segunda-feira, 29 de março de 2021

O amor cobra sua fatura - Vera Iaconelli

 Cantado em verso e prosa, o amor entre humanos, quando correspondido, é das maiores fontes de satisfação que se tem notícia. Seja fugaz ou duradouro, paixão ou amor, com ou sem sexo, trata-se de uma experiência da qual ninguém sai ileso.

Não é de se estranhar que no auge do encontro amoroso a realidade da morte se apresente da forma mais cristalina para os amantes. O orgasmo, também chamado de “petit mort”, revela como o máximo do prazer flerta com o fim —o apagamento da consciência.

A jura de amor tem sempre algo de despedida, pois cada segundo no qual se desfruta da presença do outro é um segundo a menos do tempo que resta. O desejo se renova na exata medida do temor de perder o amado.

Nos casais, o amor é o que pode sobrar, quando acaba o chantilly da paixão. Por vezes, o amor erótico muda o destino de uma amizade, transformando, de repente, o que era casto e fraterno em sexo e espanto, que pode ser seguido de arrependimento ou gostinho de quero mais. O amor a qual me referi até aqui é herdeiro do ideário romântico que nasce com o homem moderno.

Mas o amor é bem menos circunscrito a um período histórico, sendo a base das relações humanas. Basta citar o amor fraterno, o amor filial, o amor espiritual, cada um com seu grau de apaixonamento próprio, ainda que apartados do intercurso sexual.

Os rituais fúnebres da pré-história humana revelam formas de honrar e lamentar a perda de pessoas queridas e são os primeiros indícios da capacidade humana de simbolizar a morte e o amor, na forma de lamento por sua perda.

O amor transferencial proposto por Freud no dispositivo psicanalítico, por sua vez, trata de um desencontro previsto e que não pode prescindir de um bom e ético manejo. O paciente ama no analista algo que ele mesmo —paciente— deposita lá. O analista sustenta esse equívoco sem se permitir a impostura de acreditar que o amor que o paciente lhe transfere diga respeito aos encantos do analista.

Como o próprio nome diz, é afeto transferido de outrem e cabe ao analista abster-se de corresponder-lhe.

Nada impede que reconheçamos no trabalho e na pessoa do analista seu valor, e que o amor decorrente da gratidão e da admiração surjam ao longo do tratamento. Mas se trata de afeto que não pode ser confundido com o que o paciente deposita de excesso na relação.

Breuer, parceiro de Freud na pré-história da psicanálise, escorregou na casca da banana deixada por Anna O., a musa da histeria e paciente fundadora do dispositivo analítico. Acreditou que o amor da jovem paciente por ele fosse devido a seus irresistíveis dotes de senhor barbudo. Freud, de sua parte, foi impecável no quesito abstinência. Lacan  foi bem mais questionável como podemos ler no delicioso “A Vida Com Lacan” (Zahar, 2017) da psicanalista Catherine Millot —paciente e amante do analista francês.

O amor romântico foi criado e assim poderá desaparecer, como seu declínio vem apontando. Não vejo grandes problemas nisso, inventa-se outras formas.

O mesmo não se pode dizer do amor fraterno, cujo declínio aponta para o fim da civilização. De fato, de todos os amores, o que mais carecemos hoje é esse último.

Nem políticos, nem soldados, nem cientistas… os heróis do nosso tempo são as pessoas ainda capazes de amar o outro, o desconhecido, o anônimo. O resto é o horror da indiferença. O resto é contar pessoas como se fossem números: até ontem, 312 mil.


Grafite em Salvador retrata amor em tempo de pandemia 



Saudade com colarinho - Gilberto Amendola


Saudade do barulho de copo quebrando. De gelo trincando. De reclamar da música. De me encher de amendoim. De elogiar o colarinho. De dividir a conta com a calculadora do celular. De discutir os 10%. De esperar uma mesa. De segurar um lugar para quem está atrasado. De concordar sem ouvir o que o outro disse. De ganhar uma saideira. De tremoço. De pedir água. De esperar na fila do banheiro. De achar ruim com quem demora no banheiro. De dividir uma porção. Que saudade de dividir uma porção!

De uma televisão sem som. De esbarrar em desconhecidos. De meu número de telefone anotado em guardanapos. De ouvir que a “cozinha vai fechar”. De perguntar o que o outro está bebendo. De dar um gole na bebida de um desconhecido sem me achar um louco. Da caneta atrás da orelha do garçom. Das bolachas de chope. Aliás, de contar as bolachas de chope. De coqueteleiras gritando. De sussurrar uma bobagem no ouvido de alguém. De invejar a mulher do próximo. De pedir a receita do drinque. De ganhar um shot. De virar um shot.

De olhar o cardápio. De decorar um cardápio. De pedir alguma coisa fora do cardápio. De pedir alguma coisa acebolada. De bacon. De pururuca. Das fritas. De ouvir o “Parabéns a Você” vindo de outra mesa. De perguntar se “esqueceram o meu pedido”. De pedir para “caprichar”. De observar as mesas sendo recolhidas. De me apaixonar por uma desconhecida.

De discutir política. De deixar uma caixinha. De pedir outra caipirinha. De beber na calçada. De chorar por uma segunda saideira. De ganhar uma cortesia. De esquecer o celular. De tirar fotos bobas. De ficar até fechar o bar. De ajudar a fechar o bar. De perguntar se estão precisando de funcionários.

De comprar um livro de um escritor que oferecia exemplares de mesa em mesa. De levantar as pernas para o funcionário passar o rodo. De pedir a conta fazendo aquele gesto com a mão. De ser convidado a se retirar. De dar vexame. De desmarcar exames. De mandar mensagens pra contatinhos. De lembrar da ex. De reclamar da ex. De perguntar se ainda dá pra tomar mais uma coisinha.

De voltar para casa andando. De voltar pra casa sozinho. De voltar pra casa acompanhado. De errar a chave na fechadura. De me jogar na cama. De me sentir feliz. De acordar de ressaca. De prometer que nunca mais. De descumprir essa promessa no outro final de semana. De ouvir meu nome repetido no bar. De me sentir bem-vindo. Da vida que eu levava antes.

terça-feira, 16 de março de 2021

Estações de Metrô - Gilberto Amendola

 

Palmeiras-Barra Funda

A plataforma está cheia. Do alto, sou o aqualouco decidindo se devo ou não pular naquela piscina. Se a covid  fosse fosforescente, eu teria uma estratégia de como nadar até o vagão. Talvez se eu nadasse de costas. De costas. 

República 

Dois fanáticos por futebol entram no vagão. Um passageiro usa uma máscara do Corinthians; o outro, a do Palmeiras. Sinto uma troca de olhares, uma briga silenciosa, uma promessa de violência que nunca será consumada. Não são negacionistas. Foi um empate com sabor de vitória para os dois lados. 


O religioso entra no vagão. Tira a máscara, abre a Bíblia e começa a pregar. A palavra gritada, lançando perdigotos negacionistas pelo ar, vai perdendo o sumo. Ele fala em amor, compaixão, respeito, mas o que se ouve é apenas um zunido de rádio mal sintonizado. Daquela boca sem máscara pululam conceitos abstratos, folhas podres, slogans de morte. Perto de mim, alguém grita: “Põe a máscara, maluco”. E essa foi a verdadeira e única palavra do Senhor. 

Brás

O ambulante não sabe usar o produto que está tentando me vender. Qual a razão de usar a máscara no queixo? Dever ser como usar preservativo na orelha, não é? Ainda assim, ele insiste em dizer que a máscara é excelente e que tem um material qualquer capaz de esganar a covid que, porventura, venha com alguma saliência viral para cima de nós, potenciais compradores. Ele garante que a máscara também é eficaz contra todas as cepas e tretas que existem ou que ainda não foram descobertas. São cinco máscaras por R$ 10. Levo três por R$ 5. 

Tatuapé

Em pé, perto da porta, o casal se beija. Impossível não reparar no desespero de línguas enroladas, afogadas, famintas, sacanas e insaciáveis. Um beijo como se não houvesse amanhã. Talvez não tenha mesmo. Em tempos de pandemia, o amanhã é um luxo sem garantias. Imagino corações de covid sobrevoando a cabeça da dupla. Todo meu apoio, mas seria melhor se eles arrumassem um quarto. Mas um quarto está muito difícil de se achar.

Penha

Tem um jovem sentado no lugar reservado para os idosos. Uma senhora de idade bastante avançada e cabelos brancos se aproxima. Sinto que ela tenta chamar atenção do menino de forma educada. Ele finge que não está vendo. Penso em intervir, mas sou pego de surpresa pela reação de velhinha. Ela começa a conjurar uma espécie de praga ou maldição contra o folgadão. O garoto dá de ombros. Finge que não é com ele. A idosa, sem mais delongas, afastou-se e sumiu entre os outros passageiros. Sumiu, literalmente. Desapareceu, sacou? O garoto ainda não pode perceber, mas eu já vejo os efeitos do seu descaso. Coitado. Amo as bruxas. E sempre torci por elas. 

Guilhermina-Esperança

O vagão está tão cheio que agora a estação só se chama Guilhermina. 

Corinthians-Itaquera

Abrem-se todas as portas, com meu “abre-te, Sésamo” imaginário. Quem não foi ungido pelo home office desceu apressado – depois de arrancar a fórceps da muquirana mão da existência mais um dia de pão e de leite. Agora, é chegar em casa, tirar os sapatos, tomar um banho, brincar com as crianças, jantar com a patroa, assistir um pouco de TV e torcer para essa tosse chata não ser nada demais. 


Foto: Daniel Teixeira ( O Estado de Sã Paulo)



sábado, 6 de março de 2021

Sexo, paixão, amor e ciúme - Marcelo Rubens Paiva

 Paixão:

Colocou lençóis limpos e um vasinho com flores. Ela chegou, e logo se deitaram. Meu mocinho, amor... Nus, na posição. Massagem nas costas, carinhos, beijos no pescoço, na orelha, na testa, nos olhos, no nariz, na boca, nos ombros, em toda a barriguinha. Júlia, virgem como ele, era magra como ele, com as pernas esguias. Pareciam dois grilos na cama trançando braços e pernas. O desejo era enorme. Assim como as dificuldades. Pensavam que seria fácil. Fizeram tudo certinho. Nada. Doía. Não era para doer, era para ser lindo, do outro mundo, inédito, apaixonante. Não entrava. O que faltava? Relaxaram. Olharam o teto. Riram da situação. Massagem, beijos, lambidas, carinho, sobe novamente, ela encaixa as pernas nas costas dele, se acomoda, abraça, queria tanto quanto ele, vai, agora vai, vai! Dói! Posso? Dói. Não entra? Não entra. Mais uma vez. Para, para, para!


Ato:

Numa tarde em que estavam apenas os dois, foi com tudo, sem medo de vê-la sofrer, porque a culpa era dele e da sua sociedade patriarcal, de sacerdotes e ancestrais. Perdão, você vai sofrer, vai sangrar, tabu meu não querer machucá-la, vou machucar esta pele tão valorizada em culturas primitivas, como escreveu Freud, vou rasgar, desculpe, eu vou te salvar, nos salvar. Deus está morto! Nu, sobre ela, encaixado, forçou, não parou, forçou mais, tensionava, abriu mais sua perna, e empurrou com uma força descomunal, ela pulou, entrou, ela se contorceu de dor, abriu, sangrou, ele sabia que doía, ela o beijou, forçou novamente, ela se contorceu mais, abriu mais as pernas, ficaram com as bocas grudadas, estava tensa, apertada, e em cada forçada, um gemido de dor, um corpo enrijecido e nenhuma expressão de prazer, só de dor. Júlia dizia:

– Não pare. 

Sexo:

Não se lembra de ter insônia naquela casa, apesar da agitação. Dormia com tranquilidade, profundamente, sempre que se deitava. Nessa noite, Júlia já tinha se ido, e ele não sabia que horas eram. A porta se abriu. Iluminou. Uma penumbra nela. Achou que era o amigo que dividia o quarto com ele. Fechou os olhos. A porta se fechou. Um corpo se sentou de pernas abertas sobre ele. O vulto tomava forma. Tinha o cabelo comprido preto, uma boca enorme. Eloá estava sem calcinha. A amiga da namorada dele. Não sei como conseguiu, foi tudo tão rápido. Ela se esfregou nele, encaixou. Estava muito lubrificada. Entrou fácil. Como entrou fácil... Sem dor. Sem pudor. E lá dentro ele ficou, embrulhado, acariciado, tomado. O máximo que conseguiu foi colocar as mãos nas coxas dela. Ela fez tudo. Sem abrir a boca. Sem pedir ou explicar. Sem culpa. Sem dúvidas. E não recuou. Não recusou. Nem se beijaram.

Amor:

Júlia chegou, ele sentia culpa, e foi emocionante revê-la renovada. Rolou de novo aquela sensação boa subindo a espinha, se espalhando por toda a corrente sanguínea. Ela mexia com ele, ele mexia com ela? Ficavam eufóricos toda a vez que estavam numa cama. Em menos de um minuto, depois da olhada no olho, para se certificar como o outro estava, e confirmar que estava tudo bem, estavam nus se pegando. Logo, estavam grudados, colados, untados, encaixados, se amando da cabeça aos pés. As bocas não se desgrudavam, as línguas não paravam, o suor os colava mais, suas pernas agarradas nele o grudavam mais nela, ele dentro dela, e de lá não sairia tão cedo, sugado, os braços os prendiam num nó, num abraço difícil de desatar. Dessa vez, foi em silêncio, concentrados. Só foram se desgrudar quando anoiteceu. Ela disse:

– Hoje, vou dormir com você.

Ciúme:

Foi tudo sem querer. Nos apertaram no apertado 147 de Júlia. Estávamos todos bêbados. Viemos de uma festa. No banco de trás, quatro pessoas. Não cabia uma mosca, ele se lembra. 

Júlia dirigia. Ele no banco de passageiro. Sua melhor amiga, Eloá, entre eles. Mas era tão estreito que Júlia não conseguia passar a marcha. Ela sugeriu para a amiga Eloá se sentar no colo dele. Aos poucos, uma reação fenomenal se formou. A menina continuou encaixada. As curvas e o chacoalhar só pioraram. Teve que segurá-la, para não cair. Passou o braço direito em torno do seu quadril, e ela colocou a mão no seu antebraço. Apertavam no carro apertado. Estava todo mundo bêbado, já disse. Ela ficou superencaixada com seu colo. A mãozinha dela ficou alisando os pelinhos do seu antebraço. Ela era demais. Todos têm desejos secretos. Até achou que Júlia fizera de propósito, com o propósito de ela sentir o mais tarado dos caras de 18 anos que namorou. Parecia até que dirigia, fazia curvas e freava, para aquele quase coito chegasse a um ápice. Que não sei como juntou forças para não chegar. 

Ao chegar ao destino, ele abriu a porta, a amiga zarpou, e Júlia viu o resultado de suas manobras. Olhou furiosa. Deixou cada um na sua casa, até desabafar e jogar na cara, num ataque de ódio e ciúme que ele nunca tinha visto. Quando ele saiu do carro, ela só disse:

– Você é inacreditável...

Rompeu o namoro.






Oficialmente adulta - Martha Medeiros

 Adolescente, passei de ano. Por média.

No ano seguinte, fiquei em recuperação, mas passei de novo.
Já não era tão obediente. Enfrentava os pais. Achei que assim viraria uma adulta.
Ilusão.
Transei pela primeira vez. Aprendi o que era amor, porém mais adiante me atrapalhei com a dor, não soube rimar os dois.
Comecei a trabalhar. Ganhar dinheiro nos dá alguma independência, mas ainda não. Adulta mesmo, ainda não.
Formatura, o próprio nome diz. Formada. Feita. Pronta. Habilitada. Parece que sim, mas ainda é uma ilusão, apenas nomenclatura, força de expressão.
Carteira assinada, avancei na profissão e fui morar sozinha. Adulta, por fim. Mas tinha medo na hora de dormir, não sabia preparar um reles macarrão, comia congelados e a roupa ainda era lavada no tanque da família. Só morar sozinha não basta.
Ganhei prêmios, fiz um nome, aumento de salário. Para logo ali na frente ser demitida por ausência de esforço, a cabeça mais para poesia do que para prosa. Adulta eu parecia, mas no fundo eu sabia que faltava.
Li tudo o que caiu em minhas mãos. Velhos safados, romances policiais, literatura feminista, novos autores, realismo fantástico. Peguei emprestado um monte de sabedoria para elaborar a minha.
Sobrevoei o oceano, viajei só com minha mochila, percorri países em trens, dormi na casa de estranhos, fiz uma verba minúscula render dois meses e voltei sem nenhuma cicatriz e com autoconfiança escapando pelos bolsos. Parecia adulta, mas então as perguntas não respondidas voltaram a assombrar.
Dependia de outros aniversários para declarar-me pronta.
Casei. Virei a senhora de alguém, a senhora de mim mesma. Engravidei. Duas filhas. Casa própria. Perigosamente, a vida ganhou um sentido.
Separei. Recomecei. O sentido mudou.
Os versos que fazia de brincadeira evoluíram para alguma coisa de verdade e eu virei, de repente, escritora.
E como escritora inventei respostas, amadureci em público, acreditaram em mim mais do que eu mesma acreditava, estive muito perto, perto mesmo, de ser declarada oficialmente adulta.
Um dia antes da posse é que a gente descobre.
Não é o amor sacramentado, não é o destino honrado, não é o rosto marcado, não é o corpo amaciado, não é o sofrimento acumulado, não é o cérebro bem ensaiado, não é a quilometragem rodada, não é nada disso que nos contaram.
Oficialmente adulta me declarei no instante em que descobri que nenhum mistério se decifra e que sempre saberei muito pouco. As perguntas se renovam, acumulam, vão e voltam trazendo ainda mais indagação. Porém, a incerteza de repente deixa de assustar, a vida vira um passeio, aprende-se a gostar das pausas, já não é preciso nenhuma perseguição.
Oficialmente adulta, por fim?
Pensando bem, quase lá, mas ainda não.


Março de 2015




sexta-feira, 5 de março de 2021

Paixão em plena pandemia - Milton Hatoum

 



Há quanto tempo a gente não se via? Onze meses e meio, talvez. Era uma eternidade para quem se encontrava duas ou três vezes por mês. 

Quem envelheceu mais? Eu, sem dúvida. 

“O mundo”, disse Yara. “E envelheceu muito mal. Ficou mais fanático, mais perigoso. Tem vacina para o vírus, mas qual é a vacina para a mentirada criminosa? Se não derem um basta na destruição e no fanatismo, esse planeta vai ficar deserto.” 

Mas as ruas do último sábado não estavam desertas; na calçada dos bares juntavam-se homens e mulheres de meia-idade, e alguns jovens, todos alegres, sem máscara, copo nas mãos. Uma alegria extasiante no fim daquela tarde morna, ainda solar. 

Num bar o papo era sobre a vergonhosa derrota de um time; noutro, alguém dizia que fulano só telefonava para comentar tragédias; mais adiante, um grupinho animado planejava uma viagem para o fim do ano; o país de destino já estava decidido, alguém sugeriu o trajeto: Roma, Nápoles, Veneza... 

“Veneza”, repetiu Yara, afastando-se da calçada, como se dissesse: vamos dar o fora daqui. 

Você também está pensando em Veneza?

“Nessa Veneza, não. Estou pensando em outra... A Morte em Veneza. A novela de Thomas Mann é muito atual. É um dos meus livros desta pandemia. O personagem é um escritor que se alimenta de sua sensibilidade escravizada, da autocrítica ferrenha e de uma insatisfação com ele mesmo. Tudo isso fazia parte da natureza do talento dele. Mas ele quis dar um tempo na obra que escrevia, na rotina rígida, na disciplina. Sentiu falta de terras distantes... Saudade da vida nômade. Acho que são essas palavras do narrador: a inquietação da vida nômade... Até na velhice a gente sente isso.”

Mas você não é velha.

“Já ultrapassei a linha de sombra. Sou mais velha que o personagem de Mann. É incrível, não é?”

A velhice?

“Não, o personagem. A velhice não tem nada de incrível. É verdade que a gente se surpreende menos com as aberrações, com a crueldade, com as mentiras... É como se o horror atual fosse mais um ensaio para o próximo horror. Você se lembra do personagem?” 

Gustav von Aschenbach, um escritor em crise. A arte e a vida... Mas não me lembro dos detalhes...

“Aschenbach sabe que a peste está tomando conta da cidade, sabe que as pessoas estão morrendo e que ele corre perigo. Mesmo assim, ele fica em Veneza e se entrega à paixão por Tadzio, aquele Apolo. A paixão inalcançável. Na Alemanha, quando ele desiste de escrever num lugar isolado, tedioso e frio e embarca para a Itália, parece que tudo já estava escrito nessa decisão.” 

Ela olhou de relance o grupinho da cervejada que planejava a viagem à Itália. 

“Como os super-heróis e heroínas vão entender o destino de um anti-herói?” 

Podem entender, eu disse. Podem ler essa novela e outras. 

“Um ano sem a gente se ver e você mudou. Agora é um otimista.”

Bom, um pouco de pragmatismo faz bem, até para os pessimistas. Alguém naquele bar deve ter lido boas histórias, bons romances, alguma poesia...

“Alguma poesia! É pra rimar com ironia?”, disse Yara, dando uma gargalhada sufocada pela máscara dupla. 

Não pensei no livro do Drummond. Apenas quis dizer que várias pessoas nessa festa de rua podem ter lido um dos livros que você traduziu do alemão ou do inglês. 

“Ele morre de paixão. Sabe que vai morrer, mas não renuncia ao amor.” 

Yara olhou para a sacola na minha mão: livros?

Não. Vinho, duas taças e um saca-rolha. 

“E onde a gente vai beber?”

Ali, naquele banco. Não tem ninguém por perto. 

“Três metros de distância, por favor.” 

Três?

“Sim. Não posso, não quero me arriscar. Sei que você quase não sai de casa, mas agora não moro mais sozinha.”

Ah, a paixão na pandemia.

“Mas sem a morte, longe de Veneza, e sem grandes expectativas.”

Bom, então você tem o que contar.

“Quantas garrafas você trouxe?

Uma.

“Depois da vacinação, traga três. Mas com uma garrafinha dá pra contar o prelúdio.” 





Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...