domingo, 24 de setembro de 2017

Perdão, rapazes - Tati Bernardi



Ontem esquentou um pouco, depois do almoço, e fui até a padaria comprar um sorvete. Eu estava com um vestidinho desses curtos e leves, de ficar em casa, sem sutiã, e percebi que bastava meio ventinho primaveril para que eu ficasse seminua.
Primeiro, como boa hipocondríaca, senti medo de "tomar friagem", mas depois lembrei daquela turminha genial (ironia), mais conhecida como "um em cada três brasileiros", que declarou considerar culpada a mulher que sofre um estupro. Pela lógica dessa gente gritantemente provida de intelecto (ironia), se um raio cair na minha cabeça, a culpa é minha por ter cabeça. Se um tubarão comer minha perna, a culpa é minha por ter perna.
A natureza do raio é ser raio, a do tubarão é ser tubarão. Seria então a natureza do homem violentar mulheres e, portanto, caberia a nós, moças honestas que abrem mão de um estuprinho no fim de tarde, só usar moletom GG do Lakers? Um em cada três brasileiros acha que sim. Ou seja, muitas mães acham que sim, muitos pais acham que sim, muitas avós acham que sim. A soma disso você já sabe: vem aí mais uma geração de adolescentes achando que sim. Chega a dar desespero.
Tentei imaginar qual seria a cena possível caso eu realmente fosse culpada por sofrer alguma bestialidade naquela tarde. Um digno (ironia) senhor me espera sair da padaria para dar o bote. Me empurra em algum beco e eu então caio aos seus pés, pedindo perdão.
Perdão, magnânimo ser, perdão. Eu não deveria ter saído de casa, eu não deveria usar vestidos, eu não deveria ter seios, eu não deveria ter bunda, eu não deveria usar esmalte vermelho, eu não deveria chupar sorvetes por aí, pra quem quiser ver. Eu não deveria ter nascido mulher. Eu não deveria nem ter nascido. Oh, soberano macho, dono do universo, rei supremo defendido pelas pesquisas e pelas pessoas de bem, queira, por gentileza, me desculpar por ter uma vagina. Nunca mais farei isso!
O nobre (ironia) senhor estava lá, tranquilão na sua vidinha de merda, dentro da sua mentezinha de psicopata de merda, com seus impulsos animalescos desenfreados de merda (porém defendido pelas leis, por muitos policiais e por um em cada três brasileiros) e eu, que nojenta, que vagabunda, que safada, fui justamente atrapalhar a sua concentração em ser um grande merda. Uma mulher jamais deve atrapalhar a concentração de um grande merda, já diria um em cada três brasileiros.
Mas a culpa é minha. Na próxima encarnação eu venho com pau, que é pra nunca mais pertencer ao gênero que tanto ultraja e ofende a pacata vida terrestre. Quem mandou sair de casa sem gola alta? Quem mandou fazer as duas piores coisas que uma mulher pode fazer à luz do dia: existir e andar? Agora só me resta pedir clemência de joelhos! E tomar muito cuidado pra não pagar cofrinho, pois, segundo um em cada três brasileiros, eu poderia sofrer alguma brutalidade e a culpa.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Um brinde às inimigas - Manuela Cantuária

  Duas amigas em uma mesa de bar. Uma delas ergue seu copo. "Um brinde às inimigas, que elas tenham saúde em dobro para aplaudir nosso ...