sábado, 25 de setembro de 2021

Cancelamentos possíveis - Antonio Prata

 J. foi o primeiro antropólogo a traduzir os fundamentais cânticos fúnebres da língua Baruna. Num debate entre J. e o pajé Wa’am’biipi, parte da comemoração pela demarcação das terras Baruna —vitória para a qual os trabalhos e o ativismo do antropólogo não podem ser desconsiderados—, alguém gritou da plateia: “usurpador!”. Tratava-se de M., membro da bancada ativista de São Joaquim D´Oeste. Segundo M., receber os louros pela tradução de uma obra indígena e comemorar a demarcação ao lado do pajé fazia de J. a versão intelectual dos Pizarros, dos Cortéses, dos Pedro Álvares Cabrais, um “neoextrativista dos bens culturais ameríndios”.

Em alguns meses, a campanha “antitradução”, corrente segundo a qual apenas um membro de sua própria etnia, aprendendo uma língua alheia, poderia verter para ela seu idioma, levou J. de herói a facínora. J. foi afastado da faculdade. Seus artigos encomendados por publicações acadêmicas foram cancelados.

Com o caso J., M. acabou ficando bombadinho nas redes e foi filmado numa praça batendo boca com a namorada. Surgiu então uma campanha barulhenta exigindo a expulsão de M. da bancada ativista de São Joaquim D´Oeste, pois tratava-se de um “machistx em pelx dx cordeirx”. “Trata as mulheres com a mesma opressão colonialista que finge combater! Lixo humano!”.

M. e a namorada, com quem tinha feito as pazes na mesma tarde, na mesma praça, acharam que seria uma boa estratégia divulgar a foto dos dois num sex-shop, segurando uma cinta peniana, com a qual, revelariam, ela costumava penetrá-lo. Provariam, assim, o quanto M. estava, “através da desdomesticação heteronormativa colo-colonial”, engajado “na subversão dos afetos patriarcais”.


O brinquedo erótico, porém, tinha tiras de couro e suscitou a ira de ativistas veganos, que lançaram nas redes montagens de imagens do casal sobrepostas a de bois ensanguentados em matadouros, trespassados por enormes cintas penianas. Uma semana depois, toda a bancada ativista de São Joaquim D´oeste renunciou ao mandato —dando mais espaço, aliás, para a vereança ruralista, dona dos abatedouros.

Nas redes, os ruralistas chamaram M. de homossexual. M. disse que, se fosse, seria feliz, pois na Grécia clássica e em Roma, por exemplo, relações sexuais entre homens não eram nenhuma vergonha, eram motivo de orgulho.

M. certamente não estava à par das últimas polêmicas sobre o período clássico. Como era comum, àquela época, homens feitos terem relações sexuais com mancebos, Sócrates, Platão, Aristóteles, Ésquilo, Sófocles, Aristófanes e companhia não passavam de pedófilos, abusando de menores “no gozo perverso do privilégio gerontocrático”. Gregos e latinos foram cancelados.

Há quem diga que as únicas obras dignas de mérito em toda a história do pensamento são os livros da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Uma tendência mais recente, contudo, contesta Chimamanda ferozmente, por ter se mudado para os Estados Unidos e escrever em inglês, não em uma das 510 línguas atualmente faladas no país africano. “Feminista e antirracista sendo filha de professor universitário e ganhando em dólar, é fácil”, escreveu um membro do movimento #fuckfakeafrican —em seu iPhone, nos Jardins. “Mas e as mulheres que ficaram na Nigéria? As que não têm o auxílio imperialista de uma Chimamanda? O palanque etnocêntrico de um J.? O privilégio machista e especista de um M.? Todo o lobby branco dos gregos e latinos? Quem as lê? Quem as enxerga, sequer?”.

A. escrevia na Folha de S.Paulo, até que.


ilustração: Adams Carvalho



Só os filósofos de língua portuguesa podem pensar em coisíssima nenhuma - Ricardo Araújo Pereira

 

Dizem que Tales de Mileto estava um dia tão embrenhado a olhar para o céu, observando as estrelas, que acabou por cair num poço. Platão acrescenta que uma bela e espirituosa criada da Trácia riu dele e o fez notar que a sua ambição de conhecer as coisas do céu o impediu de ver as coisas que tinha mesmo debaixo do nariz.

 

Não sei em que medida é que o fato de a moça ser bela, espirituosa e criada oriunda da Trácia acrescenta peso à humilhação de Tales, mas Platão achou importante que tivéssemos essas informações. Talvez seja mais humilhante fazer figura de bobo à frente de pessoas belas. Pode ser isso.

 

Costuma dizer-se que, quando o sábio aponta para a Lua, o louco olha para o dedo. O que me interessa é que o autor dessa observação olhou para todo o lado: para o sábio, para a Lua, para o louco e para o dedo. O que quer dizer que olhou através dos seus olhos (porque viu o sábio e o louco), e olhou através dos olhos do sábio e através dos olhos do louco (porque também viu a Lua, como o primeiro, e também viu o dedo, como o segundo). Na história de Platão, Tales só viu as estrelas. A criada viu Tales, as estrelas e o poço. Ela era uma filósofa melhor.

 

Heidegger recupera essa história no seu livro "O que É Uma Coisa?", cujo título dá vontade de rir, pelo menos até a gente começar a ler, altura em que toda a alegria nos abandona.

 

O livro é uma investigação sobre a substância das coisas, a nossa relação com elas, e o modo como a nossa relação com elas pode influenciar a sua substância. Ou seja, é chato (eu sou um leitor de filosofia muito sofisticado).

 

Mas todas aquelas reflexões sobre as coisas fizeram-me lembrar aquela expressão que os falantes de português usam: coisíssima nenhuma. E afastei-me um pouco do pensamento de Heidegger para me maravilhar com a improbabilidade dessa expressão.

 

Como assim, coisíssima? Coisa é um substantivo. Quem teve a ideia de o superlativar? E então concluí que qualquer filósofo pode dedicar-se a pensar as coisas. Mas só os filósofos de língua portuguesa podem ser bem-sucedidos na difícil, quase impossível tarefa de pensar em coisíssima nenhuma.

 

Ilustração: Luiza Pannunzio



segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Encontros - Luis Fernando Verissimo



No outro dia, me encontrei com Adolf Hitler. Ele parecia bem, para um homem com 125 anos. E feliz. Talvez fosse o clima de Itatiaia, onde ele veio morar depois da guerra e onde tem uma pequena pousada no estilo bávaro. Perguntei a que ele atribuía sua jovialidade, e ele respondeu: “A uma vida bem vivida”. E continuou:

– Fiz tudo o que me propus fazer, na vida. Sou um homem realizado. Um vitorioso.
Eu não quis ser indelicado, mas era preciso lembrá-lo:
– A Alemanha perdeu a guerra, Adolf.
– Ach, a Alemanha. EU ganhei. Consegui tudo o que queria. Me vinguei!
Não entendi. Ele se vingara dos aliados, que tinham vencido a I Guerra Mundial e imposto pesados castigos à Alemanha derrotada? Se vingara dos seus inimigos políticos, que tinham tentado impedir sua ascensão ao poder? Dos judeus? Se vingara de quem, exatamente?
– Da Academia de Artes de Viena, que não me aceitou. Sabe o que eles disseram das minhas pinturas quando eu quis me matricular? Que eram muito água com açúcar. Água com açúcar! Jurei, então, que me vingaria. Que minha arte ainda iria espantá-los. Que eles iriam ver.
Depois de tanto tempo, Hitler ainda se entusiasmava com a lembrança do que fizera. Mesmo com seus 125 anos, dava pulinhos de satisfação. As pessoas não tinham entendido que a destruição da Alemanha e de boa parte da Europa num holocausto de fogo era o seu objetivo: era a sua obra.
A cada notícia de uma cidade alemã arrasada por bombardeios, a cada nova barbaridade, ele dava gargalhadas. Seu único sentimento ao ver Berlim totalmente em ruínas, antes de fugir para o Brasil, fora o de não poder assinar o quadro como se assina uma pintura. Ele conseguira. Um fim apoteótico, wagneriano. Queria ver a Academia chamar aquilo de água com açúcar!
Quando nos despedimos, ele me convidou a visitar sua pousada, onde serviam um apfelstrudel respeitável.
No mesmo dia (que dia!), dei com o Martin Luther King na rua. Não pude me controlar a exclamei:
– Negrão! Ele não gostou. – What?
– Desculpe! É um hábito brasileiro... “Negrão” é um termo carinhoso. Quer dizer, carinhoso não. É... comum. A gente diz sem pensar. É como chamar negro de crioulo. Não é desrespeito, entende? Ou é mas não é. A gente também chama crioulo – quer dizer, desculpe, afrodescendente – de negrinho, mesmo que ele tenha dois metros de altura. Não é racismo, é... é...
O King só me olhava. Finalmente disse: – É racismo, sim.
Ele começou a se afastar. Eu ainda gritei: – Mas é inconsciente! Não adiantou. Ele nem se virou.



Crônica publicada em 07/09/2014

domingo, 5 de setembro de 2021

Canção do exílio - Antonio Prata

 

Chuva no mar. Gota grossa na nuca debaixo do chapéu de sol. Cheiro de Sundown e farelo de polvilho no fundo da mochila. Preta, preta, pretinha. Vai, malandra. Vai-Vai. Treze de Maio. Joaquim Nabuco, Manuel Bandeira, Chico Science e Nação Zumbi. Manamauê, auêia, auê. Minha terra tem primores,/ Que tais não encontro eu cá;/ Em cismar —sozinho, à noite—/ Mais prazer encontro eu lá.

 

Senhorinhas fazendo hidroginástica no SESC. A moça da bilheteria com dreads roxos. As meninas com joelheira de vôlei quase atropelam o japonês do violoncelo. A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. A passagem por baixo da Consolação a caminho do Belas Artes. O passe do Pelé pro Carlos Alberto na final da Copa de 70. O texto do Pasolini sobre o futebol prosa dos europeus versus o futebol poesia dos brasileiros. O futebol poesia dos brasileiros. E por falar em beleza/ Onde anda a canção?/ Que se ouvia na noite/ Dos bares de então/ Onde a gente ficava/ Onde a gente se amava/ Em total solidão.

 

Embrapa, Lygia Clark, Magalu, Artur Avila, Grupo Corpo, Santos Dumont, Embraer, família Gracie, IMPA (Instituto de Matemática Pura e aplicada), INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), FEBEAPÁ (Festival de Besteiras que Assola o País), ASPONE (Assessor de Porra Nenhuma), camarão VG (Verdadeiramente Grande), CB (Sangue Bom).

 

Clarice Lispector, Karen Jonz, Ingrid Silva, Marta, Mara Tara, Rê Bordosa, Laerte, Leila Diniz, Iemanjá, Oxum, Iansã. Quem é você que não sabe o que diz?/ Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!/ Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz/ Que sempre souberam muito bem/ Que a Vila Não quer abafar ninguém,/ Só quer mostrar que faz samba também.

 

Didi, Dedé, Mussum e Zacarias. Tarsila, Oswald, Mário e toda antropofagia. Sócrates, Casagrande, Wladimir e toda a Democracia. A cabeçada do Guerrero contra o Chelsea em Yokohama. As faixas nas arquibancadas: Fiel Vila Matilde, Fiel Jardim ngela, Fiel Itaquaquecetuba. Mano Brown. Mestre Pastinha. Caetano Veloso. Mãe Menininha. Grande Otelo. Zeca Pagodinho. Paulo Freire. Zilda Arns. Dorothy Stang. Marielle. Chico Mendes.

 

O pra e não o para. O “já é” e não o “sim, senhor”. A pororoca e não as margens plácidas. O erudito, sim, o experimental, sim, o popular, sim, o axé, sim, o pagode, sim, o funk, sim, o sertanejo, sim, Hermeto Pascoal, sim —coragem grande é poder dizer sim.

 

Água mole em pedra dura. Trinca. Trepadeira. Drible. Contratempo. O que brota apesar de. O que cresce muito embora. O que se enxerga a contrapelo. Tudo o que já foi motivo pra cadeia por vadiagem ou subversão. Tudo o que já foi construção e não é ruína. A missão francesa fundando a USP. Movimento Armorial. Aterro, Artigas. Brasília. Refavela. A seleção de 82. Diretas Já! A promessa do encontro entre o morro e o asfalto numa segunda abolição. A Amazônia de pé e garotas sentadas sob a marquise do Masp, sem medo, às seis horas de um domingo, vendo o sol nascer lá pros lados do Tatuapé.

 

Vou voltar/ Sei que ainda vou voltar/ Vou deitar à sombra/ De uma palmeira/ Que já não há/ Colher a flor/ Que já não dá/ E algum amor/ Talvez possa espantar/ As noites que eu não queria/ E anunciar o dia/ Vou voltar/ Sei que ainda vou voltar/ Não permita Deus que eu morra/ Sem que eu volte para lá.

 

Ilustração:  Adams Carvalho





Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...