sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Às favas com os escrúpulos - Marcelo Rubens Paiva

Tudo começou com o Ato Institucional Número 1 (AI-1), baixado pela Junta Militar em 9 de abril de 1964. Cem personalidades, entre militares, deputados, governadores, economistas, políticos, jornalistas, que trabalhavam para o governo deposto, foram presos, exilados e cassados.
O País teria eleições gerais em 1965. Castelo Branco prometeu cumprir o calendário. Sabia-se por uma pesquisa do Ibope não divulgada que Juscelino Kubitschek ganharia com folga. Baixaram o AI-2: mais cassações, partidos políticos extintos e intervenção no Judiciário. Em 1966, o AI-3: eleições para governadores, prefeitos das capitais, estâncias e cidades de segurança nacional canceladas. O AI-4 revogou a Constituição de 1946 e proclamou outra. Até o golpe final, o AI-5, que faz 50 anos.
Em setembro de 1968, um quebra-quebra na UnB entre polícia e estudantes sobrou para deputados da oposição, que foram ao Congresso denunciar. Em 2 de setembro, o deputado Márcio Moreira Alves, Marcito, perguntou se Exército era um “valhacouto de torturadores?”. Foi almoçar. Voltou e, em referência a Lisístrata, de Aristófanes, que assistira no Teatro Ruth Escobar, comédia grega em que mulheres de várias cidades, cansadas de perder maridos e filhos numa guerra de mais de 20 anos, organizaram uma greve de sexo, sugeriu que brasileiras que se relacionassem com militares as imitassem.
O repórter de Brasília Rubem Azevedo Lima achou inusitada a comparação e publicou nota na Folha de S. Paulo. Deputado carioca bon vivant abriu uma crise no governo. O ministro Gama e Filho pediu que o Congresso abrisse processo contra o deputado. Em 11 de dezembro de 1968, por 216 a 136, votou contra.
O governo fechou o Congresso, e deputados tiveram que atravessar um corredor polonês de soldados com baionetas. Marcito partiu para o exílio com a mulher. Às 3 da tarde de 12 de dezembro de 1968, presidente Costa e Silva, chamado de “molengão” pelo ministro do Interior, general da linha-dura Albuquerque Lima, chegou ao Palácio das Laranjeiras e convocou o Conselho de Segurança Nacional.
Na noite de quinta-feira do dia 12 de dezembro de 1968, escutou relatos do general Garrastazu Médici, do SNI: uma luta armada estava em andamento; um sem-número de assaltos a bancos foram comandados pela ALN, de Marighella; em junho a VPR lançou um carro-bomba contra o quartel-general do 2.º Exército; na Cobrasma, em Osasco, 10 mil trabalhadores cruzaram os braços; a morte do estudante secundarista Edson Luís num confronto com a polícia provocou a Passeata dos Cem Mil; comunistas promoveram quebra-quebra no comício do governador Abreu Sodré (SP); em Ibiúna 920 foram presos num congresso clandestino da UNE.
Então, listou casos de indisciplina na tropa: em setembro, sindicância apurou que o brigadeiro Burnier usaria o Para-Sar para atentados políticos; capitães reclamaram de salários baixos e lançaram manifesto em novembro. Médici quer a decretação do estado de sítio. Costa e Silva diz: “Poder é como salame, toda vez que você o usa bem, corta só uma fatia, se usa mal, corta duas, mas se não usa, cortam-se três, e, em qualquer caso, ele fica sempre menor”.
Souberam do editorial duro escrito por Julio de Mesquita Filho, Instituições em Frangalhos, que o Estadão rodaria na madrugada. Uma operação militar foi desligar as rotativas do jornal. No dia 13 de dezembro, o jornal é impedido de circular.
À noite, Costa e Silva viu em Laranjeiras um faroeste com ministros mais íntimos. Soube que o general, comandante da Vila Militar, João Dutra de Castilho, estava rebelado. Na madrugada e durante todo o dia 13 de dezembro, no bucólico palácio, foi concebida a ditadura na ditadura, o golpe no golpe.
Na manhã do dia 13, Gama e Silva revisou as cinco páginas do AI-5. Generais foram à tarde ao QG do ministro Lira Tavares. General Muricy, chefe do Estado Maior do Exército, achava que “precisavam começar tudo de novo”. General Muniz de Aragão: “Se o presidente está vacilante, que seja atropelado”. Decidiram que Orlando Geisel, chefe do Emfa, iria a Laranjeiras expor a situação.
Geisel chegou com comandante do Primeiro Exército, Syseno Sarmento. Costa e Silva não os recebeu, subiu para o primeiro andar e se trancou. Ficou ouvindo música, esperando o vice, Pedro Aleixo. Às 16h, desceram para a reunião no grande salão e leu o AI-5. “Ou a revolução continua ou se desagrega”, disse. Pedro Aleixo discordava do ato. O ministro do Exército Lyra Tavares falou da grande tensão no País. Magalhães Pinto, chanceler, falou que o direito do cidadão deveria ser resguardado. Delfim Neto, plenamente de acordo com o Ato, disse que não era suficiente e deveria se estender para a economia. Jarbas Passarinho chamou a reunião de histórica e disse a frase que a marcou: “Às favas todos os escrúpulos de consciência”.
O locutor da Agência Nacional, Alberto Curi, o leu na TV. Lacerda, JK, Sobral Pinto foram presos, 66 professores, como Caio Prado, FHC, Florestan Fernandes, foram expulsos das universidades, Marília Pêra foi trancada num mictório de quartel, Caetano e Gil foram presos em São Paulo, tiveram suas cabeças raspadas e foram expulsos do País. Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Raul Seixas, Geraldo Vandré, os diretores de teatro Augusto Boal e Zé Celso se exilaram. O Congresso Nacional ficou fechado até 21 de outubro de 1969.
Um homem só, o general, poderia intervir no Congresso, Assembleias, Câmaras de Vereadores, Poder Judiciário, Estados e municípios, suspender os direitos políticos de qualquer cidadão, cassar mandatos eletivos, decretar o confisco de bens e o estado de sítio. Instituiu censura e o fim do habeas corpus.
Escrevi essa sinopse de um longa há três anos, baseado em Elio Gaspari, claro, e muita pesquisa. Não saiu do papel. O Brasil não conta a sua história. Não fez um filme que retratasse a ditadura, digno do Oscar, como História OficialSegredo dos Seus OlhosNoMissing, Estado de SítioUma Noite de 12 Anos, entre outros. Não por outra, alguns a querem de volta.

Retratação - Luis Fernando Verissimo

Tudo é vaidade.
Tem aquela do cara que invade uma delegacia de polícia e exige falar com o desenhista.
— Com quem?
— Com o desenhista. O que faz retratos falados. Quero falar com ele agora!
— Espera aí. Você não pode entrar aqui assim e...
— Não interessa. Quero falar, imediatamente, com quem fez isto.
E o homem mostra um cartaz em que aparece o desenho de um rosto e escrito, em cima, “Procura-se”. Insiste:
— Se ele não aparecer logo, eu quebro esta joça!
— Calma, cidadão. Calma.
Tantas o homem faz que o desenhista é localizado e trazido à sua presença. O homem mostra o cartaz e pergunta:
— Isto se parece comigo?
— Isto se parece comigo?
— Bom, eu...
— Não. Me diga. Esta cara se parece vagamente com a minha?
— É que eu...
— Olha o meu nariz e olha o nariz do desenho. Desde quando eu tenho um nariz assim? E a boca?
— É que eu me guiei pela descrição da testemunha...
— Não. Não tente transferir sua culpa. O desenho é seu. É a minha cara falsificada que está por aí, colada em tudo que é poste da cidade. E eu exijo retratação. Ou, no caso, rerretratação.
Um policial de plantão interfere:
— Você está preso.
— Eu sei — diz o homem. E, para o desenhista:
— Assim você terá o tempo que quiser para refazer meu retrato, usando o original como modelo.
— Está bem — diz o desenhista.
— Certo, desta vez!

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Supersimples - Daniel Furlan

Luciano Salles/Folhapress


Levantei sem comer e fui para o aeroporto. Crianças no avião gritam exigindo coisas. As que não sabem falar só berram vogais. Sento ao lado de uma mãe e seu filho Arthur, saído diretamente de “A Profecia”. Anunciam que há algo errado com avião, supersimples.
Três horas depois, eu, Arthur, a mãe de Arthur e todos os passageiros temos que sair rumo à loja, onde após uma fila de mais de uma hora somos informados de que um novo voo sairá de outro aeroporto. Eu tenho que pedir um voucher de táxi para um funcionário chamado Daniel.
— Oi, você é o funcionário Daniel?
— Sim, qual o seu nome?
— Daniel.
— O meu nome também é Daniel!
— Várias pessoas têm o mesmo nome, é normal.
O rapaz na minha frente sugere dividirmos um táxi e eu aceito por ser uma ideia sustentável. Chegando já tarde da noite sem comer no outro aeroporto, o motorista encontra, enfurecido, uma casca de banana deixada pelo meu colega passageiro. Enquanto pega minha guitarra no porta-malas, ele esbraveja que “se não estivesse num ambiente social, nós iríamos apanhar muito.”
— Eu não conheço essa pessoa. Por favor não arremesse meu instrumento por causa de uma casca de banana.
Novo check-in e pergunto sobre a possibilidade de um voucher para comer. Essa pergunta me coloca em outra fila, até que sou agraciado com um voucher, mas o restaurante fechou. Vou comer um pão de queijo mesmo e tomara que vomite lactose no uniforme de algum funcionário. 
Entro no avião e o bagageiro superior não fecha com a guitarra dentro. A aeromoça tem a ideia de guardar só a guitarra ali e despachar o case separado. Boa ideia. 
Pousamos. O selvagem Arthur está em algum lugar do avião gritando em desaprovação ao pouso. Chove muito e ter a guitarra sem case agora se revela uma péssima ideia. Me recuso a sair. Acabo pressionado a ir na chuva com a guitarra embaixo da camisa.
Descendo do ônibus no centro, sem celular e sem computador com bateria ou carregador, pergunto num bar se ainda existe orelhão. O dono do bar pede pra eu “tocar um rock”. Vejo um táxi passando e me jogo dentro.
— João?
— Não, Daniel.
— Desculpa, foi o João que chamou no aplicativo.
Um vulto surge na porta do táxi. Muita chuva, não vejo quem é, mas deve ser João pronto para me agredir em reivindicação ao seu táxi de aplicativo.

Quadrão - Luiz Gê



Canto III

Dante e Virgílio estão no portal do Inferno, que traz a inscrição famosa:

Per me si va ne la città dolente,
per me si va ne l’etterno dolore,
per me si va tra la perduta gente.
Giustizia mosse il mio alto fattore;
fecemi la divina podestate,
la somma sapïenza e’l primo amore.
Dinanzi a me non fuor cose create
se non etterne, e io etterno duro.
Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate.(v.1-9)

(“Por mim se vai à cidade do sofrimento,/ por mim se vai à dor eterna,/ por mim se vai à gente condenada./ Justiça moveu o meu alto artífice;/ sou obra da divina podestade (*),/ da suma sapiência e amor primeiro./ Antes de mim só existiam coisas eternas,/ e eu duro eternamente./ Deixai toda esperança, ó vós que entrais.”)
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(*) Podestade: “O primeiro magistrado, nas cidades centrais e setentrionais da Itália, na Idade Média” (1)

VHS, DVD, pet shop - Antonio Prata

Adams Carvalho/Folhapress

Todo sábado eu e a minha mulher repetimos nosso programa favorito: fazemos pipoca, nos metemos debaixo de um cobertor e passamos a noite diante do Netflix. Com o dia já amanhecendo, ainda em dúvida se deveríamos ter visto o "Chef's Table" do cozinheiro iemenita, o especial de stand-up em que um comediante transgênero narra sua adolescência na comunidade hip-hop de um bairro hassídico do Alabama ou, pela décima sexta vez, "Annie Hall", vamos dormir. Não lembro do último filme ou série a que assistimos, só lembro das noites intermináveis pulando de capinha em capinha até o sol iluminar nossas olheiras.
"Capinha" denuncia a minha idade. Quem é criança ou adolescente talvez não associe as imagens dos filmes no Netflix às capas dos DVDs. Pois eu sou do tempo do DVD. Minto, sou do tempo do VHS. Minto, sou do tempo pré-VHS, do tempo do pingue-pongue, do pega-pega, do esconde-esconde -um tempo em que havia pouquíssimas diversões eletrônicas mas, como se vê, sobravam brincadeiras com hífen.
Lembro de quando surgiram os videocassetes e com eles aquela instituição brilhante e fugaz que iluminou minha adolescência nas últimas décadas do século 20: a videolocadora. Toda sexta, oito e pouco, lá estava eu, na 2001 da Sumaré, me perdendo pelas alamedas de Kubricks, Woody Allens e Hitchcocks.
Os funcionários, cinéfilos inveterados, com o aspecto vigoroso de todos os que se dedicam à cultura -pálidos, corcundas, ao mesmo tempo magros e, misteriosamente, barrigudos-, mal me deixavam terminar a frase "Sabe qual o filme do Woody Allen que ele se declara embaixo da Brooklyn bridge" -e já saíam apressados- "I lurve you, I lowve you!", 'Annie Hall'! Corredor quatro! Vem comigo!".
Eu não era melhor de escolhas, naquele tempo. Também demorava séculos para me decidir, mas havia algum constrangimento em passar três horas numa videolocadora. Em algum momento antes da meia-noite, quando os funcionários já me olhavam desconfiados de que eu estivesse sem coragem de pegar um pornô da salinha privê, eu fechava numa meia dúzia de filmes e ia para casa.
Frequentava-se uma locadora como quem frequenta um clube. Me senti traindo a 2001, portanto, quando mudei pra Higienópolis e me envolvi com HM. Ali trabalhava o Sérgio, um cara que conhecia filmes tão obscuros de certos cineastas que nem os certos cineastas sabiam que tinham feito. Depois o Sérgio se mudou pra Notorious, na Cardoso de Almeida. Mudei-me com ele.
Vi as três locadoras morrerem uma morte lenta, primeiro esfaqueadas pela TV a cabo, depois metralhadas pelos vídeos on-demand. Hoje a 2001 é uma academia de cross-fit, a HM é um pet shop e a Notorious, um restaurante japonês. Não cairei no saudosismo besta de afirmar que ir de carro até a Sumaré para escolher meia dúzia de filmes é melhor do que eleger entre 30 mil, sentado no meu sofá.
O Netflix é uma grande invenção. Ao menos para os que sabem usá-lo. Minha mulher não sabe. Quer ver séries novas, filmes independentes, conhecer comediantes trans e cozinheiros iemenitas: pra que, Deus do céu, se podemos assistir, pela décima sexta vez, a "Annie Hall"? Ela fecha a cara. Eu digo "I lurve you! I lowve you! I loffe you!". Ela não acha a menor graça e o sol nasce lá fora.

domingo, 25 de novembro de 2018

Outra pessoa em casa - Martha Medeiros



Volta e meia deparo com estatísticas de pessoas que moram sozinhas. Não lembro os números exatos, mas sei que são elevados. Jovens que deixaram suas cidades para estudar, idosos que viram a família seguir o rumo sem eles, homens e mulheres que se divorciaram, que enviuvaram ou que nunca se casaram, enfim, gente que, por escolha ou contingência, hoje habita só. Talvez um cão ou gato atenue a ausência de companhia, mas o fato é que não há outra pessoa na casa.

O rádio acaba virando a outra pessoa na casa.

Essa frase impactante eu pincei do livro da Katia Suman, que acaba de lançar as memórias da Ipanema FM, revelando os bastidores do estúdio em que trabalhou por tantos anos e nos ajudando a entender como uma rádio com equipamento precário, poucos funcionários e muito improviso conseguiu, de 1984 a 1997, conquistar ouvintes fiéis que interagiam diretamente com os locutores e que se sentiam representados por aquela bagunça pulsante, criativa, descolada. Uma turma independente que colocava no ar a nova cena musical e cultural do extremo sul do país. Fez história, logo, merece ser contada.

O rádio como meio de comunicação já teve sua extinção prevista "n" vezes, mas seu obituário continua adiado. Veio a tevê, veio o computador, vieram os home theaters, os celulares inteligentes, e que fim levou o rádio? Segue firme e forte no meio rural e urbano, no interior e na capital, tocando música, dando as horas, noticiando, informando, transmitindo futebol, debates, fazendo humor, promovendo encontros - sendo a outra pessoa dentro da casa enquanto lavamos a louça ou tomamos banho.

Sem imagem, o rádio se torna "alguém" por meio de vozes que a gente reconhece pelo timbre. É presença suficiente. Na cozinha, no pátio, na garagem, no banheiro, no quarto, na sala, um homem ou mulher invisível nos faz rir, nos faz refletir, nos comove, nos tira pra dançar. É diferente da televisão, que entretém com figurino, maquiagem e texto ensaiado, entregando uma fantasia. Rádio é emoção genuína, espontânea, de verdade. O exemplo mais célebre é o de Orson Welles com seu programa A Guerra dos Mundos, que 80 anos atrás, na véspera do Halloween de 1938, fez mais de 1 milhão de pessoas acreditarem que os Estados Unidos estavam realmente sendo invadidos por marcianos, instaurando o pânico. Por sintonizarem a transmissão no meio, muitos ouvintes não escutaram a abertura avisando que se tratava de radioteatro - e surtaram. Dê um Google para recordar. O episódio firmou para sempre a potência do veículo.

Como diz a Katia em seu livro: "por mais que avance a tecnologia, humanos continuarão falando e escutando". É o que basta. Enquanto existir rádio, a solidão terá um adversário à altura.

A nostalgia dos boçais - Fabrício Corsaletti

Giovani Flores


dizem que eles têm nostalgia
do mundo de cinquenta anos atrás
mas nostalgia do quê
das fotografias em preto e branco
dos velhos álbuns de família
os homens de terno e bigode 
as mulheres de vestido e busto farto
os meninos de calção as meninas de lacinho
distintos a sorrir postura ereta?
mas esses homens viviam angustiados
e passavam as noites em puteiros
felizes e culpados e infelizes
essas mulheres viviam angustiadas
e passavam os dias sonhando com artistas
de cinema culpadas e infelizes
e esses meninos e meninas apanhavam
porque viviam angustiados
jurando vingança um dia serei feliz
e quando cresciam paravam de falar
com os pais que também não se falavam
mas achavam que os netos eram a alegria verdadeira
e no entanto eles têm nostalgia
de ser esses homens e amar essas mulheres
de ser essas mulheres e amar esses homens
de ser esses meninos e meninas
que nunca foram porque a vida é mais complexa
do que essas fotos do que essa fantasia
de devolver o pai ao centro do universo
de transformar a mãe na única terra

Tresloucada exposição de crenças - Antonio Prata

Adams Carvalho/Folhapress



Em 7 de novembro, o filósofo Ricardo Vélez Rodríguez, futuro ministro da Educação, publicou num blog o texto “Um roteiro para o MEC”, expondo os rumos que pretendia dar à pasta, caso fosse convocado. Ali, afirma que o ministério é hoje uma instituição “destinada a desmontar os valores tradicionais da nossa sociedade, no que tange à preservação da vida, da família, da religião, da cidadania, em soma (sic), do patriotismo”, reclama de “uma doutrinação de índole cientificista” (o que seria este cientificismo? Ensinar sobre seleção natural? Aquecimento global?), fala de “invenções deletérias” como “educação de gênero”, cita o PT, Marx, Gramsci (duas vezes), mas não usa uma única vez as palavras “alfabetização”, “português”, “matemática” ou “escola”. “Professor” ele escreveu duas vezes: para falar do “professor e amigo Olavo de Carvalho” e do “professor e intelectual” Vélez Rodríguez. 

A escolha do colombiano explicita o que já ficou sugerido no veto a Mozart Ramos, membro do Instituto Ayrton Senna (aos olhos da bancada evangélica, praticamente a VAR-Palmares): a função do MEC no governo Bolsonaro não será ensinar a ler, a escrever, a fazer contas, a compreender a origem da vida, das ideias e das instituições, mas lutar pelo desmonte de um inexistente complô esquerdista cujo objetivo é destruir a família, a pátria, Deus. Fico na dúvida se eles realmente acreditam nesse complô ou se é só uma desculpa pra empurrar goela abaixo das crianças a cartilha do pensamento único da extrema direita cristã. 

Afinal, a cartilha não é só reacionária, é delirante. Vélez Rodríguez afirma no texto citado que os governos petistas promoveram “uma tresloucada oposição de raças”. O futuro ministro realmente acha que até a chegada de Lula ao poder os brancos e os negros viviam em pé de igualdade no Brasil? 

Segundo a Pnad 2017, negros ganham em média R$ 1.570, contra R$ 2.824 dos brancos. Negros representam 54% da população, mas são 75% entre os 10% mais pobres (Pnad 2015). Entre o 1% mais rico, há só 17,8% de negros. 9,9% de negros e pardos são analfabetos, mais que o dobro do número de brancos, 4,2%. Para cada branco vítima de homicídio há dois negros. (Os dados acima não saíram do jornal Causa Operária, mas da revista Exame).

Da mesma forma como acredita que a “oposição de raças” nasce com a reação dos negros à injustiça (obra, pelo que entendi, da “ameaçadora hegemonia vermelha”), a extrema direita cristã também parece crer que o desejo é inculcado nos jovens pelas aulas de educação sexual: se não falarmos sobre sexo, todos permanecerão virgens até o casamento —heterossexual, claro. É justamente o contrário: é com informação que se combate gravidez precoce, DSTs, homofobia, machismo. Educação sexual não tem nada a ver com distribuição de mamadeiras com bico de pênis em creches, como pregava uma das inúmeras fake news que ajudaram a eleger Bolsonaro —“através de meios singelos de comunicação como o Smartphone e a Internet”, segundo o ministro, dando aí uma nada singela ressignificação à palavra “singelo”.

A Escola sem Partido defendida pelo futuro ministro e pelo presidente eleito afirma querer impedir a doutrinação nas salas de aula. Basta ler “Um roteiro para o MEC”, contudo, para compreendermos que o principal objetivo do MEC no novo governo será justamente a doutrinação. Política. Religiosa. Cultural. Minha esperança está na solidez de nossas instituições: no sólido descalabro da educação pública, que mal é capaz de alfabetizar os alunos, que dirá doutrinar uma geração.
Antonio Prata

Capotagem - Jorge Mautner e João Paulo Reys

Jorge Mautner, durante o lançamento do livro "Kaos Total", em São Paulo, em 2016 - Bruno Poletti - 17.fev.16/Folhapress





A velocidade da comunicação estabeleceu a simultaneidade que se amalgamou com outras simultaneidades na velocidade da luz e criou o efeito de capotagem. Como um carro que você acelera muito e capota, mas além: se desintegra.

Algo que te faz chorar agora, daqui a pouco já não faz. A exaustão provocada por isso é inédita. Há uma série de robôs que não são produzidos em fábricas, mas nos próprios neurônios. A informação desinforma pela ambivalência de simultaneidades vertiginosas.

As eleições mudaram no mundo todo. "Zuckerberg": montanha de açúcar (em alemão). É tudo domínio. Trump, na CNN, disse ser do "kaos". A quantidade altera a qualidade. 

Capota-se de tal maneira que ressurgem antigas restrições. É como em Kierkegaard (1813-1855): o ser humano está em alta febre, girando a cabeça no travesseiro de um lado para o outro. Ainda há recantos oníricos, mas estão cercados de pessoas filmando e interpretando em linguagem capotada. É uma venda contínua à qual todo o mundo aderiu.

Onde restou a caricatura do socialismo, como na Venezuela, há um desastre absoluto. A extrema direita manobra a capotagem. Valores humanistas são expostos na vitrine, mas no fundo se preparam para o massacre. Há todas as aparentes escolhas, mas elas vêm capotando.

Jesus um dia chegou a um vilarejo onde viviam dois homens possuídos por demônios. Apavorados ao vê-lo, os demônios pediram que o filho de Deus tivesse piedade. Jesus permitiu que tomassem os corpos de porcos que estavam por perto. Endemoniados, os porcos saíram correndo até despencar, capotando, em um precipício. Imaginar e produzir o inesperado que vai impedir a capotagem até o abismo é um desafio para a arte, mas ela está capturada pela publicidade.

A vagarosidade é imprescindível para o pensamento, mas é desincentivada em um mundo de 8 bilhões de pessoas. A constituição única de cada ser parece ter sido destruída. Há uma vontade de se igualar a aquilo que está sendo apresentado pela comunicação.

Seja uma quitanda ou uma enorme corporação, todos perguntam ao computador o que fazer e obedecem à recomendação da máquina. Isso vem desde o telégrafo, mas se transformou nesses anos em que o computador dá as respostas corretas a partir do conglomerado de simultaneidades. Nunca houve tamanha clarividência. As pessoas têm a resposta de tudo por meio da comunicação e acham que sabem, mas não sabem. Não sabem porque não sabem as perguntas que levaram a aquela resposta que agora se apresenta em movimento alucinado.

Os governos com o rádio eram uma coisa e se tornaram outra com a televisão. Hoje, são um negócio no qual Trump é profissional, como um demônio. Em todos os sentidos: é mau caráter, abusa de mulheres.
Como Bolsonaro, promete capotar-nos de volta a um passado de KKK e ditadura, um impossível estado pré-capotagem. Qualquer coisa que eles irradiam é fruto de seu imenso conhecimento como vendedores de almas. Juntos, têm o dom de embaralhar tudo e ameaçam nos levar, capotando, até o abismo.

sábado, 24 de novembro de 2018

O Rio de Clarice - Sérgio Augusto

Oito anos atrás, num ciclo de palestras organizado pelo Instituto Moreira Salles com o título geral de Cidade por Escrito, o português Carlos Mendes de Souza discorreu sobre a apaixonada relação de Clarice Lispector com o Rio de Janeiro. Agora nos chega por escrito, impresso e com lombada, um deleitante tour pela cidade igualmente a partir da biografia e da ficção de Clarice, conduzido pela pesquisadora Teresa Montero, que há quase três décadas se dedica a perpetuar a memória da escritora.
O Rio de Clarice – Passeio Afetivo pela Cidade (Autêntica, 188 págs.) pertence a um híbrido subgênero de não ficção rotulável de turístico-literário ou topobiográfico: guias de viagem consagrados à redescoberta de uma cidade através da vida e da obra de escritores que a vivenciaram e retrataram em prosa ou verso. Clarice nasceu na Ucrânia, morou em Maceió, Recife, Belém, Nápoles, Berna, Torquay (Inglaterra), Washington – casada com o diplomata Maury Gurgel Valente, só no exterior viveu 16 anos – mas fez do Rio a sua Pasárgada, o pano de fundo de quase todas as suas narrativas ficcionais, de suas crônicas e reportagens, mesmo daqueles contos transcorridos no interior de um apartamento ou de sua alma.
Ela residiu cinco anos na Tijuca, circulou intensamente pelo centro, como estudante (de Direito), funcionária da Agência Nacional (de que foi tradutora, redatora e repórter) e colaboradora de revistas e jornais (SenhorJornal do BrasilManchete); viveu no Flamengo e em Botafogo, até fixar-se em definitivo no Leme, que chamava de “minha terra”. Lá morou de 1959 até morrer, em 1977, e escreveu 12 dos 17 livros que publicou ao longo de quatro décadas.
Ainda é possível visitar alguns dos locais por ela habitados, menos os dois primeiros, nas ruas Lúcio de Mendonça e Mariz e Barros, na Tijuca, há muito substituídos por outras edificações. As geminadas casas de dois andares da pitoresca Vila Saavedra, no n.º 76 da Rua Silveira Martins, no Catete, seu endereço entre 1940 e 1943, permanecem de pé porque preservadas pelo Patrimônio Histórico.
Também continuam onde sempre estiveram os edifícios Santa Alice e Val de Palmas, ambos na Rua Marquês de Abrantes, em Botafogo; assim como o 102 da Rua do Russell, na confluência da Glória com o Catete, residência dos sogros e provisório pouso dos Gurgel Valente até a emancipadora mudança para o 403 da Rua São Clemente, em Botafogo.
Seguindo à risca os guias que lhe serviram de modelo, Montero localiza, descreve e resume a história de cada local que Clarice costumava frequentar, desde a chegada ao porto da Praça Mauá, em 1935, e suas eventuais aparições e referências nos textos da escritora. Seu primeiro impacto foi deparar com o Edifício do jornal A Noite (e também da Rádio Nacional), primeiro arranha-céu da América da Latina, em cujo terceiro andar iria trabalhar, sete anos mais tarde. O centro carioca seria, para ela, um lugar de passagem e inspiração permanentes, mesmo depois que se recolheu à zona sul da cidade, basicamente ao Leme e a Copacabana. Macabéa, a heroína de seu último romance, A Hora da Estrela, mora ao lado da Praça Mauá, na Rua do Acre.
Flanar pela Floresta da Tijuca, a Feira de São Cristóvão (onde comprava melado, beiju, e encantava-se com as barracas e cantadores de viola), o Jardim Botânico (ganhou lá, postumamente, um espaço exclusivo e seis bancos com frases de sua autoria), frequentar os cinemas de Copacabana (também considerava o Caruso o mais confortável da cidade), almoçar aos domingos com o artista plástico Augusto Rodrigues no Largo do Boticário – eram esses os programas favoritos ou mais frequentes da escritora na mui leal e heroica cidade em que se naturalizou brasileira e fincou suas raízes mais profundas.
No Leme, refúgio definitivo, passou seis anos no apartamento 301 do Edifício Visconde de Pelotas (no início da Rua General Ribeiro da Costa) e 12 no 701 do Edifício Macedo (na Gustavo Sampaio, 88). Cercada de amigos, como Burle Marx, o designer Aloisio Magalhães, a cronista Elsie Lessa, fazia tudo a pé no bairro e até hoje é possível encontrar vários daqueles que ali a atendiam nas farmácias, padarias, mercearias, bancas de jornais e botecos. Era vizinha de La Fiorentina, histórica cantina italiana que há décadas agrega certa boemia artística e intelectual do Rio, um Gigetto de frente para o mar, que frequentou menos do que talvez gostaria.
Conheci apenas o apartamento da Gustavo Sampaio. Visitei-o duas vezes, em 1970 para um perfil encomendado pela Setenta, extravagante revista da Abril programada para durar só 12 números, e, quatro anos depois, para uma entrevista coletiva ao Pasquim, ao lado de Jaguar, Ziraldo, Ivan Lessa (vizinho dela) e Nélida Piñon. Sentados no chão da sala, ao lado de uma estante de livros, Ivan e eu passamos parte da entrevista fuxicando as leituras da anfitriã, notadamente os trechos daquele livro de entrevistas com escritores famosos à Paris Review destacados por ela.
Tal peraltice não me impediu de repetir uma provocação que fizera no primeiro encontro. “Clarice, você concorda que bicho é melhor que gente?” Sabia que sim, que ela concordava, mas sua resposta foi, então, meio evasiva: “Domingo eu fui ao Jardim Zoológico. É uma coisa maravilhosa”. Encantara-se sobremodo pela girafa, altiva e silenciosa, sem no entanto adjetivá-la.
No primeiro encontro fora explícita: “Os animais são uma forma acessível de gente. As pessoas são inacessíveis porque nos julgam, ao contrário dos bichos, que me parecem criaturas mais próximas de Deus”. Disse isso afagando a cabeça de Ulisses, seu amado vira-latas, “o mulatinho da casa”. Um dia perguntaram a Clarice de que modo ela retrataria a morte. “O meu cachorro me procurando por todo o apartamento”, respondeu. Lindo, não?

De onde vem a nossa dor - Martha Medeiros

A dor nas costas vem das costas, a dor de estômago vem do estômago, a dor de cabeça vem da cabeça. E sua dor existencial, vem de onde?
Ela vem da história que você meio que viveu, meio que criou – é sabido que contamos para nós mesmos uma narrativa que nem sempre bate com os fatos. Nossa memória da infância está repleta de fantasias e leituras distorcidas da realidade. Mesmo assim, é a história que decidimos oficializar e passar adiante, e dela resultam muitas de nossas fraturas emocionais.
Nossa dor existencial vem também do quanto levamos a sério o que dizem os outros, o que fazem os outros e o que pensam os outros – uma insanidade, pois quem é que realmente sabe o que pensam os outros? Pensamos no lugar deles e sofremos por esse pensamento imaginado. Nossa dor existencial vem dessa transferência descabida.
Nossa dor existencial, além disso, vem de modelos projetados como ideais, a saber: é melhor ser vegetariano do que comer carne, fazer faculdade de medicina do que hotelaria, namorar do que ficar sozinho, ter filhos do que não ter, e isso tudo vai gerando uma briga interna entre quem você é e entre quem gostariam que você fosse, a ponto de confundi-lo: existe mesmo uma lógica nas escolhas?
Como se não bastasse, nossa dor existencial vem do que não é escolha, mas destino: quem é muito baixinho, ou tem cabelo muito crespo, ou é pobre de amargar, ou tem dificuldade de perder peso vai transformar isso em uma pergunta irrespondível – por que eu? – e a falta de resposta será uma cruz a ser carregada.
Nossa dor existencial vem da quantidade de nãos que recebemos, esquecidos que somos de que o “não” é apenas isso, uma proposta negada, um beijo recusado, um adiamento dos nossos sonhos, uma conscientização das coisas como elas são, sem a obrigatoriedade de virarem traumas ou convites à desistência.
Nossa dor existencial vem do bebê bem tratado que fomos, nada nos faltava, éramos amamentados, tínhamos as fraldas trocadas, ninavam nosso sono, até que um dia crescemos e o mundo nos comunicou: agora se vire, meu bem. Injustiça fazer isso com uma criança – alguém aí por acaso deixou totalmente de ser criança?
Nossa dor existencial vem da incompreensão dos absurdos, da nossa revolta pelos menos favorecidos, da inveja pelos mais favorecidos, da raiva por não atenderem nossos chamados, por cada amanhecer cheio de promessas, pela precariedade das nossas melhores intenções e pela invisibilidade que nos outorgamos: por que nunca ninguém nos enxerga como realmente somos?
Dor de dente vem do dente, dor no joelho vem do joelho, dor nas juntas vem das juntas. Nossa dor existencial vem da existência, que nenhum plano de saúde cobre, de tão difícil que é encontrar seu foco e sua cura.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Troquei o Trump pela comida caipira - Ignácio de Loyola Brandão

Estava matutando cá comigo, como dizem os caboclos: um sujeito que é o maior executivo do mundo e ganha 15 milhões de dólares por mês (cerca de 60 milhões de reais, uma mega-sena superacumulada) precisa sonegar impostos e fraudar a empresa em que trabalha? Será doença? Se é, é pior do que a aids. E a tristeza? Esse homem tinha de ser brasileiro?
Já que falei em caboclo. Desde que cheguei de Araraquara, e por muitos anos, riam de mim sempre que eu falava em virado de banana, leite com farinha de milho (o que meu pai tomava depois do jantar), comer mingau de alho e fubá. Quando dizia que adorava cambuquira, fubá torrado, quibebe de abóbora ou galinha com quiabo, gargalhavam. “O quê? Só mesmo um caipirão que arrasta o R. Isso é comida de capiau, deixa disso.”
Aos poucos fui me calando, esquecendo coisas deliciosas que minha avó Branca fazia, ou minha mãe, ou dona Ursulina, uma parente, cuja rabada com polenta ou berinjela recheada com a própria berinjela ficaram inesquecíveis, assim como a cena de Marilyn Monroe com o vestido esvoaçando sobre o respiradouro do metrô. Havia ainda o bife Arcesp, famoso em todo interior, servido no carro-restaurante das ferrovias Araraquarense e Paulista. Demais! Era caro, porém meu pai comemorava a viagem, as férias e termos, meu irmão e eu, passado de ano na escola.
Por anos, a palavra Arcesp flutuou no meu imaginário. Seria um tempero especial? Quais os condimentos? Um dia, adulto, a realidade decifrou o enigma. Descendo pela Rua Capitão Salomão do Largo do Paissandu para o Anhangabaú, onde se localizava a Última Hora, meu primeiro emprego, dei com um letreiro imenso na entrada de um prédio: Arcesp. Era isso. Não passava da Associação dos Representantes Comerciais do Estado de São Paulo. O bife do trem era homenagem a eles, grandes clientes, os caixeiros-viajantes. A realidade foi fria, sem poesia. Mas o Arcesp era gostoso. Meu irmão Luiz Gonzaga, antes de morrer, conseguiu reproduzi-lo, nos tornamos crianças por alguns momentos.
Aquelas comidas caseiras foram se perdendo no tempo e na memória. Comida chique, de cidade grande, era estrogonofe, picadinho do Baiuca, camarão à grega do Gigetto, peru à Califórnia, filé à cubana, coquetel de camarão e assim por diante. Vez ou outra, principalmente em finais de tarde, viajando pelo interior, vinha aquele cheirinho de torresmo, de frango à passarinho ou arroz de forno. Há quantos anos não como um arroz de forno?
Eis que, como dizia a propósito de tudo e todos minha professora de desenho, Candida Seabra, eis que dia desses numa rotisserie do bairro, a Mesa III, dei com um livrinho de capa amarela, A Culinária Caipira da Paulistânia. Os autores são dois especialistas. Carlos Alberto Dória, com quem já fiz uma conversa no palco, junto a Roberta Sudbrack, socióloga especializada em gastronomia e culinária, e que mantém há anos o blog e-Boca Livre. O outro é o londrinense Marcelo Correa Bastos, que domina a cozinha brasileira e comanda os restaurantes Vista, no alto do MAC, no Ibirapuera, e o Jiquitaia.
E o que se deu? Lendo o livro, fui recuperando gostosuras perdidas no tempo. Parei de ler o fascinante livro Medo, do Bob Woodward sobre Trump, e mergulhei nos aromas e temperos de Araraquara, dos sítios e fazendas de parentes em Vera Cruz, Osvaldo Cruz, Adamantina, Oriente e Duartina, onde passei infância e adolescência.
Voltaram estradas vicinais de terra, empoeiradas, o cheiro do milho verde ralado para fazer pamonha e curau, o perfume da erva-cidreira (hoje sofisticação, não passava de vegetação para segurar aterros ferroviários), a acidez do limão-cravo, o “fedido” da mexeriquinha, os doces de mamão verde, o licor de figo (em Araraquara, a jovem Valéria Pirola, uma restauradora de quadros, produz um delicioso).
Tudo voltou, memória afetiva provocada pelo cheiro do café torrado e moído, a paçoca de amendoim, o pão de minuto, o sequilho de araruta (araruta era para fazer mingau), o pãozinho de coco, a sopa de feijão. Veio a saudade do Assentamento Bela Vista, lá na minha terra, e das verduras frescas e sem química que eles levam para a feira dominical, alface, couve, almeirão, escarola, acelga, cambuquira, cenoura, abobrinha, mandioca, tomates, com os sabores naturais com os quais crescemos e nos fortalecemos. O Assentamento publicou uma belíssimo livro que o Dória e o Marcelo vão gostar muito, se é que não se esgotou: Pratos & Prosas.
O delicioso livro de Dória e Bastos termina com um breve estudo mostrando que... imaginem... o caipira não existe mais. Para entender, melhor ler. Só sei que continuo caipira, mas nas roças tenho encontrado caipira com celular, caipira de moto, caipira com tênis de grife, caipira com cartão de crédito, caipira comendo hambúrguer ou taco. Agora, reparei que ao falar de mangas, os autores citam a augusta, a bourbon, a carlota, a espada, a Itamaracá, a Itaparica e a rosa. Cresci chupando a rosa, tinha um pé no meu quintal. Senti falta aqui da coquinho, da manteiga, da coração de boi, da ourinho e da roxa.
Gostaria agora de ir catar guabiroba no campo. Quem sabe do que se trata, concordará, não havia coisa melhor. Havia até uma expressão para definir certa situação: “Bom mesmo é catar gabiroba”. Dizíamos gabiroba, ainda que o certo seja guabiroba.
Parei de ler o livro ‘Medo’ e mergulhei nos aromas e temperos dos sítios e fazendas.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Ilusões eleitorais - Roberto DaMatta

Não li e não gostei. Mas, em compensação, não tenho coragem de resistir ao pedido de um amigo. Eis a cara e a coroa do paradoxo nacional cujo ideal é controlar a lei e ser querido por todo mundo. Estaria nisso o centro do populismo e da nossa alergia a tomar decisões? Em 1800, a corte portuguesa cozinhou em banho-maria Napoleão e, fugindo para o Brasil, mudou o centro de gravidade do seu vasto império colonial. A matriz virou colônia num processo irônico e carnavalesco de mudança, justamente para evitá-la. Eis, quem sabe, a origem do nosso “mudancismo”: mudar para permanecer congelado. 
Impedir, proibir e rejeitar fazem parte da nossa base ideológica tanto quanto o proteger que nega a realidade. Depende do lado em que as pessoas se situam, mas é preciso repetir que o foco no lado direito ou esquerdo esconde as distâncias entre os pés (descalços) e a cabeça (vazia).
O novo agride um sistema de medalhões. Tudo – fascismo, comunismo e, quem sabe, até uma insegura igualdade democrática – é possível desde que os protocolos do “bom-tom” sejam observados. O conservadorismo inconsciente leva ao paroxismo das adversidades da competição eleitoral que atingiu em cheio a vida diária e veio para ficar.
*
Eles se encontram num comício no qual todos queriam mudar o mundo. O orador – Jonas Fortuna – era um filósofo paulista certo de que seu partido tinha a faca capaz de cortar com justiça o reino de Jambom, como dizia um injustiçado Lima Barreto.
Elena, uma baiana igualmente radical, infiltrada pelo grupo político oposto, ouvia controlando a sensação de transitar entre uma Mata Hari e um Romeu em casa de Capuleto. Sua missão era saber mais sobre as táticas do inimigo. Pensou em fugir, como fazia habitualmente, mas apaixonou-se pelo orador com a mesma intensidade com a qual rejeitava suas ideias. 
Não compreendia como o rosto, os gestos e o sotaque paulistano do adversário, até então desumano, enredavam seu coração. Ficou perplexa com a presença avassaladora do amor – para ela um mero ardil burguês – por uma pessoa que mal conhecia e, mais que isso, ideologicamente detestável. Mas o fato concreto foi que, como uma pedra, o amor desabou leve sobre ela.
Rosinha Radical, a amiga que a levou ao encontro, traindo seu radicalismo por amizade, chamou atenção para o absurdo de uma pessoa se apaixonar por um inimigo político. 
Mas como em outros casos idênticos, ela ouviu a mesma resposta dos apaixonados: a política e a economia precisam de motivos; mas o amor só precisa dele mesmo. Amor com motivo não é amor, é politicalha ou sacanagem... 
– O meu amor por esse canalhinha inimigo – argumentou Elena – acontece justamente pela contrariedade e descontinuidade. 
– Acho que você está lendo muito o Lévi-Strauss, falou Rosinha.
– Me apresenta, vai...
Ao terminar o encontro e em meio à gritaria das palavras de ordem, os radicais viram-se frente à frente. 
– Muito prazer. Gostou do meu discurso?
– Odiei. Mas amei o seu jeito de falar.
– De que lado você está?
– Do seu lado. Somos iguais. Sou tão radical quanto você.
Ele a olhou nos olhos com a firmeza dos heróis revolucionários e sentiu-se misteriosamente envolvido por seu coração. Por um instante, quis prosseguir, mas desistiu. 
– Vamos pra minha casa. Estou tonto.
– Eu também. Há um choque entre minha cabeça e o meu coração.
– Romeu e Julieta no Brasil? 
*
Beberam duas garras de cerveja e na vivência descarada da contradição entre o amor e a ideologia, entregaram-se. 
– Li que tudo tem o seu contrário. Eu acho isso um barato. Sem contradição não há tesão. Se minha cabeça permitisse, eu votava com vocês.
– Isso é inexplicável, porque eu penso do mesmo modo. Você é a reacionária-revolucionária mais linda que eu vi na vida. Envolva-me, por Deus, no seu conservadorismo.
– Eu também quero ser abraçada pelo seu viés revolucionário mentiroso e detestável! 
*
Falavam numa estranha sincronia quando ele beijou a inimiga na boca, devolvendo-lhe com muito amor o amor que recebia; o qual, quanto mais era egoísta e radical, mais induzia prazer aos amantes.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Pecados de cama & mesa - Humberto Werneck

Ela não esperava mesmo que lhe aparecesse uma Marilena Chaui, ilustrada além de bonita, quando foi atrás de cozinheira. Naquele tempo de apagões frequentes, brincava, já se daria por bem servida se engajasse alguém de poucas luzes, desde que atendidos uns tantos requisitos, a começar por este, eliminatório: 
“Cozinheira, pra mim, tem que ser bem sapeca”. 
Mas o que tem a ver a cama com o fogão, minha senhora, além do fato óbvio de que uma e outro fazem subir a temperatura?
“É que mulher que não está em dia com o sexo não tem gosto para temperar.”
Sob esse aspecto, não há dúvida de que a patroa acertou na escolha, como pôde constatar já no primeiro papo ao pé do fogão, quando a moça, língua solta, se pôs a reclamar do novo namorado, a seu ver “respeitador demais”: 
“Ele não faz volume, sabe?”. 
Nesse quesito, prosseguiu, o camarada não se comparava ao antecessor: 
“Ah, aquele me via e ficava logo todo enfeitado...”, suspirou ela, abrindo as mãos em leque como cauda de pavão, nostálgica sabe Deus de que voragens carnais. 
Não que fosse propriamente uma devassa – e muito menos havia segundas intenções quando anunciava, em seu português capenga, eventualmente criativo: 
“Vou no espermercado”. 
Tinha lá, é verdade, seus momentos de messalina, mas tratava de contrabalançá-los com os antídotos de uma pragmática fé religiosa. Com a mesma proficiência com que limpava o fogão depois da janta, cuidava de passar logo um detergente espiritual e apagar sem-vergonhices. 
Aos domingos, com os hormônios em ebulição, botava a melhor roupa, afogava-se em perfume e se jogava no mundo, à procura, ninguém duvidaria, de um bom “volume” – mas não fechava o dia sem missa e comunhão, certa de estar zerando seu deve/haver junto às Altas Instâncias. Como quem leva o carro a um lava-rápido, submetia a alma a periódicas faxinas, sob a forma de confissões caprichadas. Chegava a anotar os pecados num papelzinho que, ajoelhada no confessionário, consultava com um rabo de olho, colando feito estudante em dia de prova, para não sonegar ao Senhor nenhum de seus escorregões morais. 
Apesar do esmero, sentiu um dia que suas preces deixaram de ser atendidas. O que estaria acontecendo? – e se martirizou até matar a charada: 
“É que na igreja tem gente demais rezando” – explicou à patroa –, “Deus confunde”.
Desde então, trata de ir quando não haja movimento, e pede audiência privada com o Criador, cuidando sempre de se apresentar, para evitar equívocos:
“Olha aqui, Deus, aqui é a Maria José, filha do Luís e da Zoraide, neta do Expedito...”.
Não é que voltou a ser atendida?
***
Não menos heterodoxa, embora em departamento diverso, é a Elvira, sem cujas mandingas nenhuma feijoada pode doravante ser considerada completa. 
E olha que naquele dia nenhum ingrediente parecia faltar. A feijoada teria até os pais do noivo, que a família da noiva iria finalmente conhecer. Gente de certa cerimônia, desconfiava a futura sogra – e toca a mexer a panela, onde o feijão já borbulhava. 
O problema era este: borbulhava, mas nada de amaciar. Logo com ela, conhecida por sua feijoada, e logo naquele dia, com o risco de fazer feio para os pais do moço. “Como é que foi me acontecer uma coisa dessas?” – e madame, uma vez mais, cravava o dente num grão que insistia em não amolecer.
A seu lado, Elvira saboreava a aflição da patroa, que nas ocasiões especiais lhe dava um chega pra lá e assumia o fogão. Quem mandou? 
Ao contrário do feijão, seu coração aos poucos se abrandou. 
“O jeito é a senhora botar prego” – ousou a Elvira. 
“Botar prego?! – reagiu madame, horrorizada, como se não conhecesse a fulana. Ah, conhecia! Toda cheia de certeiros truques e sabedorias que, como quem não quer nada, ia desovando no dia a dia. Incapaz, a criatura, de fazer pipoca sem batucar na tampa com a colher, desenhando imaginárias cruzes, para não dar piruá. E não dava! 
Na hora de bater a maionese, tinha aquele ritual de ligar e desligar rapidamente o liquidificador, cinco vezes, para a pasta não desandar – e não desandava mesmo! Já quando era a patroa a pilotar o liquidificador...
Católica e instruída, madame se irritava com a macumbeira cheia de reza braba e simpatias. Fosse apenas a multidão de santos populares no quartinho – mas na sua cozinha! E o pior é que, no fim, sempre dava certo. Foi por isso que, em desespero de causa, um olho no relógio, outro no caldeirão, lá pelas tantas entregou os pontos e concordou com a maluquice dos pregos.
E agora quem comandava, triunfante, era a Elvira. Catou três pregos meio enferrujados, que mal e mal lavou antes de amarrar em feixe com um barbante – e mergulhou aquilo no feijão. “Seja o que Deus quiser...”, suspirou a patroa, como se tivesse consentido na profanação dos cravos com que os incréus pregaram na cruz o Filho do Senhor.
Mistério para Ele ou a ciência explicar: dali a pouco estava pronta a feijoada, acondicionada agora na melhor sopeira, louça da Companhia das Índias, triunfante no centro da mesa. O pai do noivo, médico famoso, não resistiu e avançou o narigão vapor adentro, inebriado.
E não é que, na hora de servir, o feixe de pregos, com inconfundível retinir metálico, foi desabar justamente no prato do doutor? 
“Ela vai ver comigo”, rosnou para dentro a dona da casa, coberta de vergonha sócio-culinária. Só relaxou quando o futuro consogro, achando graça no acidente, não só louvou o feijão com ferro a mais como deu cabo de três pratões, numa voracidade cujo acompanhamento poderia ter sido uma ambulância. 
Quanto ao feixe de pregos, promovido a patuá, parece ter servido de inspiração aos noivos, que anos depois seguem atados um ao outro, felizes da vida. 

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...