quinta-feira, 30 de abril de 2020

Geometria - Luis Fernando Verissimo

Por que certas coisas sem importância aderem à nossa memória como craca num casco velho? Uma vez, o Barão de Itararé foi visitar meu pai. Não sei se já se conheciam ou se conheceram-se então. Eu devia ter uns 12 anos, o suficiente para saber quem era o Barão de Itararé e para não querer perder um minuto da conversa. E, no entanto, só o que me lembro daquele dia foi o Barão descrevendo como se abotoava uma camisa:
– Abotoa, espera um pouquinho, abotoa, espera um pouquinho, abotoa, espera um pouquinho...
Eu sei, a lembrança não está à altura do grande humorista, que deve ter dito coisas memoráveis. Mas o que ficou foi isso. Abotoa, espera um pouquinho, abotoa, espera um pouquinho, abotoa, espera um pouquinho. E o pior é que, até hoje, quando fecho uma camisa, repito mentalmente as palavras do Barão.
– Abotoa, espera um pouquinho, abotoa, espera um pouquinho, abotoa...
E aquelas músicas que não nos saem da cabeça? Geralmente são músicas ruins, que você tenta abafar pensando numa música boa. Em vão. A música reincidente volta sempre. Às vezes, você nem sabe que música é. Onde foi que eu ouvi isso, meu Deus? Será que eu mesmo inventei e não consigo parar de me atormentar com ela, numa espécie de suicídio auricular? Sempre imaginei que um sintoma de loucura irreversível é a pessoa não parar de ouvir o Bolero de Ravel na sua cabeça, o tempo inteiro.
Nós não nos conhecemos. Tive uma prova disso quando comecei a estudar num high school americano e me vi em território nunca explorado na minha experiência prévia de estudante brasileiro, principalmente na área da matemática. Dois mais dois também eram quatro nos Estados Unidos, mas fora isso eu estava perdido, incapaz de acompanhar os trabalhos de aula. Tudo agravado pela minha timidez e meu horror congênito a escola, qualquer escola, americana ou brasileira.
Até que um dia... Completei um trabalho de geometria e, ao entregar o trabalho para a professora, notei que era o primeiro a fazer isso e que os outros demonstravam dificuldade em terminar o que eu completara em poucos minutos. A professora elogiou meu trabalho e dali em diante, sempre que precisava de alguém para mostrar no quadro-negro a solução que escapara a todos os outros, chamava: “Mr. Verissimo...”.
O mistério dessa história é que eu não sabia que sabia geometria. Tinha uma vaga lembrança de estudar geometria no Brasil, mas nada que me transformasse, milagrosamente, naquele mestre na matéria. A geometria, em mim, era inata, um dom. Deixei de ser o estrangeiro que não compreendia nada e passei a ser requisitado para dar cola aos colegas. De onde saíra aquela sabedoria, aquela familiaridade com hipotenusas e ângulos? Eu não tinha a menor ideia.
Anticlímax. Depois que deixei o high school, e pelo resto da minha vida, nunca mais precisei usar a geometria.

 01/05/2016

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Tudo, menos uma estrela - Ruy Castro

O velho jazz está sendo ceifado pela Covid-19. Depois do pianista Ellis Marsalis e do guitarrista Bucky Pizzarelli, foi a vez, na semana passada, do saxofonista Lee Konitz, ainda na ativa aos 92 anos. Os jornais deram a sua morte não por ter sido um grande músico, mas por "ter tocado com Miles Davis", nos discos de um revolucionário noneto que, em 1949-50, lançou o cool jazz. Era um estilo com raízes na big band de Claude Thornhill, de onde tinham saído, além de Lee, o sax-barítono Gerry Mulligan e o arranjador Gil Evans, todos no noneto. Mas só Miles levou a fama.

Lee foi dos poucos sax-altos nascidos no bebop que não tentaram copiar Charlie Parker. Suas frases longas e sem vibrato eram a antítese de Parker. E, desde então, sempre esteve na contramão do jazz, gravando discos em que tocava sozinho, ou com um trio sem piano ou com uma orquestra de 90 figuras.

Ele era tudo, menos uma estrela do jazz. Nunca teve agente ou assessor de imprensa e, ao morrer, devia ser o único músico do mundo sem email. O incrível é que, avesso a qualquer carreira comercial, tenha gravado tanto. Levantei sua discografia e, de 1949 a 2018, contei 95 álbuns como líder. Somando-se os de que só participou, são mais setenta.

Quem comprava os seus discos? Em 1996, o saxofonista brasileiro Mauro Senise, tocando em Nova York com o grupo Cama de Gato, deu um pulo à famosa loja de discos Tower, na Broadway. Como ia voltar para o Rio aquela noite e tinha uma baganinha de maconha com que não queria embarcar, Mauro depositou-a no escaninho dos CDs de Lee Konitz, seu ídolo. Em 2003, de novo a trabalho em Nova York, voltou à Tower e, ao folhear os CDs de Konitz, encontrou a baganinha que deixara ali sete anos antes.


Não é que ninguém comprasse os discos de Lee Konitz. Seus fãs é que, muito chiques, deviam achar que o baseado pertencia a alguém e não era para ser levado dali.

O saxofonista Lee Konitz, morto por Covid-19 

domingo, 26 de abril de 2020

Konitz, Marcello e Bach - Luis Fernando Verissimo

Estávamos passando uma temporada em Nova York e recebemos a visita de amigos de Porto Alegre, que chegaram dizendo que queriam fazer um programa bem, mas bem nova-iorquino. Fiz um rápido levantamento mental do nosso orçamento e consultei uma revista da semana atrás de um programa bem, mas bem nova-iorquino para oferecer aos amigos sem nos arruinar. Descobri: Lee Konitz no Village Vanguard. No caminho do bar tentei resumir a carreira e a importância do músico que iríamos ouvir. Seu instrumento era o saxofone alto. Ainda muito jovem, tinha participado da famosa gravação de um noneto liderado pelo Miles Davis, com arranjos, entre outros, do Gil Evans, e lançado com o título Birth of the Cool, pois registrava o nascimento de uma sonoridade nova no jazz, um estilo “cool” em contraste com o calor do bebop, em voga na época. Depois Konitz participaria de outro grupo inovador, formado em torno do pianista Lennie Tristano – talvez o mais longe que o jazz experimental já chegou. O Village Vanguard, um porão apertado em que a circunferência das mesas induz a uma escolha – ou você usa para apoiar um cotovelo ou colocar um copo – estava cheio. Konitz não era exatamente um músico popular, mas tinha seu público e era presença constante nos bares de jazz da cidade, da qual raramente saía. Eu tinha julgado mal nossos visitantes, que insistiram em pagar a conta, maravilhados com o programa bem, mas bem nova-iorquino, que tínhamos lhes proporcionado. Konitz morreu na semana passada, com mais de 90 anos. Não sei que idade tinha quando o ouvimos naquela noite. Olhando a sua figura, ninguém diria que se tratava de um revolucionário.
Adaptação. Declarações desse tipo são temerárias, podem ser contestadas em um minuto e liquidadas em dois, mas eu declaro sem medo: a música mais bonita já feita na Terra é o adágio do concerto para oboé e cordas em ré menor de Alessandro Marcello. Não fui eu que descobri a beleza do adágio, claro, mas durante muito tempo ela foi ignorada e a própria existência do Alessandro, confundido com seu irmão mais conhecido Benedetto Marcello, não era certa. Talvez por Alessandro ter sido filósofo, poeta, fidalgo veneziano e muitas outras coisas antes de ser compositor. E, para complicar ainda mais, ter composto algumas das sua obras usando um pseudônimo, Eterio Stinfalico. Hoje o concerto para oboé faz parte do repertório de muitas orquestras e o adágio brilha. E se ainda for preciso reforçar meu voto, convoco do passado o testemunho de ninguém menos que Johann Sebastian Bach, autor de uma adaptação para cravo do adágio que ele também amava. Bach fazia arranjos de obras de outros compositores, principalmente dos italianos, e o concerto para oboé do Alessandro devia fazer parte de algum lote de partituras, nada indicando que Bach, de tanto admirá-lo, resolvera ficar com o adágio como se fosse dele. Se bem que – fofoca – numa das poucas cópias publicadas do concerto a única assinatura que aparece é “JSB”. 

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Uma fábula de nosso tempo - Ignácio de Loyola Brandão

Quando criança, havia um tipo detestável no meu bairro. Carmelo. Sujeito desagradável, prepotente. Como era forte, as pessoas o evitavam, mas ele se metia em tudo e chefiava um bando, ajudado por seus primos Energúmeno, Carlota e Fifuca. Carmelo era maldoso, andava com o nariz escorrendo e, quando você estava na sorveteria, ele, de propósito, chegava e tossia ou espirrava em cima do seu sorvete. Bagunceiro, rebelde, tinha sido expulso de todas as escolas e se vangloriava. Onde Carmelo estava, ali estavam seus primos, conhecidos como turminha do ódio. Muitas vezes, os quatro agarravam um moleque franzino, levavam para um terreno baldio e passavam horas a machucá-lo com tabefes e socos. Ou pegando galhos de roseira cheios de espinhos e laceravam a pele do infeliz. Quem orientava as maldades era um garoto de nome estranho, Lustro (ele odiava quando diziam Lustre), que vivia a maltratar os outros. Adiantava reclamar? 
O pior do Carmelo é que tudo que ele afirmava hoje, negava amanhã. Se dissesse besteira de manhã, negava à tarde. Dizia e desdizia. Logo, teve um apelido que permaneceu por largo tempo: “Carmelo obra para trás”. A palavra não era exatamente obrar, vocês devem conhecer a verdadeira. É que gente educada não usava o sinônimo vulgar de evacuar. Defecar também era feio. Diziam obrar, para não ofender. Obrar, ato que todos praticam por necessidade fisiológica, era um eufemismo, aprendemos com o Jurandir, professor de português. 
O outro termo que começava com C não era suave nem poético nem elegante. Na vida, devíamos usar palavras amenas para definir pessoas, mesmo que elas fossem péssimas, maus-caracteres, mal-educadas, grosseiras. Assim, quando o Carmelo afirmava e não confirmava, ele estava obrando para trás. Obrava para trás o tempo inteiro e ria disso. Evacuando para trás. Ou seja, não se podia confiar nele. Traduzia-se: fala e não sustenta, portanto a palavra dele equivalia a matéria fecal. 
Havia outra definição para gente como Carmelo. Quem dizia e não sustentava, também era conhecido como frouxo, fresco, maricas, fronha ou fruta. Ou molenga, sujeito sem-palavra. Minha mãe, mulher piedosa e boa, tinha uma frase que ainda costumo usar para definir certas pessoas. “O Carmelo falar e um burro obrar, para mim é igual.” Os antigos sabiam das coisas. Havia educação e bons modos.
Como era forte, Carmelo não era desafiado para nada. Ninguém dizia essas coisas na frente dele. Era violento. Quando alguém comentava: mas ontem você disse outra coisa, ele reagia, brutal: “Acha que sou cara de pedir penico? Digo e desdigo o que eu quiser. Quem é o mais forte aqui, pô? Eu que mando, pô! Se duvidar, tiro você do bando, expulso, você não vai mais poder andar pela rua, comunistinha de merda, pô! Isso, posso te demitir”. A gente era pequeno, não tinha ideia do que significava demitir, mas devia ser coisa ruim, dita pelo Carmelo.
Comunistinha? Naqueles anos 40, nunca tínhamos ouvido aquela palavra. Quem sabia? Perguntamos ao Zé da Pinga, que ficava sentado na soleira do bar do Tito Tobias, e ele, amicíssimo do Carmelo, respondia com palavrões e mandava a gente perguntar para as éguas lazarentas que eram nossas mães. Aliás, a turminha do Carmelo gostava de xingar as mães da gente e tínhamos de ficar quietos. Somente décadas mais tarde soube o que era comunista. Parece que eram antropófagos, que comiam criancinhas, que horror.
Cresci, mudei de bairro, esqueci Carmelo, vim para São Paulo, fiz minha vida, família, o normal. Dia desses, ao voltar à minha cidadezinha, passei por um boteco malacafento e achei que conhecia o velho, de bermudão, sandálias semiapodrecidas e camiseta furada de um time da 20.ª Divisão do Brasileirão, que tomava rabo de galo. É o Carmelo, revelou o dono do bar. Lembra-se? O que evacua para trás? Continua igual, foi expulso do Tiro de Guerra, nunca deu certo na vida. Passa o dia sentado a esbravejar. Ninguém mais ouve nem fica perto. Morador de rua, não toma banho, cheira mal, garante que vai ser prefeito. Ao ouvir isso, Carmelo gritou lá de sua mesa, tossindo muito e, coisa nojenta, escarrando no chão: “Claro que vou, pô! Essa política velha é do satanás, disse meu pastor, vou mudar tudo na cidade, pô!”. 

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Em favor de Pérez Galdós - Mario Vargas Llosa

Considero Javier Cercas um dos melhores escritores da nossa língua e creio que, quando o esquecimento tiver enterrado seus contemporâneos, pelo menos três das suas obras-primas, Soldados de SalaminaAnatomia de um Instante e O Impostor, ainda terão leitores que voltarão a ler essas obras para saber como era nosso presente, tão confuso. Ele é também uma pessoa audaz. Ama sua terra catalã, vive nela e quando escreve artigos políticos, criticando a demagogia independentista, é convincente e inconteste.
Na civilizada polêmica que manteve há algum tempo com Antonio Muñoz Molina sobre Benito Pérez Galdós, Cercas disse que não gostava da prosa do autor de Fortunata e Jacinta. “Entre gostos e cores não escreveram os autores”, dizia meu avô Pedro. Todo mundo tem direito às suas opiniões e também os escritores; e o fato de dizer aquilo no centenário da morte de Pérez Galdós, quando ele é lembrado e comemorado em toda a Espanha, tinha algo de provocação. Eu, por exemplo, não gosto de Marcel Proust e por muitos anos ocultei isso. Agora não. Confesso que o li descuidadamente; deu-me trabalho terminar a leitura do seu livro Em busca do Tempo Perdido, obra interminável, e consegui a duras penas, entediado com suas longuíssimas frases, a frivolidade do autor, seu mundo pequenino e egoísta e, principalmente, suas paredes revestidas de cortiça para ele não se distrair ouvindo os ruídos do mundo (que eu gosto tanto). 
Temo que, se tivesse sido leitor de livros da Gallimard quando Proust apresentou seu manuscrito, talvez tivesse desaconselhado sua publicação, como fez André Gide (e se arrependeu o resto da vida por esse erro). Tudo isso para dizer que, naquela polêmica, estive ao lado de Muñoz Molina e em oposição ao meu amigo Javier Cercas.
Acho injusto dizer que Benito Pérez Galdós foi um mau escritor. Não era um gênio – existem muito poucos – mas foi o melhor escritor espanhol do século 19 e, provavelmente, o primeiro escritor profissional da nossa língua. Naqueles tempos, na Espanha ou América Latina, era impossível para um escritor viver dos seus direitos de autor, mas Pérez Galdós teve a sorte de pertencer a uma família próspera que o admirava e que o sustentou, garantindo a ele o exercício da sua vocação e, sobretudo, a independência que lhe permitiu escrever com liberdade.
Ele nasceu em Las Palmas de Gran Canaria, em 10 de maio de 1843, filho do tenente-coronel Sebastián Pérez, chefe militar da ilha e, além disso, possuía terras e várias empresas às quais dedicava boa parte do seu tempo. Ele teve dez irmãos e sua mãe, dona María de los Dolores de Galdós, estava no comando da casa. Ela decidiu que Benito, que ao que parece se apaixonara por uma prima que ela não gostava, devia partir para Madri, quando estava com 19 anos de idade, para estudar Direito. Benito obedeceu, foi para Madri, matriculou-se na Computense, mas se desencantou muito rápido com as leis. Sentiu-se mais atraído pelo jornalismo e pela boemia madrilenha – a vida dos cafés onde se reuniam pintores, escritores, jornalistas e políticos, e se direcionou para a literatura. E o fez com um amor a Madri como nenhum outro escritor, nem antes, nem depois dele. Foi o mais fiel e o maior conhecedor de suas ruas, comércios e pensões, seus tipos humanos, costumes e ofícios, e, claro, a sua história.
Há fotos que mostram a grande concentração de madrilenhos no dia do seu enterro, em 5 de janeiro de 1920, acompanhando seu féretro até o cemitério de Almudena; pelo menos 30 mil pessoas participaram dessa homenagem póstuma. Embora todos aqueles que acompanharam o carro funerário não o tivessem lido, ele desfrutava de uma enorme popularidade. A que se devia isso? Aos Episódios Nacionais. Ele fez o que Balzac, Zola e Dickens, que admirava muito, fizeram em suas respectivas nações: contar em romances a história e a realidade social do seu país, e, embora não tenha superado nem o francês nem o inglês (mas Émile Zola sim) com seus Episódios, esteve na linha de frente deles, convertendo em matéria literária o passado vivido, colocando ao alcance do grande público uma versão amena, animada, bem escrita, com personagens vivos e documentação séria de um século decisivo da história espanhola: a invasão francesa, as lutas de independência contra os exércitos de Napoleão, a reação absolutista de Fernando VII, as guerras carlistas. 
Seu mérito não é tê-lo feito, mas como o fez: com objetividade e um espírito compreensivo e generoso, sem partidarismos ideológicos, procurando distinguir o tolerável e o intolerável, o fanatismo e o idealismo, a generosidade e a mesquinhez, no mesmo sentido dos adversários. Isto é o que mais chama a atenção quando lemos os Episódios: um escritor que se esforça para ser imparcial.
Ele era um homem civil e liberal que, além disso, em certas épocas se sentiu republicano, mas, antes de ser político, foi uma pessoa decente e serena; ao narrar um período nevrálgico da história da Espanha, esforçou-se para fazê-lo com imparcialidade, diferenciando o bem do mal e procurando estabelecer que existiam manifestações dos dois em ambos os adversários. Essa limpeza moral dá aos Episódios Nacionais seu ar justiceiro e por isso seus leitores, desde Trafalgar até Cánovas, têm uma forte aproximação com seu autor.
Ele escrevia assim porque era um homem de bom caráter, ou, como dizemos no Peru, gente muito boa. O que não é sempre o caso dos escritores; alguns pecam ao contrário, sem deixar de ser magníficos. O talento de Pérez Galdós era enriquecido por um espírito de equidade que o tornava irremediavelmente amável e digno de confiança.
Permaneceu solteiro e seus biógrafos descobriram que ele teve três amantes duradouras e, ao que parece, muitas outras transitórias. À primeira, Lorenza Cobián González, uma nativa das Astúrias humilde, mãe de sua filha María (que ele reconheceu e deixou como herdeira), que era analfabeta e ele ensinou a ler e escrever. Seu caso com dona Emilia Pardo Bazán, mulher ardente, salvo quando escrevia romances, foi bastante inflamado. “Eu te esmagarei”, disse ela em uma das cartas para o escritor. E não se trata de uma licença poética. Dona Emília, escritora pudica, pelo visto era um pequeno demônio de luxúria. A terceira foi uma aprendiz de atriz, muito mais jovem do que ele: Concepción Morell Nicolau. Pérez Galdós apoiou sua carreira teatral e a ruptura, na qual muitos amigos intervieram, foi discreta. 
Seu grande defeito como escritor foi não ter entendido que o primeiro personagem a ser inventado por um romancista é o narrador das suas histórias, que este, seja personagem ou narrador onisciente – é sempre uma invenção. Por isso seus narradores costumam ser personagens onipresentes que, como Gabriel Araceli e Salvador Monsalud, têm um conhecimento impossível dos pensamentos e sentimentos dos outros personagens, algo que conspira contra o “realismo” da história. Pérez Galdós dissimulava isso atribuindo aquele conhecimento aos “historiadores” e testemunhas, algo que introduziu uma sombra de irrealidade em suas histórias; passavam despercebidos, mas seus leitores mais experimentados tinham de adaptar sua consciência àqueles deslizes, depois que Flaubert, nas cartas que escreveu a Louise Colet enquanto fazia e refazia Madame Bovary, deixou clara essa concepção revolucionária do narrador como personagem central, embora com frequência invisível em toda a narrativa. 

Tradução de Terezinha Martino

Melhores Momentos - Luis Fernando Verissimo

A ideia era cada um descrever o seu melhor momento. O ponto mais alto de sua vida, diferente de tudo que viera antes e de tudo que viria depois. Sua apoteose pessoal.
*
Um contou que seu melhor momento fora terminar um elefante de argila numa aula de Trabalhos Manuais. Lembra Trabalhos Manuais? Tinha 7 ou 8 anos. O elefante de argila ficara bom. Feito de memória, até que ficara muito bom. Nada na vida o deixara tão contente como aquele elefante de argila.
*
A Bela contou: “Foi a primeira vez que acertei um pudim. Minha mãe vivia dizendo que eu não acertava o pudim porque era muito nervosa. Fazia tudo certo, não errava nos ingredientes, não errava na mistura, mas, de alguma maneira, meu nervosismo se transmitia ao pudim e o pudim desandava. O pudim também ficava nervoso. No dia em que acertei o pudim, tive uma crise de choro. Saí da cozinha para não influenciar o pudim, que poderia ter uma recaída. Mas, na mesa, quando minha mãe disse ‘O pudim é da Bela’ e todo o mundo aplaudiu, meu Deus do céu. Nunca mais senti a mesma coisa. Nem quando nasceram os gêmeos. Nunca mais”.
*
Já outra disse que nada se igualara a ter o primeiro filho. “Olha aí, até hoje não posso contar que me emociono. E o engraçado é que foi um sentimento extremamente egoísta. Me enterneci por mim mesma. Eu olhava aquela coisinha, tão bem feitinha, e me achava formidável, até ficava com ciúmes quando só elogiavam o bebê. Eu é que queria festa. Queria dizer ‘fui eu, fui eu, ele é apenas o produto da minha genialidade’. No meu marido, coitado, eu nem pensava. Ele não tinha nada a ver com aquilo. E eu não deixei ele acompanhar o parto. Sempre considerei pai acompanhando parto uma espécie de penetra. Alguém querendo participar de uma glória que não merece, como prefeito inaugurando obra da administração anterior. A glória era só minha. Aliás, em todo o processo de procriação, parto, essas coisas, o homem é um penetra. Sem duplo sentido, claro. O primeiro filho. Sem dúvida nenhuma, o primeiro filho... Depois, o desgraçado cresceu e foi aquilo que todo o mundo sabe.”
*
Para outro, foi a formatura o maior momento. Outro, o primeiro caso. Não, não o primeiro caso, assim, caso. O primeiro caso como advogado! Outro contou que seu maior momento fora a vez em que acertara uma bicicleta no futebol. “Nunca tinha tentado uma bicicleta antes, mas do jeito que a bola veio não havia alternativa. Fechei os olhos e fiz o que tinha visto outros fazerem. Atirei-me para trás, pedalei no ar e senti o segundo pé acertar a bola. Quando me levantei do chão vi que a bola tinha entrado no ângulo, bem no ângulo da goleira. Não havia plateia para aplaudir, era um jogo de praia. O goleiro adversário, ressentido, só disse ‘Sorte’.
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Em seguida, foi a vez da Thaís, e a Thaís arrasou. Contou como foi sua apoteose. A justificativa da sua existência, o prêmio final por todo o seu empenho em viver com bom gosto e gastar o dinheiro do Gegê com inteligência. Foi a vez em que entrou no café do Hotel Carlyle, de Nova York, no meio do show do Bobby Short, acompanhada por uns brasileiros que nunca tinham conseguido entrar no lugar, e quando a viu o Bobby exclamou “Thaís”!
*
Para completar a humilhação, Thaís contou que Bobby Short pronunciou o “agá” do seu nome.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

A Nova Regra - Marcelo Rubens Paiva

Muitos concordam que o fim da pandemia trará mudanças comportamentais profundas. Uma delas será o jeito de se torcer num estádio de futebol, já que vão ser repensados os eventos com aglomerações. O número de cadeiras num estádio será reduzido. Cada torcedor ficará a uma distância segura de dois metros do próximo. 
Como todos estarão de máscara, “Timão, ê-ô!” será um uníssono “Hmmm, em-hum!”. “Pooor-cooo...” será “Hooom-hoom...”. “É tri-co-lor!”, “Hu, hum-huu-huum!”. No gol, os torcedores se olharão e, sem se encostar, piscarão uns para os outros. Os das torcidas organizadas terão a audácia de encostar os cotovelos. 
Dizem os empreendedores que, em momentos de crise, pode-se fazer fortuna. Claro que eis uma chance de faturar: as máscaras virão com o escudo do time e o patrocinador do momento, e serão feitas pelo fornecedor do material esportivo do mesmo, com o logo no canto.

Através de um aplicativo, o torcedor poderá expor sua opinião a respeito do juiz, da sua mãe, ou do técnico, da sua mãe, que será transmitida via alto-falantes. Os cantos das torcidas também podem ser transmitidos em conjunto. Enquanto o torcedor estiver sentado, escolhe com o smartphone na mão a opção, e pelos alto-falantes sua voz se juntará a milhares de outras, num coro bem mixado que ecoa: “Aqui tem um bando de loucos...”.
Em alguns esportes, nada mudará. No tênis, por exemplo, em que a torcida é seleta, educada, bem-vestida, rica e pouco exaltada, os fãs ficarão numa distância apropriada, mas poderão continuar os “óoooo” e as palmas. Assim como os jogadores, que já ficam bem distantes uns do outros, deverão então se cumprimentar com a ponta da raquete. O juiz continua no alto, no seu saber.
No vôlei, o mesmo. Cumprimentarão com pés se encostando por baixo da rede. A bola que deverá sofrer higienização antes de cada saque. Tênis de mesa, sinuca, esqui na neve, atletismo, hipismo, nada será alterado. A não ser o bastão, no revezamento 4 x 100 metros, ou 4 x 400, que deverá ser higienizado antes da troca pelo próprio corredor e enquanto corre.
Esportes de contato sofrerão alterações. Judô será abolido de competições. Entra a capoeira: muito gingado, pontapé, rasteira. Esgrima não mudará nada, por motivos óbvios: a proteção é absoluta. Os esportes na piscina, ou de bicicleta, também. No basquete, só será permitida a marcação por zona, a dois metros de distância. Os jogadores estarão de luvas. Que serão trocadas em cada tempo técnico. Apenas um jogador poderá entrar no garrafão.
Paradoxalmente, o esporte de maior contato físico, feito para o agarra-agarra e trombadas, o futebol americano, não precisará mudar as regras. Os jogadores já estão de capacetes, máscaras e luvas, pois normalmente ele é praticado no outono e inverno, comemoram o touchdown com dancinhas individuais, no máximo uma peitada. Porém, os estádios sempre lotados da NFL terão que reduzir o público. 
O rúgbi será extinto. O beisebol também pouco será alterado. Quase não há contato físico. Quem pega a bola já está de luvas. O bastão é pessoal. E a partir de então, poderá ser utilizado caso alguém fure o distanciamento de dois metros: vira também uma arma de proteção individual.
Automobilismo também pouco sofrerá. Todos usam capacetes, máscaras, luvas, e ninguém chega perto. E como todos os pilotos no fundo se odeiam, será a chance de abolir o cumprimento protocolar no pódio.
Videogame, truco, pôquer, xadrez, Detetive, Imagem & Ação, palavras cruzadas se tornarão esportes olímpicos, dada a distância entre jogadores. Nosso futebol que sofrerá alterações nas regras. Como no basquete, permitida apenas a marcação por zona. A homem-a-homem e mulher-a-mulher, proibidas. 
Quem cuspir no gramado, vermelho. Falta, vermelho. Quem se aproximar do juiz ou bandeirinha, vermelho. Quem comemorar o gol abraçando o companheiro, enquanto a torcida exclama “Hoooooooooommm!”, vermelho. Quem cumprimentar o companheiro na substituição, vermelho, pros dois. 
O agarra-agarra na área, vermelho para o atacante e o defensor. Contraditoriamente, a falta que atualmente dá em expulsão imediata, o carrinho por trás, voltará a ser permitida, exaltada, afinal, ficarão expostos a fraturas, que encerram a carreira de um atleta, mas não ao temido vírus.


Dum

domingo, 19 de abril de 2020

Lições de quarentena em quatro contos


Ilustração de Catarina Bessell sobre o isolamento social provocado pela pandemia 


O BICHO-VÍRUS - Pedro Bandeira



Agora estou deitada no colo do papai. Ele estava lendo uma história para eu dormir, mas acabou pegando no sono antes de mim, e o livro caiu no tapete. Eu estou bem acordada e sinto no rosto o coração dele batendo com calma: pã, pã, pã... A mamãe havia se aninhado do lado, me abraçando. Também pegou no sono e eu sinto o coração dela pulsando nas minhas costas: pim, pim, pim... Será que coração de homem faz pã e de mulher faz pim? Sei lá...
E o meu? Bom, deve estar bem mais calminho por causa do bicho-vírus que está lá fora de bocão aberto, disposto a devorar quem sair de casa. Eu é que não saio!
Que bicho será esse? Vai ver é algum parente do Bicho-papão ou do Homem-do-saco. Quanta bicharada pra perseguir as criancinhas!
Mas quer saber duma coisa? Acho que esse bicho-vírus é meu amigo, porque desde que ele apareceu, minha vida melhorou muito.
Antes do Bicho-vírus, tinha vez que eu queria me queixar de ter brigado com a Glorinha, a minha melhor amiga na escola, e chegava em casa esperando até o fim da tarde quando o papai e a mamãe chegavam do trabalho pra contar que nunca mais na vida eu ia falar com a Glorinha. Só que quase sempre o papai chegava tão tarde que eu já estava na cama e, a mamãe, quando chegava, já era hora do banho, de preparar o jantar, de escovar os dentes, de ir pra cama, mas daí tinha passado tanto tempo que, quando ela me contava histórias pra eu dormir, eu estava tão cansada que dormia antes do final e nunca ficava sabendo como as histórias terminavam...
Eu adorava as vezes em que o papai chegava mais cedo e me trazia alguma revistinha ou algum livrinho e me punha no colo pra ler as histórias, porque eu ainda não sei ler nem escrever. Só o meu nome, com letra quadradinha. E era maravilhoso quando a mamãe não chegava cansada e me contava dos seus tempos de criança, de mocinha, e lembrava das histórias que sua vovó havia contado para ela, histórias de assombrações, de mulas-sem-cabeça. Que gostoso!
Mas isso só acontecia às vezes. Pelo jeito, os dois trabalham muito, porque dizem que o país está em crise e eu não sei o que é crise, vai ver é porque ninguém põe o país no colo e conta histórias de fadas e de bruxas pra ele...
Eles trabalhavam tanto, que na maioria das vezes era chato. Nessas vezes eu passava a tarde inteira com as minhas bonecas e elas ouviam com atenção todas as minhas queixas das brigas com a Glorinha e com a Ana Eduarda. Quase todas as tardes era assim: depois do almoço eu ia dar aula para as bonecas. Se alguma não prestava atenção, ia de castigo! No aniversário de cada uma eu preparava uma festa daquelas, com brigadeiro-de-mentirinha, com olho-de-sogra de mentirinha, algodão-doce... Daí telefonava pra Glorinha e juntas cantávamos Parabéns-a-você. Teve uma vez que eu fiz de conta que uma das bonecas era um noivo e preparei um casamento daqueles com a minha boneca preferida. Foi demais! Tudo era muito divertido, mas...
Mas tinha coisas que todo dia eu precisava contar pro pai e pra mãe. Às vezes, no fim de semana, dava pra gente ficar junto, mas daí já tinha passado bastante tempo e eu nem mais lembrava do que queria falar. Fim de semana era a casa da vovó, passeio com a Tia Adelaide e com o danado do primo Júnior, que cismava de puxar minha trança. E pro primo Júnior eu não contava nadinha!
Mas agora, felizmente, tudo mudou. E foi o Bicho-vírus que me salvou. Agora eu tenho o papai e a mamãe o tempo todo comigo, meu pai me conta histórias e vive falando do tempo em que ele era caçador de leões na África, depois de como ele pilotava aviões a jato para o Japão, teve até uma vez que ele estava pra ir à Lua num foguete, mas que o patrão dele não deixou porque tinha muito trabalho atrasado no escritório. E a mamãe? Procura receitas na Internet e me leva pra cozinha, me ensinando a misturar a farinha com a manteiga, bater as claras de ovos, e depois me deixa lamber a vasilha do bolo... Que delícia!
Tomara que esse Bicho-vírus nunca mais vá embora!
O escritor Pedro Bandeira: novo bicho-papão para as crianças Foto: Tiago Queiroz

AURORA - Veronica Stigger

Fazia tanto tempo que não falava com alguém (nem mesmo com sua imagem refletida na tela escura do computador desligado diante de si) que não conseguiu articular um som sequer quando ouviu um estrondo em seu apartamento. Sobressaltada com a suspensão repentina do silêncio que há muito prevalecia sobre as ruas antigamente tão movimentadas do centro da cidade, abriu a boca como se fosse emitir um longo dó de peito, mas nada saiu de seu interior escuro e, agora, fétido. Tentou levantar-se da cadeira, mas suas pernas fraquejaram. Erguera-se tão pouco nos últimos tempos que parecia ter desaprendido a andar. Apoiou-se com as duas mãos na escrivaninha à sua frente e fez força para se manter de pé. Outro estrondo assustou-a novamente, fazendo com que se desequilibrasse e caísse no chão, batendo com a parte de trás da cabeça na quina do assento da cadeira de madeira. Com o rosto franzido de dor, levou a mão esquerda até o machucado e verificou que não sangrava muito. Sentada no chão, olhou para frente e teve a impressão de que sua cama estava mais perto da mesa em que se apoiara. Seu apartamento tinha apenas uma peça, além da cozinha e do banheiro, e parecia ter encolhido. Poderia se tratar apenas de uma impressão, já que sua cabeça latejava muito, deixando-a um tanto zonza e desnorteada. Mal conseguia abrir completamente os olhos. Firmou-se com os braços no assento da cadeira e, num impulso, conseguiu voltar a se sentar. Porém, mais um estrondo fez com que seu corpo todo estremecesse. Dessa vez, podia jurar que a parede do fundo, onde ficava sua cama, de fato, havia se movimentado em sua direção. O quarto estrondo foi o mais violento. Parecia que o prédio iria ruir. Agora ela tinha certeza de que a parede do fundo do apartamento havia se deslocado um pouco mais em sua direção. O medo deu-lhe força para finalmente se levantar da cadeira, mas não o suficiente para fazê-la correr até a porta. Seus passos eram como os de um bebê cambaleante que apenas está descobrindo sua capacidade de pôr-se de pé ou como os de uma senhora centenária que sente o peso dos anos a pressionar os ossos. Não queria sair para a rua. Como todos, a vinha evitando nos últimos tempos e, mesmo agora que o acesso a ela estava plenamente liberado, não se sentia preparada para enfrentá-la. Temia ter de topar com os cadáveres.
Talvez fosse a única, em todo o país, que ainda permanecia em casa. Até mesmo à janela havia deixado de ir, desde que os cantos de guerra subitamente cessaram e restou apenas o silêncio – um silêncio que curiosamente se acentuou depois da libertação. Agora, sentindo a proximidade da parede às suas costas, não via outra maneira de escapar que não pela porta de saída do apartamento. Os estrondos cederam lugar a um som contínuo, como o de uma avalanche, que marcava o deslocamento cada vez mais rápido da parede do fundo. Ela tentava se apressar, mas suas pernas não respondiam à sua vontade. A cama lhe tocou os joelhos por trás e a derrubou no chão. A parede havia vencido e, agora, a empurrava com fúria em direção à porta, que caíra para trás, no corredor, com o desmoronamento das paredes laterais. Seu apartamento a compelia para a rua – e isso a apavorava. Tentou resistir, mas foi em vão. O apartamento continuava a avançar sobre ela que, sem conseguir se levantar, era arrastada pelo chão do corredor até a beira da escada, de onde rolou feito uma bola. Sua cabeça, já tão doída, quicava nos degraus. O interior do prédio estava tão escuro que ela sentia como se girasse no vácuo, feito uma astronauta que se vê subitamente desconectada da nave-mãe, perdida no espaço. Quando deu por si, estava sentada, nua, na calçada em frente ao prédio. Encolheu as pernas em direção ao peito e, quando baixou a cabeça latejante para chorar sobre os joelhos, percebeu que o piso não era mais de pedrinhas portuguesas; era de terra escura, coberta de folhas e galhos soltos. Olhou para os lados e viu que estava entre montanhas: uma cordilheira que se estendia à sua volta, a perder de vista. Os primeiros raios de sol do dia entravam pelas frestas. Como não havia percebido antes que morava numa caverna?, pensou. Lembrou-se, então, dos três ou quatro urubus que, durante todo aquele período de reclusão, via sempre pela janela e do voo livre que eles executavam nos dias ensolarados, como seria também aquele. Um deles, o mais destemido, volta e meia se desgarrava do bando e subia tão alto que parecia ir além das nuvens – ir além do próprio céu, rumo ao infinito. 

A escritora Veronica Stigger: estranhamento numa situação de emergência   Foto: Eduardo Sterzi


AS RUÍNAS MAIS BELAS - Carol Bensimon

No tempo em que todos os hotéis estavam funcionando, Edgar trabalhava como limpador de piscinas. Ia de um lugar para outro na kombi azul caiçara, Recanto das Hortênsias, Pousada das Montanhas, Hotel Serrano, Pousada Edelweiss. As coisas mais bonitas que já ouvira enquanto limpava piscinas tinham saído da boca das crianças: se o trabalho dele era salvar insetos – salva-vidas de formiga! –, se ele estava juntando folhas secas para sua coleção, se ele não era grande demais para brincar com uma peneira.
O vírus fechou os hotéis. Os gerentes mandaram mensagens de voz dizendo que não precisariam dos serviços de Edgar por algumas semanas e encerravam sempre com palavras positivas, mas ele não era nem tão otimista, nem tão bobo. Por três noites seguidas, ficou rodando pela cidade. Conseguia enxergar claramente a ruína de tudo. Tinha conhecido o lugar sem o parque temático da fábrica de chocolates, sem o teleférico, sem os festivais. Conseguia imaginar o escuro. Conseguia ouvir os grilos e ver as trepadeiras escalando vagarosamente as colunas de concreto. Sua referência era o cassino abandonado, multiplicado por mil, dois mil. Quando jovem, quantas vezes tinha dormido naqueles cômodos erguidos pela metade? Só precisava de uma garrafa de Velho Barreiro e de um cobertor. Edgar nunca achou difícil imaginar o fracasso. 
O turismo foi a primeira coisa a parecer supérflua na nova configuração do mundo. Os hotéis reabriram como se fossem reféns tentando sorrir ao ver os primeiros raios de luz; balões dourados na entrada, música alta, palhaços sobre pernas de pau, a alegria falsa que tenta mascarar o trauma. Só que todo mundo estava quebrado. Além disso, agora as pessoas sabiam do que antes era invisível; se por um acaso fossem parar num quarto de hotel, respondendo ao velho desejo por lugares distantes e pela quebra de rotina que, por sorte, poderia ser parcelado em até seis vezes, era como se vissem os espectros de todos os que já tinham passado por lá. Um quarto superpovoado. Um museu de saliva, digitais, células mortas. Quantos outros hóspedes tinham tocado naqueles mesmos botões do controle remoto?
As piscinas não reabriram. Colaram cartazes de “temporiamente desativada”. Cartazes de “pensando em sua saúde e sua segurança”. Em um único dia, Edgar cobriu doze delas. Às margens da última piscina, deixou uma abelha secando no sol, as asas ainda coladas no corpo frágil, o abdômen listrado pulsando. Entrou na kombi com tudo que tinha e desceu a serra na direção da capital. 
Trabalhava agora nas casas que ficavam perto do grande lago. Usava luvas e máscara. Ninguém chegava perto dele. Acionavam o porteiro eletrônico e sequer apareciam no jardim para perguntar qualquer coisa ou conferir o que ele estava fazendo. Um copo d’água seria demais. As pessoas com dinheiro ainda tinham o privilégio de ter medo, então queriam todo o lazer dentro dos limites da casa. Algumas dessas construções possuíam muitas décadas de vida, o que se media pelo tamanho de tudo. Parecia que os sonhos, antigamente, tinham mais espaço para onde crescer.
De qualquer maneira, enquanto jogava cloro granulado nas piscinas ou instalava aquecedores solares nos telhados das casas, Edgar achava fácil imaginar o abandono e o vazio do que via ao seu redor, porque tanta gente lá fora, em desespero, um dia ia sem dúvida derrubar os portões, quebrar as janelas e pegar tudo que precisasse realmente e tudo que achasse que precisava, como estava acontecendo em outros lugares chamados Quito, La Paz, Buenos Aires, Los Angeles. Ele tinha ficado impressionado sobretudo com as imagens que viu na televisão de um saque em uma loja de – parecia piada – televisões! Mas também viu casas pegando fogo em lugares que agora não lembrava o nome, e gente saindo com carrinhos cheios de roupas recém lavadas que pertenciam a outras pessoas. Além desse tipo de notícia cuja trilha sonora era sempre a das sirenes e das coisas explodindo – ali, ele ainda ouvia o canto dos passarinhos –, havia as notícias sobre uma segunda onda do vírus, uma terceira onda, uma quarta onda. Sobre uma coisa, podia ter certeza: as piscinas de azulejo seriam ruínas mais bonitas que as de fibra de vidro.
Às vezes, de forma tão imprevisível a ponto de causar um leve arrepio, uma menina ou um menino aparecia atrás de uma janela gradeada. As coisas mais sombrias que Edgar já ouvira enquanto limpava piscinas tinham saído da boca das crianças: se aquele pó que ele levava no balde matava o vírus, se o dragão inflável ia ficar bem depois que Edgar tinha tocado nele, se ele podia contar um pouquinho sobre como era a vida lá fora.
A escritora Carol Bensimon: a estranha beleza das ruínas Foto: Renato Paradia

FEL - Javier Arancibia Contreras

Roberto sente um desassossego irracional, uma amargura que nasce no estômago e sobe pela garganta até a boca. Nesses últimos dias, uma náusea intermitente o controla e volta e meia ele tem a impressão de que vai expelir algo. Preocupado, aciona seu médico particular para uma visita e os exames de praxe.
“Ansiedade, Dr. Roberto. Este momento do mundo faz muitas pessoas se sentirem assim. É a quebra do paradigma da rotina...”
O médico só tem saído de casa para atender pacientes como Roberto. Como o diagnóstico da maioria deles quase sempre é previsível, traz na maleta um ansiolítico poderoso e recomenda que circule pela ampla casa e pelo quintal, que faça exercícios físicos e execute tarefas cotidianas. A verdade, porém, é que Roberto já vem fazendo tudo isso por conta própria e nada adianta. Com o médico já de saída no portão externo, resolve arriscar:
“Acha possível ao menos uma volta com o cachorro pelo bairro?”
O médico olha ao redor do casarão, um palacete da primeira metade do século XX todo reformado e ladeado por um belo jardim, por uma piscina em curva e uma estufa de vidro repleta de orquídeas. Ele balança a cabeça, bufa, diz a Roberto que ele tem restrições de saúde e de idade, que as ruas estão sendo monitoradas, que ele é um privilegiado. Roberto meneia a cabeça positivamente. Entretanto, está na casa há dois meses e não aguenta mais. Os empregados já não vão. É obrigado a pedir comida todos os dias. Tudo está uma bagunça. Há excremento de cachorro por todo o lado.
Vive apenas com sua mulher, Ana Estela, mas a casa é tão grande que às vezes ficam o dia inteiro sem se ver. Ao contrário dela, que tem a habilidade de não ver as horas passarem com seu smartphone, Roberto é um homem à moda antiga, não gosta de tecnologias. Tem prazer em tratar dos assuntos ligados à sua holding sentado em uma sala de reuniões. De terno e gravata. Olho no olho. Com uma caneta na mão a decidir o futuro. Como se fazia antigamente. Talvez o fato de ter fechado algumas unidades de sua rede o tenha deixado exasperado daquele jeito. Para a ruína basta um pequeno passo, pensa.
Vai até a enorme casa de Hans. Ele não gosta daquele cachorro e acha que o sentimento é recíproco. Na verdade, o poodle gigante e branco de Ana Estela o deixa constrangido. Nunca saiu para passear com ele na rua, mas precisa de uma justificativa caso seja flagrado. Apanha a coleira e Hans solta um grunhido grave e interno, mas cede. Roberto decide ir sem a máscara. Pensa que seria incoerente querer um pouco de liberdade usando aquilo. Abre o portão lateral e dá alguns passos. Respira fundo. Tenta rememorar o cheiro peculiar de dama-da-noite, mas só o que sente é o fedor do lixo acumulado nas ruas. Viu na tevê que os lixeiros estão em greve após a morte de dezenas deles. Circula um pouco. Faz tempo que não anda por ali. Usa o carro para tudo e, a pé, a perspectiva é outra. Parece um estranho na sua própria rua. Hans puxa a coleira com uma força descomunal em direção à grande praça do bairro. Roberto fica nervoso, o cão está atrapalhando seu passeio noturno. Dá-lhe um safanão e um chute leve nas costelas, mas não adianta. Só consegue ganhar ainda mais a antipatia do animal, que rosna para ele. É incrível como as praças e os parquinhos sempre são assombrados por vagabundos, pessoas improdutivas incapazes de gerar qualquer tipo de retorno à sociedade e loucos, Roberto pensa assim que se aproxima do lugar. Não lembra daquela praça estar assim, ao deus dará. Seus filhos brincaram ali. Tudo deve ter piorado após a quarentena compulsória se arrastar por meses. Até a segurança do bairro pareceu diminuir.
Ao olhar de longe aqueles homens, sente medo. Se arrepende de ter contrariado o médico. De não ter usado a máscara. A rua é só silêncio quando ouve a melodia repetitiva e pegajosa de um assovio. Quer dar o fora dali o quanto antes, mas nesse instante Hans consegue escapar de suas mãos e corre como o diabo. Roberto não sabe o que fazer. Se voltar sem aquele cachorro, Ana Estela é capaz de matá-lo. Fica minutos parado, sem reação.
“Ei, esse cachorro é seu?”, diz um homem fantasmagórico que surge às suas costas, num átimo, com uma barba enorme e um cobertor quadriculado vermelho sobre o corpo.
Lá está Hans, ao lado daquele homem. Lambendo seus pés enegrecidos pela sujeira. Roberto sente nojo. Aquele cachorro desgraçado não pode mais voltar para casa, vai contaminar a todos, o vírus já está alojado em seu organismo, pensa. Súbito, um líquido quente e amargo lhe chega à boca.
“Porque se não for seu, vou pegar ele pra mim”, diz o homem magro que, agora agachado, abraça Hans que por sua vez lambe seu rosto e balança o rabo sem parar.
Nessa hora, Roberto decide correr, mas congela e já não consegue mover os músculos do corpo. Em seguida, seu coração para num ataque fulminante e ele cai estatelado no chão. Após ver cena, o homem se aproxima, cutuca o corpo de Roberto com o pé descalço e sujo, mas ele não responde. Hans cheira o corpo até chegar à cabeça, onde um líquido esverdeado escorre da boca entreaberta de seu ex-dono. Ele rosna, o homem o acalma com um afago nas orelhas e decide sair dali o quanto antes para não ter problemas com a polícia.
Enquanto caminha lado a lado com o cão, o homem volta a assobiar baixinho a mesma melodia e, logo, outros corpos surgem mais adiante, esperando a coleta do dia seguinte.
O escritor brasileiro Javier Arancibia Contreras, autor de 'Crocodilo' Foto: Renato Parada


sábado, 11 de abril de 2020

Hoje, excepcionalmente - Antonio Prata

Peço perdão ao caro leitor por estas mal traçadas linhas. Sei que a úbere Flor do Lácio já produziu pétalas mais cheirosas do que as que ora ofereço a vossas exigentes narinas. Em minha defesa, digo que não foram a preguiça ou a inépcia as culpadas pelo crônico desmantelo, muito pelo contrário: foi a ambição. O presente texto é fruto de uma experiência pioneira --e não existe pioneirismo sem riscos, como bem sabem os descobridores e, principalmente, os que nada descobriram; os grandes heróis anônimos cujos nomes, destinados aos livros de história, acabaram no fundo dos oceanos ou no bico dos urubus.
Qual era minha ambição? Escrever uma crônica com começo, meio e fim --e, se possível, graça--, instalado na saraiêvica balbúrdia de uma casa em reforma. Tenho certeza de que Marco Polo foi à Conchinchina, Neil Armstrong pisou na lua e Takeru Kobayashi comeu 50 hot dogs em 12 minutos sem sofrerem tanto quanto eu.
O texto que tentei escrever seria sobre a saudade. Teria frases de efeito, tipo "toda saudade é um lembrete da morte" e "no fim, a ausência é a única presença", mas a única presença detectável nas últimas 48 horas, dentro e fora do meu cérebro, é a dos pedreiros, executando sua ininterrupta sinfonia para Makita e marreta.
Que sinfonia! A marreta faz o chão tremer e o laptop sambar no meu colo, como se Deus, ouvindo um cha-cha-cha --e sem nenhuma noção de ritmo--, batucasse na laje. Já o som da Makita penetrando o concreto é... Como definir? Sei exatamente como, depois de dois dias ouvindo-o: é como o urro de uma elefanta fanha sob efeito de anfetaminas tentando imitar uma gata no cio. (A gata não é fanha, só a elefanta: há aí uma diferença sutil, porém fundamental.)
De tudo o que escrevi entre as nove da manhã de segunda e as seis da tarde de terça, só duas frases prestavam --e não eram minhas, mas de Fernando Pessoa: "Oh mar salgado, quanto de teu sal/ São lágrimas de Portugal!". Foi a grandiloquência desses versos que me levou a Marco Polo, a Neil Armstrong, ao fundo dos oceanos. (Os hot dogs de Takeru vieram de um documentário e os urubus, imagino, foram atraídos pelo cheiro de carniça que já emanava de minhas primeiras palavras.)
Agora, enquanto o deadline se aproxima, a casa treme e a elefanta urra, em vez de me desesperar, arranjo subterfúgios. Por exemplo: ver no dicionário o feminino de elefante. Lembro-me de que era uma palavra curta e bonita. Aí está: aliá. Monto a aliá e sigo em minha marcha procrastinatória até o colegial, onde estudei com uma menina chamada Eloá. De elefanta, não tinha nada. Era magra, tristemente linda, vestia-se de preto e tinha sobrancelhas muito delicadas, tão delicadas que eu não sei como resistem, há mais de 15 segundos, às marretadas que chacoalham meus neurônios.
Volto da divagação com o desejo algo corrupto de dizer que sinto saudades de Eloá, resgatando à crônica algo de seu tema original e fechando-a com um laço de lirismo, mas estaria mentindo. Mal conheci Eloá. Quem conheço bem é a aliá, a elefanta, a "elefanha" anfetamínica a urrar em meus ouvidos sua imitação de gata no cio.
Perdão, caro leitor: hoje, excepcionalmente, esta coluna não será publicada.



10/04/2013

ZZZZZZZZZ - Martha Medeiros

O sono profundo talvez seja uma recompensa apenas aos que se esgotam em viver bem
Durmo bem, mas apenas seis horas por noite. Gostaria que fossem mais. Como você é bom de matemática, já fez as contas: se adormeço às 23h, acordo às 5h. Se adormeço às 23h30min, acordo às 5h30min. E o que faz uma pessoa que acorda às 5h30min? Fica tentando dormir um pouco mais e às vezes até consegue uma cochilada extra, mas o corpo e a mente já descansaram o suficiente e querem sair logo da cama para mostrar serviço. Acordar cedo é um hábito saudável, reconheço, mas inclusive nos fins de semana e feriados?
Deixei de reclamar depois que li Sono, do celebrado escritor japonês Haruki Murakami, que entre outros livros escreveu Do que eu falo quando eu falo de corrida. Com sua prosa seca e objetiva, agora ele conta a história de uma mulher que, de uma hora para outra, deixa de dormir. E não sente falta. Está há 17 dias sem pregar o olho e tinindo.
De certa forma, um terceiro turno acordado é tudo o que sonhamos, já que tempo virou artigo de luxo. Não seria uma bênção ter oito horas a mais no dia, todos os dias? Imagine. Oito horas sem tráfego, sem barulho, sem compromissos – e sem fadiga. Oito horas a mais para desenvolver um hobby, para pedalar por ruas vazias, para o sexo, para organizar gavetas, para testar receitas, para ouvir música, para olhar para o teto, oito horas para o que bem entender. Menos dormir.
É possível que, se tivéssemos essas hipotéticas horas suplementares, as gastaríamos nas redes sociais, bisbilhotando o Facebook dos outros, dialogando com outros insones, compartilhando vídeos, fotos e textos que falam por nós. Ou seja, daríamos continuidade ao isolamento a que nos autoimpomos desde que nos viciamos no contato online.
Mas a fictícia personagem de Sono não cai nesta. Usa suas horas noturnas para reler romances que já havia lido anteriormente, mas que não havia prestado atenção. Agora, no silêncio de sua nova condição de zumbi e a fim de se reconectar consigo mesma, ela percebe nuances que nunca havia percebido nas histórias – e, junto, descobre o real sentido da palavra concentração.
Chegaremos a esse ponto de precisar de um terceiro turno insone para nos mantermos despertos para o que verdadeiramente importa? Francamente: não dormir é um pesadelo. Precisamos dormir. O corpo precisa. A mente precisa. Por que será que 16 horas alertas não têm nos bastado?
O livro é de uma simplicidade perturbadora. Termina de forma enigmática e deixa reflexões no ar. De minha parte, fiquei com a sensação de que as pessoas não estão descansando à noite porque não estão se cansando de dia com coisas que valham a pena – apenas cumprem tarefas enfadonhas e à noite se culpam pela maneira como estão desperdiçando seu tempo. O sono profundo talvez seja uma recompensa apenas aos que se esgotam em viver bem.


12/04/2015

Algo vai quebrar - Fabrício Carpinejar

No lar, ladeado dos filhos, precisa suportar o inesperado. Quando finalmente sentar para ler ou assistir ao programa favorito, depois de exaustivas tarefas, de repente a sua criança derramará o copo de suco no sofá. Não adianta gritar. Terá que parar o que sonhava fazer para conter o líquido brilhante entrando nas frestas das almofadas. Se chamar ajuda, perderá minutos preciosos e não protegerá o estofado das manchas.

Os controles remotos vão morrer afogados, o teclado do computador vai cuspir as teclas, um vaso de alentada estima se transformará em quebra-cabeça na pazinha.

Assim como descobrirá pratos lascados, vasilhas rachadas, afora o pânico de não localizar os pares das meias e as tampas das panelas.

Os puxadores se soltarão das gavetas, levará as maçanetas das portas pela pressa. Nem a vassoura ajudará, perdendo a cabeça a cada espiada debaixo dos armários. As paredes ficarão riscadas com a bola de tênis quicando pelos corredores. Os vizinhos de baixo reclamarão do barulho. A cafeteira estragará. O chuveiro não funcionará. A geladeira parará de resfriar.

Tem certeza de que é vítima de uma série de azares, de uma conspiração do mal, mas os contratempos nunca deixaram de existir, você que não estava tão atento como agora para reparar. Prepare-se para a paciência que é conviver com os mais variados temperamentos atrapalhados da família dentro do mesmo espaço.

Não ter controle é a base da rotina doméstica. O trabalho em casa é permanentemente retrabalho. Acabou de limpar, já está sujo de novo. Ou sofrerá de ataque de nervos tentando impedir um acidente a qualquer momento ou perdoará, com uma grande dose de resignação, as imperfeições involuntárias da vida.

Um fato desagradável acontecerá estando tanto tempo no confinamento. Quanto maior o uso, maiores são as chances de algo estragar. É o efeito colateral da casa cheia, da frequência, do manuseio constante dos objetos.

Haverá um poltergeist pipocando em algum ambiente do apartamento.

Apesar de tudo, agradeça. A quebradeira é uma manifestação de que todos estão com saúde. E também terá o seu tempo bem ocupado consertando aquilo que você gosta ou gostava. Afinal, nem tudo pode ser salvo.

O carrinho do súper e você - Martha Medeiros

Normalmente, vou bastante ao supermercado. Duas vezes por semana, no mínimo. As pessoas estão acostumadas a me encontrar pelos corredores e, quando falam comigo, são sempre muito simpáticas. Mas um cliente, certa vez, conseguiu me constranger. Sem dar bom dia e sem se apresentar, fitou meu carrinho com os dois olhos arregalados e exclamou num tom de voz muito acima do razoável: "Vamos ver o que a Martha Medeiros come!". Fiquei muda, perplexa. Quando ele fez menção de tocar nas minhas compras, desviei e dei-lhe as costas - não disse o que ele merecia escutar. Sou covarde diante da iminência de um barraco.

Foi quando me dei conta do quão íntimo é o conteúdo dos nossos carrinhos. É possível identificar o estilo de vida de uma pessoa apenas analisando suas compras regulares no súper: se mora sozinha, se tem crianças em casa, se tem filhos adolescentes, se tem muito dinheiro, se está de dieta, se é vegetariana. No filme Divã, a personagem de Lilia Cabral, recém-separada, encontra o ex-marido entre as gôndolas do súper e não resiste em dar uma conferida no carrinho dele. Repara que o ex comprou uma garrafa de um vinho caro. Espumando de raiva, mas mantendo o sangue frio, comenta: "Humm, comprando vinho de R$ 80 ... quando éramos casados o teto era R$ 35". Ele dá uma desculpa qualquer, mas não adianta: ela acaba de descobrir que o bandido já está namorando.

O carrinho entrega tudo: se você só come carne de segunda, se tem cachorro, se não se preocupa com o peso, se está menstruada, se depila com gilete, se pretende maratonar uma série no sofá com um balde de pipoca no colo ou se vai dar uma festa em casa - não é possível que aquela quantidade de garrafas de espumante seja apenas para fazer estoque.

Nos primeiros dias da crise do coronavírus, quando a população invadiu os supermercados para se abastecer, os carrinhos deduraram os mais egoístas. Clientes que conduziam carrinhos abarrotados de papel higiênico e garrafas de álcool eram vistos como inimigos da população, pessoas sem empatia. Da mesma forma, mas invertida, me doeu ver uma senhorinha de uns quase 90 anos comprar apenas um litro de leite, um pacote de macarrão, dois tomates, uma cebola e três sabonetes. Nem precisou de carrinho, a cestinha deu conta.

Entre este momento em que escrevo até o momento em que serei lida transcorrerá uma semana. Não sei como estará o mundo, nem o Brasil, já que as notícias têm sido atualizadas a cada 10 minutos. Nossa vida melhorou? Piorou? Seja como for, espero o básico: que a gente consiga continuar se abastecendo de comida e de respeito pelos outros, que é o que faz uma sociedade doente receber alta.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

O irmão Justiniano - Mario Vargas Llosa

Lembro perfeitamente as dez quadras que havia entre a casa da família Llosa, na Rua Ladislao Cabrera, e o colégio de La Salle. Eu tinha 5 anos e, sem dúvida, estava muito nervoso. Neste dia, meu primeiro dia de aula, as percorri com minha mãe que, inclusive, me acompanhou até a classe e me deixou nas mãos do Irmão Justiniano. Este me apresentou àqueles que seriam meus amigos de Cochabamba desde então: Artero, Román, Gumucio. Ballivián.
O mais querido de todos, Mario Zapata, o filho do fotógrafo que havia documentado todos os casamentos e primeiras comunhões da cidade, seria morto com uma facada, anos mais tarde, em uma picantería (onde servem comidas típicas) de Cala Cala. Como era a criança mais pacífica do mundo, sempre pensei que sua morte horrível foi para defender a honra de uma jovem.
O Irmão Justiniano era um anjo caído na Terra. Tinha cabelos brancos e olhos doces e cativantes. Ele nos pegava pela mão e com ele cantávamos e dançávamos cantigas de roda repetindo o abecedário e as conjugações e assim, brincando, seis meses mais tarde, eu já sabia ler. O carteiro depositava toda semana na casa quatro revistas, três argentinas e uma chilena: Leoplán, para o avô Pedro, Para Ti, que a vovó, mamãe e a tia Lala liam, e para mim Billiken e El Peneca. Esperava estas revistas como o maná do céu e as lia do princípio ao fim, inclusive os anúncios.
Mamãe tinha um professor de violão e era uma leitora empedernida. Ela me emprestou El Árabe e El Hijo del Árabe, mas me proibiu de ler Veinte Poemas de Amor y Una Canción Desesperada, de Pablo Neruda, um livro azul com letras amarelas que escondia no seu criado-mudo e relia à noite: eu a ouvia, entre um bocejo e outro. Evidentemente, o li, escondido; continha uns versos que, eu tinha certeza (“Mi cuerpo de labriego salvaje te socava/ y hace saltar el hijo del fondo de la tierra”), eram pecado mortal.
Aprender a ler foi a coisa mais importante que me aconteceu na vida e, por isso, sempre lembro com gratidão do Irmão Justiniano e das cantigas de roda entre as maletas cantando e dançando enquanto memorizávamos as conjugações. Graças à leitura, este mundo pequenino de Cochabamba se tornou o universo. Graças aos signos que convertia em palavras e em ideias, eu viajava pelo planeta e podia, inclusive, retroceder no tempo e tornar-me um mosqueteiro, cruzado, explorador, ou viajar pelo espaço até o futuro em naves silenciosas.
Mamãe diz que a primeira manifestação do que, com os anos, viria a ser uma vocação literária, foi que, quando os finais dos contos e dos romances que lia não me agradavam, com minha letra torpe de então eu os mudava. Não recordo disso, mas lembro das horas que passava lendo todos os dias, depois de voltar do colégio La Salle e tomar meu copo de leite frio com canela, meu alimento preferido. O avô Pedro zombava de mim: “Para o poeta, a comida é prosa”. Mas eu ainda não escrevia versos em Cochabamba, isso viria logo depois, em Piura.
Agora que, por culpa do coronavírus e do isolamento forçado a que somos submetidos nós, madrilenhos, leio do amanhecer até o anoitecer, dez horas diárias em um estado de felicidade absoluta (moderada pelo medo da peste); aqueles dias de Cochabamba voltam à minha memória com os fantasmas imprecisos das primeiras leituras que o subconsciente me devolve: a orgulhosa Diana Mayo caindo exausta nos braços do seu sequestrador, Ahmed ben Hassan, nos desertos da Argélia; o espadachim que nasceu em uma cela de prisão e, como os gatos, via na escuridão; o Judeu Errante e sua peregrinação incessante pelo mundo. 
Nós, as crianças de então – pelo menos em Cochabamba –, não líamos as revistas em quadrinhos, mas livros, e, sem dúvida, por isso jamais me viciei em Popeye, o marinheiro musculoso. Mas em Tarzan e Jane, com os quais voava, de uma árvore a outra, pelas selvas da África.
Na biblioteca cheia de teias de aranha da Universidade de San Marcos, li minha primeira obra-prima: o Tirant lo Blanc (Tirante o Branco), na edição de Martín de Riquer, de 1948. Antes, porém, quando calouro do Leoncio Prado, devorei a série dos mosqueteiros de Alexandre Dumas, e sonhava com D’Artagnan todas as noites.
Nada me deu tanto prazer e felicidade quando os bons livros, nada me ajudou tanto como eles a superar os momentos difíceis. Sem a literatura, eu me teria suicidado no período atroz em que soube que meu pai estava vivo, quando me levou a viver com ele e me fez descobrir a solidão e o medo. William Faulkner mudou a minha vida em plena adolescência; eu o li com lápis e papel para identificar as mudanças de narrador, os saltos temporais, os redemoinhos dessa prosa que mesclava personagens, tempos e lugares, e no romance aparecia de repente um reordenamento da história melhor do que o cronológico.
Para ler Sartre, Camus, Merleau-Ponty, Simone de Beauvoir e demais colaboradores da revista Les Temps Modernes, aprendi francês e inglês para entender Hemingway, dos Passos, Orwell e Virginia Woolf, e decifrar o Ulisses de Joyce (consegui na terceira vez). Em uma cabana de Perros-Guirec, na Bretanha, no verão de 1962, li o tomo de La Pléiade dedicado a Tolstoi e desde então Guerra e Paz me parece o ápice do romance, com o Dom Quixote e Moby Dick.
Entre as obras do século 20, nada superou, na minha opinião, A Condição Humana, de Malraux, com a exceção de A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Em Paris, no primeiro dia em que cheguei, em agosto de 1959, descobri Flaubert e passei a noite toda, no Wetter Hotel, lendo Madame Bovary. Para mim, este foi o mais frutífero dos descobrimentos: graças a Flaubert, soube o escritor que eu queria ser e o não queria ser.
As boas leituras não só produzem felicidade, elas ensinam a falar bem, a pensar com audácia, a fantasiar, e criam cidadãos críticos, receoso das mentiras oficiais dessa arte suprema do mentir que é a política. A vida que não vivemos, podemos sonhá-la; ler os bons livros é outra maneira de viver, mais livre, mais bela, mais autêntica. Esta vida alternativa tem, além disso, a sorte de estar fora do alcance das pragas demoníacas que sempre apavoraram os seres humanos porque viam nelas os demônios, que, diferentemente dos inimigos de carne e osso, eram difíceis de derrotar.
Um bom leitor é o cidadão ideal de uma sociedade democrática: nunca se conforma com aquilo que tem, sempre aspira a mais ou a coisas diferentes das que lhe são oferecidas. Sem esses anticonformistas, seria impossível o progresso verdadeiro, o que, além de enriquecer a vida material, aumenta a liberdade e o leque de escolhas para adequar a própria vida aos nossos sonhos, desejos e ilusões. 
Karl Popper tinha razão: nunca estivemos melhor do que agora (nos países livres, evidentemente). O coronavírus ressuscitou a barbárie no que acreditávamos ser a civilização e a modernidade. Vimos coisas horríveis em Madri, por exemplo, nas residências: idosos aparentemente abandonados por cuidadores que não tinham máscaras nem remédios nem qualquer tipo de ajuda. Os mortos convivendo com os vivos, dormindo nas mesmas camas.
O horror sempre supera o horror, não importa o tempo histórico. Mesmo assim, com toda a ruína econômica e social que essa praga inesperada trará para o país, se, depois de sobrevivermos a ela, houver na Espanha mais um milhão de espanhóis, ou pelo menos cem mil, ganhos para a boa leitura graças à quarentena forçada, os demônios da peste terão realizado um bom trabalho. 

 TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

Lugar Ideal - Luis Fernando Verissimo

Um homem resolve fugir da cidade grande em que vive e padece. Bota a família e a bagagem num carro e ruma para... Para onde? Ele não sabe. Vai para o interior do país. Depois para o interior do interior do país. A família se impacienta. Onde ele quer chegar? A cada cidadezinha que passam, a mulher pergunta “é aqui?” , e o homem diz “não”.

A cada lugarejo que cruzam, as crianças, esperançosas, perguntam “aqui não serve?”, e o homem diz “não”. E continua a viagem, rumo ao interior do interior do interior do país. Até que entram numa cidade minúscula, uma cidade de um poste só. E o homem declara: “É aqui que nós vamos morar!”
A família não entende. O que aquela cidade tem de especial? Por que logo ali? E o homem responde:
– Vocês não notaram?
– O quê?
– Os cachorros correndo atrás do carro! Aqui cachorros ainda correm atrás de carros! É aqui que nós vamos ficar!
Em outra versão da mesma história, o homem, à procura de um lugar perfeito para morar, chega numa cidadezinha no interior do interior do interior do interior do país, entra no único bar da cidade e pede:
– Uma Coca-Cola, por favor.
E o dono do bar pergunta:
– Uma o quê?
– É AQUI! – grita o homem.
(Na verdade, como adepto da Coca Diet, meu ideal não seria o mesmo do nosso hipotético buscador. Mas entendo a sua alegria).
Numa lista recém-publicada de países ideais para se viver, o primeiro lugar foi para a Nova Zelândia, seguida da Suíça, da Islândia e da Holanda. Neozelandeses, suíços, islândicos (?) e holandeses morariam nos melhores lugares do mundo, julgados, eu suponho, pelo parâmetro, algo impreciso, da “qualidade de vida”. Imagino que não entre na cotação o grau de chateação cotidiana nestes paraísos, o que desclassificaria pelo menos três dos quatro.
Só se salvaria a Holanda, onde a tolerância com o comportamento individual dos cidadãos em matéria de sexo e drogas é, no mínimo, uma garantia contra o tédio. Pois deveria contar pontos na avaliação dos lugares ideais para se viver o quesito “o que fazer nos sábados à noite”.


09/04/2014

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...