quarta-feira, 8 de maio de 2019

O futuro a Deus pertence - Roberto DaMatta

Ouvi muito essa poderosa sentença que contém uma filosofia da história ao refletir a nossa total impotência sobre as circunstâncias nas quais viveremos nossas vidas; exceto, talvez – e aí está a sabedoria reveladora do dito –, se entregarmos o que virá a um ser todo-poderoso, criador e mantenedor da ordem. Aí está, com as devidas ressalvas e vênias, o poder de atração dos deuses, reis, ditadores. 
Quando produzia essa frase, minha amada avó exprimia sem saber a aversão brasileira a agendar e programar o futuro. Poucos se interessavam em saber se o dia de amanhã seria mesmo “um outro dia” como no do filme E o Vento Levou...
No Brasil, agendar o futuro sugere uma espécie de intrusão ou desafio aos desígnios divinos. Se não sabemos quando vamos morrer, ou o bicho que vai dar, não seria um excesso de confiança marcar uma reunião ou viagem para uma data vindoura? Somos, sugiro com a devida cautela, indiferentes aos futuros possíveis porque nossa origem, formação e experiência de vida revelam uma assombrosa instabilidade sociopolítica ou institucional. 
No fundo, experimentamos todos os regimes políticos e o que todos tinham em comum era a desigualdade que, de modo claro, mantinha privilégios e aristocratizava segmentos, instituições e pessoas. Na minha visão, somente o Deus de uma religião oficial, que marginalizava credos rivais, poderia sugerir um futuro marcado pela igualdade. Por um igualitarismo que nesses nossos tempos mais francos e rústicos surge não mais como uma utopia, mas como um imperativo. 
A igualdade social é, sem dúvida, determinante da institucionalização do futuro como uma banalidade em alguns lugares e como um desafio ou anomalia em outros. Ademais, é preciso notar que marcar um corte de cabelo ou a compra de um carro é bem diferente de agendar periodicamente uma eleição; ou de ter um projeto permanente relativo aos direitos humanos, dos recursos financeiros e a consciência dos preconceitos político-sociais.
Quando um futuro se torna universal, ele se transforma em ideal e valor: em algo a ser procurado. Mas para nós, brasileiros, historicamente fabricados dentro de um estilo de vida aristocrático, no qual existiam pessoas que faziam tudo para outras – um sistema movido pela superioridade social e por sua correspondente opressão, garantidas pela escravidão negra africana –, é óbvio que pensar um futuro solto, aberto e igualitário é um tabu, uma subversão e um crime. No Brasil, agendar um futuro grandioso é um desafio tão frágil quanto ganhar uma Mega Sena. 
Nosso credo social se funda na imobilidade das camadas sociais, denunciada por Tocqueville como sendo o cerne dos regimes monárquicos. Aqui, não há um futuro como mudança porque a ascensão social é detida até mesmo pelas leis. 
Por milênios, fomos iguais a nós mesmos. Só ganhamos o sentimento de morrer numa posição social diferente da que nascemos, a partir da modernidade industrial ou, quem sabe, da morte do último faraó ou da invenção das grandes loterias. Essas Mega Senas que levam o cronista a meditar sobre o futuro e os ignorantes de sociologia e os alérgicos à democracia a seguir astrólogos. 
A sociedade de classes baseada na exploração do trabalho ofertado num mercado autossuficiente, é (com todos os seus efeitos e defeitos) responsável por essa visão da história como um jogo e uma probabilidade – uma irônica, senão perversa, loteria.
Tudo isso, leitores, para repetir que bruxos e feiticeiros sempre existiram como anjos da guarda da imobilidade. Essa imobilidade compensada pelo jogo de azar – ou pelo golpe – que fez o Brasil “passar” de império a República autoritária e a um estado democrático de direito um tanto bagunçado, como estampam os jornais. Por que o rompimento com a imobilidade deixa falar alto, põe em competição projetos de futuro, concorda com o cala a boca já morreu e liquida a censura do ritual autoritário do “você sabe com quem está falando?” 
O futuro do Brasil pode continuar sendo de Deus. Mas, abaixo da divindade, ele não é de ninguém. Ele é de todos.

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