fronteira. Não namorou, não se casou, não teve filhos. Vivia só, em companhia de sua velha mãe, minha avó. Depois que ela morreu, só Deus sabe de sua exata rotina vivendo sozinho na velha casa da cidadezinha mineira, que nos orgulhávamos de não achar no mapa. Lia muito, escrevia sonetos, decorava verbetes do dicionário, ficava dias tomando só leite e mandava escrever com tinta azul textos de grandes filósofos pelas paredes da casa. Fazia verdadeira arquitetura com os números, arregalando os olhos ao descobrir grandes coincidências como que a metade da idade de fulano dava o número da porta de cicrano. Nós, crianças, o achávamos muito engraçado.
Certo dia, caiu no banheiro e, a partir de então, passou a tomar banho de capacete. É mesmo uma imagem para não esquecer a de um tio magrela de toalha enrolada na cintura e capacete na cabeça passando pela sala em direção ao banheiro. Tinha uma letra linda com que escrevia cartas imensas para minha mãe, sua cunhada, talvez a pessoa desse mundo que lhe tenha destinado mais os ouvidos. Lia-lhe novas poesias por horas ao telefone, enquanto ela, com os olhos virados de santa paciência, continuava a nos dar ordens por sinais.
No fim de uma de suas cartas, assinou com um "ósculo santo". Me lembro de, menina, mais me preocupar com o porquê do "santo" do que me alegrar com o significado de ósculo, que corri a buscar no dicionário. Talvez o velho e louco tio Silas fosse mesmo platonicamente apaixonado por minha mãe.
Esta semana, no meio de uma sessão de fotos, o jovem fotógrafo me perguntou:
—Você tem alguma coisa a ver com uma cidade em Minas que se chama Carangola?
Contou que morou alguns anos por lá quando criança e que conversava com um senhorzinho da vizinhança que lhe dizia ser meu tio.
Meu tio Silas ficou perdido no tempo para mim. Depois que minha avó morreu, a força dos dias e a separação de meus pais foram nos afastando e eu nunca mais o vi. Me lembro da notícia de sua morte, mas não era capaz de dizer se, no lusco-fusco de sua sanidade, saberia que sua sobrinha tinha virado atriz e que carregava seu sobrenome por aí. Sim, ele sabia. E contava pro menininho na calçada. Precisei de um lenço para continuar a fotografar.

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...