quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

O Coringa e as incertezas do nosso mundo - Roberto DaMatta


Vi muitos coringas lendo nos gibis as aventuras de Batman & Robin e indo ao cinema para ver suas réplicas e realidades, pois o que salva ou destrói um filme é precisamente o seu ultrarrealismo tão complicado de fantasiar. 
A novidade desse filme de Todd Phillips sobre o Coringa é a sua centralidade. O dualismo do “mocinho” contra o “bandido” – nos clássicos americanos e bem longe de nós, brasileiros, e da lei contra o crime – não existe nessa versão e talvez isso seja um sintoma da nossa descrença no progresso e no final feliz, quando o Bem triunfa sobre o Mal e o progresso engloba a miséria. Afinal, temos dois papas e os sinais de que não há sistemas perfeitos são claríssimos. 
Como o filme mostra, o Bem e o Mal coexistem dentro de nós, tal como o aquecimento global é um hóspede não convidado da nossa tecnocracia consumista e globalizada.
Nesse filme, testemunhamos a transformação de Arthur Fleck num misto de ressentido e rejeitado vingador social em paralelo à indiferença da patologia urbana capitalista do Bruce Wayne de Gotham City. A cidade que precisou do Batman (ao contrário do Coringa – morcegos não riem...) para deixar de ser uma combinação do pior da Londres de Jack, o Estripador, com o Rio de Janeiro de hoje. Uma urbe na qual o pior é o melhor. 
Impressionei-me com a ausência do dualismo do Bem e do Mal, pois, se os filmes americanos reiteram uma história de heróis que, com coragem e confiança, viram vencedores, o que vemos no Coringa é um cruel processo de marginalização de um indivíduo perdido na sua patologia. Um processo causado pela indiferença institucional, que olha mais para a doença do que para o doente – um pobre-diabo anônimo que nem sequer pode ser um palhaço – um joker.
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Sei “ler” o baralho, esse espelho do nosso mundo social com cartas pretas (copas simbolizam o clero; paus, o povo; espadas remetem aos nobres e o vermelho, ao ouro dos comerciantes). Já as figuras eram nobres (rei, rainha, valete) e os números, os comuns. No meio dessa gramática rígida, porém, havia uma carta singular porque ela combinava com todas as outras: o coringa. Esse “joker”, ou gozador, que foi introduzido no baralho nos Estados Unidos.
O joker, como revela o filme, deveria, mas não consegue entrar em nenhum naipe ou jogo. Ele é marcado pela rejeição institucional e pela infelicidade de uma condição psicológica que o faz rir desbragadamente num sistema no qual todos devem ser sérios. 
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Alguém poderia escrever um livro sobre o riso e o sério; sobre a gargalhada que joga tudo para cima e o discurso burguês salvacionista; sobre o riso desbragado e o grave discursar, sobre a ordem da palavra (ou a palavra de ordem) e a desordem satírica do riso que denota zombaria, baderna, malandragem e descaso. 
Eu não conheço muitos mitos da origem do riso, mas Mikhail Bakhtin, no livro A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O Contexto de François Rabelais, ensina: “No começo do mundo, os homens eram sérios. Mas o diabo enviou o riso para o mundo e apareceu aos homens com a máscara da alegria e eles o acolheram com agrado. No entanto, mais tarde, o riso tira a máscara alegre e começa a refletir sobre o mundo e os homens com a crueldade da sátira”. 
O que remete à tragédia de um mundo consumista no qual cabe a marginalidade, mas não o gargalhar do Coringa, que promove mal-estar em meio a uma necessária impessoalidade. A compulsão ao riso destoa do foco, do projeto que todos devem ter. Afinal, só os ricos riem à toa e, como disse Henri Bergson, não rimos de tudo a todo momento. O riso é um sinal de indiferença e distanciamento. Matar com um riso aberto não seria o estigma inconsciente desse Coringa, cujo riso descontrolado o impede de entrar do mundo? 
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No filme, o riso descontrolado é o sintoma de uma sociedade marcada por ganhadores ou perdedores, os que não sabem a gramática do riso e da seriedade. O mundo pós-moderno, mas ainda burguês, exige seriedade tanto à direta (com seus contratos de expropriação) quanto à esquerda (com suas sagradas e utópicas palavras de ordem). No Coringa, o riso leva à marginalidade e se transforma num poder dos fracos. O riso do Coringa produz o seu esmagamento, mas sugere a legitimação da violência transformadora como revanche. 
Em suma, esse Coringa pode ser lido como um avatar de um mundo certo de suas incertezas. Pelo menos, foi essa a emoção que o filme em mim despertou.

domingo, 26 de janeiro de 2020

Instrumentos - Luis Fernando Verissimo

Discute-se qual é o melhor, o baixo acústico ou o baixo elétrico, que se segura como uma guitarra. O baixo elétrico é mais leve e mais fácil de carregar, mas o baixo acústico, daquele tamanho, é sempre um companheiro com quem você pode conversar, mesmo que ele nunca responda. E você jamais terá com um baixo elétrico a mesma intimidade que tem com o baixo acústico, como dedilhar a sua cabeça com uma mão enquanto faz cócegas na sua barriga com a outra. Em certas situações o baixo acústico substitui a amante ou o amante e passa a noite inteira roçando a sua perna – com a vantagem que nas viagens de avião você pode despachar o baixo acústico no compartimento de bagagens, coisa que jamais faria com sua mulher ou seu marido. 
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Se você estranha a violência com que o baterista às vezes toca é porque ele já está pensando no trabalho que terá para desmontar seu instrumento, enquanto o flautista, por exemplo, guarda a sua flauta no estojo em dois minutos e vai tomar um chope com a banda, e ainda lhe dá um tchau irônico. 
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O maior instrumento conhecido é o órgão de uma pequena cidade no interior da França tão poderoso que, da primeira e última vez em que foi tocado, deixou a igreja de pé, mas destruiu toda a cidade à sua volta. A cidade está sendo reconstruída como atração turística e os restos do organista estão sendo retirados, pouco a pouco, de dentro do órgão.
Os menores instrumentos do mundo são, na ordem regressiva, a harmônica, ou gaitinha de boca, o pífaro ou piccolo, que é uma espécie de filhote de flauta, e aquela folha que a gente arrancava de certas árvores da adolescência que não existem mais, dobrava, levava à boca, assoprava e produzia um som aproximado de trompete com surdina, fingindo que era o Miles Davis. A principal característica dos instrumentos menores é que podem ser carregados no bolso da camisa – para raiva do baterista.
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A família dos saxofones vai do sax barítono, que, só pelo tamanho, exerce uma espécie de autoridade moral sobre o resto do naipe e cuja nota mais baixa é tão baixa que só pode ser tocada com autorização da Saúde Pública, ao sax alto, passando pelo sax tenor e pelo sax soprano. O som do sax tenor é o que mais se aproxima da voz humana, tanto que é comum o músico encerrar um solo de tenor e ouvir a pergunta: “O que você quis dizer com isso?”. 
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E chegamos ao trombone de vara, o instrumento que mais cria caso numa orquestra. A vara do trombone se estende por uma boa distância e é praxe os trombonistas sentarem atrás dos saxofonistas, e é inevitável que, volta e meia, uma vara de trombone acerte a nuca de um saxofonista à sua frente. O saxofonista reage, e está armada a confusão, que vira guerra, com instrumentos sendo usados como armas, de nada adiantando os pedidos repetidos de calma do sax barítono.
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Faltou o piano. Mas todo o mundo sabe que o piano não é um instrumento, o piano é um mundo. 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Sempre anunciaram o fim do mundo, mas agora não é a Bíblia, é a comunidade científica - Gregorio Duvivier

André Dahmer

Toda a nossa sociedade se baseia na ideia de que a gente herdou o mundo dos nossos antepassados, e tudo se organiza para honrar o seu legado. Nosso nome carrega o nome deles, as ruas carregam o nome deles, os estádios, as cidades, as doenças, as ideias. "I seed ded people", dizia o garoto de "O Sexto Sentido" e ele não estava maluco. As leis que nos governam foram escritas, maioria, por gente que já morreu. Os discursos que nos moldara? Não tá mais aqui quem falou. O Brexit foi votado por gente que não estará mais viva quando ele ocorrer. "Os vivos são e serão cada vez mais governados pelos mortos", dizia Augusto Comte, um morto que nunca imaginou que governaria o Brasil.

Wendel Berry, poeta e ambientalista foi quem primeiro propôs a inversão: "Nós não herdamos o mundo de nossos antepassados, nós pegamos emprestado dos nossos filhos". O mundo é uma casa alugada e o proprietário acabou de nascer. Normal que esteja revoltado com o estado em que ela se encontra. A geração anterior pensa que é dona do mundo, mas é o cupim.

"Todo millennial é um mimado! o jovem tem tudo de mão beijada e nunca tá feliz."

Por tudo, eles querem dizer: um smartphone, um wifi e uma  patinete elétrica. Obrigado por tudo, foi muito legal da parte de vocês, mas acho que o jovem trocaria o iPhone X por alguma perspectiva de futuro.

A  Greta Thunberg não deveria ter substituído a "paixão" pela "raiva", reclamou o Eduardo Jorge, que continuou: "Mais compaixão e menos ressentimento vai nos ajudar mais". Admiro a autoestima desse político que teve menos de 1% de intenção de voto à vice-presidência e continua  ensinando estratégias de comunicação. Tivesse mais humildade,  estaria se perguntando porque o discurso de Greta comove tanta gente e o dele não.

É fácil manter a placidez quando você vai morrer. A raiva é um direito alienável de uma menina que ver o mundo acabar antes dela.

Sempre anunciaram o fim do mundo, mas agora não é a Bíblia, nem Nostradamus, é a comunidade científica ---------as mesmas pessoas excêntricas que dizem que a Terra é redonda. Negar o apocalipse eminente é uma forma de terra planismo.

Trump, Bolsonaro, Putim, todos devem morrer antes do mundo.  O fim do mundo, pra eles, é indiferente. Não vão estar aqui mesmo. Abaixo os mortos e todos os que querem que o mundo morra junto com eles.

Todo poder às pirralhas, aos secundaristas, aos recém-nascidos, a todos que não têm planos de morrer tão cedo.


Catarina Bessell/Folhapress

Minha feminista predileta - Carlos Gerbase

Tento aprender cada vez mais sobre os feminismos. Faço isso em casa, ouvindo e debatendo com minhas três filhas. Amplio a discussão na universidade com minhas alunas. E, é claro, dentro de minhas possibilidades, leio as autoras contemporâneas, que são muitas e têm ideias às vezes bem contrastantes. Admiro o trabalho pioneiro de Laura Mulvey na área audiovisual, me diverti horrores com as teses anarquistas, mas sempre coerentes, de Paul B. Preciado (que já assinou como Beatriz Preciado), e sei da importância de Judith Buttler, recentemente hostilizada de forma covarde quando visitou o Brasil. Preciso me dedicar mais às feministas brasileiras, que já criaram uma sólida bibliografia e têm contribuído muito para o debate. Haja tempo e haja óculos de leitura.

Minha feminista favorita, contudo, ainda é Camille Paglia. A lúcida e sensacional entrevista que ela deu para Gunter Axt em meados de 2019 me levou a percorrer com voracidade sua obra, que demonstra uma grande erudição no campo das artes plásticas. Leio agora Imagens Cintilantes: uma Viagem através da Arte, desde o Egito a Star Wars, uma introdução brilhante e acessível à história da arte. 

Li boa parte de Vampes e Vadias e espero um dia ter a oportunidade de me dedicar com seriedade a Personas Sexuais: Arte e Decadência de Nefertite a Emily Dickinson, um monumento de 616 páginas com letras bem pequeninhas. As teses de Paglia com certeza estão bem distantes de um feminismo hostil aos homens. Ela os quer como aliados, e não como inimigos, e aí as ásperas contendas do famoso lugar de fala se acendem e provocam incêndios de proporções australianas. Não vou entrar nessa.

É tempo de encontrar pontos de quase consenso, em vez de potencializar atritos. Mas quem discorda das frases a seguir, retiradas de Imagens Cintilantes?: "O único caminho para a liberdade é a educação de si mesmo para a arte. Para qualquer civilização avançada, a arte não é um luxo - é uma necessidade sem a qual a inteligência criativa definha e morre. Mesmo em tempos de economia conturbada, o apoio à arte deveria ser um imperativo nacional". Obrigado, Camille. Não importa o sexo e o gênero de quem lê: ainda há verdades acima de confrontos estéticos e ideológicos. Os atuais governantes brasileiros, infelizmente, não apreciam amontoados de palavras escritas. E aí não tem santo que salve. Eles morrerão gostando de outros tipos de amontoados.

Livramentos - Roberto DaMatta

Deixem-me repetir: um dos mais surpreendentes triunfos de ficar velho (velhice é outra coisa) é descobrir, com um sorriso irônico e um enorme alívio, que não se tem futuro. 
Uma analogia batida é imaginar o final de uma viajem de trem quando passamos pelos subúrbios e pelas zonas mais pobres da cidade e, em seguida, entramos no enxame de gente ansiosa da estação. Neste momento, a viagem termina, não há mais trilho a ser trilhado. Acabar é ficar com um absoluto presente no colo. Um presente que não será mais vivido e transmitido para ninguém.
Faz algum tempo que eu descobri que não tenho mais que carregar o meu futuro. E eu lhes confesso: ele foi pesado, cheio de coisas escondidas e de memórias empoeiradas como é comum acontecer com o reprimido, o ocultado e o aprisionado, que imploram livramento. 
Quando mencionei isso numa aula, alguns jovens me olharam intrigados, mas nenhum ficou decepcionado. Acho até que alguns me invejaram por ter consciência de que estou mais próximo do fim da linha, mas – e esse ponto é absolutamente fundamental – não finalizei o gosto da viagem. O fim tem uma vantagem: ele torna o presente algo único e precioso. Se para os jovens o futuro demanda múltiplas escolhas imperiosas, que podem ou não dar certo – sobretudo com o poderoso preocupar-se com o que se “vai ser”, essa exigência do individualismo que, no caso americano, é muito mais obsessiva do que entre nós e faz com que o futuro assuma uma tremenda e muitas vezes agoniada proporção. 
Nesses tempos globalizados e um tanto sinistros, eu – no papel de pai, avô e professor – sei como é complicado sair da verdadeira prisão de um Brasil no qual a gente só tinha futuro como médico, advogado, engenheiro e oficial das Forças Armadas (com ênfase no oficial) e em uma elitista carreira diplomática, para poder ser “alguém”. Hoje, porém, pode-se até ser polícia, dono de bar, motorista e garçom.
Convenhamos que esse naipe de escolhas se tornou muito amplo e, certamente, demasiado democrático no contexto de um universo profissional preciso e estruturado para as camadas médias, um leque no qual o futuro invariavelmente deveria repetir o passado.
Quando, nos anos 50, entrei numa Faculdade de Filosofia, um amigo decretou que ia estudar numa escola para mulheres e veados. De lá, disse ele, você sai professor o que, no Brasil, é pior do que ser lixeiro, pois não aprender algo novo, descobrir o que ninguém sabe, é uma dimensão indesejada. Pode-se ser do contra, mas é crime, pecado e tabu falar em alternativas e liberdade. Até hoje, pagamos salários de merda aos lixeiros, mas não há verbas previstas para conferências e palestras acadêmicas que, obviamente, não precisam de honorários. 
Quando virei um leitor aplicado, disseram-me que poderia enlouquecer, pois é justamente isso o que ocorre com quem relativiza costumes estabelecidos e prisões culturais solidamente construídas. Como duvidar ou questionar se o caminho já estava traçado primeiro pelo catolicismo e depois pelo chamado “pensamento crítico”? 
Tornei-me, Deus e eu sabemos como, antropólogo social. Um profissional da dúvida, um investigador do por que gostamos de comer misturando arroz com feijão e o que isso teria a ver com a mestiçagem mascaradora e criadora de hierarquias. Pesquisei ainda como os chamados “índios”, que andam sem roupa, inventam seus mundos. Um conhecido me perguntou se eles não ficavam excitados vendo aquelas mulheres nuas.
Questão tão esdrúxula quanto válida quando descobrimos por que a “política” foi transformada num espaço de enriquecimento e aristocratização, porque não se resiste aos dinheiros públicos que até anteontem, sendo de todos, não seriam de ninguém... 
Um dia ouvi num ato falho que, além de louco, era antropófago. Fiquei feliz. Descobri o meu futuro pesquisando sociedades modestas, muito mais pobres do que a pobreza que vive ao nosso lado e é mantida pelo nosso estilo de vida. Encontrei futuro no Museu Nacional que, não obstante, pegou fogo. 
Lamento ver instituições como a Casa de Rui Barbosa serem atingidas. Para mim, elas deveriam ser independentes. Pesquisadores e professores não podem ser funcionários públicos – os papéis não combinam. 
Ponto final: sem liberdade, amor e perseverança não há, mesmo velho, nenhum futuro. Aliás, o que está para chegar depende de lucidez intelectual: o verdadeiro livramento.

domingo, 19 de janeiro de 2020

Andrea - Luis Fernando Verissimo


Andrea Motis quintet - Saudades Da Guanabara


Estou apaixonado! Calma. É platônico, eu nem conheço a moça e a Lúcia aprovou. Mas vinha eu andando despreocupadamente, na medida que alguém pode andar despreocupado hoje em dia neste vale de sustos, pela internet, quando dei com uma banda tocando a todo volume. Uma afiada banda de jazz, profissionais experientes, maravilha – com uma única discrepância: ninguém na banda parecia ter mais do que 15 anos. Tratei de me informar sobre aquela aparição juvenil. Descobri que a orquestra era da Sant Andreu, uma escola municipal de música de Barcelona que aceita alunos de 7 a 20 anos e se apresenta regularmente, em concertos e excursões, em diferentes formações, de “big band” a pequenos grupos, muitas vezes com músicos convidados. A internet está cheia de sites deles. Fiquei saltando de um para outro, encantado. 
E então ela apareceu. Andrea Motis. Cantora, certamente formada na Sant Andreu, mas não apenas cantora. Ela também toca trompete e sax soprano, mas não apenas toca trompete e sax soprano. Toca trompete e sax soprano muito bem. Parece ser a artista principal dos grupos, embora o comum seja as formações se misturarem e ninguém ser estrela. E eu falei que ela é bonita? Pois ela, além de tudo, é bonita. Tem um jeito tímido de agradecer os aplausos. Quando sopra o trompete aparece uma covinha no lado da sua boca. E eu aqui sem saber de nada. Sem saber se ela já veio ao Brasil, se é casada ou solteira, se ainda tem fé na humanidade. Sem saber, meu Deus, da covinha no lado da sua boca, todos esses anos!
O repertório dos grupos é, principalmente, de clássicos do jazz e “standards” americanos, mas eles também tocam e cantam muitas músicas brasileiras, e a escolha pode ser surpreendente. Saudade da Guanabara, do Moacyr Luz, dá para acreditar? Sonho Meu, da Dona Ivone Lara. Desilusão, do Paulinho da Viola. Todas cantadas em português com um irresistível sotaque catalão. 
A primeira visão que tive da Andrea foi uma gravação feita na rua, ela cantando Antonico, do Ismael Silva, um samba genial tristemente ausente dos repertórios de cantores nacionais. No fim, acho que foi isso que me emocionou, ouvir o Ismael Silva ecoando numa rua de Barcelona, pedindo uma viração pro Nestor. Na voz da Andrea, quem resistiria ao pedido?

Andrea Motis Quintet - Antonico


sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

A história contada por um vestido preto - Ignácio de Loyola Brandão


A vida não precisa ser complicada o tempo inteiro. Num desses encontros de começo de ano, Dora elogiou o vestido de Magali. Feliz, esta comentou: “Sabe que tenho há seis anos? É a vantagem de comprar coisa boa”. Pouco depois, por acaso, Anna Candida comentou: “Pois tenho um vestido há oito anos, gosto dele, é daquelas roupas que não acabam nunca. Mas vez ou outra ao vê-lo, pergunto: ainda?”.
Nessa altura, a conversa tomou rumo, cada uma daquelas mulheres tinha uma roupa que adorava, mas era repetida, repetida, e vinha sempre a dificuldade de se desfazer da peça. Todas aquelas mulheres sempre deixaram roupas nas caixas das campanhas sociais para necessitados. Mas cada uma tinha peças especiais e relutavam em se desfazer delas. Havia algo que as prendia. Uma boa lembrança, um momento especial, o sentir-se bem dentro delas, dar segurança e assim por diante.
Naquele dia, Clara propôs: “E se fizéssemos uma espécie de bazar entre nós e trocássemos as roupas? Temos mais ou menos a mesma idade, corpo, gosto”. A ideia flutuou, cada uma pensou, pensou, e foi aderindo, já pensando no que poderia levar. Os dias passaram, começaram os telefonemas: quando vai ser? E a coisa tomou corpo até que Anna Candida determinou: “No próximo domingo! Podem começar a separar as roupas”.
Durante a semana soube que Clara e Helena, mãe e filha despejaram roupas e roupas dos armários. Esta não, esta mais ou menos, esta claro que não, esta sim, esta vou pensar, esta sim, esta não, será que esta? Foi um tal de tirar e recolocar coisas no lugar durante dias e dias, mas as descartáveis emergiram, foram repensadas, ponderadas, veio a decisão final.
Sei como é. Tenho uma capa Burberry, comprada em Londres em 1969, que me consumiu todas as reservas, mas era um sonho, eu via nas revistas, nos filmes, aquele interior xadrez, para mim sinal de elegância, durabilidade. Pelo pouco que usei, com medo de gastar, de perder, esquecer em algum lugar, ela dura até hoje, perfeita. Não a troco por nada neste mundo, não empresto nem a meus filhos. Tolice, talvez. TOC. Vaidade. Dia desses penso em consultar o Caligaris, pode ser que ele explique. E saibam que jamais fiz esse tipo de consulta em mesa de bar, restaurante, festa, como muita gente que se acha esperta. Ligo, marco, pago. 
Então, o tal bazar amigo aconteceu. E foi um domingo diferente, sem futebol, sem estresse, sem a tevê ligada em Eliana ou Faro, um dia animado. Seis mulheres. Anna Candida e a filha Amanda, Clara e Helena, Dora e Magaly. Na casa de Clara e Helena, estava uma arara cheia de roupas em desuso. Depois do almoço, ali pelas três e meia, começaram a chegar as outras com malas ou sacolas. Juntaram-se em um dos quartos e nós, os maridos, podíamos ouvir as gargalhadas, os risos, as exclamações, as “brigas”. Este é meu, você já pegou aquele. E o vinho Rosé correu, era um domingo quente. 
Os homens ficaram a conversar, excluídos. Estávamos proibidos de ir lá, por motivos óbvios, uma vez que o provador era o próprio quarto fechado, ali elas se despiam e se vestiam e se olhavam no espelho e buscavam a aprovação das outras e concorriam, se divertiam. Veio-me à cabeça um dos primeiros choques culturais de minha vida. A viagem a Londres, em 1969 enviado pela revista Claudia. A Swinging London. King’s Road, Carnaby Street, Soho, Biba, Pink Floyd, David Bowie, o filme Blow-Up, ácido, pôsteres de Guevara, Beatles e Martin Luther King. Mary Quant e a minissaia. Efervescência e liberação. Em Carnaby Street, eu entrava em cada loja, bar, butique, tudo era diferente, colorido, espantoso. Na maior parte das lojas, não havia provadores. Jovens apanhavam as roupas, ficavam nuas, mas nuas em pelo, indiferentes ao público que, por sua vez, se mostrava indiferente a elas. Eu, entre assustado e fascinado, percebi que uma nova época estava mesmo se iniciando. Meu Deus! Damares enlouqueceria.
Essas coisas me vinham à cabeça. Três horas depois as mulheres se deram por satisfeitas com os “negócios” feitos, felizes com os escambos, as conversas e como era domingo, tudo terminou em pizza e garrafas de vinho. Então, se viu que um lindo vestido preto, que tinha sido de Anna Candida, passara para Helena muitos anos atrás e, como é roupa boa, agora estava com Amanda. Pensei: dá para escrever um filme, uma noveleta, um conto. A história de cada uma e de todas e de uma época contada por meio de um vestido preto. 

Abraçando árvore - Antonio Prata

Não era uma felicidade eufórica, dessas de gritar "Urrú!", estava mais pra uma brisa de contentamento, como se eu bebesse vinho branco à beira-mar ou lesse Rubem Braga na varanda de um sítio.
Eu tinha acordado cedo naquela sexta -e acordar cedo sempre me predispõe à felicidade. O trabalho havia rendido bem e, antes do fim da manhã, já tinha acabado de escrever tudo o que me propusera para o dia. À uma, fui almoçar com o meu editor. Ele estava com alguns capítulos do meu livro novo desde dezembro e eu temia que não tivesse gostado. Gostou. Fez alguns reparos com que concordei. Comemos um peixe na brasa -peixe e brasa também costumam me predispor à felicidade- e como era sexta-feira, e como somos amigos, e como comemorávamos essa pequena alegria que é um trabalho andar bem, uma parceria funcionar, brindamos com vinho branco -não à beira-mar, mas à beira do Cemitério da Consolação, que pode não ter a grandeza de um Atlântico, mas também tem lá os seus pacíficos encantos.
Saí andando meio emocionado, meio sem rumo pela tarde ensolarada e quando vi estava em frente à paineira da Biblioteca Mario de Andrade. É uma árvore gigante, que provavelmente já estava ali antes do Mario de Andrade nascer, continuou ali depois de ele morrer e continuará ali depois que todos os 18 milhões de habitantes que hoje perambulam pela cidade de São Paulo estiverem abaixo de suas raízes. Talvez tenha sido o assombro com essa longevidade, talvez acordar cedo, talvez os elogios ao livro e o vinho certamente colaborou: fato é que senti uma súbita vontade de abraçar aquela árvore.
Acho importante deixar claro, inclemente leitor, que não sou do tipo que abraça árvore. Na verdade, sou do tipo que faz piada com quem abraça árvore. Se me contassem, até a última sexta, que algum amigo meu foi visto abraçando uma paineira na rua da Consolação eu diria, sem pestanejar: enlouqueceu. Mas...
Não haveria nada de místico no abraço. Eu não achava que a paineira iria me emprestar qualquer "energia", nem que ela sugaria de minh'alma possíveis toxinas metafísicas. Era algo simbólico como atirar uma rosa ao mar dia 31 de dezembro, uma mínima inflexão na correria: aí está você, imóvel e longeva, aqui estou eu, ágil e breve, duas soluções do acaso para a soma de elementos da tabela periódica -e ela seguiria ali, com sua fotossíntese, eu seguiria adiante, com minhas caraminholas.
Olhei prum lado. Olhei pro outro. Tomei coragem e foi só sentir o rosto tocar o tronco para ouvir: "Antonio?!". Era meu editor. Foram dois segundos de desespero durante os quais contemplei o destrato do livro, a infâmia pública, o alcoolismo e a mendicância, mas só dois segundos, pois meu inconsciente, consciente do perigo, me lançou a ideia salvadora. "Uma braçada", disse eu, girando pra esquerda e envolvendo a árvore novamente, "duas braçadas e... Três". Então encarei, seguro, meu possível verdugo: "Três braçadas dá o que? Uns cinco metros de perímetro? Tava medindo pra descrever, no livro. Tem uma parte mais no fim em que essa paineira é importante."
Colou. Nos despedimos. Ele foi embora prum lado, a minha felicidade pro outro e agora estou aqui, já noite alta desta sexta-feira, tentando enfiar a todo custo um tronco de quase dois metros de diâmetro num livro em que, até então, não havia nem uma samambaia.


Folha de São Paulo - 17/01/2016

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

A TDD - Luis Fernando Verissimo

Um dia inventei um grupo chamado TDD, a Turma do Deixa Disso. A TDD começou modestamente, atuando em jogos de futebol e intervindo quando havia uma ameaça de briga entre jogadores, para esfriar os ânimos, mas crescera e passara a ser chamada onde havia um conflito a ser evitado no mundo. Os 11 componentes do grupo eram treinados em dissuadir brigões de qualquer espécie, usando psicologia e apelos à razão, mas também precisavam de força física para controlar os mais exaltados, quando só apartar não resolvia. Para entrar em ação usavam uma roupa justa de super-heróis, com a palavra “Calma!” bordada no peito. Depois que se tornara internacional – inclusive reconhecida pela ONU – a TDD se instalara na Suíça, onde aguardava os pedidos de intervenção, sempre pronta a ocupar seu superjato e voar para a área conflagrada em questão de minutos.
Devo dizer que inventei a TDD com meus 12 ou 13 anos, quando os super-heróis existentes não satisfaziam e era preciso criar outros, particulares. Como diria o Ferreira Gullar anos mais tarde, a arte é necessária porque a vida não basta. A TDD agiu na minha imaginação até começar a desbotar e, aos poucos, desaparecer, como toda a arte da infância. Mas lendo o noticiário destes dias, desconfiei que meus pacíficos heróis tinham voltado à atividade. O número de mortos, entre inocentes e combatentes no Oriente Médio, incluindo os passageiros daquele avião abatido por engano, é terrível, e é um terror que não para e se renova a cada estatística. Mas – escasso consolo – a verdade é que estivemos à beira de uma guerra com efeitos imprevisíveis e a guerra não veio. Ou foi adiada – ou chamaram a TDD.
A resposta ao assassinato do general Suleimani pelo drone certeiro do Trump foi menor do que se esperava, e parece que houve o cuidado de não causar muitos estragos, se você acredita que os mísseis iranianos foram aconselhados a maneirar na represália. O próprio Trump amainou a retórica guerreira dos seus tuítes. A bomba nuclear que o Irã diz que vai fazer ainda vai demorar. Haverá tempo para a TDD fazer sua pregação do entendimento e da paz na região. O avião está pronto.

Edilayne - Tati Bernardi

Foi em Cannes que nossa relação começou a degringolar. Eu estava lá a trabalho, mas Edilayne insistia em me atrasar, instagramando mil vezes a vista do quarto, ficando horas na hidromassagem com zilhões de botões (até os dedos virarem uvas passas vencidas, ainda mais massacrados pelas unhas de um pink vulgar) e futucar como uma criança precocemente libidinosa o controle remoto especial para ajustar o blackout da cortina.
A princípio, fiquei meio assim de levar Edilayne, mas não teve jeito. Quando percebi, ela estava me envergonhando, por exemplo, no café da manhã. Ela começou a rinchavelhar quando percebeu que o banquete tomava o que seria um espaço maior do que duas vezes o seu apartamento. Edilayne enfiou três tipos de queijo em um sanduíche que era metade um tipo de pão, metade outro tipo de pão e deu uma golada no suco (mistura de duas frutas) por cima de tudo, fazendo uma argamassa grosseira que machucaria sua faringe (uma inflamação que duraria dias). Ela queria tão intensamente curtir cada requinte e abundância, que acabou doente no segundo dia. Uma doença que chamei de "deslumbramento mendicante" e ela nem retrucou, ocupada que estava em usufruir destemperadamente das benesses de uma boa vida.
Voltei decidida a nunca mais levar Edilayne nas viagens de trabalho, nas reuniões em produtoras, nas festas em editoras, nas palestras no Projac, nos Natais em família, nas casas de amigos, nos jantares românticos, para as camas de morenos cínicos. Ela se ofendeu de morte com a rejeição e declarou a mim (com a veemência ilimitada de uma descendente de italianos sem berço) uma vingança aterradora. Cada vez que eu tentasse encobrir Edylaine, cada vez que eu tentasse escondê-la para debaixo de um tapete persa, cada vez que eu, num tom baixo e cheio de respiros, quisesse me sobrepor ao atropelos gritantes de Edilayne, eu padeceria de um pânico terrível que me paralisaria por completo. Era como se ela dissesse "se você for sem mim, irá também sem saber quem você é".
Comecei falando, na terapia, do que mais me incomodava: a compulsão. A gula, a fome descabida de Edilayne. Estava cansada de ter sempre comigo a mulher pouco refinada, que se entregava, escancarada e destampada (e numa bandeja de plástico) para qualquer situação que pudesse vir acompanhada do subtítulo "aproveita, boba". De homens bonitos a cargas horárias absurdas de trabalho, de banquetes a badernas, Edilayne vivia 78 horas num único dia, enquanto eu só queria entender como levantar da cama.
Edilayne me contava de seu passado de menina sem. Sem trabalho, sem grana, sem rapazes, sem sal. Agora, parasita de todas as minhas boas condições, ela gritava dentro da minha cabeça, uma rouquidão agressiva e feminina, um timbre ao mesmo tempo forte e de esgotamento: "EU VOU À FORRA". Dane-se que você pretende tomar apenas um chá, sorrir entreaberto com (ainda assim muito grandes) meios dentes e ir embora cedo. Eu quero é comer tudo, beber tudo, beijar tudo, falar tudo, escrever sobre tudo, passar mal e ainda pedir uma fritura. Morrer de amor e ainda pegar o irmão do cara. Trepar no lustre e ainda abrir um espacate no meio da pista de dança. Que lustre? Que pista de dança, Edilayne? Nem ela sabe.
Depois de muitos anos de terapia, hoje achei, e peço perdão por esse momento brega, com desfecho autoajuda decepcionante para a literatura, que seria bonito e importante escrever essa frase que vem agora. Eu sou a Edilayne e tenho orgulho disso.

16/01/2015

Murundu polissêmico - Antonio Prata

Que manga seja tanto o fruto da mangueira quanto o braço da camisa é um desses indícios --pequenos, mas incontornáveis-- de que a humanidade está fadada ao fracasso. Veja, as combinações entre as consoantes e as vogais são infinitas, os frutos, as partes da camisa e os demais itens deste mundo, não. Se usamos o mesmo nome para duas coisas tão distintas, é porque a bagunça é ampla, geral e irrestrita.
Eu sei que a língua não surge por decreto. Palavras brotam como árvores, esgarçam-se como camisas; às vezes, também, mudam de significado: a fruta vira compota, a blusa, pano de chão. Mas assim como os pomares têm seus agricultores e as roupas, as costureiras, o vernáculo conta com os gramáticos para trazer mais racionalidade à selva da comunicação. Se, em vez de ficarem depenando as tremas de pinguins indefesos em inúteis reformas ortográficas, eles se dedicassem a uma reforma semântica, tudo ficaria mais simples. "A partir de 1º de janeiro de 2014, a manga da camisa passa a chamar-se lafana". Ou "bada". Ou "sprrrrlsploft". (Eu, particularmente, prefiro "lafana"). "A partir de 1º de janeiro de 2014, os cabos do exército passam a chamar-se subsargentos." Ou "zartos". Ou "inhaum-inhaum-plaplum". (Eu, particularmente, prefiro "inhaum-inhaum-plaplum").
Os novos termos, contudo, pouco importam. Fundamental é deixarmos de viver nesta barafunda em que uma mercadoria que não é cara (rosto) é barata (inseto), em que os budistas são liderados por lamas, em que três pessoas e uma rachadura num copo --uma única rachadura, olhe só-- são chamados de trinca.
Polissemia é o nome da lambança. Vem do grego: poli = vários + sema = significado --e muito me admira que gramáticos tenham se reunido, se debruçado sobre o problema e surgido não com uma solução, mas com esta palavra bonita e pomposa. Lembra-me aquela placa: "Atenção, buracos na pista". Não era mais fácil consertar a estrada? Minha vontade é arrancar a placa e botar sobre um buraco. É pegar "polissemia" e batizar com ela as mangas da camisa. Ou o molho tártaro. Ou o tártaro dos dentes. Ou o povo da Tartária.
Não se trata apenas de um purismo, de uma firula anal retentiva. A polissemia atrapalha a vida da pessoa. Toda vez que chamo meu amigo Caio, por exemplo, projeta-se em algum canto do meu cérebro a imagem deste que vos escreve caindo num bueiro. Quando faço um galo na cabeça, quase escuto cacarejos. Quando ouço falar em banco de dados, penso numa porcaria de um banco feito com dados. São neurônios mobilizados inutilmente. Sinapses jogadas no lixo. É um pedacinho de nossa experiência na Terra que entra pelo cano --como eu, quando penso no Caio.
Ora, gastemos nosso tempo com o que importa. Quero comer mangas em mangas de camisa, quero dar cabo deste problema, curtir os baratos que a vida oferece sem pensar em monstruosos insetos, em Kafka, que nasceu em Praga, sinônimo de peste, que nada tem a ver com Budapeste, que além de peste tem Buda no nome; "Antes buda do que Tcheca!", pensa a senhora de mente suja --mas não eu, pois jamais faria tais insinuações num jornal de família e só vim aqui por amor à língua e ao nosso povo, perdido neste murundu polissêmico.

16/01/2013 - Folha - Cotidiano

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Direita/Esquerda - Luis Fernando Verissimo

Mesa de bar. Só os dois, enquanto o resto da turma não chega. Um momento para o tipo de conversa que a presença barulhenta do resto da turma não permitiria. Um momento para confidencias.
– Cara, tem uma coisa que eu queria te perguntar...
– O quê?
– Você é de direita ou de esquerda?
– Ué. Por que isso agora?
– Só para saber. Direita ou esquerda?
– Sabe que nem eu sei? As vezes sou de esquerda, às vezes de direita.
– Não pode, cara. Tem que se definir. Hoje em dia, todo o mundo precisa se definir. Direita ou esquerda?
– Não sei. Mas isso vai afetar nossa amizade? Você pretende pedir definições de toda a turma? Nossa amizade não é mais importante do que isso?
– Você está fugindo da pergunta. Direita ou esquerda?
– O que você acha que eu sou? Baseado na nossa amizade, baseado nestes nossos encontros no bar todos os dias e no que você sabe a meu respeito, você acha que eu sou o que?
– Aí é que está. Não dá para saber. Por isso eu estou perguntando: você é de esquerda ou de direita? Não vale dizer que é meio esquerda e meio direita. Tem que ter convicções claras e defendê-las com vigor. Veja o Serjão.
– Mas o Serjão é um energúmeno.
– Claro que é. Ele mesmo diz que está à direita de Adolf Hitler e nós damos risada dele, mas ninguém duvida da sua posição. Já a sua posição ninguém sabe qual é.
– Sou pela paz mundial, pela amizade entre os povos e pelo chope gelado.
– E continua fugindo da pergunta.
– Eu não estou fugindo da pergunta! Só acho que ela não é importante.
– Aí é que você se engana. Ela é importantíssima. No Brasil, e em todo o mundo, chegou a hora das definições. A hora da verdade. Direita ou esquerda? 
– Qual é a SUA posição?
– Você ainda pergunta? Direita, velho.
– À direita do Serjão?
– Por ali. Mas o Serjão não é da direita séria. Eu sou.
– Está bom, cara. Se é tão importante para você, eu me declaro solenemente de direita...
– Puxa. Custou, hein?
– ... esclarecida.
– O quê?
– Sou da direita esclarecida.
– COMUNISTA!

domingo, 12 de janeiro de 2020

Libera a guitarrinha! - Antonio Prata



The Rolling Stones Satisfaction (I Cant Get No)


Então, no último sábado, depois de dez anos de repressão, dez anos de autocontrole e sofrimento, durante os quais curvei-me aos ditames do recato e do bom gosto, liberei a guitarrinha. Estou falando daquele gesto, ou melhor, daquele hábito, tão execrado pelas mulheres quanto adorado pelos homens, de tocar uma guitarra imaginária na pista de dança.
De uns tempos para cá, deram pra chamar a firula de "air guitar" e existe, inclusive, o "Air Guitar World Championship", disputado todo ano em Oulu, na Finlândia (migre.me/9atst), mas campeonatos de air guitar estão para a guitarrinha como Wimbledon para o frescobol: quando os primeiros acordes de "Satisfaction" soam pelas caixas da festa, a última coisa que passa pela minha cabeça é a perfeição dos movimentos, é superar os comparsas que, de olhos fechados e empunhando Fenders inexistentes, vivem seus momentos de Keith Richards, levando milhares de pessoas ao delírio nos estádios lotados de suas fantasias. Pois guitarrinha, meu caro, é entrega. Entusiasmo. Guitarrinha -eu digo de boca cheia, sem medo do clichê- é emoção.
É por isso -aliás, percebo agora- que as mulheres ficam tão incomodadas com essa nossa prática lúdico-patética. Pois, por maiores que tenham sido suas conquistas nos últimos cem anos, por mais emancipadas que estejam, ainda querem, no fundo, um homem controlado e seguro, um homem que -elas sonham, do alto de seus saltos e de seus cargos- seja capaz de apaziguar seus anseios, aplacar suas angústias, um tipo sereno e calado, enfim, nada a ver com o sujeito que, depois do segundo uísque, com as pernas flexionadas e as costas tombadas para trás, chacoalha a calva como se balançasse a cabeleira do Slash, contraindo os dedos convulsivamente, emulando as primeiras notas de "Sweet Child O' Mine".

Guns N' Roses - Sweet Child O' Mine 



Lembro vagamente de quando soube que vivia em pecado. Foi em algum momento entre o último boletim e o primeiro holerite. Numa mesa de bar, quatro ou cinco garotas listavam as maiores heresias da condição masculina, e lá estava ela, a guitarrinha, empatada com a pochete, o palito de dente, o moletom e a exibição do cofrinho na troca de pneus. Eu, que sempre fui um fraco, que, desde o surgimento dos primeiros hormônios, pendurados nos ralos pelos do buço, sempre fiz o que pude para agradar às mulheres, para conseguir sua atenção, sua admiração e, se possível, seus carinhos, acatei essas arbitrárias interdições. Reprimi o George Harrison no backstage de meu ser e ali o deixei -até o último sábado.
Acho que tem a ver com esta cômoda idade: 30 e poucos. Ainda temos o vigor da juventude -o vigor necessário para solar uma guitarra imaginária-, mas já deixamos pra trás o pudor da adolescência -pudor de contrariar as diretrizes do grupo, de não se encaixar na moldura da época. Até os 29 você ainda tem esperanças de se tornar outra pessoa. Depois dos 30, você simplesmente aceita ser quem é, relaxa e goza. E não me olhe assim, meu amor: eu podia estar roubando, matando, podia estar de pochete, de moletom, palitando os dentes no casamento da Renatinha; tô só aproveitando a vida, enquanto é tempo, "while my [air] guitar gently weeps".

The Beatles - While My Guitar Gently Weeps





sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

A carta do Camus - Luis Fernando Verissimo

Li que acharam uma carta do Albert Camus mandada da França ocupada pelos nazistas para o general De Gaulle, líder do governo francês no exílio. A carta, de 1943, foi encontrada nos arquivos do general e sua descoberta coincide com os 60 anos da morte de Camus num acidente de carro, em 1960. Não se esperava que ainda houvesse algo da extensa produção de Camus – que foi romancista, ensaísta, dramaturgo, roteirista e filósofo – a ser publicado, o que aumenta o valor histórico do documento, intitulado Um Intelectual Resistente. Nele, Camus expressa ao general sua angústia com o que a ocupação está fazendo com a França, não apenas eliminando fisicamente quem ameaça reagir à dominação nazista como matando o espírito e a criatividade de uma geração inteira, entregue à mediocridade oficializada do governo colaboracionista de Vichy. A maior preocupação de Camus é com o que virá depois, que França sobrará da mediocridade imposta.
Camus e Sartre foram amigos por pouco tempo, até que a política os separou, mas foram intelectuais resistentes lado a lado durante a ocupação. Para De Gaulle, Camus escreveu que o dever de todo resistente era “lembrar as pessoas todos os dias, todas as horas se necessário, em todos os artigos, em todas as transmissões, todas as reuniões, todas as proclamações” o que se estava defendendo na reação aos nazistas. Nem Camus nem Sartre deixaram Paris na ocupação, mas foram oposicionistas ativos, inclusive editando o jornal clandestino Combat e outras publicações “subversivas”. E os dois, mais do que qualquer outro intelectual francês no fim da ocupação, simbolizaram a persistência do espírito que sobreviveu aos nazistas, à República de Vichy e à angústia. Até a briga de Camus e Sartre no pós-guerra colaborou para mostrar que a França voltava a ser a França.
Lembrar as pessoas todos os dias, todas as horas, em todos os artigos, todas as transmissões, todas as reuniões e em todas as proclamações o que se está combatendo quando se combate a escuridão, qualquer escuridão, é um bom conselho do Camus, 60 anos depois. 

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Refogar cebolas - Antonio Prata

A Mari entra na cozinha com umas cinco sacolas em cada mão: “Cês podem ajudar a descarregar?”. Estou refogando umas cebolas, ela passa os olhos por mim, “O Antonio não, claro” e sinto uma paz de espírito meio exagerada pra quem foi simplesmente liberado de tirar as compras do carro. Enquanto meus amigos vêm com caixas e caixas, neste primeiro dia na praia, sigo ali no fogão, mexendo a colher pra cá, mexendo a colher pra lá e pensando por que diabos tanto alívio por tão minúsculo habeas corpus.
À medida que o refogado vai ficando translúcido, também se clarificaram as ideias: percebo que o alívio não vem daquela tarefa específica, mas de todas as possíveis e imagináveis incumbências que podem surgir enquanto eu refogar cebolas e das quais estarei liberado. Entendo, em parte, por que gosto de cozinhar.
Escrever dá trabalho. “Lutar com palavras/ é a luta mais vã”, já sabia o Drummond, “Entanto lutamos/ mal rompe a manhã”. Escrever quase sempre dá errado: “Luto corpo a corpo,/ luto todo o tempo,/ sem maior proveito/ que o da caça ao vento.” “Todo o tempo”, pois a caça é ininterrupta: no escritório, no chuveiro, na fila do caixa do Frango Assado da Carvalho Pinto – e “Cerradas as portas,/ a luta prossegue/ nas ruas do sono.” (Mundo mundo vasto mundo/ se eu tivesse prestado engenharia medicina arquitetura/ não seria uma rima e a métrica ia pro espaço, mas talvez fosse uma solução).
Ter filhos dá trabalho. Antes de eles nascerem você acha que vai botá-los num pedestal, vai contemplar o milagre da existência e depois vai continuar a ler Guerra e Paz com sua caneca na mão. (Gargalhada histérica). (Retomada de fôlego). (Mais um pouco de riso). (Travo melancólico).
O negócio é que é meio difícil contemplar o milagre da existência – e definitivamente impossível ler Guerra e Paz – quando se está ocupado contando medidas de leite em pó, negociando colheradas de verduras por minutos de Peppa Pig ou tentando evitar que uma mãozinha recém saída da fralda cheia de cocô chegue à boca ou à barriga ou à parede, no escuro, às 3:47 da madrugada.
Não bastasse o fluxo contínuo de palavras, Aptamil, Peppa Pig e cacas mil, há ainda esses pequenos exus eletrônicos assoviando pra gente de dentro do WhatsApp, do Facebook, do Twitter, do email, do Instagram e de outros tantos anéis do inferno digital, ordenando, como uma assombração num filme B: “Venhaaa! Venhaaa! Venhaaa!” – e o pior é que a gente vai.
Então você começa a refogar cebolas: de uma hora pra outra, desaparece o burburinho ensurdecedor das demandas e só se ouve o crepitar dos cubinhos translúcidos no azeite.
É preciso descarregar as compras, arrumar a casa, trocar as fraldas, responder emails, terminar o romance, dar share em notícias, colaborar em crowdfundings, fazer as pazes com o pai, perdoar a si próprio, ler Tolstói, arrumar as estantes, ganhar dinheiro, tomar vergonha na cara, perder a vergonha na cara, comer mais fruta, beber menos, cuidar melhor do seu amor, entender se, afinal, você faz da vida o que realmente deseja ou simplesmente boia num rio formado por sortes, azares, covardias, conveniências: mas agora não. Agora você só precisa refogar cebolas.


10/01/2016

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Dois bichos graúdos - Humberto Werneck

Em algum momento de minha vida de jornalista, não premeditada e ao mesmo tempo apaixonada, botei na cabeça a decisão de batalhar para que todo artista superlativo de meu tempo fosse um dia capa de revista. Pena que, na rotina tantas vezes imediatista das redações, não tenha ido à luta para emplacar resolução tão óbvia. Só em duas ocasiões fiz o que deveria ter feito com obstinação.
A primeira foi em 1977, quando, editor-assistente da Veja, encasquetei fazer uma reportagem de capa com Carlos Drummond de Andrade. O gancho, como se diz em jargão jornalístico, perigava não se sustentar, pois 75 anos, idade que o poeta iria alcançar naquele 31 de outubro, não é marca redonda, como seriam os 70, os 80. Gancho fracote, portanto, “gancho de açougue”, no qual se pendura, por melhor que seja, coisa já sem vida. Ainda assim, insisti, tentando convencer meu editor, o José Márcio Penido, que, tendo comprado a ideia, conseguiu dobrar a relutante direção da revista. 
A batalha de convencimento da chefia não foi nada diante do obstáculo seguinte, que não dei conta de transpor: fazer com que Drummond topasse receber o repórter, num tempo em que ele não se deixava entrevistar nem mesmo por profissionais da imprensa que fossem, também, moças bonitas. Estava longe ainda aquele 9 de julho de 1980 em que, na morte de Vinicius de Moraes, Drummond deixou a toca, num momento em que uma crise de herpes facial lhe recomendava estar ainda mais recluso – e, no velório em São João Batista, com o rosto ferido e a barba por fazer, praticamente se ofereceu aos microfones.
Admirador confesso dos modos soltos com que o amigo levara a vida, ele terá pensado, quem sabe, se, mesmo consideradas as enormes diferenças de feitio, fazia sentido seguir se recusando a mundanidades em geral e à bisbilhotice dos repórteres em particular. Quando, bem mais tarde, em abril de 1985, lhe propus essa hipótese de explicação, Drummond, previsivelmente, negou que a mudança de atitude tivesse a ver com a morte de Vinicius, e escorregou pela conversa mole de que se tratava, agora, da obrigação de participar do esforço de divulgação armado por sua nova editora, a Record. 
Em todo caso, foi meses depois, no mesmo ano da morte de Vinicius, que um dia Zuenir Ventura, chefe da redação carioca da Veja, recebeu telefonema da assessoria de imprensa da editora com a notícia de que Drummond, sim, o “urso polar”, como ele próprio se rotulara num poema, propunha a ele uma entrevista. A moça precisou ligar de novo, pois Zuenir, certo de que lhe passavam um trote, desligou. Tudo correu à maravilha, e houve então uma semana em que excepcionalmente foram quatro as tradicionais três páginas amarelas da Veja.
O mesmo Zuenir, em 1977, tentara de tudo, sem êxito, para que Drummond me recebesse. O mesmo fizeram, a meu pedido, Pedro Nava e Fernando Sabino, amigos chegados do poeta. Não funcionou. A reportagem que foi para as bancas – a única que uma publicação não especializada de peso dedicou a Drummond ainda em vida – limitou-se a uma tentativa de desenhar o poeta pelo seu entorno, servindo-se de depoimentos alheios, sem uma só palavra sua, e o telegrama que dele recebi não chegou a me ressarcir da imensa frustração. Apenas mais adiante, Vinicius já falecido, pude estar com o poeta algumas vezes, numa delas para uma entrevista nas páginas vermelhas da IstoÉ. 
Mais bem-sucedido fui em 1987, quando ressuscitei o plano de pôr na capa de revista os grandes de meus dias, e fui bater na porta de João Cabral de Melo Neto – que, aliás, estaria chegando aos 100 anos nesta quinta-feira, 9 de janeiro –, num belo e antigo prédio na Praia do Flamengo. Já o tinha entrevistado para a IstoÉ dois anos antes, e outra vez me deparei com um interlocutor receptivo e generoso, surpreendentemente loquaz para quem destilava uma poesia tão desenfeitada. 
Ao longo de alguns dias, estive com ele ali e no apartamento da escritora Marly de Oliveira, sua segunda mulher, na Avenida Atlântica. Não houve pergunta minha a que não respondesse – até mesmo na breve passagem em que, tendo eu indagado sobre suas admirações maiores, literárias ou não, o poeta me pediu, com um gesto, que desligasse o gravador, para então abrir: o Bigode. Como assim? O Bigode, repetiu, antes de entregar: Josef Stalin. 
Não resisti, a certa altura, a lhe fazer uma provocação primária: por que, cheio de elogios para o concretismo, ele jamais escrevera um poema concreto, como fizeram Manuel Bandeira e Cassiano Ricardo, ainda mais veteranos? João Cabral não se abalou – e, na sua fala salpicada com o cacoete “compreende?” (na verdade, “comprende?”, com um “e” a menos), pingou uma observação deliciosa, quase tão substantiva quanto sua poesia: “Eu acho que o camarada não deve pintar os cabelos literariamente”. 
Às voltas, hoje, com a elaboração de uma biografia de Drummond, o grande mestre de quem aos poucos João Cabral se afastou, lamento não ter me valido da ocasião para escarafunchar a relação dos dois gigantes da moderna poesia brasileira, que nos anos 1950 passaram a trocar declarações nas quais nem sempre era possível distinguir elogio ou farpa. Para avaliar o peso de escritores e artistas em geral, por exemplo, o poeta pernambucano recorria à imagem das diferentes funções que têm os animais num mesmo carro de bois. Os que vão na frente, explicava, são bois de cambão, incumbidos de fazer o carro avançar, cabendo aos de trás, os de coice, moderar o ímpeto dos primeiros. 
Se lhe pediam que avaliasse o antigo mestre conforme esse padrão pecuário, João Cabral sacava, como no título de um de seus poemas mais celebrados, uma faca só lâmina: o Drummond do começo era de cambão, abridor de caminhos, para aos poucos maneirar-se em boi de coice. Veneno à parte, sem um e outro não teria andado como andou o carro da poesia brasileira.

Companheiro de carteira escolar - Mario Vargas Llosa



Quando José Miguel Oviedo começou a escrever resenhas de livros no suplemento de domingo do jornal El Comercio, no final dos anos 1950, houve uma mudança significativa na cultura peruana. Até então não havia críticos literários propriamente ditos no país, apenas articulistas ou historiadores de literatura. José Miguel era um caso raro. Seus textos eram verdadeiros ensaios, comparáveis aos de Cyril Connolly em Londres ou Edmund Wilson e George Steiner em Nova York. Não exagero: a mesma profundidade, a vasta informação, a severidade e a exigência idênticas. Sem falar no fato de que as vítimas desses julgamentos críticos, boa parte delas escritores peruanos, o detestavam.
Certa vez, num dos nossos esporádicos encontros pelo mundo, perguntei a ele se a dureza de suas críticas não era injusta com os injuriados poetas, dramaturgos e romancistas peruanos. “Não há desculpas”, ele respondeu com a súbita ferocidade dos tímidos.
“Escrevem no mesmo tempo em que o fazem Virginia Woolf, Faulkner ou Borges, ou T.S. Eliot e Neruda. Deveriam ser tão bons como eles ou renunciar à literatura.”
Nesses mesmos anos, sem que José Miguel e eu suspeitássemos, a literatura hispano-americana deu um salto espetacular, e apareceriam ou seriam resgatadas obras como as de Onetti, Roa Bastos, Rulfo, Cortázar, Sábato, García Márquez e muitos outros que colocariam a literatura da América Latina no foco de interesse e curiosidade de meio mundo.
Em sua indispensável autobiografia (Uma Loucura Razoável: Memórias de Um Crítico Literário), José Miguel presta homenagem ao semanário Marcha, de Montevidéu, e a dois críticos uruguaios, Angel Rama e Emir Rodríguez, por terem contribuído em grande parte para esse fenômeno que conquistou tantos leitores para nossos escritores e fez o mundo saber que não havia apenas rancheiros bêbados e ditadores povoando nossas terras, e que havia também uma literatura interessante. Mas esqueceu-se de dizer que o melhor e mais profundo crítico desses anos do “boom” literário foi ele próprio. Em seu livro estão os ensaios que escreveu para provar isto, o que ficará evidente sobretudo quando reunirem em um ou vários livros as incontáveis críticas que, nas revistas e periódicos de todo o continente o próprio Oviedo escreveu sobre a nova literatura hispano-americana e seus autores.
Durante três anos fomos companheiros de classe no colégio La Salle, de Lima, e durante um ano dividimos a mesma carteira escolar. E descobri isto ao rever velhos papéis, trinta ou quarenta anos depois, graças ao desenho feito por ele em uma cartolina branca, de Ana María Álvarez Calderón, Rainha da beleza peruana dos anos 1950, com esta dedicatória “Para meu companheiro de carteira, Mario Vargas Llosa” e assinado José Miguel Oviedo. Nenhum dos dois sabíamos então que ambos estudariam Letras (ele na universidade Católica e eu em San Marcos) e que frustraríamos nossas mães nos tornando escritores (a mãe dele sonhava que ele se tornasse um advogado de sucesso e a minha que eu me dedicasse à diplomacia). O que nos interessava na época era o futebol, no que éramos igualmente os piores. Ele inventou, em suas memórias (ou eu me esqueci), que me chamavam de “Coca-Cola” e não sei a razão pois nunca gostei dessa bebida efervescente que arranhava a garganta.
Quando, em 1970, José Miguel aceitou o cargo de Diretor de Cultura do Governo Militar do general Velasco Alvarado, seus amigos estremeceram. Ele se aliaria à demagogia frenética que imperava? Entregaria a cultura peruana ao bando de comunistas e congêneres que pouco depois sequestraria os jornais, as emissoras de rádio e de televisão, acabando com a liberdade de imprensa no Peru? Mas ele teve uma atuação impecável. Não só resistiu aos extremistas e aos próprios militares que lhe perguntavam quando prepararia a Orquestra Sinfônica, mas promoveu o teatro, a boa música e as artes, e publicou revistas literárias excelentes, trouxe para Lima exposições memoráveis como a dedicada ao Surrealismo.
Mas o ano e meio que ali passou acabou com seus nervos e ele precisou recorrer à ioga para se aquietar.
Sem uma crítica de alto nível, todo movimento cultural é amorfo e se desfaz na confusão. Somente os grandes críticos são capazes de estabelecer hierarquias, dar uma ordem de ideias e valores ao que, em princípio, parece uma selva. Foi o que Oviedo fez naqueles anos, quando viajou para a Argentina, Chile, Colômbia, Cuba e México, escrevendo cada semana, às vezes a cada dia, sobre o que descobria e lia.
Seus artigos contribuíram de maneira decisiva para dar à dispersa literatura do continente uma unidade na diversidade.
Anos depois esta ideia seria o núcleo da sua ambiciosa História da Literatura Hispano-americana (Alianza Editorial) em quatro volumes, a melhor já escrita até hoje e a única que se pode ler sem pausas do começo ao fim.
Não sei se foi uma boa ideia de José Miguel partir para os Estados Unidos para lecionar, como todos nós, seus amigos, o incentivamos a fazer. Albany, Indiana, Los Angeles, Filadélfia. Ali passou os últimos 25 anos da sua vida. Ele gostava de Nova York, onde dava aulas no verão, por suas livrarias, exposições e concertos. Tinha estabilidade econômica, algo que nunca desfrutou no Peru, e escreveu livros ambiciosos sem cair no jargão pretensioso e ilegível que nos anos 1970 e 1980 se apresentava como a “crítica científica” da literatura. Seus ensaios tinham sempre um vestígio dos seus textos jornalísticos, de maneira que a barbárie latino-americana sempre esteve viva nele, além da nostalgia.
Mas fazer crítica nesse ambiente exemplar era uma tarefa sem risco nem mistério, algo muito diferente daquele trabalho pioneiro, social e político, ao mesmo tempo que literário, que Oviedo jamais esqueceu.
Acho que os cinco anos que passou em Bloomington, Indiana, foram mais ou menos felizes. Assim me pareceu, pelo menos quando fui visitá-lo. E mais felizes ainda foram seus tempos na Universidade da Califórnia em Los Angeles, onde Martha, sua mulher, trabalhou em um hospital cuidando de enfermos sem condições de se tratar. Mas depois vieram anos muito duros, quando viveu na Filadélfia: o acidente que sofreu e o manteve um ano no hospital, o câncer ao qual Martha sobreviveu, a decadência física dos últimos anos. A última vez que o vi foi na Feira do Livro de Guadalajara. Cabelo e barba brancos, parecia muito frágil. Sua filha Paola o arrastava numa cadeira de rodas. Mas sua conferência foi esplêndida.
Quando soube, por meio de Alonso Cueto, que seu estado de saúde era grave, telefonei para Paola. Ela me atendeu em prantos. Toda a família ali estava, no hospital onde tinham acabado de interná-lo. O médico lhes havia dito que ele não resistiria a uma nova pneumonia. Como ele já não conseguia falar, colocaram o telefone perto dele para que eu pudesse saudá-lo. Disse-lhe que o queria muito e o agradecia por ele ter sido tão generoso com meus livros. Que voltaríamos a nos ver. Depois de um longo silêncio, escutei, de muito longe, sua voz: “Obrigado Mario”.
Poucas horas depois ele faleceu.
Que acabe, enfim, este ano maldito que levou tantos amigos e me deixou sem passado, como um sobrevivente.

Tradução: Terezinha Martino





Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...