sexta-feira, 18 de março de 2022

Entre uma pandemia e uma guerra - Gilberto Amendola

 


Entre uma pandemia e uma guerra tem que nascer uma flor.

Em nome das crianças que atravessam a fronteira sorrindo, brincando com bonecas de pano e fantasias de Homem-Aranha. 

Em nome das mães que empurram carrinhos de bebê, que amamentam nos bunkers frios e cantam para seus filhos adormecerem.

Em nome dos velhinhas que saem às ruas de avental e colher de pau, que enfrentam invasores como se ‘ralhassem’ com a meninada.

Em nome do jardineiro que ainda não desistiu do seu jardim; do professor que ainda tenta ensinar alguma coisa aos seus alunos; em nome do engenheiro que sonha em reerguer um prédio bombardeado. 

Em nome da cozinheira que preparou uma ‘quentinha’ e saiu distribuindo entre os soldados.

Em nome do soldado que abandonou as armas e abraçou um inimigo. 

Em nome também dos vira-latas, que, mesmo assustados com o barulho das bombas, não saem do lado dos seus donos mortos.

Em nome dos homens de fé que continuam rezando mesmo sem nenhuma resposta. 

Em nome dos órfãos que ainda chamam pelo pai. 

Em nome de quem arrisca a própria vida para salvar um desconhecido.

Em nome do palhaço que passa o dia ensaiando um número engraçado – mesmo sem saber se alguém, algum dia, vai poder voltar a rir.

Rússia - Ucrânia
Tanque russo dispara durante exercício militar perto da cidade Rostov, na fronteira com a Ucrânia  Foto: AP

Em nome da cantora que atingiu o seu agudo mais potente e desviou a rota de uma bomba nuclear.

Em nome da bailarina que, na ponta dos pés, atravessa a cidades em chamas.

Em nome dos namorados que ficaram em lados opostos desta rinha.

Em nome dos poetas que continuam escrevendo. 

Em nome dos repórter que, de coração apertado, não deixa de cumprir o seu ofício.

Em nome dos que ainda tomam café e procuram por boas notícias no jornal pela manhã.

Em nome dos ratos – porque são apenas ratos.

Em nome dos sonhos que morreram inconclusos com o despertar do caos.

Entre uma pandemia e uma guerra tem que nascer uma flor. Não qualquer flor. Mas uma flor distraída, desocupada, inconsciente da sua própria responsabilidade.

Entre uma pandemia e uma guerra tem que brotar uma rede onde a gente possa descansar um pouco.

Entre uma pandemia e uma guerra tem que existir uma rota de fuga, uma saída. Pode ser um amor, um cigarro, um dry martini ou um bom filé. 

domingo, 13 de março de 2022

Chaves do coração - Milton Hatoum

 


Em poucos anos, muita coisa mudou neste quarteirão. Eu gostava de conversar com um vizinho, homem alto e um pouco corcunda, neto de italianos. Era Clemente: o chaveiro mais famoso das redondezas. Vivia com a Siciliana, uma gata cor de açafrão; ela esperava seu dono ao lado de bromélias exuberantes, que davam vida ao sobradinho cinza.

Clemente era meio mágico: abria portas que pareciam fechadas para sempre. Saía cedinho, segurando uma tabuleta em que se lia: “Não se desespere! Destranco portas e corações, dia e noite”. 

Além de chaveiro, ele orientava casais em crise; mais de uma vez evitou separações, amistosas e litigiosas. Era um homem magnânimo nesse tempo de guerra fratricida e racismo escancarado. Era também bom de copo, mas sábio: conhecia a fronteira da alegria eloquente com a embriaguez. Certa vez, num boteco, me contou ter atendido ao chamado de uma mulher que trancara o namorado no quarto. Ela jurava que perdera as chaves. 

“Me ligou às nove da manhã de um domingo. Só que o cara estava trancado desde a noite de sexta-feira. E sem celular. Ele conseguiu arrombar a porta de madeira, mas tinha outra, de ferro. Mais de 30 horas sem comer e beber! Soltava uns miados chochos. ‘Me solta, amor... Não faço mais isso, prometo.’ Minha Siciliana tinha mais voz que ele. Voz e coração.”

“E o que você fez?”

“Que trabalheira, meu. Eram duas fechaduras diferentes, para chaves sextavadas. Parecia uma cela. Destranquei a porta de ferro, ele saiu murcho, sedento e faminto. Senti pena? Não. Ele tinha sido bruto com a moça, mas só no gogó. Por isso ela não chamou a polícia. O cara foi embora. Aí, dois dias depois, me procurou. Morria de saudade da moça... Papo de arrependido. Dei outra bronca nele, mas o diabo é que ela também gostava do sujeito. Fui o mediador, falei coisas sérias, orientei os dois. Cobrei caro, e ele pagou. Levo jeito pra psicólogo? Mas não pude estudar. Dá trabalho trocar duas fechaduras... Difícil mesmo é amaciar corações.” 

Clemente morreu de ataque cardíaco. Não tinha filhos. O irmão herdou a casinha, e não quis ficar com a gata nem com as flores. Então eu trouxe a bichana e as bromélias para o meu canto. Da janela, Siciliana olha o sobradinho lá embaixo, agora um bar feio e barulhento, que tira o nosso sono. Tão bela e pensativa essa felina! O que pode dizer o olhar dela? Especulo, busco palavras, e enfim me vêm à mente os versos de Murilo Mendes: 

“Para a catástrofe, em busca/ Da sobrevivência, nascemos”.



quarta-feira, 9 de março de 2022

A última festa - Gilberto Amendola



Rita estava lavando a louça quando ouviu, sem prestar muita atenção, alguma coisa sobre armas nucleares. Secou as mãos molhadas de Limpol e correu para a sala. Demorou uns segundos para achar o controle remoto – que estava enfiado em um vão do sofá. Mesmo sem nenhuma necessidade, aumentou o volume da televisão. A notícia era clara...

Quando o filho chegou da escola, encontrou o seu bolo preferido em cima da mesa. Na vitrola, um álbum dos Beatles.

– É aniversário de alguém?

– Só quis te fazer um bolo, Jorginho. Aproveite.

– Vou tirar o uniforme para não sujar de chocolate.

– O gostoso é se lambuzar.

Jorginho estranhou o desapego da mãe com a impecabilidade do seu uniforme, mas preferiu não discutir.

– Que música é essa, mãe?

– Faz tempo que eu tô pra te mostrar. São os Beatles...

– Legalzinho.

– Escuta essa aqui. Como está o seu inglês? Ela se chama When I’m Sixty-Four.

– Ah, acho que são 64 anos, né? O cantor tinha 64 anos.

– Quando gravou essa música, ele só tinha 24 anos. Agora, já tem quase 80. 

– Nossa, imagina quando você tiver 64, mãe. E eu? Acho que já vai ter carros voadores...

Rita tentou disfarçar, mas sentiu o coração apertar.

A campainha tocou no apartamento de Rita. Eram duas vizinhas chegando com minicoxinhas, garrafas de vinho e um engradado de cerveja.

– Que festa é essa, mãe?

– Festa nenhuma. A gente só quis fazer uma reuniãozinha.

Uma das vizinhas, dona Filomena, aproximou-se de Jorginho e perguntou: “Você tem namorada?” 

O menino, encabulado, disse que não.

– Vou buscar minha sobrinha agora. Ela tem a sua idade – disse Filomena.

Outros vizinhos chegaram no apartamento trazendo quitutes, sorvetes e bastante bebida alcoólica. 

Rita colocou um documentário sobre Paris na televisão e começou a choramingar.

– Nunca conheci. Não tive a chance.

Filomena, enfim, entrou com a sobrinha pela mão.

Na vitrola, saíram os Beatles. E os sucessos de Roberto Carlos foram cantados em uníssono pela turma.

No celular de Rita, a notícia sobre um botão que já havia sido apertado.

– Beija, beija, beija – gritavam para Jorginho e para a sobrinha de Filomena.

No início, eles não estavam entendendo nada. Logo depois, não haveria mais nada para entender – nem o tempo, nem o espaço.

Impossível saber se Jorginho beijou. 


Dedo de Deus - Arrigo Barnabé

 https://youtu.be/J1dB4wHVMxw




Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...