Em mais um episódio de “pequenos-grandes desafios da vida cotidiana”, ao chegar em casa, ela disse, com muita sensatez, ao seu marido, que deveriam fazer um peixinho para comer com aqueles legumes grelhados que já estavam prontos na geladeira.
Ele concordou, surpreso com esse seu breve instante de maturidade e, com seus gestos ágeis, já retirou uma dourada do freezer, aqueceu a água, separou as cebolas, o alho, a frigideira antiaderente e todo o arsenal necessário àquela empreitada gastronômica, que para ela parecia uma viagem intergaláctica e para ele era apenas o cotidiano.
Quando ele começava a cozinhar, era quase uma dança. Bonito mesmo de se ver. Os temperos certos se jogavam do armário para as mãos dele, as facas nunca o desobedeciam, os cortes nunca saiam tortos. O azeite aquecia, a cebola começava a perfumar a casa, enquanto ele abria a garrafa de vinho com destreza, sem que nada nem ameaçasse queimar ou passar do ponto.
Olhando para aquela cena tão bela, ela criou coragem e resolveu que deveria atuar também. Ensaiou mentalmente e disse: DEIXA A SOPA COMIGO. Deve-se frisar que a sopa já estava pronta na geladeira, feita pelas doces mãos da empregada que abençoava aquela casa às quartas e sextas. Mas, em resumo, ela estava realmente disposta a peitar o desafio de pegar o tupperware, tirar a tampa azul, servir os pratos e esquentar a sopa no micro-ondas. Uma moça corajosa, deve-se dizer.
Dirigiu-se, então, convicta e decidida, até a geladeira e pegou o recipiente alto e redondo com as suas duas mãos. E em menos de 3 segundos: CA-TA-PLOFT. Quase como em uma crônica de uma morte anunciada, aqueles dois litros de sopa escaparam das mãos da moça e espalharam-se pelo chão da cozinha para o seu mais profundo desespero.
Mas o marido olhou para ela e sorriu devagar. Disse “tudo bem, não há problema”, como quem fala com um filhote de labrador que estourou a bola nova com uma mordida e lançou aos responsáveis aquele olhar meio triste, meio assustado, sem saber muito bem como deveria proceder na sequência.
Ela, tentando manter sua dignidade de mulher adulta que não tem nenhuma vocação para ser mulher adulta, disse “deixe que eu limpo isso pelo menos, não se preocupe, cuide do peixe que eu ajeito aqui”. Agachada e triste, recolhia as folhas geladas de espinafre com as mãos e passava o pano de chão na sopa amarela, enquanto o jovem homem seguia com seu espetáculo na frigideira.
Levantou-se e percebeu que a barra do seu elegante casaco cinza claro também tinha decidido ajudar a limpar o chão da cozinha. Era uma belíssima faixa amarela na barra do casaco. Suspirou, se perguntando quando finalmente chegaria aquela fase da vida em que ela não se consideraria uma vitoriosa no fim do dia pelo simples fato de não ter feito muitas besteiras.
Todavia, sentia pelo menos que uma função na vida ela tinha: a de ajudar diariamente quebrar o dogma machista do “pronta para casar”. Vinha verificando que nasceu pronta apenas e tão somente para fazer tudo errado no que tange às tarefas domésticas. Não as menosprezava, de forma alguma, mas simplesmente não se dava minimamente bem com elas, por mais que se esforçasse. Sua área de domínio era a do entretenimento, das pesquisas acadêmicas e das piadas de papagaio. E olha que até vinha dando certo.
Ele a aceitava assim, mesmo com suas mãos de alface e seus olhos de cão arrependido. Talvez seja porque, no fim das contas, ela compensasse alguma coisa com sua alegria de labrador e seus discursos dadaístas. Que Deus conserve essa nova geração de homens e mulheres, que podem se dedicar aos seus verdadeiros talentos sem medo daqueles rótulos antigos.
Em tempo: a dourada estava um verdadeiro espetáculo. Não houve sopa nenhuma para atrapalhar sua performance arrebatadora.