sexta-feira, 30 de março de 2018

A mulher que não podia tingir os cabelos - Ignácio de Loyola Brandão

Humberto Werneck vai entender. Havia em Araraquara nos anos 1940 para 1950 um ferroviário, diretor de nomeada em uma das estradas. Assim dizíamos: a estrada. Você trabalha onde? Na estrada. Sabia-se que era a ferrovia, tanto podia ser a Paulista quanto a Araraquarense. Eram perfeitas como administração, e funcionamento. Trabalhar na CP, na EFA, na Lupo, no Lia, na Nestlé, no Barbieri, na Caixa, na Anderson Clayton conferia status, as pessoas eram consideradas. Respeitáveis, graúdas, olhadas com admiração e inveja. Emprego para sempre. 
Anos mais tarde, a cientista social Liliana Petrili Segnini publicou exaustivo trabalho sobre o regime tirânico que imperava nas ferrovias. Quase escravidão. Coisa de déspotas nada esclarecidos. O que provocou um nó em minha cabeça, porque meu pai e meus tios adoravam aquele trabalho, dedicavam-se. A ferrovia era paixão, orgulho. A ponto de meu pai jamais ter faltado um só dia em 35 anos. Como entender a engrenagem?
Um daqueles diretores de ferrovia era temido pelo rigor, dureza. Os subordinados tremiam diante dele que não perdoava os mínimos deslizes. Suspendeu um chefe de seção porque o viu atirando um clipe no lixo. Motivo, desperdício. Um subchefe de estação, certo dia, pediu autorização para deixar o posto e ir ao enterro da mãe em outra cidade. O pedido foi negado, o subchefe não obedeceu. Enterrada a mãe, ele retornou e foi demitido. Processou a estrada e ganhou. Tarde demais, tinha acabado de morrer.
Certa vez, a mulher desse chefe ao se olhar no espelho percebeu que cabelos brancos surgiam sorrateiramente. Falou com as amigas (minha mãe, uma delas) e todas a aconselharam a tingir. Ao falar com o marido, na hora do almoço, ouviu: “Jamais! Sabe quem tinge cabelo? Aquelas mulheres da Rua Oito. Não você. Nunca”. A Rua Oito era conhecida, em certo trecho depois da Avenida Espanha havia a zona ou o bordel. Aquilo foi como um açoite. Dali em diante, cada manhã, aquela mulher olhava o espelho e contava os novos cabelos brancos, sofria.
Uma vez, com amiga fiel, ela passou no Rosário, então o cabeleireiro oficial, o melhor da cidade. Na minha juventude adorávamos o Rosário, era ele quem nos vendia a Rodouro, lança-perfume metálica. Ninguém saía no carnaval sem ela e um lenço. Todos usavam lenços para diversos fins. Assoar o nariz, limpar o batom ou para momentos furtivos e solitários da prática sexual. Aspirar uma boa dose de lança nos bailes de carnaval era ousadia e prazer. Explicada a situação, o Rosário fez uma temeridade, tingiu aqueles poucos cabelos, mas pediu: “Nunca diga ao seu marido que fui eu. Ele acaba comigo”.
Ela não contou. Mas naquela noite, ao jantar, o marido estranhou:
“E aqueles cabelos que você dizia brancos onde estão?”.
“Arranquei um por um com pinça.”
Ele se levantou, saiu, veio com uma toalha molhada e passou na cabeça da mulher aterrorizada. A tinta desapareceu.
“Agora, está perdoada. Mas amanhã, terça-feira, irei sozinho ao cinema, na sessão das moças, você fica em casa. Nunca mais, nunca mais ouviu, me faça isso!”
Passaram anos, a mulher via a cabeça embranquecer e se agoniava. Via as amigas tingindo, algumas se tornavam loiras, outras ruivas. Ela ficava pasmada com a coragem ou com a atitude dos maridos que permitiam. Prometia: “Um dia, vou tingir, ele que espere e me mate, me bata, me prenda”. 
Só que um dia o marido morreu. Teve uma parada cardíaca durante a noite. Quando ela acordou e o viu ainda de olhos fechados, hora de sair para o trabalho, chamou. Chamou, chamou. Nada. Esperou uma hora, percebeu que ele tinha ido. Trocou-se, foi a uma farmácia, comprou um vidro de tintura.
Durante um tempo, desajeitada, no banheiro, tingiu a vasta cabeleira branca. Ao terminar, olhou-se no espelhou e riu. Ligou o rádio, havia um programa matinal de músicas. Quando Carlos Galhardo cantou “Eu sonhei que tu estavas tão linda/ Numa festa de raro esplendor/ Teu vestido de baile lembro ainda/ Era branco, todo branco, meu amor/ Violinos enchiam o ar de emoções/ De mil desejos uma centena de corações/ Olhavas só para mim...”.
E ela cantou junto, cantou e dançou. Foi ao quarto, abriu as janelas e olhando para o marido, exclamava: “Veja meu amor, veja como estou linda, venha dançar, olhe meus cabelos negros, nunca mais terei cabelos brancos. Nunca mais você me verá”.
Horas mais tarde, sem uma lágrima, entre as amigas ela caminhou para o cemitério. Todas tinham corrido ao cabeleireiro e pintado os cabelos em solidariedade. De braços dados cantavam baixinho, escandalizando. Não deixou que abrissem o caixão para se despedir. “Amei este homem, ele não me amou.” Antes de se virar, ela atirou duas flores. Não rosas ou lírios, mas uma flor do campo humilde, desprezada chamada Peido de Velha e um Cravo de Defunto, que era feio e fedido.

quarta-feira, 28 de março de 2018

O desodorante venceu - Antonio Prata

Lá pelos 11 anos, quando as glândulas sudoríparas resolveram anunciar ao mundo minha entrada na puberdade, tive, como todo garoto, que escolher um desodorante. Entre as figuras masculinas mais próximas havia duas opções.
Meu pai usava Avanço, uma marca barata que existe até hoje, na mesma bisnaga acobreada e com o mesmo logo simplão, enquanto meu avô e meus tios maternos usavam uma marca mais metida a besta, com um brasão todo rebuscado no frasco e um nome longo e pomposo: English Lavender de Atkinsons. Mesmo naquela idade, eu conseguia perceber que eram duas propostas antagônicas de masculinidade: de um lado, uma coisa mais Jesse Valadão, mais beque de fazenda; do outro, um troço mais camisa polo, mais "retrogosto de frutas vermelhas".
Confesso, não exatamente orgulhoso, que a minha pré-adolescência de escola particular, shopping e "Take My Breath Away" em salão de festas do prédio me qualificava mais pra camisa polo do que pra Jesse Valadão.
Fosse na faculdade, já meio intelectual, meio de esquerda, bebendo cerveja em mesas bambas e cantarolando versos do cancioneiro popular, certeza que teria adotado o Avanço. Aos 11, contudo, metido numa calça semibaggy da M.Officer e com um Reebok Pump nos pés, acabei fechando com o English Lavender.
Não por muito tempo, porém, pois lá pelo meio da adolescência, sem consultar a mim, a meu avô e a meus tios maternos, pararam de fabricar nosso desodorante. Senti que era uma traição à família, mas não tinha jeito: mudei pra marca usada pela maioria dos meus colegas de escola: After Sport de Atkinsons. (Quem -ou o que- era -ou eram- o -ou os- Atkinsons, não sei até hoje, mas sem dúvida fazia -ou faziam- bastante sucesso entre os anos 80 e 90 do século passado.)
Por meia década, fui fiel ao tal After Sport, até que, pela segunda vez na minha curta vida, as mãos invisíveis do mercado (ou suas axilas?) resolveram acabar com meu desodorante. Nessa altura, terminada a faculdade, adotar o Avanço me parecia, com o perdão da piada fácil, um retrocesso. Já via com certa ironia aquelas mesas bambas e aqueles sambas do morro saindo desta boca branquela -se não me identificava com brasões ingleses, tampouco acalentava esperanças de passar num teste pra figurante numa montagem de "Orfeu Negro", de modo que optei por um Nivea azulzinho, discreto, sem metafísica ou grandes extrapolações socioculturais.
E veja só você, cheiroso leitor, que mais uma vez o capitalismo global parece ter resolvido imiscuir-se em meus sovacos. O azulzinho sem metafísica, de uns tempos pra cá, vem sumindo das prateleiras.
É claro que o problema deve ser meu, não do capitalismo global. Imagino que os CEOs da Procter & Gamble e da Unilever e da Nivea e da Johnson's (e mesmo o sumido senhor Atkinsons -caso fosse um senhor e não, sei lá, uma cidade ou uma erva bretã) tenham as narinas mais conectadas às tendências odoríficas mundiais do que este equivocado escriba, que só aposta em fragrâncias obsoletas, prestes a serem levadas pela brisa da história.
É, deve ser isso: sou um antiquado. Talvez seja o caso de desencanar dos desodorantes e mudar, de uma vez por todas, pra naftalina. Será que ainda vendem naftalina?

Momento Único - Luis Fernando Verissimo

Gustave Flaubert escreveu, numa carta para um amigo: “Quando os deuses tinham deixado de existir e o Cristo ainda não viera, houve um momento único na História, entre Cícero e Marco Aurélio, em que o homem ficou sozinho”.
As divindades pagãs nunca deixaram de existir, mesmo com o triunfo do cristianismo, e a Roma evocada por Flaubert era apenas Roma, não era o mundo. Mas, no breve momento de solidão flagrado pelo escritor, o homem ocidental se viu livre da metafísica – e não gostou, claro. Quem quer ficar sozinho num mundo que não domina e mal compreende, sem o apoio e o consolo de uma teologia, qualquer teologia? O monoteísmo paternal substituiu as divindades convivais da antiguidade, em pouco tempo Constantino adotaria o cristianismo como a religião do império e o homem perdeu o seu momento único, a oportunidade de se emancipar dos deuses.
A ciência, pelo menos até Einstein, nunca pretendeu desafiar a metafísica dominante, mesmo quando desmentia seus dogmas. Copérnico cumpria seus deveres de cônego da catedral de Frauenburg enquanto bolava a heresia que destruiria mil anos de ensinamento da Igreja, e seu tratado revolucionário sobre o universo heliocêntrico foi dedicado, sem nenhuma ironia que se saiba, ao papa Paulo III. Galileu também foi inocentemente a Roma demonstrar na corte papal o telescópio com o qual confirmara a teoria explosiva de Copérnico, talvez o exemplo histórico mais acabado de falar em corda em casa de enforcado.
Quando foi julgado pela Inquisição, Galileu concordou em renunciar à ideia maluca de que a Terra se movia em torno do Sol, para ficar vivo, e a frase famosa que teria dito baixinho – “E pur se muove” – só foi acrescentada ao relato do julgamento um século depois, quando provavelmente também se originou a frase “Se não é verdade, é um bom achado”.
Quando o astrônomo Edmond Halley, o do cometa, entusiasmado com a recém-publicada Principia de Isaac Newton, quis dar uma ideia da importância da teoria newtoniana da gravidade e do movimento dos astros, disse que, com ela “fomos admitidos aos banquetes dos deuses” pois até então a ciência só especulara sobre a geometria celestial – algo como o Woody Allen dizendo que fazer cinema sério, ao contrário de comédias, era sentar-se na mesa dos adultos. Com Newton, passamos a conversar seriamente com os deuses. Halley preferiu “deuses” a Deus, evocando o tempo pré-cristão em que as divindades andavam entre os homens e podiam até ser seus comensais.
O trabalho de Newton fazia parte da “filosofia natural”, o pseudônimo com que, na Europa do século 17, a ciência especulativa convivia com os dogmas religiosos. Os banquetes com os deuses não eram exatamente atos de rebeldia contra a teologia, mas uma maneira de trazer a metafísica de volta a um plano humano. Mas o momento único da emancipação possível já passara.

terça-feira, 27 de março de 2018

A verdadeira virilidade - Martha Medeiros


Gilberto Gil - Super Homem ( A Canção )


Que todos nós temos um lado masculino e um lado feminino, acho que não há o que discutir, mesmo que a ideia não agrade a alguns. Alguns homens, claro.
Outro dia, conversava com duas amigas sobre essa questão. Nós três somos mulheres eloquentes, determinadas, independentes e nem por isto desprovidas de doçura e feminilidade. O fato de termos algumas virtudes associadas ao padrão masculino de comportamento não gera em nós qualquer espécie de desconforto, ao contrário: só nos faz sentir mais interessantes. A tranquilidade é tamanha que, se alguém associasse nosso lado racional a alguma inclinação homossexual, receberíamos essa hipótese descabida com um sorriso absolutamente relaxado.
Mulher não se preocupa com o que os outros pensam sobre sua sexualidade. Ela sabe quem é e do que gosta. Não precisa evitar os abraços calorosos nas amigas, nem as declarações de amor mútuas que costumamos fazer umas às outras. Manifestamos naturalmente nosso afeto sem nenhum motivo para autocontrole. Temos coisas bem mais importantes com o que nos preocupar.
Bem diferente do que acontece entre alguns homens. Nós três, durante o jantar, lembramos com um carinho quase maternal de alguns exemplares XY que fazem questão de afirmar sua macheza constantemente, como se alguém estivesse desconfiando de alguma coisa. Eles nem cogitam conviver amistosamente com a ideia de ter um lado feminino – que obviamente todo homem tem, em maior ou menor grau.
Para muitos deles, essa dualidade é algo bem assustador. Uma pena, porque a homofobia está bastante associada ao medo latente de que os outros confundam quem eles são. Se não ficassem obcecados em demonstrar que têm uma identidade sexual acima de qualquer suspeita, não precisariam ficar agredindo quem é diferente deles.
Eu ainda era uma adolescente quando Pepeu Gomes compôs: “Ser um homem feminino não fere o meu lado masculino”, enquanto Gilberto Gil corroborava: “Vivi a ilusão de que ser homem bastaria, que o mundo masculino tudo me daria”. Claro que os brucutus se apressaram em rotulá-los de bichas para liquidar o assunto, mas os homens antenados e inteligentes não se estressaram, captaram a mensagem e hoje estão unidos a nós na defesa de uma sociedade menos homofóbica, menos careta, menos provinciana. É justamente a porção feminina que eles têm (e que em nada ameaça sua virilidade) que faz com que não fiquem irritadinhos à toa e que também tenham mais com o que se preocupar.

Pepeu Gomes - Masculino e Feminino (Clipe)


Qualquer Corda - Martha Medeiros


Quando menina, nunca olhava embaixo da cama a fim de conferir se havia algum monstro aguardando que eu apagasse a luz para só então me atacar. Bicho-papão era coisa que não me apavorava, mas eu tinha um medo absurdo de areia movediça, como se isso fosse um perigo menos fantasioso do que monstros embaixo da cama. Ficava em pânico quando via cenas de filmes em que alguém caía numa poça melequenta e, sem conseguir nadar, ia sendo tragado aos poucos para o fundo. Help, um salva-vidas! Não havia. Até que, subitamente, alguém surgia com uma corda e resgatava a vítima que, a essa altura, estava apenas com as duas mãos para o lado de fora.

Aí eu cresci. E admito, encabulada, mesmo grandinha ainda passei boa parte da vida me perguntando: quem é que vai aparecer com a corda?

Porque tem hora que você se sente bem assim: num lodo, enterrada até a cintura, sem ninguém por perto para puxar você pelo braço, para te alcançar uma boia, para jogar um cipó. Como é que você foi parar nesse lamaçal? Ah, pois é.

Sabe como é que foi, seu moço, eu conto: vinha correndo naquela direção, no meio da mata fechada, assustada por achar que estava sendo perseguida por algum animal selvagem, e então corri, corri tanto que quando vi, tchibum, caí nesse areal movediço desgraçado, e a margem, que seria facilmente alcançável com duas braçadas, ficou longe demais das minhas possibilidades. Estou imobilizada pela força sugadora desse buraco maligno.

Quantas vezes isso já nos aconteceu? Metaforicamente, é claro. Sabe como é que foi, seu moço, eu conto: vinha fugindo da minha verdadeira identidade, sem coragem para ser uma pessoa mais original e livre, assustada por achar que não daria conta de viver fora dos padrões, e então corri, corri tanto que, quando vi, tchibum, caí nessa rotina movediça desgraçada, e o meu sonho de ser eu mesma, que seria facilmente alcançável com duas braçadas, ficou longe demais da minha realização. Estou imobilizada pela força sugadora das minhas escolhas covardes.

Ou. Sabe como é que foi, seu moço, eu conto: vinha correndo na direção oposta a um amor que me exigiria muita dedicação e entrega, corri evitando todos os desejos que tentavam tomar posse do meu corpo, assustada por achar que não daria conta de tanta intensidade, de tanto sentimento, e então corri, corri tanto que, quando vi, tchibum, caí nessa mesmice movediça desgraçada, e a minha grande paixão, que seria facilmente alcançável com duas braçadas, ficou longe demais da minha realidade. Estou imobilizada pela força sugadora dos convencionalismos.

Tudo o que a gente quer é agarrar em alguma coisa para sair de uma vida atolada. Um novo amor. Um novo projeto. Uma viagem. Religião. Astrologia. Terapia. Curso tântrico. Uma corda. Qualquer corda.

domingo, 25 de março de 2018

Joseph Taylor - Luis Fernando Verissimo

De 1953 a 1956, fui aluno da Theodore Roosevelt High School, em Washington, capital dos Estados Unidos. Durante o primeiro ano, uma vez por semana ia para a escola de uniforme militar e fazia exercícios de ordem unida, com um rifle no ombro, antes de começarem as aulas. Aprendi a desmontar e a remontar o rifle. Certa vez, participei de uma manobra militar junto com outras escolas públicas da região. Nunca fiquei sabendo se a guerra simulada era entre as escolas ou de todas contra um inimigo comum. Voltei para a escola sem ter visto o inimigo e sem saber o resultado da guerra. Mas não havia dúvida sobre quem seria o inimigo real do país numa guerra de verdade. No mínimo uma vez por mês tínhamos um ensaio para o caso de ataque nuclear. Íamos todos para o porão da escola, onde só o impacto direto de um foguete nos liquidaria. Fora isso, sobreviveríamos e sairíamos dali com nossos rifles vazios prontos para deter a invasão russa. 
*
Nas aulas, a primeira coisa que fazíamos todas as manhãs era botar a mão sobre o coração e jurar fidelidade à bandeira dos Estados Unidos da América e à República que ela representava, com liberdade e justiça para todos. Mas na época, principalmente no Sul dos Estados Unidos, a liberdade e a justiça não eram para todos. A discriminação racial era oficial nos Estados do Sul e a segregação racial, oficial ou não, existia em todo o país. Eu ainda cursava a Roosevelt High quando a Suprema Corte americana determinou o fim da segregação nas escolas. Lembro dos primeiros negros chegando à Roosevelt. Em outras escolas houve distúrbios. Alunos brancos reagiram violentamente à “invasão”, a polícia teve que intervir, os conflitos duraram semanas e a verdade é que uma integração verdadeira nunca aconteceu. Na Roosevelt, ouvi muitas queixas e expressões de revolta, mas houve paz. Sempre atribuí isso à quantidade de alunos judeus na escola - fáceis de identificar, eram os que faltavam à aula nos feriados judaicos - provavelmente filhos de pais mais liberais do que a maioria. Não sei. O fato é que termos colegas negros tornava menos hipócrita o juramento diário à bandeira.
*
Eu provavelmente tinha mais contato com negros em Washington do que todos os meus colegas brancos. Frequentava o teatro Howard, onde havia shows de rhythm and blues depois do filme, e eu era sempre o único branco na plateia. Fora olhares de surpresa, não provoquei nenhuma reação. Nos concertos de jazz também era minoria. Na escola, fiz amizade com um dos negros recém-chegados - Joseph Taylor. Descobri, decepcionado, que ele não tinha nenhum interesse por jazz. Era um cara sério. Naquele mesmo ano houve uma eleição no nosso “home room”, a sala onde nos reuníamos todas as manhãs para saudar a bandeira e ouvir anúncios e instruções antes de nos dirigirmos para as aulas. Uma colega, loiríssima, propôs o nome de Joseph para presidente da turma, baseada mais na sua cara séria do que em qualquer outra coisa. Ele foi eleito. Não houve discursos, ninguém destacou o significado do que tinha acontecido, o próprio Joseph parecia ser o mais surpreso de todos e ele e a menina loira voltaram para os seus respectivos mundos que provavelmente nunca mais se cruzaram. Mas tínhamos feito o nosso pequeno e distraído ritual de integração. Isso há mais de 60 anos.
*
Alguns anos depois fui visitar a Theodore Roosevelt High School. O bairro em que morávamos agora só tinha famílias negras. A escola só tinha alunos negros.
segregação não oficial continuava.

sexta-feira, 23 de março de 2018

Existe magistrado exemplar? - Milton Hatoum



Não só existe, como conheci essa rara figura. Aliás, raríssima, de dar inveja (data venia) aos mais nobres magistrados. Não sei se era religioso; talvez sim, mas com uma generosa pitada de agnosticismo, que é o sal do niilismo moderno. 
Sei que era francês. Eu o conheci nos meus primeiros dias de Paris, no inverno tenebroso de 1978. Passamos uma tarde inteira e uma parte da noite num café da rue Fouarre. Que magistrado incrível! Que exemplo de juiz de instrução, ainda mais neste tempo de privilégios, que há séculos é o tempo brasileiro. 
Morávamos no mesmo bairro, onde ele nascera no século 19, quando a miséria em Paris saltava aos olhos, e os salteadores não davam trégua a ninguém: aristocratas decadentes, pequeno-burgueses e novos-ricos da burguesia. 
Mal tomei o primeiro gole de café, percebi que a vaidade não era a paixão dominante do juiz. Mas essa modéstia é apenas uma entre muitas grandezas morais do velho senhor. Numa época remota, de guerras e extrema penúria, ele fora nomeado presidente de uma comissão para socorrer os indigentes e inválidos do nosso bairro. E então, o grande jurisconsulto, o percuciente criminalista cuja superioridade moral e profissional parecia aos colegas uma aberração, percebeu as verdadeiras causas dos resultados judiciários. 
Contou que depois de ver tanta miséria e refletir sobre as cruéis necessidades que conduzem gradualmente os pobres a ações reprováveis, avaliou a longa luta pela sobrevivência de seus conterrâneos. Foi, enfim, acometido pela compaixão. Tornou-se uma espécie de São Vicente de Paula de crianças órfãs, de homens e mulheres que esmolavam e dormiam em calçadas, de famílias que procuravam abrigo ou um prato de sopa. Não entendia por que alguns colegas mandavam prender mães paupérrimas que furtavam ovos e pães para dar aos filhos famintos. 
“Um juiz pode ser inflexível e, ao mesmo tempo, caridoso”, sentenciou. “Em alguns casos, a caridade deve contrariar a letra da lei, que é sempre fria, e não raramente ambígua, senão estúpida. De tanto confrontar a letra da lei com o espírito dos fatos, acabei percebendo o desacerto de aplicações violentas e espontâneas.”
Jean-Jules começou a exercer funções gratuitamente, sem qualquer ostentação. Agia em várias frentes: prevenia o crime, arranjava trabalho aos desempregados, distribuía com discernimento uma parte de seus próprios recursos. Dedicava o período matutino aos pobres, o vespertino aos criminosos, e o noturno aos trabalhos judiciários. Ninguém, no Tribunal do Sena nem em Paris, conhecia essa vida secreta do juiz Jean-Jules. Por não ser intrigante, muito menos bajulador e carreirista, era alheio às lutas internas do tribunal e ao “esprit de corps”, que ele julgava um mal maior. 
“O esprit de corps dos três poderes republicanos é a desgraça do povo, meu jovem. Se você for advogado, lembre-se disso. Se for apenas cidadão, jamais se esqueça disso.”
Memorizei outras frases notáveis da nossa longa conversa, na verdade um monólogo. “Há ingratidões forçadas, jovem. Mas nenhum coração pode considerar-se grande semeando o bem para colher a gratidão.” 
Ele falou durante mais de três horas, sem sucumbir à meia garrafa de poire gelado. Anoitecia no La Ruse, um café silencioso do quinto distrito. Talvez nem exista mais. A memória da voz, sim, sobreviveu. Citou um punhado de moralistas franceses, depois exaltou os iluministas, Rousseau à frente, e não sei quantos outros atrás. 
Na luz baça do La Ruse via seus olhos acesos, suas imensas orelhas de abano, seu rosto sacerdotal, seu pescoço taurino que sustentava uma cabeça de bezerro, insípida de tão terna. A solidão no La Ruse e na vida nos deixara tête-à-tête. Ele parecia um fantasma vestido à moda antiga, olhando o poire na taça de cristal. E eu era apenas um jovem arquiteto expatriado, com poucas ilusões, e sem cinco francos para pagar uma dose de conhaque. Ah, grande e nobre magistrado: não fosse minha timidez, terias pago três, cinco, dez doses de conhaque. Uma garrafa inteira! Pagaste o café e um croissant, e eu ainda recebi de graça uma inesquecível aula de ética. 
Na semana passada, quando bateu uma saudade do velho juiz Jean-Jules Popinot, reli a história dele na novela escrita por Balzac: A Interdição.
Um magistrado assim, tão exemplar, compassivo, só existe na ficção? 
Em todo caso, leiam A Interdição, moços e moças de direito! Leiam vocês também, jovens e velhos juízes e procuradores. Há ficções, como O Processo, que valem mais do que mil códigos e tratados nesse mar de misérias e crueldades. Mas se lerem a noveleta de Balzac, já será alguma coisa. E se não apreciarem o livrinho, direi, como o Bruxo do Cosme Velho: “Pago-lhes com um piparote, e adeus”. 

terça-feira, 20 de março de 2018

Saudável loucura - Humberto Werneck

Penso em Hélio Pellegrino, cuja morte chegará aos 30 anos nesta sexta-feira, 23 - e, na desoladora paisagem do Brasil de hoje, outra vez me pego a lamentar a falta que nos faz este homem carregado de apaixonada indignação, empenhado permanentemente em “transformar a reflexão em ato vivo”, como lembrou Antonio Candido, capaz de harmonizar em si aparentes contrários como marxismo e cristianismo.
Como estaria reagindo, e facilmente posso adivinhar, o psicanalista, poeta e sobretudo ser político Hélio Pellegrino, se afrontado por horripilantes ocorrências hoje quase banais, de tão corriqueiras, como a execução de Marielle Franco e Anderson Gomes? Ele que, ao preço de três meses de cadeia após o AI-5, tão desassombradamente reagiu a violências como o assassinato, também das ruas do Rio de Janeiro, do estudante Edson Luís de Lima Souto, em 1968; o Hélio que, possuído da mesma ira justa, anos mais tarde pôs a nu e ajudou a desmantelar o baronato encastelado na Sociedade Psicanalítica (à qual ele pertencia, e que em retaliação o expulsou), camarilha capaz de acobertar a participação de um psicanalista em sessões de tortura da ditadura militar.
Fundador do Partido dos Trabalhadores, Hélio Pellegrino por certo teria reagido com visceral indignação aos descaminhos que desfiguraram um sonho de tantos, assim como não se calaria ante rasteiras parlamentares implementadas graças a tortuosidades jurídicas, ou, ainda, ao ver pousarem no noticiário helicópteros movidos a pó por gente com aspirações também políticas, ou malas e apartamentos recheados de dinheiro de nauseabunda procedência. E o que pensaria um psicanalista ao se inteirar de furtivos encontros em porões, a horas mortas, com alguém que fosse autoridade em questões da carne?
*

domingo, 18 de março de 2018

Deus não existe, e nem tudo é permitido: Leopardi e uma ética sem Deus - Rodrigo de Lemos

Giacomo Leopardi em seu leito de morte (Nápoles, 1837).


A ideia de um dever de todos para com todos radica na crença de que Deus nos criou 
iguais. O poema "A giesta" aponta também para um igualitarismo constitutivo de todos, 
mas de outra maneira: somos iguais no nosso não-sentido.
A descoberta fortuita de Pompeia em 1748 contribuiu a suscitar a moda neoclássica e o gosto pelas ruínas característicos do fim do século XVIII. Mais tarde, no auge do Romantismo, Pompeia inspiraria ao grande enfermo que foi Giacomo Leopardi pensamentos bem mais graves, expressos no magnífico poema “A giesta, ou a flor do deserto” (1836). Estamos aí de pleno no sublime kantiano: contemplando a silhueta gigantesca e intimidante do Vesúvio a lançar sombras sobre a baía de Nápoles, o poeta lembra o antigo desastre de Pompeia e de Herculano, avassaladas pela sanha do vulcão “exterminador” e “formidável”, e reflete sobre a fragilidade da criatura humana, sobre a vaidade de suas pretensões. A imensidão e a selvageria da natureza se fazem reflexos de um sentimento moral e revelam, à mente cultivada, um aspecto da realidade humana. A giesta (la ginestra) evocada no título é a “flor gentil” que nasce nos terrenos cobertos de lava em redor do Vesúvio (il deserto). Ela abre o poema, disparando por associação a recordação da tragédia de Pompeia e propiciando a longa meditação de Leopardi. Ela fecha o poema, como exemplo de uma humildade quanto à morte, de uma sabedoria do nada que os homens não raro cultivam.
Sic transit gloria mundi; a sorte de Pompeia e Herculano ilustra a transitoriedade das grandezas humanas, de que o exemplo maior, na literatura ocidental, é Roma. O que desperta em Leopardi a memória de suas glórias passadas são menos os campos de batalha onde se selou a grandeza do império entre os impérios do que o campo em que seu poderio nada pôde contra a força brutal da natureza e em que o gênero humano se curvou a um destino imutável. Onde ora cresce a giesta já se encontraram outrora “jardins e palácios/ ao ócio dos poderosos/ ameno asilo; e houve egrégias cidades”.
Leopardi lança um convite amargo: que vá àquelas plagas o otimista do seu tempo, o que “de exaltar com laudas/ o nosso estado tem o hábito”. Ele contemplará no que se torna “o gênero nosso sob os cuidados/ da natureza amante”. A natureza é a “dura ama” que com um “leve movimento” (e o que foi a erupção do Vesúvio na temporalidade geológica se não um leve movimento?) destrói sem perdão uma rica cidade como Pompeia, que aniquila o mundo humano com seus “jardins e palácios” aparentemente os mais sólidos. Com a mesma indiferença, a natureza soterra um formigueiro, “das formigas um doce albergue”, pela insignificante queda de um “pequeno fruto” de um galho e ceifa vidas humanas aos milhares por “uma onda do mar agitado” ou um “um desmoronamento subterrâneo”. Que vão ao deserto habitado pela giesta os crentes na “magnífica fortuna e progressiva” dos homens; espera-os uma lição de nosso nada inexorável.
Esse convite é também uma declaração de inimizade. Leopardi tem seu tempo de certeza romântica no progresso por um “século estúpido e insensato”, pelo qual ele cultiva um “desprezo tanto quanto se possa aberto”. A estupidez do século é a estupidez da má-fé. Desgosta aos seus contemporâneos “a verdade/ da áspera sina e do lugar rebaixado/ que a natureza nos deu”. A reação dos homens do progresso é a de “dar as costas” à luz que os faz ver tais coisas, difamando aqueles que as lembram e louvando somente quem “eleva a condição dos mortais sobre as estrelas”. A fraqueza de não ver o que se vê, de não assumir o que a consciência revela; isso é o que infla o otimismo do progressismo romântico a um “fétido orgulho”, à certeza falsa que leva aquele que “nasceu para morrer” a dizer: “Fui feito para o gozo”. Como Leopardi explica famosamente no seu Zibaldone:
O homem (e como todos os outros animais) não nasce para gozar a vida, mas somente para perpetuar a vida, para comunicá-la aos outros que o sucedem, para conservá-la. . . . O verdadeiro e único fim da natureza é a conservação da espécie e não a conservação da felicidade dos indivíduos.
Sob esse naturalismo pessimista e algo esquemático, está uma crítica acerba àquela ética da felicidade que caracterizou parte do pensamento das Luzes no século anterior e que o progressismo dos anos 1830 sonhou erigir em projeto coletivo.
Há os que tornam as costas, e há os que buscam sustentar a visão insustentável do que somos. Esses são como um pobre de compleição medíocre que não esconde a sua débil condição ostentando falsa riqueza ou galhardia, mas “nomeia abertamente” seus males. São as “nobres naturezas” que vislumbram “a sina comum” que é a nossa insignificância diante do mundo. Eles “com franca língua/ nada ao ver traindo/ confessam o mal que nos foi dado em lote/ e o estado baixo e frágil”. Ao nomear nossa miséria, elas permitem no mesmo gesto nomear nosso opositor: a natureza, nossa “inimiga”.
Depois da crise que o fez deixar o palacete natal em que se dedicava aos estudos clássicos, sabemos que Leopardi livrou-se à leitura dos autores modernos, dentre os quais Pascal. Ouvimos em “A giesta” o eco do silêncio eterno dos espaços infinitos que aterrorizava o autor francês: Leopardi eleva o olhar aos céus e só vê uma infinitude glacial, em que a terra “onde o homem é nada” e em que mesmo o sol e os planetas que temos por imensos são para outras estrelas como a névoa que elas mesmas parecem ser para nós. Nada, no entanto, é mais diverso de Leopardi do que aquele chamado desesperado à crença que levou ao autor dos Pensamentos a lamentar a miséria do homem sem Deus (título de um dos seus capítulos). A “social cadeia” que liga a todos contra a inimiga universal que é a natureza (eco de Rousseau?) funda uma ética. Livre das ilusões do progressismo, pode se desenvolver o pensamento, “única coisa pela qual ressurgimos/ em parte da barbárie, e somente pela qual/ se cresce em civilidade” Estamos na época em que a Itália aspira a seu ressurgimento como Estado unificado, e a palavra civilidade remete à retomada de uma vida cívica, de uma vida na cidade segundo o modelo da Antiguidade, mas sobretudo à reforma de um ser homem entre os homens. Como?
Mais que tudo, a designação do inimigo comum na natureza permite uma nova irmandade entre os homens – uma irmandade dos desesperados, se poderia dizer, um abraço de afogados que não salva a nenhum da submersão, mas que evita ao menos a luta bárbara em que todos se afogam mutuamente na ânsia de salvar-se somente a si. O homem consciente do seu nada e da indiferença da natureza “nem os ódios e nem as iras/ fraternas, ainda mais graves/ que qualquer outro dano, acresce/ às suas misérias, culpando os homens/ pela sua dor, mas dá culpa àquela/ que é realmente ré, que dos mortais/ mãe é pelo parto e no querer é madrinha”. Na “guerra comum” contra a madrinha Natura, somos todos “guerreiros” que não devem “espalhar a fuga” entre os nossos companheiros de hoste nem os “golpear com o gládio”. Não ajuntar aos males inerentes à minha condição e à dos outros ainda outros males da minha própria feitura, eis toda uma ética para uma nova vida cívica e civilizada que desejam os italianos daquele tempo, em que o “conversar citadino” será fundado “em parte no verdadeiro saber” e em que “a justiça e a piedade outras raízes/ terão que não delírios soberbos”.
O que seriam esses delírios soberbos? Já vimos que eles correspondem em parte à religião do progresso. Por certo, eles também podem remeter à religião tout court – à crença de que, de alguma forma ou por alguma vontade transcendente, somos privilegiados em meio ao cenário hostil que nos cerca, que nosso nada é redimido por uma intenção presidindo à nossa criação e ao nosso salvamento. Deus é o grande ausente da meditação de Leopardi – e, por isso mesmo, Ele é o grande acusado. O romantismo progressista não teria apenas transcrito na imanência da História as certezas otimistas (e insensatas?) quanto ao destino humano que o cristianismo projetava para fora dela?
Bem entendido, a ausência de Deus em “A giesta” não é tão-somente seu ato de acusação por Leopardi; ela significa, também, sua obsolescência moral. A ideia de um dever de todos para com todos radica tradicionalmente na crença de que Deus nos criou iguais. Todos seríamos portadores de um mesmo sentido a Seu respeito. Leopardi aponta também para um igualitarismo constitutivo de todos os homens, mas de outra maneira: somos todos iguais no nosso não-sentido. E é exatamente dessa igualdade no absurdo que pode surgir um senso de dever recíproco e mesmo de uma (sempre precária) felicidade pública. Nossa fraternidade viria de não provirmos de Pai algum, mas de nos dirigirmos a um mesmo destino e de termos as mesmas forças hostis e indiferentes contra nós. Opondo-se aos mesmos profetas do progresso denunciados pelo italiano, Dostoievski escreverá, algumas décadas mais tarde, uma frase que se tornaria adágio do conservadorismo cristão ao postular que a inexistência de Deus permitiria qualquer descalabro. Talvez Leopardi respondesse que os delírios soberbos feitos em Seu nome não redundaram em descalabros menores, e que há margens para discutir um Bem a partir da constatação da sua ausência. As misérias do homem sem Deus são inegáveis. Mas elas são comuns, e quem sabe a base possível de alguma possível comunidade.
Rodrigo de Lemos é professor na UFCSPA (RS) e doutor em Literatura pela UFRGS.

Confiar - Ruth Manus


Percebi que tinha desenvolvido algum tipo de problema de confiança nos

outros a partir de um episódio bastante peculiar. Comprei uma salada pronta

para comer  no supermercado e levei um garfo na bolsa. Não Havia faca. Tudo

bem, era só  espetar as coisas. Mas eis que algo apareceu. Redondo,

pequenino e vermelho,  lá estava ele, o tomate-cereja.
Olhei para o tomate e suspirei. Eu não era capaz. Não era capaz de simplesmente cravar o garfo nele e levá-lo inteiro à boca. Eu precisava de uma faca, uma faquinha qualquer, para cortá-lo ao meio e me certificar de que não havia nenhum tipo de bicho ou de podridão dentro dele. Não consegui. Os quatro tomatinhos  ficaram ali, renegados na embalagem plástica, dada minha incapacidade de confiar neles. Queria comer e não comi.
Lembro-me da primeira vez que comi uma fruta com bichos. Eu tinha uns 10 anos e era um figo. E, claro, eu só descobri depois de dar uma grande mordida, sentir o sabor azedo e cuspir larvas no prato. Fiquei alguns anos sem comer figo e um bom tempo sem dar dentadas inconsequentes em frutas. Até perder o medo, me arriscar e acontecer outra vez. Na segunda ocorrência foi um clássico: a goiaba e seus famosos bichinhos.
É mesmo difícil restaurar a capacidade de confiar. Não tinha nenhuma desconfiança em relação às frutas e aos legumes até que aqueles episódios me aconteceram. E eu não tinha a dimensão do trauma até me deparar com os tomatinhos e com a ausência de um objeto cortante. Não sei se algum dia voltarei a confiar nos vegetais como antes.
Na vida é parecido. Quem já foi traído de alguma forma sabe bem. Traído por um parceiro, um amigo, um colega de trabalho, um parente. Em um dado momento a gente até supera, mas certamente são alguns anos muito indigestos. A sensação de confiar cegamente – no figo, na goiaba, numa pessoa – e se decepcionar tão profundamente é algo que sempre deixa sequelas.
A gente até pode tentar restaurar a capacidade de acreditar, mas nunca mais é igual. E, em certa medida, isso talvez seja bom. Aprender a não pôr a mão no fogo por ninguém. A confiar essencialmente em nós mesmos e no nosso comprometimento com as pessoas, sem a necessidade de apostar todas as fichas no outro. A gente volta a acreditar, mas de outra forma.
A confiança no outro não é algo fácil, mas é preciso. Porque em centenas de situações nós precisamos deles. Não há como fugir das mãos do médico, dos cuidados da creche, do veterinário, do piloto do avião, da sugestão do garçom, do trabalho do colega de equipe. Viver desconfiado pode se tornar um verdadeiro pesadelo.
Nessa semana passei por um bom teste. Esperava pelo atendimento num centro de saúde em Lisboa, quando fui acometida por uma histérica e urgente vontade de fazer xixi. Procurei o banheiro e, quando entrei, reparei que não havia forma de trancar a cabine. E como a privada era longe da porta, daquelas que você nem consegue puxar a maçaneta de volta caso alguém tente puxar por fora, percebi que precisava pedir para alguém vigiar a entrada enquanto eu estivesse lá dentro.
Torci para haver uma mulher com uma cara simpática por perto, mas não. A única pessoa que estava por ali era exatamente aquela mais indesejada para uma situação dessas. Um moleque de uns 15 anos e boné virado para trás, que, na escola, certamente era aquele que fazia as brincadeiras mais espírito de porco, segundo minha cabeça me informava.
O xixi não podia esperar. Tive que arriscar, chamei o menino e pedi para ele vigiar a porta. Imaginava o momento em que ele abriria a porta e sairia correndo, me deixando literalmente de calças na mão perante os demais. Fiz um xixi rápido e tenso. Mas assim que eu saí ele sorriu, sereno. Eu suspirei e sorri de volta, agradecendo. Que coisa boa é lembrar que a gente pode confiar nas pessoas.


Puns - Luis Fernando Verissimo


Bikini é o nome de um remoto atol no Pacífico onde os americanos faziam seus
Testes com bombas nucleares. Especulava-se sobre os efeitos dos testes na
atmosfera e da  sua irradiação na humanidade. E notícias de Bikini eram
lembretes constantes da  possibilidade de uma guerra nuclear que nos
liquidaria a todos. Mas as notícias constantes também popularizaram o nome,
que foi adotado para o maiô de duas  peças reduzidas que começava a
aparecer nas praias. Não sei de quem foi a ideia  de chamar o novo maiô de
bikini, nem se havia outro motivo para usar o nome além  do fato de ele estar
em evidência. Talvez uma alusão ao poder demolidor de corpos de mulher
expostos de modo inédito? De qualquer maneira, o nome pegou. Dizem
 que o atol de Bikini ainda brilha no escuro e peixes mutantes nadam ao seu
redor.  A ameaça nuclear não terminou, mas, para o consumo do mundo, a
banalidade  derrotou o terror.

*
Em 1957, para espanto de todos e embaraço dos Estados Unidos, a União Soviética   pulou na frente na corrida espacial, lançando o primeiro satélite artificial da Terra, o Sputnik.  Os americanos responderam acelerando o seu próprio programa espacial,  que acabou colocando um homem na Lua, mas durante algum tempo tiveram que  conviver com aquela prova da superioridade científica dos russos girando sobre suas cabeças.  Mesmo se, como diziam os cínicos, a única vantagem dos russos sobre os americanos  era que tinham ficado com melhores cientistas alemães no fim da Segunda Guerra Mundial, para todos os efeitos de propaganda e autoestima a competição era entre dois sistemas, e o comunista estava ganhando. Mas, se se sentiam ameaçados pelo satélite russo, os americanos gostaram do nome. 
Em pouco tempo, o sufixo “nik”  passou a ser usado para tudo nos Estados Unidos. Membros da geração “beat”, por exemplo, ficaram conhecidos como “beatniks”,  embora em nada lembrassem  uma bola dando voltas na Terra e fazendo “bip, bip”.  Ou talvez, às vezes, lembrassem. No caso do Sputnik, também ganhou a banalidade.
*
Quando os alemães começaram a bombardear Londres na Segunda Guerra Mundial,  o grande medo dos ingleses era que os nazistas usassem gás venenoso. Foi iniciado um programa de distribuição de máscaras contra gás para a população e há fotos de calçadas inteiras tomadas por mascarados,   que se cruzam sem poder se reconhecer. As crianças iam para a escola de máscara, e não demorou para descobrirem que elas tinham outra utilidade, além de prevenir contra envenenamento. Soprando dentro das  incômodas máscaras de um certo jeito, produzia-se o som de um pum, para grande   alegria de todos. Um banal pum. Não se sabe se contaram a Hitler o que faziam  as crianças de Londres. Se ele ficasse sabendo, talvez desistisse de derrotar a Inglaterra mais cedo. 

Poema naïf - Fabrício Corsaletti

Romolo


o inspetor alfandegário Henri Rosseau
após uma semana de trabalho duro
dedicava seu único dia de folga a pintar telas
de plantas e animais exóticos
sem perspectiva nem proporções convencionais
tomou emprestados do Jardin des Plantes
e do Museu de História Natural
a fauna e a flora que lhe fizeram a fama
aos 63
Apollinaire e Jarry foram os primeiros
a saudá-lo como um grande pintor
Picasso o homenageou com um banquete
em seu estúdio no Bateau-Lavoir
duas vezes viúvo Rousseau amargou
um último amor infeliz por Léonine
balconista no Bazar do l’Hôtel de Ville
que não apareceu no dia do casamento
morreu em Paris em 1910
e foi enterrado numa vala comum
depois de mostrar que a arte é uma cigana
dormindo ao relento sob a lua cheia
enquanto a seu lado passeia um leão 

domingo, 11 de março de 2018

A cadeirinha amarela de praia - Fabrício Carpinejar

Meu pai mantinha uma poltrona reclinável no meio da sala, um trono suntuoso e confortável, mas não chegava perto em importância e realeza à da cadeirinha amarela de praia da mãe.

A mãe funcionava com aquela cadeirinha que abria e fechava. Carregava-a para todos os cantos. De manhãzinha, pedia licença para as oliveiras e escrevia poesia debaixo de suas sombras. De tardezinha, colocava na frente da porta, na varanda, para tomar o seu chimarrão e ver as pessoas passarem.

Quando recebia uma porção de visitas, deixava o sofá para os outros e plantava o seu assento predileto ao lado.

Sua cadeirinha franciscana, barata, simples, que não ocupava espaço, que ficava num prego na garagem, representava a sua personalidade sempre em movimento, acompanhando os filhos, protestando, aumentando o tamanho da casa.

Ela botava a cadeirinha no porta-malas do carro e ia ao mundo. Participou de greve do magistério com a cadeirinha. Encampou plantões da Defensoria Pública com a cadeirinha. Realizava passeios na orla do Gasômetro com a cadeirinha. Transportava o seu berço na vida, não cobiçava o cantinho de ninguém, não padecia de inveja, não desejava que alguém se levantasse para sentar.

A cadeirinha era a sua gaita de revoluções. Um Piazzolla de noite, um Borghetti de dia. Para a alegria e a tristeza. Para o tango e a canção gaudéria. Recusava o luxo e preferia a mobilidade.

E não morávamos numa cidade litorânea, o que aumentava o impacto da cumplicidade. Transgrediu a função de mar pelo infinito de suas tarefas em Porto Alegre.

Quando prestei concurso vestibular para Jornalismo, tenho certeza de que fui aprovado porque ela rezava lá fora.

Durante as cinco horas da prova, permaneceu parada na frente da escola, sentada em sua modesta cadeirinha de praia, desfiando o terço sem parar, do crucifixo às pedras, das pedras ao crucifixo. Não arredou o pé dali até aparecer com os canhotos das respostas. Eu lembro que a xinguei, que não era mais criança, que não tinha cabimento ela aguardar tanto tempo no tédio, mergulhada no nada, que podia esperar na comodidade de casa, que dava no mesmo, que aquela vigília apenas aumentava a minha ansiedade.

Mas, no fundo, fazer o teste acompanhado dobrou a minha resistência emocional. Não estava sozinho para perder, muito menos para ganhar. Formamos uma equipe imbatível naquela manhã: ela empunhando o rosário, eu equilibrando o lápis, dois instrumentos da fé.

O que eu queria dizer é que a minha mãe não precisa de lugar no céu, ela levará a sua própria cadeirinha.

Filhotes - Ruth Manus

Era assim: o fim de semana era na casa de uma ou de outra. Quando era na dela, o Tio Silvio preparava minha cama no chão, ao lado do beliche, empilhando edredons até que ficasse fofinho. A Tia Marisete chegava sorridente do vôlei e frequentemente jantávamos pizza. Quando era na minha, fazíamos panelas de brigadeiro e pedíamos 5 reais para o meu pai para alugarmos DVDs do lado de casa. Quando a Amanda vinha, minha mãe comprava o iogurte que sabia que ela gostava.
Bagunçávamos os quartos, conversávamos até as 3 da manhã como prova de que já nos considerávamos muito adultas aos 12 anos, dormíamos até o meio-dia naquelas camas improvisadas tão familiares. Os sábados e domingos não tinham uma programação atribulada, contando apenas com um aniversário ou outro, que nossos pais rezavam para não ser muito longe, nem até muito tarde.
O vento soprou e 18 anos se passaram. Nossas casas não são as mesmas, nem no endereço, nem no conteúdo. Mudaram os horários, as cores das roupas, as programações e as disponibilidades. Só uma coisa não mudou: a gente. Às vezes, nossos pais até dizem o contrário, que mudamos, que não temos tempo pra nada, que estamos estressadas e excessivamente mergulhadas em trabalho, mas sei que quando eles nos olham, sobretudo juntas, percebem que as meninas do brigadeiro e dos DVDs são exatamente as mesmas, sem tirar nem por.
Na semana passada, largamos nossos queridos maridos em nossas casas, uma em Lisboa, outra no Butantã, e nos encontramos numa eterna ilha segura, que nos leva de novo para o passado: a casa dos meus pais. É como se dentro daquele apartamento pudéssemos ser de novo as meninas de 12 anos, sem complicações, sem prazos e sem angústias justificadas.
Mas, dessa vez, a Amanda comeu mais do que de costume. Minha mãe ofereceu bolo salgado e ela quis. Suco de pêssego e ela quis. Torradinhas também. E uns docinhos. Dessa vez, foi diferente. Naquela tarde, eu e a Amanda já éramos três. As duas meninas do passado e a menina do futuro, na barriga dela. Minha mãe queria alimentar não só a minha melhor amiga, mas também aquela pequena grande amiga que vem crescendo nos últimos meses. As meninas do passado e a menina do futuro, todas juntas no presente.
Enquanto comíamos, dávamos risada e nos lembrávamos das velhas histórias que nos construíram, o interfone tocou. Era uma entrega para mim. Descemos juntas naquele fim de tarde quente e úmido de verão para pegar o pacote na portaria. Quando abri, quase caí para trás. Era meu livro. O livro que eu escrevi, que há tantos meses eu ansiava por poder segurar nas mãos e que, supostamente, só chegaria dali uns dois dias.
Mas não. Meu livrinho amarelo, meu filhote, chegou bem quando a Amanda estava lá em casa. Ela com filhote na barriga, eu com filhote nas mãos. Deu vontade de chorar. Subimos de volta e meus pais ficaram na sala conosco, emocionados com meu livro, emocionados com aquela Amanda barriguda que até ontem ainda era criança. E que, suspeito eu, continue sendo criança até hoje para eles.
Era realmente um bom encontro. Um passado saudoso que desembocou num presente que faz tanto sentido. Naquela tarde, éramos filhas maduras e éramos projetos de mães. Meus pais estavam orgulhosos da gente. Tio Silvio e Tia Marisete também estão. Eu olho para ela e penso “ela está fazendo seu caminho direitinho”. Ela olha para mim e pensa exatamente o mesmo. A vida é muito legal, né?

O membro do bem - Tati Bernardi





Minha missão é enriquecer. Para tal, já percebi que não será exatamente trabalhando que conquistarei essa façanha. Também não será de forma grotescamente ilícita, pois tenho caráter. De modo que, esperta que sou, com a leitura sempre em dia e cursos de marketing no currículo, já saquei que a modinha dos produtos (alimentícios, de higiene, de vestimenta, de papelaria, farmacêuticos, veterinários, de luxo, de lixo...) "do bem" não foi passageira. Ela segue como novidade neste 2018 e tem seu lugar até no coração de gente que consegue conversar uma ou outra coisa interessante. Ela dividiu o mundo entre pessoas boas e pessoas más e isso, meu amigo, foi a coisa mais esperta que já fizeram. Não é mais uma questão de "quem é você na fila do pão" e sim "qual a cor da sua aura comprando pão integral na fila que você está há 45 horas porque deixa todo mundo passar na frente".
Você não quer tomar um suco nojento cheio de açúcares e químicas e conservantes. Você quer aquele colhido do pé por uma vovozinha com axilas sabor canela. Nem adição de água a vovozinha coloca. E, só porque te ama, a vovozinha vai a pé do sitiozinho dela, sem gastar nenhuma pegadinha de carbono, até um supermercado na alameda Lorena e deixa lá o suquinho pra você. Com um bilhetinho escrito "do bem". Se você não for uma pessoa tão bondosa quanto aquele suquinho e aquela vovozinha, e não adquirir esse néctar da fofura suprema, automaticamente, em alguma rede social, vão marcar seu nome em um acidente terrível na Ásia. Está tudo interligado. Você, se escolher o sacolé de anilina, pode ser considerado mais um a ter o botão da bomba atômica.
Tapiocas do bem, granolas do bem e massas prontas do bem chegam a entediar de tão ultrapassadas. Outro dia vi um salgadinho de toicinho do bem. Tintas spray, fumaças de escapamento e bolhas de lixo tóxico em rios não demoram a ter selos do bem.
Eu poderia patentear os antibióticos do bem, os tarjas-pretas do bem, os relaxantes musculares com ópio do bem, contudo estou certa de que alguém já o fez.
Mas porque tenho as leituras em dia e cursos de marketing no currículo, saquei tudo e quero dividir com vocês. O lance agora, meus amigos, são os paus do bem. Muito já se clama por eles, são assuntos nos melhores jornais do mundo, mas ainda não os encontramos listados, higienizados, cauterizados, castrados, circuncidados e calados em um único lugar! Pois seus problemas acabaram!
Lanço a fanpage essa semana. O Instagram na que vem. "Pau do bem! Abra-se para essa experiência controlada!". Consegui até uma licença poética para chamar "paypal" de "paypau". São pênis de vários tamanhos, etnias e formatos submetidos a um rígido controle de qualidade do bem: não praticar o falocentrismo; jamais entumecer ao ver uma moça até que ela assine uma carta de próprio punho liberando a grandiloquência de cada uma das veias; somente regurgitar fecundâncias depois que suas parceiras tenham 67 orgasmos atestados em cartório; não escrever e-mails ou mensagens com cunho gracinha em ambiente onde se ganha o pão integral (tampouco fora dele); somente usar o termo "surra de" após um dossiê previamente acordado entre as partes com o aval de 12 testemunhas incluindo as mães de ambos interessados. Ao se cadastrar você ganha uma bolha de oxigênio descartável, um cercadinho VIP com madeira de demolição ecológica e um kit álcool gel orgânico.

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...