Mais do que o cheiro da chuva no quintal, o ipê amarelo do
vizinho ou as maritacas na amoreira, o que me pegou ao mudar para uma casa
foram os sons da vizinhança. Uma porta range. Uma panela de pressão apita. Um
bebê chora. Alguém varrendo às vezes lembra um afoxé endiabrado num baião do Gil,
outras a vassourinha langorosa num jazz do Chet Baker. Pios, claro, sempre —se
é verdade que os pássaros produzem sons para atrair parceiros, a vida deles é
um Tinder ininterrupto. Todo domingo de manhã uma pessoa estuda tuba. Está na
mesma lição desde maio, mas não me incomodo, pelo contrário: os sofridos fom
fum fem fam fum me reafirmam que a vida segue, que apesar dos pesares, a poucas
dezenas de metros da minha janela alguém se dedica a algo que não tem nada a
ver com mentiras, queimadas, fuzis.
Os sons que mais me interessam nesta nova vida ao rés do chão, no entanto, não vêm de humanos: são os latidos. Eu diria que estou cercado por uma matilha, pois embora estejam separados por muros e talvez não se conheçam pessoalmente, fica evidente pelos latidos a intimidade da turma. Tô aqui trabalhando, de repente um puxa o coro e todos seguem, empolgadaços, numa conference-call. Latem, latem, latem, como se não houvesse amanhã, aí a coisa vai esfriando, arrefecendo e voltam todos para seus silenciosos afazeres.
As pautas mudam. Há momentos em que a indignação é patente:
um salsicha lá da ponta do quarteirão começa a ganir bravíssimo para —quem
sabe?— um carteiro e todos o acompanham, solidários. É o panelaço deles. Posso
ouvir por entre as rosnadas: #FORACARTEIRO, #VOUMORDERSEDEX #XIXINACONTADELUZ.
Outras vezes eles parecem estar se divertindo. Como se um latisse “Vai,
Curintchaaaa!” e os outros seguissem com “El el el, bulldog da Fiel!”, “Aqui é
vira-lata, porraaaa!”.
Ontem eu estava lendo “O corpo encantado das ruas”, do
grande Luiz Antonio Simas. Fluente na língua dos homens e dos deuses, passeando
entre a Gamboa e o Daomé, o historiador falava sobre as muitas entidades que
moram nas ruas da cidade. Exu, Zé Pilintra, Legba: “inimigo do conforto, vez
por outra desarticula tudo para estabelecer a necessidade de fundar a
experiência em bases diferentes”. Eram umas duas da manhã, eu lia sobre tais
deuses que fomentam a vida bagunçando os coretos e a cachorrada começou a
uivar, como lobos pra lua num desenho animado. “Ó eles aí!”, pensei na hora.
Exu em prédio não deve dar conta do serviço. Um só pra vinte, quarenta
apartamentos. Dilui. Em casa, os ouvimos com mais clareza.
Antes, eu não via muita graça em cachorro. Achava-os de uma
fidelidade, perdão, canina. Puxa-sacos de uma espécie que, convenhamos, não
merece respeito. Mas quando eles começam a latir em uníssono às duas da manhã,
mandando às favas a submissão, lembram-me mais uma turma de skatistas, uns
punks, uns Novos Baianos, uns Monty Pythons. Com a cachorrada não tem lei do Psiu,
criança dormindo, manhã, tarde, noite, doutor, madame ou general. Se não são os
cachorros também entidades encantadas das ruas, meu caro Simas, certamente têm
parte com.
Eu nunca tive cachorro. Na infância, meus pais não deixaram, depois de adulto eu é que não quis –já basta alimentar, lavar, e limpar a mim mesmo e a duas crianças. Agora, no meio desta madrugada interminável, minha vontade não é nem de comprar um cachorro, mas de me juntar a eles: sair no quintal e latir, latir, latir, como se não houvesse amanhã. Até porque, pelo andar da carruagem, talvez não haja.
Ilustração: Adams Carvalho