quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Le Carré - Luis Fernando Verissimo

 



John Le Carré escrevia livros de espionagem para quem não queria ser visto lendo livros de espionagem, para quem fazia questão de ostentar seu gosto pelos prazeres do gênero, sem discriminação, ou para quem simplesmente buscava boa literatura popular, de qualquer gênero. Teve a sorte de ser o exemplo mais bem-sucedido da tradição anglo-saxônica de autores superiores produzindo para um grande público – gente como Eric Ambler, Len Deighton e, acima de todos, Graham Greene – sem sacrificar a qualidade literária. A sorte, ou a competência de Le Carré, foi a de reunir os três públicos num só mercado que, a partir do primeiro sucesso, O Espião que Saiu do Frio, incluindo as adaptações para o cinema, nunca parou de crescer e render.

A qualidade literária da obra de Le Carré é indiscutível. Pelo menos três dos seus livros – O Espião que Saiu do Frio, A Guerra no Espelho e A Vingança de Smiley – são modelos de roteirização e caracterização de personagens. O Smiley do título é George Smiley, fiel servidor do serviço secreto da Rainha, baixinho, gordinho, de óculos, obviamente traído pela mulher, um perfeito anti-James Bond. Smiley trava uma espécie de guerra fria particular com Karla, chefe do serviço secreto soviético. Não aposte contra os gordinhos.

David Cornwell, o verdadeiro nome de Le Carré, teve uma infância difícil. Apanhava do pai, um notório trambiqueiro, e foi abandonado pela mãe. No governo, trabalhou como espião de segunda categoria, sem muitos riscos, mas aproveitou a experiência para adotar o jargão e dar autenticidade ao mundo que retrataria em O Espião que Saiu do Frio. Le Carré descreveu como ninguém, no seu primeiro livro de sucesso, o clima de crise no país e no seu serviço de inteligência com as revelações sobre espiões nas altas rodas do reino, e de traidores como Kim Philby entre a nobreza. De certa forma, em todos os livros que publicaria depois, Le Carré abordaria o dilema da traição, de indivíduos tendo que definir suas relações com um estado opressor e intratável como um pai violento. 







sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Pianistas na infância - Milton Hatoum

 A lição de piano começava às duas da tarde, a hora mais dura do dia, quando o calor abrasador e a digestão ainda em curso produziam na mente e no corpo um efeito anestésico. Lutava contra o sopor e cancelava a sesta de quinze minutos na rede sombreada por um jambeiro, só para assistir às lições de piano. 

A pontualidade da professora Jerusa Mustafa era britânica. Mas ela nada tinha, nada tem de britânica. Filha de um imigrante sírio e de uma judia de origem francesa, a pianista era uma das virtuoses da minha então pequena cidade. 

Quem viveu na província deve ter admirado um(a) professor(a) ou artista, uma dessas figuras que podem mudar nossa vida, ou dar à vida um encanto e uma emoção de que nem sequer suspeitávamos. Hoje, aos noventa e quatro anos, não sei se a pianista ainda exerce sua arte. No entanto, ao completar oitenta, deu um concerto em Manaus. Infelizmente, eu não estava lá. Mas na minha infância e nos três primeiros anos da década de 60, assisti a inúmeras de suas aulas de piano na minha casa.

No início, não sabia o que ouvia, apenas me deixava levar pelos acordes da pianista, sem nada conhecer da vida e da obra dos compositores europeus e brasileiros. Com o tempo, soube que ela interpretava Noturnos de Chopin, Serenatas de Schubert, chorinhos de Nazareth e o Choro n. 5 (Alma brasileira) de Villa-Lobos. Os sons me tiravam da modorra mental, me desintoxicavam do barulho da maioria das músicas tocadas nas rádios, um barulho que só cresceu nas últimas décadas. 

Era como se a vida, naquelas tardes de calor úmido, adquirisse um sentido mais pleno. Eu queria entender mais sobre harmonia, escutava a professora falar sobre legato, staccato, acordes com tríades, dominantes e subdominantes, sem entender essas palavras, estranhas para um curumim. Em surdina, me aproximava do piano e via os dedos da professora bailar no teclado como aranhas mágicas guiadas por fios invisíveis. O movimento cadenciado dos dedos me fascinava, e, de volta ao assoalho da sala, me perdia de novo na emoção, sem procurar entender a dança mágica de dedos e teclas. 

Certa vez o poeta amazonense Luiz Bacellar (1928-2012) contou que, no final dos anos 50, gostava de fazer passeios vespertinos pelas ruas do centro de Manaus, só para ouvir lições de piano; ele ficava à sombra de uma mangueira ou de um oitizeiro e, enlevado pela melodia de uma sonata, esboçava num lampejo um de seus belos haicais ou sonetos. 

“Ouvia Mozart e Bach a torto e a direito”, dizia o poeta, alisando o castão prateado de sua bengala. “Quase todos os sobrados antigos de Manaus tinham um bom piano.” Ele me olhava por cima das lentes em meia-lua e, com um sorriso irônico, acrescentava:

“Tu sabes que as interpretações de Mozart, o grande compositor austríaco, são vícios benignos em Belém e Manaus. Só perdemos para Viena e Salzburgo. E nossas duas pianistas virtuoses só perdem para Glenn Gould”. 

O autor de Sol de feira referia-se a Jerusa Mustafa e a Ivete Ibiapina, outra grande professora, ainda viva na memória de Manaus, onde a belíssima residência em que viveu e lecionou piano tornou-se uma Casa da Música com o nome dela.

Às vezes, durante uma aula, alguns loucos da cidade passavam pela avenida Joaquim Nabuco e soltavam berros e gargalhadas cheios de frescor e liberdade, pois eles tinham fugido do hospício da Estrada de Flores. A pianista não interrompia a lição, e os gritos e as risadas se misturavam aos acordes de um chorinho ou de uma Bachiana Brasileira. Quando a aula terminava e ela ia embora, tudo silenciava, a tarde e o deleite morriam bruscamente, e a noite era promessa de um sonho com a pianista. 

Depois veio uma grande explosão: um verde sombrio manchou o país, um parente foi preso, a modorra das tardes quentes foi interrompida por outros sons, outras vozes. Uma noite longa, aflita e bruta nos esperava, e muita coisa chegaria a seu fim: a cidade em harmonia com a natureza, os igarapés de água limpa, as ruas arborizadas, a floresta ao redor da cidade, as estórias narradas por um velho imigrante, a liberdade… 

No Amazonas, duas décadas depois do verde obscuro e destruidor, chegaram os homens à paisana, inchados de demagogia, do mais vil populismo e, por que não dizer, homens inflados até o grotesco, de tanto engolir o vil metal. Esses impostores têm necessidade de mentir: a mentira é uma arma poderosa do triunfo deles.

Há uns sete anos, soube que a professora Jerusa Mustafa pediu ajuda para consertar seu piano desafinado, com teclas soltas e pedal quebrado. Mesmo com a saúde já um pouco fragilizada, a pianista desejava tocar, um verbo que lhe dava sentido à vida. Não sei se algum filantropo pagou o conserto do piano, ou comprou um novo para ela. A filantropia e o mecenato são gestos raros no Amazonas. 

Como a memória é estranha! E os sonhos, além de estranhos, enigmáticos. Agora, quando as festas natalinas se aproximam, acordo com acordes de piano, que parecem vir de muito longe, no tempo e no espaço. Nesses sonhos aparecem as duas pianistas e sua aluna, que estudou doze anos com ambas. Não sei quem tocava, e os acordes da música eram misteriosos. Seria uma sonata, um chorinho? Ou apenas um surto de nostalgia da infância, esse paraíso perdido para sempre?

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Como venci o Coronavírus nos anos 80 - Gilberto Amendola

 



Coronavírus, você não me escapa. Te pego lá fora. Na saída da escola. Depois da última aula. Não adianta correr. Nem se esconder debaixo da mesa. Será só eu e você.

E eu, que nunca briguei na rua, que tenho medo de barata e de trovão, vou fechar os cinco dedos da minha mão na sua cara.

Vai ser um socão. Desses que tiram sangue do nariz – e que fazem voar os óculos. 

A turma vai fechar a rodinha. Bater palmas. A garota mais bonita da escola, a Meg Ryan, vai se impressionar com a minha coragem. Vou me encher de confiança e amarrar uma faixa de kung fu na testa, no maior estilo Chuck Norris nervosão. Neste momento, vou ganhar um piscadinha cúmplice da garota mais bonita da escola, da Kim Cattrall.

Mas... acordei do meu devaneio no meio dessa balbúrdia. 

Distraído, e quem não se deixaria distrair com esse sorriso da Kelly LeBrock, levo um contra-ataque pelas costas. No chão, percebo que perdi um dente da frente. A galera urra de emoção. Limpo o sangue com as costas da mão esquerda e ouço uma voz na minha cabeça.

O Coronavírus sacode os mullets e arregaça as mangas de um terninho azul (com ombreiras). Ele me chama de fracote com uma voz de dublador da Sessão da Tarde. Ele diz que vai acabar comigo. 

De repente, o Senhor Miyagi aparece na minha frente como em um flashback repentino. O sábio me aconselha a usar o “Golpe da Garça” contra o Coronavírus. 

O mundo começa a passar em câmera lenta enquanto eu preparo o movimento, mas...um rock farofa rouba minha concentração bem na hora de executá-lo.

Acabo de cair de bunda no chão. E o Coronavírus ri com gosto. Aliás, todos em volta estão rindo também – inclusive a garota mais bonita da escola, a Molly Ringwald.

Antes que eu pense desistir, Jean-Claude Van Damme surge no meio da multidão e manda um “retroceder nunca, render-se jamais”. 

Me levanto, de pernas bambas, faço um gesto torto de boxeador, no estilo Rock Balboa. A menina mais bonita da escola, a Amanda Peterson, começa a me incentivar. Cheio de coragem, vou pra cima... e sou atingido por um pedaço de pau. 

A garota mais bonita da escola, a Jennifer Grey, grita que o Coronavírus é um covarde. A turma ao meu redor concorda e começa a me apoiar. O Coronavírus parece descontrolado. Acho que ele vai me matar. Quando o Coronavírus está pronto para me castigar com um golpe fatal, a menina mais bonita da escola, a Brooke Shields, se coloca entre nós dois e começa falar algo mais ou menos assim: “Se quiser bater nele, vai ter que bater primeiro em mim”.

O Coronavírus está mais ensandecido do que nunca. Parece não se importar com nada. Ele vai acabar comigo do mesmo jeito.

De repente, todos os meus colegas de escola repetem o gesto da menina mais bonita do colegial, a Kelly McGillis. Agora, estão todos postados na minha frente e chamando o Coronavírus para a briga.

Injuriado, o Coronavírus cospe no chão e sai correndo. Ele entra em seu carro conversível e amarelo, acelera, canta pneu, e vai embora. 

A turma me carrega pelos ombros. Sou festejado. A garota mais bonita da escola, a Mia Sara, também é carregada pelos ombros.

Começa a tocar Is This Love, do Whitesnake. Nos encontramos no alto. A câmera se aproxima. Vai acontecer. Eu sempre quis beijar a Winona Ryder.













https://youtu.be/GOJk0HW_hJw

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Dona Vidraça - Gilberto Amendola

 Dona Vidraça tem refletido muito sobre os últimos acontecimentos. De ilustre e lustrosa cepa, fala sem nenhum “embaçamento” sobre sua posição privilegiada em nossa sociedade.

Dona Vidraça transparece todos os preconceitos de uma classe acostumada com o pano seco e suave que muitos insistem em passar. Não pode com sol, não pode com chuva, tudo nos trinques para não trincar.

Dona Vidraça gosta de ser borrifada com mimos e “não me toques”. Ela deseja que as mãos gordurosas do povo permaneçam distantes de sua superfície imaculada. Dona Vidraça não tem moedinha pra ninguém. Sem abrir sequer uma fresta, diz “não” com seus dedinhos de para-brisa (para logo se fechar). 

Dona Vidraça não gosta de se misturar. De certa forma, sua função é mesmo manter cada um no seu lugar, nos separar. Dona vidraça é temperada – e estufa-se (orgulhosa!) na defesa da propriedade de outrem. 

Dona Vidraça fez carreira em bancos, supermercados e concessionárias. Suas netas já são à prova de balas. Seu filho, o Telhado de Vidro, não gosta muito do ofício. Não quer ninguém revirando seus caquinhos por aí.

Na juventude, Dona Vidraça sonhou em ser espelho. Sempre achou que tinha talento, um humor afiado e cortante.

Dona Vidraça conta com a proteção da polícia e da política. Dona Vidraça não fica em cima do muro. Dona Vidraça mente quando se declara daltônica. Ela tem lado. E planeja uma rica e tranquila aposentadoria. Quem sabe, talvez, passar o resto dos seus dias em uma bonita cristaleira – em uma sala de capa de revista. 

Dona Vidraça só tem um medo. Aquele medo de estilhaçar o coração, de espatifar a própria alma. Dona Vidraça tem medo de pedra. O filho dela, o Telhado de Vidro, também. Ele tem pavor.

Só a pedra humaniza a Dona Vidraça. Mas Dona Vidraça não se deixa abater. Ao se sentir pisada, pode fazer sangrar. Sim, Dona Vidraça faz sangrar.

Tem uma história de sangue por de trás dos tapumes que protegem a Dona Vidraça. 

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...