sábado, 28 de dezembro de 2019

Crônica de quatro faces - Antonio Prata

A primeira gaveta, a dos talheres, é a mais organizada. Divisórias separam os garfos, as facas e as colheres grandes; os garfos, as facas e as colheres de sobremesa; por fim, num escaninho perpendicular, ficam as colherinhas de café. Essa arrumação militar me traz sentimentos contraditórios. Por um lado, vendo cada coisa em seu lugar, me tranquilizo: temos aqui um lar, um teto, um ninho seguro para criar os filhos, construído dia a dia –garfo a garfo– com o suor do nosso rosto. Sei que a última frase soou meio clichê. É que o lugar comum, como a própria expressão aponta, traz o conforto do reconhecimento –e eis aí a segunda parte dos sentimentos contraditórios sugeridos pela gaveta: essa tranquilidade desperta em mim a ânsia do rebanho. Trata-se, sem dúvida, de uma gaveta totalitária. Ali dentro não há qualquer possibilidade de dissenso: uma colherinha de café que resolva fazer companhia pras facas é imediatamente reconduzida ao seu compartimento. Stalin seria um bom patrono para a primeira gaveta. Kafka saberia retratar bem seus horrores. Ou Orwell? (No fundo da primeira gaveta, através de uma pequena "Teletela", o Grande Irmão assiste a tudo.)
A gaveta de baixo é diferente. Não há divisórias. Todos se misturam. Parece uma festa. Uma festa do jet set , claro, porque ali não há sombra de padronização, cada um é único, o melhor de sua área: a faca de churrasco flerta com a espátula de silicone, o saca-rolhas conta uma piada pro descascador de cenoura, a escumadeira cochicha algo para o funil. Se a primeira gaveta veste farda, a segunda é esporte fino. Lá no fundo não há "Teletela", mas um globo de espelhos.
A terceira gaveta também é uma festa, só que mais esculhambada. Ali moram os utensílios que a gente não usa. Uma geringonça de espremer batata, colheres de pau lascadas, uma faca de pão com o cabo derretido, ancestrais garfinhos de fondue. (Nunca fizemos fondue. Será que ainda temos a panela?). Pensando bem, talvez eu esteja sendo preconceituoso: por que "esculhambada"? Talvez, festa boa, mesmo, seja a da terceira gaveta. Não aquele clima de cercadinho VIP da segunda, mas de jam session num hotel decadente. Bem mais interessante bater um papo com a faca de cabo queimado e ouvir a história de sua cicatriz do que aguentar a espátula da Spyce, no andar de cima, contar vantagens sobre seu cabo de silicone. Britney Spears, Tom Cruise e Cristiano Ronaldo estariam na segunda gaveta. Itamar Assumpção, Jacques Tati e Sócrates, na terceira.
E a quarta e última gaveta? Pois é, taí uma questão que eu nunca consegui responder. A quarta gaveta é um limbo, um "achados e perdidos" onde se misturam o manual de instruções da geladeira, uma caixa de palitos Gina, três jogos americanos (diferentes), um toco de vela, araminhos de fechar pão e uns hashis de japonês delivery ainda com telefones de sete dígitos. É como se, saindo da organização platônica da primeira gaveta, fôssemos descendo rumo à desordem, até chegar à indeterminação total, onde tudo perde o sentido. Perdoem terminar assim essa crônica natalina, sem vislumbre de manjedoura ou cheiro de panetone: mas essas gavetas, mas esse conhaque, botam a gente comovido como o diabo.

28/12/2014


Alcides Villaça em uma produção do Instituto Moreira Salles


Poema de sete faces - Carlos Drummond de Andrade

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

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