domingo, 24 de setembro de 2017

Náufragos - Luis Fernando Verissimo

Contam que um homem sobreviveu a um naufrágio e acabou numa ilha deserta, e lá viveu durante 40 anos, até morrer. Os primeiros 20 anos foram os piores. Quando não estava ocupado procurando comida e tratando de se abrigar do sol, da chuva e do vento, quando não tinha mais o que fazer a não ser pensar e lembrar, pensava na vida que levara e lembrava tudo o que perdera.

Pensava na sua dura vida de marinheiro, pensava na mulher fiel que o ajudava a enfrentar a dureza da vida e sempre o esperava no porto, pensava na sua casa modesta, pensava nos vizinhos e nos amigos, pensava nas coisas simples que nunca mais veria, e chorava, chorava muito. Antes de dormir, ao pôr do sol, o homem imaginava o que estaria fazendo, se ainda estivesse com a sua mulher fiel na sua casa modesta, ou com os vizinhos e amigos, na sua simplicidade.

E assim se passaram 20 anos de recordação e tristeza. E então, certa manhã, depois de uma noite de vendaval, o homem viu que o vento tinha derrubado uma árvore da ilha, e que no buraco deixado pelas raízes arrancadas havia um tesouro. Um grande baú cheio de moedas de outro e de joias, certamente enterrado por algum pirata que nunca voltara para buscá-lo. 
Da noite para o dia, o náufrago tornara-se um milionário. Talvez um bilionário, ou um trilionário. Para que perder tempo calculando a fortuna? Havia o suficiente no baú para ele levar uma vida de rei. E a partir daquele momento, e pelos 20 anos seguintes, o homem imaginou tudo o que poderia fazer com a fortuna depois de abandonar a mulher, que não era mulher para um milionário, e os vizinhos e amigos, que só o importunariam com pedidos de dinheiro, e a sua casa modesta, e a sua dura vida de marinheiro. 
O náufrago mal podia esperar o pôr do sol para imaginar a sua vida de rei – ou quase rei, pois decidira comprar dois título de nobreza, um para ele e um para a Gisele, sua nova esposa. E dormia sorrindo.
Ratos. Também tem a história do navio que naufragou e só se salvaram o capitão e um maquinista, que nunca tinham se visto a bordo. O capitão vivia na ponte de comando e o maquinista nunca saía do porão.
Ainda na praia da ilha deserta, o maquinista perguntou:
– Era o senhor que gritava pelo interfone, “Mais força, mais força, seus ratos preguiçosos!”?
– Não, não – respondeu o capitão. – Não era eu. Era o imediato.
Mesmo assim, os primeiros 20 anos foram tensos.
Conchas. Quatro náufragos: um arquiteto, um engenheiro, um banqueiro e um filósofo. Depois de secarem a roupa, examinarem a ilha deserta e escolherem o lugar onde construirão uma cabana, decidem distribuir as tarefas.
– Eu planejo a cabana – diz o arquiteto. 
– Eu faço os cálculos e escolho o material – diz o engenheiro.
– Eu financio a obra – diz o banqueiro.
O arquiteto e o engenheiro se entreolham.
– Como, financia? – pergunta o arquiteto.
– Com que dinheiro? – pergunta o engenheiro.
– Bom... – começa a dizer o banqueiro, olhando em volta. – Essas conchas podem servir como dinheiro. Enquanto vocês constroem a cabana eu recolho as conchas e... – Mas desiste diante do olhar do arquiteto e do engenheiro. E põe-se a trabalhar.
Enquanto os quatro trabalham, só o filosofo fala, e fala sem parar.
– A ideia das conchas não é tão ruim. De um ponto de vista filosófico, é perfeita. Vocês não veem? Propondo-se a usar conchas em vez de dinheiro, está-se dizendo que o dinheiro é, na verdade, uma mentira, ou apenas uma concha supervalorizada. Em termos absolutos, nada tem mais valor do que nada, o valor dado a qualquer coisa é apenas a reificação de um conceito abstrato determinado por uma hierarquização subjetiva arbitrária enquanto...
O filósofo é expulso da construção e mandado para longe. E fica sentado na praia, olhando o mar e bebendo água de coco, enquanto os outros erguem a cabana. 

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