terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Dona Vidraça - Gilberto Amendola

 Dona Vidraça tem refletido muito sobre os últimos acontecimentos. De ilustre e lustrosa cepa, fala sem nenhum “embaçamento” sobre sua posição privilegiada em nossa sociedade.

Dona Vidraça transparece todos os preconceitos de uma classe acostumada com o pano seco e suave que muitos insistem em passar. Não pode com sol, não pode com chuva, tudo nos trinques para não trincar.

Dona Vidraça gosta de ser borrifada com mimos e “não me toques”. Ela deseja que as mãos gordurosas do povo permaneçam distantes de sua superfície imaculada. Dona Vidraça não tem moedinha pra ninguém. Sem abrir sequer uma fresta, diz “não” com seus dedinhos de para-brisa (para logo se fechar). 

Dona Vidraça não gosta de se misturar. De certa forma, sua função é mesmo manter cada um no seu lugar, nos separar. Dona vidraça é temperada – e estufa-se (orgulhosa!) na defesa da propriedade de outrem. 

Dona Vidraça fez carreira em bancos, supermercados e concessionárias. Suas netas já são à prova de balas. Seu filho, o Telhado de Vidro, não gosta muito do ofício. Não quer ninguém revirando seus caquinhos por aí.

Na juventude, Dona Vidraça sonhou em ser espelho. Sempre achou que tinha talento, um humor afiado e cortante.

Dona Vidraça conta com a proteção da polícia e da política. Dona Vidraça não fica em cima do muro. Dona Vidraça mente quando se declara daltônica. Ela tem lado. E planeja uma rica e tranquila aposentadoria. Quem sabe, talvez, passar o resto dos seus dias em uma bonita cristaleira – em uma sala de capa de revista. 

Dona Vidraça só tem um medo. Aquele medo de estilhaçar o coração, de espatifar a própria alma. Dona Vidraça tem medo de pedra. O filho dela, o Telhado de Vidro, também. Ele tem pavor.

Só a pedra humaniza a Dona Vidraça. Mas Dona Vidraça não se deixa abater. Ao se sentir pisada, pode fazer sangrar. Sim, Dona Vidraça faz sangrar.

Tem uma história de sangue por de trás dos tapumes que protegem a Dona Vidraça. 

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