quinta-feira, 30 de maio de 2019

A Frase - Luis Fernando Verissimo




Há frases que sobrevivem aos seus autores - em muitos casos porque são atribuídas a autores errados. Nem o Humphrey Bogart nem a Ingrid Bergman pediram ao pianista Sam que tocasse As Time Goes By outra vez, no Casablanca, o que não impediu que fosse a música mais lembrada do filme. Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, deixou uma penca de frases para a posteridade. Estranhamente, a autenticidade das suas citações está só agora sendo debatida. 

O verdadeiro autor da tirada "sempre que ouço falar em cultura, pego o meu revólver" seria não o magro Goebbels, mas o gordo Hermann Goring, que disputava com Goebbels um lugar no coração do Führer. E agora surge outra revelação: a frase faria parte de uma peça intitulada Schlageter, lançada em Berlim em 1933. Enfim o autor.

Goebbels nunca reivindicou a autoria da frase famosa porque, de certo, achava que merecia todas as glórias de uma boa sacada, mesmo as emprestadas. Também, como intelectual do regime e atento a tudo que desmoronava à sua volta, inclusive o sacrifício dos seus próprios filhos e o seu suicídio no bunker de Hitler, Goebbels deve ter visto seu final como um misto de castigo pelos seus crimes e triunfalismo trágico pela sua fidelidade. Se todas as vezes em que ouvisse falar em cultura tivesse sido mais rápido no gatilho, talvez o delírio nazista tivesse durado mais um pouco, ou menos. Para as crianças no bunker, não faria diferença.

A frase de Goebbels que não era de Goebbels teve várias versões. Groucho Marx: "Sempre que ouço alguém falar em cultura, pego a minha carteira". Possível outra versão da frase do Groucho: "Sempre que ouço falar em cultura, escondo minha carteira". No Brasil do governo Bolsonaro, a escolha cultura/revólver já foi feita.

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Sorte e Azar - Roberto DaMatta

Formam um idioma destinado a explicar eventos marginais as rotinas. Quando “a vida” nega ou dá mais do que se espera — uma loteria, por exemplo, entra em cena o dualismo azar ou sorte. 
Travei conhecimento com essa linguagem quando minha avó Emerentina me pediu um palpite para o jogo do bicho. Vovó jogava no bicho diariamente e frequentava uma roda de pôquer de “gente educada” e “bem-vestida”, incapaz de uma “grosseria”. Um dia, ela me explicou essa aristocracia das cartas: “Eles sabem perder e só quem perde sabe ganhar. Ademais, continuou, é preciso jogar para se descobrir vivo ou morto”. Minha avó sabia o que dizia. Seu primeiro marido foi assassinado à bala por um rival inconformado.
*
- Meu netinho, disse a um garoto de oito anos, dê um palpite para o jogo do bicho.
- Como assim? 
- Diga o nome de um bicho que você gosta e eu vou jogar.
- Elefante! Pronunciei orgulhoso porque estava usando na prática e na vida o que havia visto com admiração e alegria num filme de Tarzan no dia anterior.
No final da tarde fui chamado por Vovó e a encontrei na sala-de-visita muito bonita no seu austero vestido preto. Estava empoada e com cabelos cuidadosamente penteados. Fui recebido com um sorriso tão aberto como seus braços nos quais eu cai para receber o incondicional afeto que nos abandona quando viramos adultos. 
- Você acertou, deu elefante na cabeça! Disse, passando para minhas mãos uma moeda com a qual eu me entupi de chocolates comprados na esquina da nossa rua no Bar do Soares.
*
Criado num país no qual quem segue as leis, paga imposto e lê instruções é considerado um babaca conforme ouvi numa pesquisa, confesso o meu inconformismo com a desobediência malandra e esperta como norma, vigente no espaço público. Quando atravesso uma rua movimentada e fico diante de um automóvel que aguarda minha passagem; ou entro numa fila na qual abrem caminho para o idoso que hoje sou, entendo que estou com sorte. Do mesmo modo e pela mesma regra, sinto-me azarado quando redescubro uma sistemática roubalheira pública desfigurando o sistema financeiro nacional. 
Quando saio de casa para o trabalho, oscilo diante de um trânsito normal (quando tenho sorte) ou engarrafado (nos dias de azar). Ademais, enfrento a incerteza de não saber se as tais reformas sem as quais o Brasil vai acabar, serão ou não aprovadas. Ou se o supremo magistrado da nação vai bosquejar mais uma crise. Aos oitenta e dois asnos, eu ainda vivo num país que não se acertou com suas rotinas.
Sei, porém, do seguinte: minha vida em casa é mais previsível do que na rua. Em meio a pessoalidade muitas vezes exagerada ao ponto de englobar o mérito, o lar ainda é mais seguro do que as decisões dos poderes da República. No nevoeiro das minhas dúvidas, não posso deixar de imaginar que a aprovação da Reforma da Previdência será mais ou menos equivalente a acertar no elefante! 
*
A experiência do menino transformou-se na obsessão profissional do estudante de sistemas culturais que são alternativos. Assim aprendi que nenhuma cultura suprime o idioma das coincidências, das fortunas e dos acidentes. Não existem sociedades perfeitas aprendi, um tanto chocado, com um Lévi-Strauss que contrariava meus professores certos dos rumos da História Universal... 
Poucas sociedades jogam tanto com a sorte como a brasileira. Poucas entram na nossa feroz jogatina com suas leis e instituições. E têm tanta familiaridade com a proximidade de um abismo social que é um flerte com o desastre. Somos, como diz meu ex-mentor, o brasilianista Richard Moneygrand, inimigos tenazes de nós mesmos.
*
Como não tenho e nem acredito que exista uma chave para o futuro — exceto a do risco e da boa-fé — sou um cultor da esperança. 
Como tal, estou mais ou menos convencido que se fiz minha avó acetar no elefante um dia vou ganhar na mega-sena. Então, entupido de dinheiro, irei inaugurar a Era da Filantropia no Brasil, tirando a pátria de uma piedosa e sovina e caridade.
*
A quem possa interessar, informo que os diplomas de Harvard são escritos em Latim. 

Carta ao bebê Archie Harrison - Leandro Karnal

Querido Archie: você ainda não completou um mês. Desejo que sua vida seja longa e feliz, como desejo a todas as crianças do mundo. A roda da fortuna o fez nascer em um lar privilegiado e, como tudo, isso contém tudo de bom e tudo de ruim que possa vir a ocorrer na sua vida. Confio na inteligência dos seus pais para que transformem o privilégio em alavanca e não, como testemunhei muitas vezes, em obstáculo ao crescimento. 
Quando você nasceu, muitos jornais disseram que era o “primeiro bebê inter-racial” da família real britânica. A ideia é estranha. Sua bisavó, a rainha, vem de uma família que acompanhou a história da Europa. Há uma chance de ela ter sangue celta, romano, anglo-saxão, viking e, com certeza, normando (francesa). Parentes distantes dela nasceram na atual Alemanha; há traços da Dinamarca na família real por casamento. Logo, sua bisavó é, como eu e como você, profundamente inter-racial. Em parte, esse é o legado da espécie humana: somos Sapiens, somos Neandertais, somos todos de matriz africana, nossa raiz comum. Sua avó Doria Ragland reforçou o que está em todos nós: a origem na África. Com o tempo e o aumento de melanomas, isso pode ser uma vantagem competitiva... Mas, como tudo contém sua dialética, afrodescendente dos EUA pode ter maior inclinação a pressão alta. A medicina crescerá ainda mais e pode ajudar a reforçar vantagens e diminuir desvantagens. 
Expresso um desejo, meu querido bebê. Que essa explicação sobre raças pareça muito estranha quando você for adulto. Na verdade, sempre que estamos falando de raças, estamos introduzindo algum pensamento errático que mistura genética com caráter. Se o mundo de 2060, quando você tiver 41 anos e estiver no apogeu da sua vida, não discutir mais essas coisas, creia-me, você estará em uma sociedade mais feliz do que a de 2019. 
Você é uma criança do século 21 e, segundo um autor de agora, Yuval Harari, terá chance enorme de chegar ao 22. Não concebo quais avanços técnicos acompanharão sua jornada nem quais desafios novos estarão presentes. Teletransporte? Falta de água? Energias renováveis? Novos fundamentalismos? Temos sido muito bons em aumentar nossa capacidade produtiva e inventiva ao lado de gestos de violência e imbecilidades variadas. Sempre fomos assim. A humanidade gloriosa e desgraçada é o equilibrista que Nietzsche previra, entre um homem superior e o nada do abismo. O equilíbrio é instável, porém existe.
Você olhará para esta época, espero, com certo distanciamento e alguma náusea. Nossas guerras, nossos atentados, nossos governos autoritários de direita e de esquerda: espero que tudo lhe provoque o sentimento que temos hoje ao olhar as guerras de religião dos séculos 16 e 17. Desejo mesmo que, em algum arquivo histórico, você veja alguém que foi morto por casa de um tênis e um celular e exclame: “Que gente atrasada!”. Sim, somos muito atrasados, quase bárbaros, convivendo com violência e desigualdades impactantes e naturalizadas nas nossas sociedades. 
Enfim, que você carregue a dignidade que admiro na sua bisavó, o senso de dever e de serviço. Que você adquira o melhor da sua avó paterna, lady Diana, que se dedicou a boas causas, como eliminar minas terrestres. Que você tenha o carinho da sua única avó viva, pois uma avó é algo fundamental na vida e na formação de uma personalidade. Os avós são remansos doces e tranquilos, são pais sem culpa, apenas com afeto. Seu pai talvez não fale muito, mas ele teve uma biografia de contravenções e isso pode tê-lo tornado uma excelente pessoa, pois não esposou a hipocrisia moralista. Quando ele lhe disser: “não use drogas”, dirá pelo melhor motivo possível: “Eu usei e não são boas”. “Evite se vestir de nazista em alguma festa, não há nada a ser celebrado em regimes de morte. Eu errei.” Sua mãe é famosa pela inteligência e pela personalidade. Que você seja muito beijado, de forma a desenvolver um lar e uma raiz. Quem possui pais amorosos tem uma resistência mais profunda ao mal e aos desgastes da existência. 
Enfim, sua vida tão nova e tão bela enche o mundo de esperança. Toda nova criança é um dom extraordinário. Adultos que se incomodam com bebês que choram ou mães que amamentam deveriam ser tratados. É uma patologia sentir estranheza diante da vida. Que você viva mais de 120 anos, que ajude quem nasceu com menos condições, que tenha vida em abundância, que frutifique sobre a Terra. Que sua passagem seja de tal magnitude que, ao falecer mais que centenário, possa pensar antes do fim: “foi tudo tão rápido”! É o que deseja seu tio distante do Brasil, parente por parte de Eva, membro da mesma família genética, inter-racial como você, que teve o privilégio de pais amorosos e que nasceu com o mesmo sangue que o seu, o sangue vermelho da humanidade. Viva muito e feliz, chore, mame, corra e caia. Chore mais uma vez, aprenda, cresça, ame e seja amado. Bem-vindo, Archie! A sua aventura está começando. Viver é uma coisa fascinante! O trono britânico é uma hipótese, a vida é uma certeza.

terça-feira, 28 de maio de 2019

Afinal, para o que servimos? - Leandro Karnal

Tenho a tentação de explicar para o que eu sirvo. A pergunta é complexa. Comecei a trabalhar aos 16 anos com carteira assinada. Desde a primeira formatura, em História, aumentei minha carga horária sucessivamente. Dei aula em instituições públicas e privadas e colaborei na educação de milhares de alunos. Há muitos anos formo professores e pesquisadores na Unicamp e escrevo livros. Tenho escrito muitos artigos, orientado pessoas, dado entrevistas, palestras, colaborado com trabalho voluntário em instituições e outras questões menores. Volto à questão: para que eu serviria?

O governo federal fala em investir em áreas mais úteis para a sociedade. Oscar Wilde achava que o Estado deve fazer o que é útil, e o indivíduo, o que é belo. É um terreno pantanoso. Vamos imaginar que útil seja aquilo que produza um bem concreto e objetivo. Nesse caso, o marceneiro é muito útil. O padeiro é um monumento à utilidade. Um agricultor e um operário são indispensáveis. Precisaríamos de filósofos? Seriam necessários políticos? O mundo não sobreviveria sem militares?

Voltemos ao campo da definição. Se as faculdades de Filosofia pararem por um mês, poucos notarão. Talvez o trânsito melhore, inclusive. Dez minutos de paralisação do metrô causam um caos que Sócrates algum poderia supor. O Brasil não dispara tiros contra um inimigo externo desde 1945. Seriam úteis as Forças Armadas? Se o ministro da Educação passasse para outra dimensão e os mecanismos de transferências de recursos estivessem no automático dos computadores, alguém deixaria de existir? Afinal, para que poderia servir um filósofo, um ministro ou um militar?

Como indiquei, produtores de bens materiais de primeira linha, como pães, nunca foram classificados como parasitas ou inúteis. Serviços estratégicos, como metrô ou motoristas de caminhão, têm imenso poder de fogo. E os bens imateriais? Os serviços que não apresentam algo muito concreto, com padres rezando missas ou pastores celebrando cultos? De novo, o mundo pararia sem rabinos, padres ou pastores? Se as zelosas freiras contemplativas de um convento acompanhassem o doutor Weintraub para espaço distante da nossa visão, como amanheceria o mundo? Para religiosos, a falta dos ministros de Deus seria um desastre. Porém, e para o mundo do pão e do metrô? Fariam falta?

Imagine que o Brasil amanheceu sem poetas, sem filósofos, sem críticos de arte, sem ministros, sem palestrantes, sem decoradores, sem maquiadores de defuntos, sem capitães ou sem pastores: que falta todos fariam? Para uma ilha deserta, você preferiria qual profissão para salvar? O mundo vai acabar, selecione entre um ministro da Educação e um agricultor, entre um médico e um capitão reformado. O que você escolheria?

Quando eu era criança, no meu livro do primário havia imagens de animais "úteis e nocivos". As vacas eram úteis, bem como as abelhas. Os mosquitos eram nocivos, claro. No meio desse antropocentrismo especista, havia pouco questionamento sobre o critério da utilidade. No livro didático dos camaleões, por exemplo, mosquitos seriam muito úteis e humanos, muito nocivos. A ética camaleônica, insetívora, apoiaria exterminar humanos e preservar o Aedes aegypti.

É preciso reconhecer que o conceito de utilidade é um pouco mais elástico do que aquele centrado no produto material. Os caminhoneiros são essenciais no Brasil. Eles existem porque houve a invenção do motor a explosão e o surgimento de cientistas que transformaram petróleo em combustível, muitos ligados à área de pesquisa da universidade. As áreas de pesquisa cresceram quando filósofos como Descartes criaram métodos racionais para pensar problemas específicos e paradigmas físicos foram tratados por pensadores como Newton. O cientista inglês, aliás, era também astrólogo nas horas vagas, vejam que coisa curiosa. O diálogo entre o método científico, a universidade, os pesquisadores, os cientistas oficiais e avulsos e os inventores privados deu origem ao mundo complexo que possibilita ao caminhoneiro existir. Compreender esse mundo inclui saber que certas éticas religiosas do trabalho devem ter colaborado para o progresso do capitalismo como previa o sociólogo Weber. Fundamental supor que elementos religiosos, filosóficos, científicos e demandas de mercado foram se tornando elos de uma corrente que possibilitava Pascal ser um grande filósofo, renomado teólogo e inventor de teorias matemáticas usadas até hoje. Aliás, ele também deduziu uma máquina de calcular muito engenhosa. O conhecimento de um Leonardo da Vinci ou de um Pascal nunca pensou em utilidade, porém no sentido socrático de que todo conhecimento que nos torna melhores é útil. A realidade é mais complexa do que o tijolo feito pelo oleiro para um muro. Ainda que o olho simples e comum só veja o tijolo (algo útil), a concepção artesanal ou arquitetônica vai dialogar com sujeitos invisíveis além do que tocamos.

O tema é vasto e contém muitas bibliotecas de apoio para argumentos. Fiquemos apenas em um questionamento: quando começamos a falar sobre o que é útil ou inútil, devemos ter cuidado. Pela dialética clássica, podemos despertar a mesma pergunta para nosso campo e alguém pode devolver a pergunta a quem a faz: você é útil ou inútil? Além dessas categorias, existe uma pior: você faria alguma falta?

domingo, 26 de maio de 2019

Aula de história - Sérgio Augusto

O professor de história entra, sorridente, na sala de aula, deposita uma pasta sobre a mesa e vai direto para o que no seu tempo de estudante chamavam de quadro-negro e agora é verde. Sem hífen, quadro negro são duas palavras separadas, um substantivo e um adjetivo, usadas para qualificar uma situação ruim, que tanto pode ser a saúde periclitante de alguém, a economia do Brasil ou apenas uma pintura de Romero Britto. 
Na também chamada lousa o professor escreve, com um toco de giz, oito números, verticalmente enfileirados: 1538, 1551, 1580, 1586, 1621, 1678, 1721 e 1723.
“Estes números são datas, anos”, explica. “Em cada um desses anos, criou-se uma universidade na América Latina. Às vezes, duas, como ocorreu em 1551, quando surgiram as primeiras universidades de Lima, no Peru, e da Cidade do México, e em 1721, quando foram fundadas as universidades de Havana, em Cuba, e Caracas, na Venezuela.” Apontando para o ano de 1538, o professor ensina: “A primeira de todo o continente foi construída na ilha de São Domingos, no Caribe, ao lado de Cuba”.
Aí deu uma pausa, logo retomando a lição: “Dez capitais da América Espanhola tiveram universidades antes do Brasil. Além das citadas, Bogotá, Quito, Santiago, Guatemala e Assunção. Quase um século depois da última desta lista, a paraguaia, é que ganhamos nossa primeira organização de ensino superior, a Academia Real Militar, dois anos após a chegada da corte portuguesa ao Rio, em 1808. Ou seja, precisamos da ajuda de Napoleão para nos livrarmos da obrigação de estudar em Coimbra”.
Antes que algum aluno lhe perguntasse se Bonaparte financiara a construção do pioneiro estabelecimento acadêmico real e militar, o professor explicou: “Como vocês sabem ou deveriam saber, d. João VI e sua corte fugiram para o Brasil por medo da invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas. Foi nessas circunstâncias que ganhamos nossos primeiros cursos superiores. Mas antes de uma universidade igual às das capitais latino-americanas vizinhas, tivemos uma academia militar e uma escola de cirurgia, na Bahia.”
Algum aluno mais perspicaz poderia ter argumentado que, apesar da demora no aprimoramento do ensino nestas paragens, afinal criamos universidades de reconhecida excelência, como a USP, por exemplo, e nenhum país do sul do continente tornou-se uma potência cultural e científica por ter construído universidades antes de nós.
Mas como ninguém na turma levantou essas questões, ficou no ar a impressão, não de todo equivocada, de que nossa educação nunca se recuperou direito do atraso com que foi implantada sem a canga jesuítica.
“Nosso atraso não se restringe ao campo do ensino”, prosseguiu o professor. “Demoramos a tomar providências necessárias num bocado de coisas. Somos uma nação com vocação para o atraso, uma nação atrasada.”
De volta ao quadro, o professor apagou as dez datas ali arroladas e, no mesmo espaço, acrescentou duas: 1794 e 1888. E, já de frente para os alunos, falou: “Poderia acrescentar mais uma dúzia de datas, pois entre estas duas aqui quase 20 países americanos aboliram a escravidão, alguns quase simultaneamente. Haiti deu a partida, em 1794, no bojo de uma revolução anticolonialista e antiescravocrata deflagrada e vencida por sua população negra. Ou seja, os haitianos não se livraram da escravidão por um decreto lavrado pela elite branca da ilha, mas lutando por sua independência do domínio francês”.
Enquanto dirigia o olhar de volta ao quadro, acrescentou: “A última data se refere à nossa Lei Áurea e identifica o último país do Novo Mundo a libertar seus escravos. Outro atraso em relação a todas as repúblicas ao redor de nosso solitário império”.
Apagando a lousa, o professor começou a explicar por que juntara os dois atrasos, o da educação e o do fim da escravidão. Ambos, segundo ele, explicariam o Brasil, nosso passado e nosso presente, nosso arraigado racismo e tantas outras mazelas.
“Um sujeito nascido na Espanha, depois naturalizado americano, George Santayana, disse, há mais de um século, uma das frases mais bonitas e verdadeiras que já li: ‘Um povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la’, frase que eu, aliás, não me canso de repetir.”
Tirando de sua pasta um livro de quase 300 páginas, continuou: “Por acaso reencontrei essa frase do Santayana numa das epígrafes deste livro aqui. Anotem seu título: Sobre o Autoritarismo Brasileiro. Foi escrito pela historiadora Lilia Moritz Schwarcz e acaba de ser lançado. Adotei-o como nossa leitura do mês, quem sabe do semestre, pois se encaixa à perfeição nos objetivos do nosso curso”.
Com uma rápida folheada até a página 223, o professor detém-se na epígrafe que abre o último capítulo, dedicado aos nossos fantasmas do presente, e a lê, sem disfarçar seu deleite: “O Brasil tem um enorme passado pela frente’. Esta é do Millôr Fernandes e resume tão bem as intenções do livro quanto a do Santayana”.
As raízes de nosso racismo, de nosso mandonismo, de nosso patrimonialismo, da corrupção, desigualdade social, violência e intolerância que diariamente testemunhamos – enumera o professor, percorrendo com o dedo o sumário – “estão todas neste livro, examinadas e historiadas pela autora. Embora ela faça frequentes e procedentes alusões ao tenebroso tempo presente, os nomes dos poderosos do momento permanecem escrupulosamente ocultos por elipse em suas páginas”.
Ao vislumbrar um aluno de celular em punho, no fundo da sala, o professor suspirou com ar de enfado e, dirigindo-se ao pupilo, disse: “Não se esqueça de me enviar uma cópia por e-mail”.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Perplexidades - Roberto DaMatta

Permita o leitor que o cronista fale de perplexidades. Uma das mais intrigantes é a seguinte: quando um mentiroso irreversível diz que mente ele fala a verdade? 
E quando uma coletividade nascida da engrenagem da aristocracia branca estrangeira com escravidão negra também estrangeira, soldadas por mestiçagem e por uma máquina estatal hierarquizada administrada por uma elite absolutamente consciente do seu papel de mandona diz que é igualitária – você acredita? 
Uma outra perplexidade é o recorrente projeto das elites de promover o progresso, a riqueza e a democracia do Brasil e, no entanto, o que tenho visto é uma sucessão de ciclos nos quais quem chega ao poder enobrece enquanto o País fica mais acachapado. 
A perplexidade atual é constatar como o governo destoa frontalmente de um estilo politicamente correto de governar. As reações a essa desarmonia são sintomáticas de um elitismo feroz, forjado por redes de elos pessoais e simbólicos que mantiveram sua autoridade (e seus lucros políticos e monetários), deixando mudar regimes. Os regimes mudam, mas o núcleo elitista (velho ou novo) permanece na sua matriz aristocrática garantida por leis.
*
Dizem que não se governa um país na base do confronto e eu tendo a concordar. Ressalvo, entretanto, que, no Brasil, aprendemos tudo menos a dizer não. Somos da moda e não queremos “ficar mal no filme”. Daí a obrigatoriedade de concordar e compreender as falcatruas dos amigos e dos recomendados que comungam do nosso estilo de vida patriarcal que não permite nome feio ou ponto fora da curva. Tal estilo tem sido sustentado pelo Estado que – eis outra perplexidade – não teve uma raiz democrática, embora seja formalmente um “Estado democrático de direito”. 
*
Quem foi que inventou o Brasil? Lamartine Babo fez essa pergunta crítica na marchinha carnavalesca História do Brasil, em 1934. Tempos que culminaram numa ditadura. Por que a questão é crítica? Pela simples razão de conduzir às origens. Para nós humanos, nada é mais básico do que o acesso às origens. Deus deve estar acima de tudo porque é o Criador do mundo e dos seus princípios.   
Mitos de origem e origens como mitos são a base dos sistemas políticos e sociais. John Adams, Benjamin Franklin, Alexander Hamilton, John Jay, Thomas Jefferson, James Madison e George Washington são os “pais fundadores” dos Estados Unidos da América cuja sociedade tem um lado hiperindividualista. Origem, fundação, descoberta e criação estão sempre ligados a uma dimensão hierárquica ou aristocratizante e a algo divino. A seres e objetos marginais ao nosso mundo rotineiro, mas necessários à sua fecundidade e continuidade. 
O Brasil, diz a marchinha, foi inventado por Seu Cabral, dois meses depois do carnaval. Há quem – observando a nossa fúria autodestrutiva – duvide?
*
A divisão do poder absoluto e divino dos monarcas foi feita na base de um número mágico. Qualquer semelhança entre a Santíssima Trindade e os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário é mera coincidência, exceto para o antropólogo, mas isso não cabe numa crônica. 
O fato é que a divisão republicana foi adotada na América Latina com um forte sotaque real, pessoal e relacional – autoritário – como eu tenho mostrado nos meus livros. As repúblicas latino-americanas não caíram num terreno virgem. Foram proclamadas contra vice-reinados e, no nosso caso, em contraste com um império. Joaquim Nabuco percebeu isso porque conhecia bem o nosso viés personalista, relacional e – não custa acrescentar – elitista e cabotino. 
O republicanismo aplicado ao nosso continente elege reis, como dizia Nabuco. Com a diferença marcante do viés messiânico-marxista que, com a Guerra Fria, deu um novo impulso ao caudilhismo pessoal (caso cubano) ou corporativo-partidário (caso brasileiro), apelando para conceitos que remeteriam às origens da ordem social como propriedade, liberdade e opressão.
*
Minha última perplexidade foi escrita por Hölderlin – um poeta alemão: “Onde existe perigo, existe esperança”. 

segunda-feira, 20 de maio de 2019

O túmulo de Kafka - Mario Vargas Llosa

O túmulo de Kafka está no novo cemitério judeu de Praga, no bairro de Strasnice. Ele foi enterrado ali junto com seus pais e suas três irmãs, mortos nos campos de extermínio nazistas. Na verdade, esta bela cidade é pouco menos do que um monumento ao mais ilustre dos seus escritores. Passo o dia inteiro visitando as esculturas dedicadas a ele, as casas onde viveu, os cafés que frequentou, o magnífico museu, e em todos esses lugares me defronto com bandos de turistas que tiram fotos e compram seus livros e lembranças. Eu também: dos escritores que admiro colecionaria até os seus ossos.
Fico comovido ao ver, no museu Franz Kafka, muitas páginas da sua Carta ao Pai, que nunca enviou. Ele tinha uma letra intrincada e saltitante que parecia desenhos em quadrinhos. Essa longa carta foi a primeira obra que li dele, quando era adolescente. Minha relação com meu pai era ruim e eu tinha pânico dele, e assim eu me identifiquei totalmente com esse texto desde as primeiras frases, principalmente quando Kafka acusa seu progenitor de tê-lo tornado uma pessoa insegura, desconfiada de todos, de si mesmo e da sua própria vocação. Lembro com um calafrio aquela frase em que ele explica sua insegurança que chegou ao extremo, diz ele, de não confiar mais em ninguém e em nada, salvo aquele pedaço de terra sob seus pés.
Esse museu, diga-se de passagem, é o melhor que vi dedicado a um escritor. Sua penumbra, seus corredores labirínticos, seus hologramas, os filmes antigos da Praga do seu tempo, as grandes caixas misteriosas que não se pode abrir, e até a terna canção em iídiche cantada por uma jovem em carne e osso (mas não é) não poderiam ser mais kafkianos. Tudo o que se sabe dele está exposto no museu e de maneira sutil e inteligente. As fotos mostram a trajetória fugaz dos seus 41 anos de vida: dele criança, jovem e adulto, a figura estilizada, o olhar penetrante e suas grandes orelhas curvas de lobo da estepe.
Há um texto maravilhoso escrito quando, recém-formado advogado, começa a trabalhar em uma companhia de seguros (de oito a nove horas diárias, seis dias por semana), em que ele afirma que esse trabalho assassinará sua vocação, porque, como alguém chegaria a ser um escritor dedicando todo seu tempo a um estúpido labor alimentício? Salvo os que auferem uma renda, todos os escritores do mundo fizeram pergunta parecida. Mas o que a maioria não costuma fazer é escrever quase sem parar em todos os momentos livres, como ele, e apesar de publicar muito pouco em vida, deixar uma obra, que incluídas suas cartas, tem um enorme fôlego.
Nada me parece mais triste do que alguém que sentia intensamente essa vocação, como Kafka, que escreveu tantos livros, mas jamais foi reconhecido em vida e só postumamente considerado um dos grandes escritores de todos os tempos (W.H. Auden comparou Kafka a Dante, Shakespeare e Goethe e disse que ele, como aqueles, era a síntese e símbolo da sua época). As obras que publicou ainda vivo passaram praticamente despercebidas e entre elas estava A Metamorfose. O pedido feito a seu amigo Max Brod para que queimasse seus trabalhos inéditos revela que ele acreditava ter fracassado como escritor, embora, talvez lhe restasse alguma esperança porque senão ele próprio os teria queimado.
A propósito de Max Brod, um dos poucos contemporâneos que acreditavam no talento de Kafka, há agora, por causa da publicação do livro de Benjamin Balit, Kafka’s Last Trial, um ressurgimento dos ataques que já haviam sido feitos contra ele no passado, por críticos e intelectuais respeitados, inclusive por Walter Benjamin e Hanna Arendt. Que injustiça! O mundo deveria ser agradecido a Max Brod, que, em vez de acatar a decisão do amigo que admirava, salvou para os leitores do futuro uma das obras mais originais da literatura. Brod pode ter exagerado em sua biografia e seus ensaios sobre Kafka a influência que o misticismo judaico teve sobre ele e, possivelmente, se equivocou deixando em seu testamento os inéditos que ficaram para Esther Hoffe com quem o Estado judeu e a Alemanha passaram anos em litígio por causa daqueles textos. (No final Israel ficou com a posse deles), um tema que é tratado no bizarro livro de Benjamin Balint. Ninguém que desfrute de verdade da leitura de Kafka deve ler o livro de Balint. Os que o atacam teriam de estar conscientes de que tudo o que dizem em suas análises sobre Kafka não teria sido possível sem a decisão sagaz de Max Brod de resgatar essa obra essencial.
Hermann Kafka, o destinatário da impressionante carta que seu filho jamais lhe enviou, era um judeu humilde que não tinha nenhum elo com a literatura. Ele se dedicou ao comércio, abrindo lojinhas de passamanaria que tiveram algum sucesso e elevaram o nível de vida da família. Mas dentro dele havia algum germe de excentricidade kafkiana porque, como é possível ele ter passado a vida mudando de apartamentos, e num mesmo prédio? Há indicações de que ele mudou 12 vezes de residência e não menos mudanças ocorreram no caso de suas lojas. A família se considerava judia e falava alemão, como a maioria dos checos na época, e não era particularmente religiosa. Tampouco Kafka, pelo menos antes de chegar a Praga a companhia de teatro em iídiche que tanto o impressionou. O museu documenta muito bem os efeitos dessa experiência, o empenho com que começou a estudar hebraico (que nunca chegou a aprender) a ler livros sobre o judaísmo hassídico e outros movimentos místicos, como também o belíssimo texto que escreveu sobre aqueles atores e atrizes que representavam em iídiche, mal sobrevivendo com as gorjetas oferecidas pelas pessoas nas ruas ou nos cafés onde atuavam.
O museu também traz detalhes sobre as quatro noivas que Kafka chegou a ter e as suas complicadas relações sentimentais. Quando se apaixonava era, sem dúvida, um amante tenaz, compulsivo, e propunha casamento à amada. Mas quando ela aceitava, ele voltava atrás, aterrorizado por ter chegado tão longe. A insegurança o perseguia também no amor. Pelo menos três dessas noivas sofreram; com uma delas, Felicia Bauer, ele comemorou o compromisso matrimonial com uma festa e pouco depois o rompeu. Com amizades era muito mais constante. Seu melhor amigo foi Brod, que na época tinha um nome literário e havia publicado alguns livros. Foi um dos primeiros a se dar conta do gênio de Kafka e o encorajou a escrever e a acreditar em si mesmo, o que efetivamente ocorreu, pois Kafka, quando escrevia, perdia a insegurança e se transformava em um insólito e seguro contador de histórias. Uma tuberculose galopante pôs fim à sua existência, quando entrava na maturidade. Hitler acabou com o resto da família.



Tradução de Terezinha Martino

domingo, 19 de maio de 2019

Verdades ocultas - Paulo Santana

Como já vimos, mais forte não é aquele que domina os outros, e sim o que domina a si mesmo.
E mais sábio não é aquele que mais aproveitou os livros, e sim o que consegue aprender com cada pessoa que encontra.
Assim como o mais rico não é o que mais amealhou, e sim aquele que se contenta com o que tem, mesmo que seja pouco.
E também o mais pobre não é o que menos possui, mas aquele que quando consegue juntar algum eventual dinheiro não sabe como gastá-lo.
E também o mais feliz não é o mais eufórico, mas o que vive pacatamente em paz.
Assim como o mais crente não é o que sempre vive invocando o nome de Deus, e sim o justo que segue só o caminho do bem.
E a mulher mais sensual não é aquela que mais atrai a cobiça dos homens nos ambientes frívolos, e sim aquela que eletriza seu único parceiro na intimidade da alcova.
Bem assim como o mais honesto não é o que não se corrompe pelo medo de ser descoberto, e sim aquele que pratica a honestidade apenas para ser digno com seus princípios.
E também o melhor amigo não é aquele que está sempre a nosso lado, e sim o que nos socorre sempre que eventualmente necessitarmos.
E igualmente se sabe que a melhor bebida de álcool não é aquela mais saborosa, e sim a que não nos aflige no dia seguinte.
Desta forma, a maior poupança não é aquela que depositamos sempre, mas aquela que foi depositada somente depois de satisfeitas todas as necessidades.
O melhor ferro não é aquele mais maciço, e sim o que custa mais a enferrujar.
O maior prazer não é, pois, aquele mais demorado, e sim aquele que embora dure menos é mais intenso enquanto dura.
E garanto que o melhor esmoler não é aquele que de vez em quando dá a maior esmola, e sim aquele que dá pequenas esmolas todos os dias.
E por que será que, erradamente, ao conselho que nos indica o caminho certo sempre preferimos o que nos indica o rumo que já estávamos prontos a seguir?
E, sempre que ouço a condenação da “punhalada pelas costas”, fico a cismar se a dor e o dano não são os mesmos quando a punhalada é desferida pela frente.
E já repararam que o pior chato não é o insistente que nos chateia sempre, e sim aquele que nos chateia somente quando estávamos alegres?
E também observo que, para chegarmos à extrema alegria de termos emagrecido, era necessário tivéssemos antes engordado.
E que o pior elogio que podemos fazer a uma mulher é que ela agora está gorda porém ainda bonita.
E a pior coisa para uma mulher é ela se esforçar arduamente com regimes para emagrecer durante mais de um ano e, depois de conseguir ficar delgada, vem alguém e lhe diz que ela gordinha parecia ser mais bonita.

O grande teatro do escárnio - Milton Hatoum

“Já li o texto do nosso amigo”, disse Indaira.
Qual é o título da peça?
O Pântano e o Labirinto.
Grande título! Quase toda a humanidade cabe nele…
“É um exagero”, ela discordou. “Mas alguma coisa deste Brasil está na peça… Cenas da anomia nacional…”
Quanta coragem do nosso amigo, Indaira! Mal consigo escrever cinco linhas sobre um dos meus pássaros preferidos. Outro dia, um sabiá posou na romãzeira que a Célia me deu e começou a cantar. Às vezes, o canto de um pássaro é uma melodia para sempre. Os sons lembravam o sopro de uma flauta… De lembrança em lembrança, recordei um poema do Rûmi…
“Rûmi?”
Jalal Udin Rûmi, o grande poeta persa, admirado por Hafiz… Dois místicos admirados por Manuel Bandeira. Você deve ter lido Gazal em Louvor de Hafiz.
“O País está se esfacelando, e você vive embriagado pelo êxtase místico, pelos gazais… É desilusão?”
É apenas poesia, eu disse. O sonho de uma aventura. Mas por que O Pântano e o Labirinto?
“Estamos num pântano, não podemos andar… Os três poderes são o que são, ou o que sempre foram. E labirinto… porque estamos perdidos… E o que é pior, perdidos e surdos. Não há vozes, só barulho… Todos falam ao mesmo tempo, ninguém se entende, ninguém escuta… É aí que surgem os oportunistas, os que dizem não ser políticos… Mas perigoso mesmo é um velhaco, saudoso da ditadura: o tenebroso deputado homofóbico, o apologista do estupro, da tortura, do ódio aos quilombolas e índios… E nada acontece... Não é incrível?”
É totalmente crível, Indaira. Uma parte das pessoas pensa assim mesmo, como esse líder de araque. O ódio atrai certo tipo de gente... Outra parte cultiva o respeito e a compreensão, mais que a tolerância. Porque só a tolerância não basta. E há uma terceira parte, a mais sofrida e misteriosa… A parte dos desesperados… Milhões de pessoas tentando arranjar um emprego, essa coisa rara no País… Aliás, em quase todo o planeta.
“Há saída neste labirinto?”
Não sei. Quem leu o texto da peça foi você. Sou apenas um espectador. Quer dizer, serei um espectador quando a peça for encenada. Sair do pântano e pisar em terra firme é possível; sair do labirinto é quase inconcebível… E, pensando bem, pra que sair? Não é melhor tentar encontrar outros caminhos e permanecer no labirinto?
“Na peça do nosso amigo, todos os caminhos estão bloqueados.”
Todos? Ele se esqueceu da liberdade dos que estão perdidos. E da poesia… O fio de Ariadne, o amor por Teseu. Amor ferido ou traído…
“O amor… Nosso amigo vai dizer que você não passa de um reles romântico.”
É verdade… Um romântico com pés no chão, ou com o corpo afundado no pântano, mas sempre pensando em outros caminhos. Não há amor nem traição nessa tragédia? Nem mesmo uma cena amorosa, com uma taça de vinho envenenado?
“Amor na anomia? Nessa guerra latente entre irmãos? Parece que os brasileiros viraram Caim e Abel… O que se vê no espelho do País? Obscurantismo, linchamentos, risadas luciferinas… O paraíso tropical é inferno há muito tempo.”
Todos os paraísos estão perdidos, Indaira. O fio de Ariadne é o que nos resta. O amor e a liberdade. Vamos sugerir ao nosso amigo dramaturgo essas frases do João Guimarães Rosa: “Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”.

sábado, 18 de maio de 2019

Uberliberalismo radical - Marcelo Rubens Paiva

No Brasil, há um projeto em andamento para desqualificar instituições democráticas, arruinar reputações de partidos, políticos, empresas públicas, imprensa, juízes, ministros, universidades, artistas, nulificar legados. Mas e o que vem depois? 
Como propaganda política para angariar votos numa espécie de campanha com vale-tudo, dá frutos. Brexit, Trump e Bolsonaro surpreenderam e abiscoitaram eleições democráticas. Foram a escolha da vontade popular. Mas faz sentido como proposta de governo?
O projeto em andamento é o da terra arrasada, como uma candidata ao trono que, escolhida, monta-se num dragão e queima a capital do reino. É o projeto do uberliberalismo extremo, explícito, radical. 
Destroem-se sinais de ideologia inimiga. Marx, Gramsci e até Paulo Freire tornam-se vilões do progresso. Justiça social se torna um entrave. O adversário passa a ser obsessão. Tudo de ruim é obra do oponente. A culpa é das esquerdas, da velha política. Reescreve-se a História. Até o nazismo virou de esquerda. 
Exemplos malsucedidos de socialismo passam a ser difundidos. Como se atacássemos o republicanismo democrático utilizando exemplos como as repúblicas presidencialistas do Quênia e Gana e as repúblicas parlamentaristas de Bangladesh e Camarões, os quatro lanternas na tabela do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da ONU.
Apesar do lema Brasil Acima de Tudo, da perseguição às minorias, propaganda massiva, milícias, exaltação do passado, gestual com as mãos (arminha), armamento da sociedade e militarização das instituições, não, esse governo não é fascista, em que o Estado é tudo, o indivíduo, nada. 
No fascismo, a missão do cidadão é servir, o trabalho dos governantes, ditar regras. No uberliberalismo, quer-se o governo longe do cidadão. No estado de ultraliberalismo, o social é o entrave, o individual é a saída. O Estado some.
Suprema Corte é fechada por um soldado e um cabo num Jeep, o estado de direito é revisto, e o cidadão se defende, compra revólver da Taurus. A Taurus é coisa nossa. Dentro de casa, o cidadão é seu próprio juiz, promotor, delegado, policial, e faz a justiça que lhe convier. 
Político é tudo ladrão, partidos são gangues organizadas para arrecadar fundos de um caixa 2 e do fundo partidário, além de atrapalhar a tramitação, através da velha política, de novas matérias, promessas e reformas.
O projeto uberliberal é:
1. Liberal na economia, não nos costumes.
2. Filosofia é chato, ninguém entende, perda de tempo.
3. Sociologia, antropologia, história, idem: berçário de marxistas.
4. IBGE é desperdício de dinheiro. Não precisamos conhecer o cidadão. Conhecê-lo é constatar miséria, desigualdade social. Coisa de marxistas.
5. Pesquisa científica gasta dinheiro.
6. Universidade é desperdício de recursos que poderiam ir para a Segurança Pública e diminuir as estatísticas de roubo de celular.
7. Livros são inúteis na era das redes sociais.
8. Jornais são perda de tempo, já que as informações chegam mais rápido em grupos de WhatsApp.
9. O respeito ao meio ambiente é um entrave para o progresso. A terra é para ser explorada, é um presente de Deus.
10. Índios são selvagens que atrapalham o desenvolvimento, pois estão sentados em grandes reservas de madeira, minérios e terras agriculturáveis.
11. Propriedade é sagrada. Se entrar em casa, mete chumbo. Propriedade privada é o Estado individual.
12. Bandido bom é bandido morto.
13. Direito à defesa é privilégio de bandido.
O estado ultraliberal pretende o Estado mínimo. Para isso, destrói a ideia de um que seja capaz de promover o bem-estar social.
Acaba com a reputação de universidades públicas, como se fossem antros degenerados de alunos inúteis, bêbados, drogados, sempre pelados pelos corredores: um enorme desperdício de dinheiro.
Acaba-se com a ciência e a pesquisa, afinal, a minha verdade não é empírica, não é a tese comprovada por dados e experiências.
Pesquisadores gastam dinheiro público à toa. A verdade é a minha verdade, a que meus amigos me contaram, a que a minha Igreja defende no culto dominical, na que acredito. Verdade é fé, não ciência.
A Terra é redonda? Depende. Para você, pode ser, mas para meu grupo do WhatsApp, não. A Teoria da Evolução nos faz parentes dos macacos? Não é o que diz a Bíblia. E eu sigo as Sagradas Escrituras. 
Preste atenção, não se deve acreditar em tudo que se lê por aí, especialmente nos livros e no que sai nos jornais. Atente ao viés ideológico conflitante aos interesses da Nação. Tem um complô em andamento das esquerdas, para fazer lavagem cerebral nos jovens. 
Ser gay é uma doença? É um desvio, me disseram, e acredito. Afinal, também está na Bíblia, o homem é para ficar com a mulher, para florescerem. Assim é a família. Se tem cura? Tem um grupo de reza lá na minha Igreja que cura. Tem também um espírita que faz operação para curar gays. E tem o exorcismo do pastor, que aos domingos cura muitos gays, alcoólatras, aleijados, viciados que perderam tudo. Eu vi na TV. Tudo porque o cão está dentro do indivíduo. O capiroto. O demo. O coisa ruim. Coisa simples tirar o diabo de dentro de uma pessoa. O pastor consegue só com os gestos, sopros e comandos. 
A ditadura foi necessária, um amigo do meu pai que viveu naquele tempo me disse. Se não fosse pelos militares, os comunistas decretariam uma ditadura de esquerda. E foram tempos de bonança, sem violência. As pessoas podiam andar na rua. Homens não beijavam homens em público. E as novelas eram mais respeitosas, com os valores tradicionais e cristãos em destaque. Nossos filhos assistiam à Bela Adormecida, não à Frozen – Uma Aventura Congelante. Congelante e lésbica, a ministra disse. 

terça-feira, 14 de maio de 2019

Para o corpo e para a alma - Humberto Werneck

Hipocondríaco sem remédio
Foi eu abrir a minha caixinha de pílulas, no café da manhã, e ele esticar o pescoço para xeretar, tomado de súbita excitação: 
– O que temos aí?
Tínhamos ali uns poucos e modestos fármacos, como ele gosta de dizer, não mais que três bolotinhas brancas – e, diante do espetáculo pífio, meu amigo pôs no rosto uma expressão de superioridade próxima do desprezo. Sacou sua própria caixinha – palavra reles demais para descrever o estojo de metal esmaltado que, por simples ação de presença, reduziu a nada o recipiente de plástico plebeu onde os meus ridículos comprimidos se comprimiram ainda mais, cobertos de vergonha farmacológica. 
Um botãozinho, plec, descortinou teatralmente a profusão de pílulas, de diferentes cores, formatos e tamanhos, para os mais variados males, presentes, futuros e passados, sem excluir os imaginários. Como um lapidário com seus brilhantes e rubis, ele espalhou as gemas sobre a mesa e foi fazendo as apresentações: esta é para isto, esta para aquilo...
Cada qual tem nesta vida um assunto em que se sente mais à vontade, e o desse meu amigo é remédio. Mas não qualquer um. Não ousem falar com ele de chás, florais, homeopatia. Muito menos de medicamentos baratos, a seu ver incapazes, já por motivos econômicos, de surtir efeito: é preciso que haja sofrimento monetário. Remédio sem bula? Meu amigo não passa sem essa literatura de terror em que o nome mais simples de personagem tem sete sílabas. 
Faz mais fé nas pílulas coloridas do que nas brancas, nas cápsulas do que nos comprimidos e, sobretudo, nas pastilhas efervescentes, que nem entraram ainda no organismo e já estão, com suas borbulhas, mostrando serviço. É ver uma injeção e dar o braço a picar.
Gosta de remédio que arde – sinal de que está fazendo efeito. “Zé Febrinha”, como costumamos chamá-lo, carrega seu termômetro aonde quer que vá. Adora consulta médica, ocasião em que o assunto é ele, só ele e suas entranhas, e se anima todo durante o interrogatório a respeito da caxumba na infância. É com entusiasmo futebolístico que fala de suas passagens por salas de cirurgia, nas quais vem deixando seus miúdos, das amígdalas ao prepúcio, do apêndice à vesícula biliar. 
– Estou indo aos poucos – anuncia ele orgulhosamente. 
Dia desses, ao telefone, enveredou pelo relato de seu despertar após a cirurgia de vesícula. Ao abrir os olhos, a primeira coisa que percebeu, sobre o criado-mudo, foi um potinho de plástico em cujo interior transparecia uma pedra escura e informe. 
– Maior pedregulho, meu! – disse ele, feliz como garimpeiro que acaba de recolher na bateia um graúdo diamante. Poucos homens já vi gabarem-se com tão segura vaidade no quesito tamanho. Ou – que ele não me leve a mal – galinha cacarejar com tanto júbilo ao botar um ovo. 
O seu entusiasmo não diminuiu nem mesmo quando, incorporando o meu ocasional espírito de porco, observei que uma ostra é capaz de feito bem maior, já que produz pérolas, não calhaus fuliginosos. 
– Você não sabe de nada – desdenhou ele, em seu pétreo orgulho mineral, e entrou a falar da fita de vídeo que encontrou ao lado do potinho, ao voltar da anestesia: o filme, sem cortes, da sua cirurgia. A primeira peça, espera meu amigo, de uma videoteca ambientada exclusivamente em suas entranhas. 
Não resisti:
– Finalmente, uma prova de que você tem vida interior! 

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Pequena Fábula - Franz Kafka

“Ah”, disse o rato, “o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro”. – “Você só precisa mudar de direção”, disse o gato, e devorou-o.

"Pequena Fábula", de Franz Kafka, contada por Antônio Abujamra





Jota A. Botelho

Bedelho - Luis Fernando Verissimo,

O que é um “bedelho”? O que estamos, exatamente, fazendo quando metemos nosso bedelho na conversa ou no assunto de outros? Boa coisa não é, pois um bedelho intrometido raramente é bem-vindo. O bedelho é uma opinião que ninguém pediu. Ou pior: soa como algo metálico e agressivo, menos uma contribuição extemporânea para um papo do que o nome de uma arma mortal.
– E esse ferimento no pescoço do morto, inspetor?
– Feito com um bedelho. Certamente um bedelho.
*
Procurei no Aurelião mais próximo. Bedelho, diz ele, é uma “tranqueta ou ferrolho de porta, que se levanta por meio de aldrava ou de báscula”. Perfeito. Já sabemos o que é bedelho. Resta saber o que é “aldrava”. Uma visita a um dicionário é sempre um mergulho no fascinante. 
*
Você sabe, claro, que “alcateia” é uma turma de lobos e que “cardume” é um bando de peixes. Mas aposto que sabia tanto quanto eu que “panapaná” é o coletivo de borboletas. “Enxame” quer dizer muitas abelhas, certo, e “manada” e “matilha” quem não sabia? Mas “vara” significando uma porção de porcos, quem diria?
*
Dicionários e lexicografias nos reservam muitas surpresas. Traduza: uma chusma emanauê com farandeulas com cabidela. Uma reunião de mendigos das mesmas tribos com moedas. (Agora é só esperar a oportunidade de usar essa frase numa conversa, antes que alguém meta seu bedelho.)
Quem se dedica a descobrir as origens e as transformações sofridas pelas palavras através do tempo se diverte sem parar. Como foi que a diferença de gostos entre os delicados franceses e os rudes ingleses determinou que as linguagens das duas culturas se separassem tanto, na cama, na mesa e na vida? Embora uma não reconhecesse a superioridade da outra. Durante muito tempo, até que a prática fosse universalmente tolerada nos dois lados do canal, o homossexualismo foi chamado de “a doença inglesa” pelos franceses e “a doença francesa” pelos ingleses.
*
“Fokken” era a palavra em inglês antigo e nada elegante para o ato sexual. Os franceses, embora não lhes faltasse outras palavras, preferiam o eufemismo “fornicate” do latim “fornix”, uma espécie de porão com o teto arqueado alugado por prostitutas de Roma, que acabou virando eufemismo também, “fornax”, depois “fornus”, que significava simplesmente quente.
*
Tudo isso foi antes, muito antes, do Brexit.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Flikolping, há gente fazendo coisas pela cultura - Ignácio de Loyola Brandão

A aluna do terceiro ano do grupo Serpente do Ensino Médio me disse: “Vamos assistir a sessão de cinema. É um filme com Rodolfo Valentino, Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, um clássico. O senhor como crítico tem a permanente, não paga nada”. Puxou a porta, penetrei na sala ao som da trilha sonora de Amarcord de Nino Rotta. Abriu-se a cortina e o filme começou, mas então eu não estava mais no agreste baiano, e sim em Araraquara, em 1952, entrando no cine Odeon para assistir a Valentino, dirigido por Lewis Allen, primeiro filme que critiquei na vida, tornando-me pioneiro da crítica de cinema de Araraquara. A permanente me possibilitava assistir a filmes de graça todas as noites. Segui meu destino de fantasia e imaginação.
Há anos viajo pelo Brasil, mas esta, a Flikolping de Caldas de Cipó, duas semanas atrás, foi mágica e me remeteu a vários momentos de minha vida. Desci em Salvador e Luis Carlos Caitano e o professor Miguelzinho me levaram para uma água de coco gelada em Itapuã. Dali pegamos a estrada e seguimos para Santa Bárbara, pausa para comer pamonhas na Imperial. Uma esquina simples e muito cheia, pamonha doce e café com leite. 
Ali, mergulhei nas tardes de Vera Cruz, começo dos anos 1950, quando caminhões das fazendas ao redor chegavam com o milho, despejando no terreiro de café do Tio Costinha. Começava a festa, uns descascando e selecionando a palha do milho, outros ralando, terceiros levando para os tachos sobre os fogões, outros a preparar a palha em forma de pequenos saquinhos, que seriam preenchidos pelo mingau de milho que se tornaria pamonhas doces, salgadas, com queijo, linguiça, tudo feito em casa. As espécies variavam. 
Ritual encantado envolvido pelo cheiro do milho ralado, das achas de lenha nos fogões. Adorávamos aquelas tardes, todos os primos apaixonados pela Maria Helena, filha do tio Costinha e da Aninha, as pessoas mais bem-humoradas e malucas de minha adolescência. Tive sorte de conviver, em épocas de sisudez e austeridade dos mais velhos, com parentes doidos, descolados, cheios de fantasia. Poucos sobraram daquele mundo. Todos estão comigo.
Naquela tarde na Bahia, à medida que devorávamos a estrada, via as placas, Lamarão, Biritinga, Serrinha, Nova Soure, Paulo Afonso. Atravessava paisagens de filmes de Glauber Rocha, vegetação de caatinga, arbustos retorcidos, aroeiras, angico e juazeiro. Assim eu me vi em 1961 em Paulo Afonso, onde Aurélio Teixeira filmava Três Cabras de Lampião, com roteiro de Miguel Torres, revelação do Cinema Novo, que me dava dicas para roteiros que jamais fiz. Mas eu estava lá por causa de uma atriz baiana chamada Marlene França, pela qual também estava apaixonado o fotógrafo do filme, Hélio Silva, um dos maiores do cinema da época, o que “pintava com a luz”. Considerado gênio, ele morreu em 2004 na miséria.
Indicado por Antonio Torres, o Colégio Kolping, de Caldas de Cipó, me levou para sua festa literária. Pequena cidade, 16 mil habitantes, mas um animadíssimo e bem organizado festival. Cipó é chamada de a pérola barroca do sertão baiano pela historiadora Veronica Alves. Uma cidade em que Lampião não conseguiu entrar, nem atravessou o Rio Itapicuru. 
A festa literária começou após o almoço e seguiu até meia-noite, com autores falando, danças, músicas, instalações, poesia, teatro. Parecia que a cidade estava toda ali. Me deu a impressão de que cada aluno levou a família inteira. O que é raro, em geral os pais mandam os filhos e pronto. Entrei numa sala, crianças ouviam Paulo Vinicius Leone, que circulava de sala em sala contando meu livro O Menino Que Vendia Palavras. Ao final, ele me apontava: olha ali quem escreveu. Crianças corriam, abraçavam minhas pernas, diziam: “Quero ter um avô assim, conta agora outra história”. Um estudante pequenino confessou: “Quero comprar umas palavras suas”. Depois, fui levado ao palco, conversei durante uma hora sobre o ofício de escrever, plateia misturada, crianças, jovens, adultos, em silêncio.
No final, uma professora, Lindalva Farias, ergueu-se para dizer que tinha vindo de Salvador só para me encontrar, porque na juventude, em 1978, tinha ficado impressionada com meu livro Cuba de Fidel, hoje esgotado, assim como a revolução cubana e seus ideais. Coisas que me tocam. Faltava ainda um módulo na homenagem a este escritor. Fui levado a salas onde vi nas paredes capas de meus livros, frases tiradas de entrevistas, contos, romances, LPs onde havia músicas que citei em meus textos, vídeos com trechos de entrevistas.
Coloquei um óculos informático e penetrei em um avião em que a comissária alertava que este romance, Desta Terra Nada Vai Sobrar, atravessaria zona de turbulência. Poucas vezes vi uma homenagem feita com tanta inspiração, criatividade e pesquisa. Nesses momentos vejo que vale a pena escrever, sempre atingiremos alguém, em algum ponto deste Brasil. Ou do mundo. Cipó estava feliz.
Comigo e com Torres ela já abrigou dois acadêmicos da Brasileira. Três, se contarmos que em 1952, Guimarães Rosa, então diplomata, acompanhou Getúlio Vargas na inauguração do luxuoso Grande Hotel, já que a cidade foi termal, agitada. Na época, Guimarães tinha 44 anos e somente seria eleito 19 anos depois, em 1963. Mesmo assim, conta. Por que não.
Na manhã de minha partida, tomei o café na Pousada do Paiva, onde dona Zefira preparou mingau de milho, me ofereceu mandioca cozida regada com manteiga e café. Era cedo, fui para a varanda, contemplando a Praça Juracy Magalhães, havia dois gigantescos tamarindeiros.
Fui até a fonte, onde a água a 36 graus jorra o tempo todo, e enchi um copinho. Quando estendi a mão para o jorro de água, o que vi foi Claudia Cardinale dizendo il bicchieri e percebi que eu estava numa cena de Oito e Meio em que Marcelo Mastroianni imagina que é Claudia que lhe oferece a água. Mas não, é apenas uma impaciente funcionária do hotel. O personagem passa o filme vivendo realidades idealizadas. Como eu. Para ele, Claudia, em 1962, então no esplendor de sua beleza, representava a pureza. Se cada cidade brasileira realizasse uma festa como esta do Colégio Kolping, a cultura estaria salva.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

O futuro a Deus pertence - Roberto DaMatta

Ouvi muito essa poderosa sentença que contém uma filosofia da história ao refletir a nossa total impotência sobre as circunstâncias nas quais viveremos nossas vidas; exceto, talvez – e aí está a sabedoria reveladora do dito –, se entregarmos o que virá a um ser todo-poderoso, criador e mantenedor da ordem. Aí está, com as devidas ressalvas e vênias, o poder de atração dos deuses, reis, ditadores. 
Quando produzia essa frase, minha amada avó exprimia sem saber a aversão brasileira a agendar e programar o futuro. Poucos se interessavam em saber se o dia de amanhã seria mesmo “um outro dia” como no do filme E o Vento Levou...
No Brasil, agendar o futuro sugere uma espécie de intrusão ou desafio aos desígnios divinos. Se não sabemos quando vamos morrer, ou o bicho que vai dar, não seria um excesso de confiança marcar uma reunião ou viagem para uma data vindoura? Somos, sugiro com a devida cautela, indiferentes aos futuros possíveis porque nossa origem, formação e experiência de vida revelam uma assombrosa instabilidade sociopolítica ou institucional. 
No fundo, experimentamos todos os regimes políticos e o que todos tinham em comum era a desigualdade que, de modo claro, mantinha privilégios e aristocratizava segmentos, instituições e pessoas. Na minha visão, somente o Deus de uma religião oficial, que marginalizava credos rivais, poderia sugerir um futuro marcado pela igualdade. Por um igualitarismo que nesses nossos tempos mais francos e rústicos surge não mais como uma utopia, mas como um imperativo. 
A igualdade social é, sem dúvida, determinante da institucionalização do futuro como uma banalidade em alguns lugares e como um desafio ou anomalia em outros. Ademais, é preciso notar que marcar um corte de cabelo ou a compra de um carro é bem diferente de agendar periodicamente uma eleição; ou de ter um projeto permanente relativo aos direitos humanos, dos recursos financeiros e a consciência dos preconceitos político-sociais.
Quando um futuro se torna universal, ele se transforma em ideal e valor: em algo a ser procurado. Mas para nós, brasileiros, historicamente fabricados dentro de um estilo de vida aristocrático, no qual existiam pessoas que faziam tudo para outras – um sistema movido pela superioridade social e por sua correspondente opressão, garantidas pela escravidão negra africana –, é óbvio que pensar um futuro solto, aberto e igualitário é um tabu, uma subversão e um crime. No Brasil, agendar um futuro grandioso é um desafio tão frágil quanto ganhar uma Mega Sena. 
Nosso credo social se funda na imobilidade das camadas sociais, denunciada por Tocqueville como sendo o cerne dos regimes monárquicos. Aqui, não há um futuro como mudança porque a ascensão social é detida até mesmo pelas leis. 
Por milênios, fomos iguais a nós mesmos. Só ganhamos o sentimento de morrer numa posição social diferente da que nascemos, a partir da modernidade industrial ou, quem sabe, da morte do último faraó ou da invenção das grandes loterias. Essas Mega Senas que levam o cronista a meditar sobre o futuro e os ignorantes de sociologia e os alérgicos à democracia a seguir astrólogos. 
A sociedade de classes baseada na exploração do trabalho ofertado num mercado autossuficiente, é (com todos os seus efeitos e defeitos) responsável por essa visão da história como um jogo e uma probabilidade – uma irônica, senão perversa, loteria.
Tudo isso, leitores, para repetir que bruxos e feiticeiros sempre existiram como anjos da guarda da imobilidade. Essa imobilidade compensada pelo jogo de azar – ou pelo golpe – que fez o Brasil “passar” de império a República autoritária e a um estado democrático de direito um tanto bagunçado, como estampam os jornais. Por que o rompimento com a imobilidade deixa falar alto, põe em competição projetos de futuro, concorda com o cala a boca já morreu e liquida a censura do ritual autoritário do “você sabe com quem está falando?” 
O futuro do Brasil pode continuar sendo de Deus. Mas, abaixo da divindade, ele não é de ninguém. Ele é de todos.

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...