sexta-feira, 5 de março de 2021

Paixão em plena pandemia - Milton Hatoum

 



Há quanto tempo a gente não se via? Onze meses e meio, talvez. Era uma eternidade para quem se encontrava duas ou três vezes por mês. 

Quem envelheceu mais? Eu, sem dúvida. 

“O mundo”, disse Yara. “E envelheceu muito mal. Ficou mais fanático, mais perigoso. Tem vacina para o vírus, mas qual é a vacina para a mentirada criminosa? Se não derem um basta na destruição e no fanatismo, esse planeta vai ficar deserto.” 

Mas as ruas do último sábado não estavam desertas; na calçada dos bares juntavam-se homens e mulheres de meia-idade, e alguns jovens, todos alegres, sem máscara, copo nas mãos. Uma alegria extasiante no fim daquela tarde morna, ainda solar. 

Num bar o papo era sobre a vergonhosa derrota de um time; noutro, alguém dizia que fulano só telefonava para comentar tragédias; mais adiante, um grupinho animado planejava uma viagem para o fim do ano; o país de destino já estava decidido, alguém sugeriu o trajeto: Roma, Nápoles, Veneza... 

“Veneza”, repetiu Yara, afastando-se da calçada, como se dissesse: vamos dar o fora daqui. 

Você também está pensando em Veneza?

“Nessa Veneza, não. Estou pensando em outra... A Morte em Veneza. A novela de Thomas Mann é muito atual. É um dos meus livros desta pandemia. O personagem é um escritor que se alimenta de sua sensibilidade escravizada, da autocrítica ferrenha e de uma insatisfação com ele mesmo. Tudo isso fazia parte da natureza do talento dele. Mas ele quis dar um tempo na obra que escrevia, na rotina rígida, na disciplina. Sentiu falta de terras distantes... Saudade da vida nômade. Acho que são essas palavras do narrador: a inquietação da vida nômade... Até na velhice a gente sente isso.”

Mas você não é velha.

“Já ultrapassei a linha de sombra. Sou mais velha que o personagem de Mann. É incrível, não é?”

A velhice?

“Não, o personagem. A velhice não tem nada de incrível. É verdade que a gente se surpreende menos com as aberrações, com a crueldade, com as mentiras... É como se o horror atual fosse mais um ensaio para o próximo horror. Você se lembra do personagem?” 

Gustav von Aschenbach, um escritor em crise. A arte e a vida... Mas não me lembro dos detalhes...

“Aschenbach sabe que a peste está tomando conta da cidade, sabe que as pessoas estão morrendo e que ele corre perigo. Mesmo assim, ele fica em Veneza e se entrega à paixão por Tadzio, aquele Apolo. A paixão inalcançável. Na Alemanha, quando ele desiste de escrever num lugar isolado, tedioso e frio e embarca para a Itália, parece que tudo já estava escrito nessa decisão.” 

Ela olhou de relance o grupinho da cervejada que planejava a viagem à Itália. 

“Como os super-heróis e heroínas vão entender o destino de um anti-herói?” 

Podem entender, eu disse. Podem ler essa novela e outras. 

“Um ano sem a gente se ver e você mudou. Agora é um otimista.”

Bom, um pouco de pragmatismo faz bem, até para os pessimistas. Alguém naquele bar deve ter lido boas histórias, bons romances, alguma poesia...

“Alguma poesia! É pra rimar com ironia?”, disse Yara, dando uma gargalhada sufocada pela máscara dupla. 

Não pensei no livro do Drummond. Apenas quis dizer que várias pessoas nessa festa de rua podem ter lido um dos livros que você traduziu do alemão ou do inglês. 

“Ele morre de paixão. Sabe que vai morrer, mas não renuncia ao amor.” 

Yara olhou para a sacola na minha mão: livros?

Não. Vinho, duas taças e um saca-rolha. 

“E onde a gente vai beber?”

Ali, naquele banco. Não tem ninguém por perto. 

“Três metros de distância, por favor.” 

Três?

“Sim. Não posso, não quero me arriscar. Sei que você quase não sai de casa, mas agora não moro mais sozinha.”

Ah, a paixão na pandemia.

“Mas sem a morte, longe de Veneza, e sem grandes expectativas.”

Bom, então você tem o que contar.

“Quantas garrafas você trouxe?

Uma.

“Depois da vacinação, traga três. Mas com uma garrafinha dá pra contar o prelúdio.” 





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