Humberto Werneck vai entender. Havia em Araraquara nos anos 1940 para 1950 um ferroviário, diretor de nomeada em uma das estradas. Assim dizíamos: a estrada. Você trabalha onde? Na estrada. Sabia-se que era a ferrovia, tanto podia ser a Paulista quanto a Araraquarense. Eram perfeitas como administração, e funcionamento. Trabalhar na CP, na EFA, na Lupo, no Lia, na Nestlé, no Barbieri, na Caixa, na Anderson Clayton conferia status, as pessoas eram consideradas. Respeitáveis, graúdas, olhadas com admiração e inveja. Emprego para sempre.
Anos mais tarde, a cientista social Liliana Petrili Segnini publicou exaustivo trabalho sobre o regime tirânico que imperava nas ferrovias. Quase escravidão. Coisa de déspotas nada esclarecidos. O que provocou um nó em minha cabeça, porque meu pai e meus tios adoravam aquele trabalho, dedicavam-se. A ferrovia era paixão, orgulho. A ponto de meu pai jamais ter faltado um só dia em 35 anos. Como entender a engrenagem?
Um daqueles diretores de ferrovia era temido pelo rigor, dureza. Os subordinados tremiam diante dele que não perdoava os mínimos deslizes. Suspendeu um chefe de seção porque o viu atirando um clipe no lixo. Motivo, desperdício. Um subchefe de estação, certo dia, pediu autorização para deixar o posto e ir ao enterro da mãe em outra cidade. O pedido foi negado, o subchefe não obedeceu. Enterrada a mãe, ele retornou e foi demitido. Processou a estrada e ganhou. Tarde demais, tinha acabado de morrer.
Certa vez, a mulher desse chefe ao se olhar no espelho percebeu que cabelos brancos surgiam sorrateiramente. Falou com as amigas (minha mãe, uma delas) e todas a aconselharam a tingir. Ao falar com o marido, na hora do almoço, ouviu: “Jamais! Sabe quem tinge cabelo? Aquelas mulheres da Rua Oito. Não você. Nunca”. A Rua Oito era conhecida, em certo trecho depois da Avenida Espanha havia a zona ou o bordel. Aquilo foi como um açoite. Dali em diante, cada manhã, aquela mulher olhava o espelho e contava os novos cabelos brancos, sofria.
Uma vez, com amiga fiel, ela passou no Rosário, então o cabeleireiro oficial, o melhor da cidade. Na minha juventude adorávamos o Rosário, era ele quem nos vendia a Rodouro, lança-perfume metálica. Ninguém saía no carnaval sem ela e um lenço. Todos usavam lenços para diversos fins. Assoar o nariz, limpar o batom ou para momentos furtivos e solitários da prática sexual. Aspirar uma boa dose de lança nos bailes de carnaval era ousadia e prazer. Explicada a situação, o Rosário fez uma temeridade, tingiu aqueles poucos cabelos, mas pediu: “Nunca diga ao seu marido que fui eu. Ele acaba comigo”.
Ela não contou. Mas naquela noite, ao jantar, o marido estranhou:
“E aqueles cabelos que você dizia brancos onde estão?”.
“Arranquei um por um com pinça.”
Ele se levantou, saiu, veio com uma toalha molhada e passou na cabeça da mulher aterrorizada. A tinta desapareceu.
“Agora, está perdoada. Mas amanhã, terça-feira, irei sozinho ao cinema, na sessão das moças, você fica em casa. Nunca mais, nunca mais ouviu, me faça isso!”
Passaram anos, a mulher via a cabeça embranquecer e se agoniava. Via as amigas tingindo, algumas se tornavam loiras, outras ruivas. Ela ficava pasmada com a coragem ou com a atitude dos maridos que permitiam. Prometia: “Um dia, vou tingir, ele que espere e me mate, me bata, me prenda”.
Só que um dia o marido morreu. Teve uma parada cardíaca durante a noite. Quando ela acordou e o viu ainda de olhos fechados, hora de sair para o trabalho, chamou. Chamou, chamou. Nada. Esperou uma hora, percebeu que ele tinha ido. Trocou-se, foi a uma farmácia, comprou um vidro de tintura.
Durante um tempo, desajeitada, no banheiro, tingiu a vasta cabeleira branca. Ao terminar, olhou-se no espelhou e riu. Ligou o rádio, havia um programa matinal de músicas. Quando Carlos Galhardo cantou “Eu sonhei que tu estavas tão linda/ Numa festa de raro esplendor/ Teu vestido de baile lembro ainda/ Era branco, todo branco, meu amor/ Violinos enchiam o ar de emoções/ De mil desejos uma centena de corações/ Olhavas só para mim...”.
E ela cantou junto, cantou e dançou. Foi ao quarto, abriu as janelas e olhando para o marido, exclamava: “Veja meu amor, veja como estou linda, venha dançar, olhe meus cabelos negros, nunca mais terei cabelos brancos. Nunca mais você me verá”.
Horas mais tarde, sem uma lágrima, entre as amigas ela caminhou para o cemitério. Todas tinham corrido ao cabeleireiro e pintado os cabelos em solidariedade. De braços dados cantavam baixinho, escandalizando. Não deixou que abrissem o caixão para se despedir. “Amei este homem, ele não me amou.” Antes de se virar, ela atirou duas flores. Não rosas ou lírios, mas uma flor do campo humilde, desprezada chamada Peido de Velha e um Cravo de Defunto, que era feio e fedido.