domingo, 30 de julho de 2017

Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça... - Luis Fernando Verissimo

Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça...

É ela que passa, num doce balanço, a caminho do... (Epa, ela está voltando. Deve ter visto algum conhecido dentro do bar). A caminho do mar. (Não, agora é a caminho do bar. E na minha direção!) Moça do corpo dourado do sol de Ipanema, o seu balançado é mais que um poema... (Ela está falando comigo!)

– Tá cantando pra mim? 


– Não, não.

– Como, “não”? Está sim. Aliás, toda vez que eu passo aqui você me chama de coisa mais linda. Fala do meu corpo dourado, do não sei mais o quê. E que história é essa de poema?

– É pra rimar com Ipanema. 


– E todos os dias é a mesma coisa. Você não tem mais o que fazer não? Fica o dia inteiro neste bar, cantando, e mal, pras mulheres que passam? Não tem profissão? Não tem outra vida?

– “As mulheres”, não. Você. 


– E por que nunca foi falar comigo? Me convidou prum chopinho, sei lá. Eu não mordo, viu? A não ser em ocasiões especiais.

– Não. Entende? Falar com você derrotaria todo o sentido da música, todo o clima, que deve ser meio melancólico, meio depressivo. Conhecer você, saber o seu nome, chamar você para um papo e um chopinho, acabaria com o encanto.

– Meu nome é... 


– Não me diga! Não quero saber nada a seu respeito. É importante que você não tenha nome, nem CPF, nem família, nem passado, nem futuro. E que passe. Que não fique. Você é um símbolo do inatingível, do amor impossível, de tudo que passa e não conseguimos ter, a não ser em sonho.

– Quer dizer que o encanto depende da distância. Que de perto tudo se desmancha.

– Mais ou menos isso.

– Sabe que você não deixa de ser um homem atraente? Meio estragadão e péssimo cantor, mas nós poderíamos ter uma relação. Ou uma relaçãozinha. Ou só uma amizade. Pelo menos me convide para sentar.

– Não, você não pode ficar. Você precisa passar. Quando você passa o mundo inteiro se enche de graça – mas você precisa passar!

– E se nascesse amor entre a gente? Um amor de verdade?

– Pior. Amor de verdade desmancharia o amor de sonho, o amor idealizado com a moça que passa, e que nunca saberei quem é.

– Então tá. Deixa eu pegar minha praia. Tchau, hein?

– Tchau. Amanhã, não deixe de passar.

Ah, por que estou tão sozinho? Ah, por que tudo é tão triste?


Garota de Ipanema - Vinicius de Moraes, Maria Creuza e Toquinho




Astrud Gilberto & Stan Getz - The Girl From Ipanema - 1964




The Girl from Ipanema (Garota de Ipanema) - Frank Sinatra & Tom Jobim (1967)


The Girl from Ipanema - Elise Trouw



Garota de Ipanema - Andy Timmons e Sydnei Carvalho

 



domingo, 23 de julho de 2017

'Papai, todo mundo morre?' - Antonio Prata



Não dá pra dizer que a pergunta me pegou de surpresa. Temia por este momento desde muito antes de ter filhos, desde que percebi, ainda na adolescência, que tinha tão pouca fé em qualquer faixa bônus para além da última diástole quanto coragem para transmitir a má notícia a uma criança.
O que eu ia falar quando chegasse a hora? "Veja, meu filho, a vida é uma improbabilidade absurda decorrente de fenômenos físicos e químicos aleatórios controlados por nada ou ninguém e a consciência, isso que chamamos de 'eu', nada mais é do que uma tempestade de descargas elétricas e liquidinhos entre neurônios; quando a gente morre desliga-se a chave geral, fecham-se as comportas, a consciência desaparece e o nosso corpo é comido por vermes e bactérias. Toma, lê aqui 'A Origem das Espécies' e 'Memórias Póstumas de Brás Cubas'." Não. Não ia rolar.
O medo daquele instante, contudo, não me levou a pensar numa estratégia, a elaborar um discurso, a gastar cinco minutos numa das 20 visitas ao pediatra para pedir um conselho. Já havia quatro anos que os deliciosos circuitos neuronais mais conhecidos como Olivia estavam entre nós, dois e meio que as sinapses do Daniel vinham nos dando o ar de suas graças e mesmo assim fui pego absolutamente desprevenido, ralando um queijo sobre a sopa de ervilhas, na hora do jantar: "Papai, todo mundo morre?"
A pergunta, como você há de ter percebido, chegou enviesada, prenhe da resposta que a Olivia gostaria de ouvir: "Não, filhota, imagina! Só morrem umas pessoas nada a ver, gentios ou infiéis que a gente nem conhece, além dos peixes, galinhas, porcos e bois das refeições. Eu, você, o Dani, a mamãe, a família, os amigos e todo o Grupo 2 e 3 da escola vamos viver pra sempre, relaxa e come aí a sua sopa".
Sem saber como sair da enrascada, resolvi apelar para a verdade: "Sim, Olivia, todo mundo morre". Infelizmente, como sói acontecer, a verdade não foi muito bem recebida. "Mas eu não quero morrer, papai! Eu não quero morrer!". Pensei melhor no assunto e resolvi mentir um pouquinho: "Minha filha, a gente só morre quando fica muito, mas muito, muito velho". "Então a bisa Augusta vai morrer! Ela é muito, muito, mas muito velha!".
Já que eu estava com a ficção pelas canelas, decidi mergulhar de vez: "Não, Olivia. A bisa Augusta é jovem, ela ainda tá com 97, só morre muuuuuuito mais velha do que isso".
Servi a sopa. Olivia ficou encarando as ervilhas com uma concentração shakespeariana. Cada bolinha verde, uma caveira de Yorick. Então ergueu os olhos, séria. "Papai, na minha classe, no Grupo 3, tem um menino que chama Baltazar". Tremi nas bases. Iria ela me dizer que a mãe do Baltazar, do Grupo 3, tinha morrido? O pai? A mãe E o pai? O próprio Baltazar? Como eu iria explicar que tinha mentido, que a vida era isso aí mesmo, uma barafunda inglória em que crianças morrem, bandidos viram presidentes e CEOs, poetas passam fome e o Gugu Liberato nada em milhões? "O Baltazar, do Grupo 3, papai... Ele levou de lanche, outro dia, uma mexerica sem caroço!".
"É mesmo, Olivia?! Uma mexerica sem caroço?! Que legal! Eu vou comprar pra você uma mexerica sem caroço! E melancia sem caroço! E uva sem caroço! Vamos encher essa casa de fruta sem caroço, eu prometo!". Abracei cada um deles bem forte, entreguei as colheres de sopa e me escondi atrás da geladeira, onde dei uma chorada rápida antes de voltar com os guardanapos.

Juízo Final - Luis Fernando Verissimo

A menina ficou muito impressionada quando ouviu dizer que, no dia do Juízo Final, os mortos sairiam das suas covas para serem julgados. Estava na Bíblia.

*

A menina não entendeu. Todos os mortos sairiam das suas covas para serem julgados? Todos, na história do mundo?! Ela nem tentou calcular quantos mortos seriam. O que vinha depois de trilhão?

*
Outra coisa: os mortos voltariam para suas casas, para os seus parentes? A menina tentou imaginar sua casa cheia de antepassados mortos. Não haveria lugar para todos. Nem comida. E nem dava para pensar na fila do banheiro. 
*
Mas havia o lado bom da história. A menina reencontraria seus avós. E a tia Isolda, sua madrinha querida. E o primo Zeca, que ela adorava! Havia um consenso na família que o primo Zeca iria diretamente para o inferno depois da sua morte num acidente de moto. Mas a menina o adorava. E decidiu que, quando viessem buscar o primo Zeca para seu julgamento final, ela o esconderia num armário, nem que tivesse de expulsar outros parentes mortos lá de dentro.
*
Aquilo era outra coisa que intrigava a menina. Juízo Final. Como seria o julgamento? O juiz era Deus, claro. Não era Deus que decidia o destino das pessoas? Que tinha o poder de condená-las ou inocentá-las, como quisesse?
- É - disse o pai da menina, quando a menina perguntou. - Como o Moro. 
A menina também não entendeu aquilo.
*
Se não era Deus que decidia, quem era? Nos julgamentos haveria advogados, testemunhas, essas coisas que a gente vê nos filmes? Quem fosse condenado voltaria para a cova, sem direito a sair de novo? E quem fosse inocentado, ganharia o quê? A Bíblia dizia que Juízo Final era final mesmo. Era o Apocalipse, o fim de tudo. O futuro do mundo, para vivos e mortos, era o vazio. Era nada. Então pra que julgamento?
*
A menina decidiu não pensar no nada. Preferiu pensar no lado bom do Juízo Final, quando ele viesse. Nas oportunidades que ela teria para conversar com seus antepassados. Bastava escolher a época. Com antecedentes da idade da pedra, a conversa seria difícil, não falariam a mesma língua. Mas com um parente do século 18, por exemplo, seria divertido. A menina mal podia esperar seu reencontro com a tia Isolda. Como teriam assunto! 

A palavra garrafa - Fabrício Corsaletti




garrafa é uma palavra mágica
uma girafa com garras
transparente
dentro dela cabem o leite, a água, o uísque
a cerveja, o vinho, a cachaça, a vodca
depois uma rosa
garrafas é uma palavra que faz barulho
cascos se chocando
garrafa daria um bom nome de cavalo
melhor, de cachorro
ainda que óbvio
garrafas daria um grande nome de bar
em Buenos Aires há jarras em forma de pinguim
jarras e garrafas são primas, nunca irmãs
a palavra jarra me deixa sexualmente agitado
estou pensando na foto de Cartier-Bresson -
um menino sorrindo de peito estufado
com uma garrafa gigante em cada mão
garrafas duram mais do que poemas
para um arqueólogo
uma garrafa contém alta poesia
a pior coisa que pode acontecer a uma garrafa
não é ser esquecida num quintal
junto a pneus e tijolos de seis furos
o que é sempre lindo
a pior coisa que pode acontecer a uma garafa
é ser grafada com um r só
*

sábado, 22 de julho de 2017

O que trará o inverno – David Coimbra (12/06/2016)



Dia desses, perguntei para uma amiga de Moscou como é que se pronuncia Dostoiévski em russo. Ela respondeu assim: “Dostoiévski”.
E me cumprimentou por falar russo tão bem.
Disse-lhe que respeito os russos mais por Dostoiévski do que pela Batalha de Stalingrado, e vi que ela ficou ponderando sobre essa observação.
Na terra dela é usual fazer -45ºC no inverno. Mais frio do que aqui, no extremo norte dos Estados Unidos.
– E em Moscou nós não dispomos da estrutura de Boston – acrescentou.
Boston é mesmo uma cidade preparada para o frio. Há máquinas de remover neve da calçada, máquinas de remover neve do meio da rua, máquinas de derreter neve da pista do aeroporto. A neve derretida ou removida é levada para um curioso depósito de neve. Não pode ser despejada no rio ou no mar, porque é água suja.
Neve é coisa bonita, mas trabalhosa. A prefeitura passa o inverno inteiro, longo inverno, em atividade por causa da neve. Às três da madrugada, você pode ouvir o barulho das máquinas trabalhando ao longe. Se não é assim, a cidade para. E as consequências são duras. No inverno do ano passado, o mais rigoroso em 80 anos, houve duas violentas tempestades de neve. O trem deixou de funcionar por um dia e o diretor da companhia foi demitido.
Mesmo assim, sinto menos frio em Boston, com -20ºC, do que em Porto Alegre, com 5ºC. No Brasil, os invernos mais rascantes são enfrentados com a estrutura básica do século 19: cobertores e, quando possível, lareiras.
Nem pode ser diferente. O inverno brasileiro é muito curto. Melhor suportar o frio de alguns dias do que suportar os gastos para vencê-lo. Inverno demorado é para ricos. Os vidros têm de ser duplos, as paredes precisam de revestimento especial e o aquecimento, seja a gás, seja a motor, seja elétrico, é caríssimo. A conta de energia de um apartamento de dois quartos fica entre 30 e 40 dólares no verão e sobe para algo entre 150 e 200 no inverno.
Portanto, resistam, gaúchos!
A vantagem é que o recolhimento invernal pode dar frutos. Na Rússia, o General Inverno não apenas derrotou Napoleão e Hitler como gerou Gogol, Tchekhov, Nabokov, Tolstói e ele, Dostoiévski. Mas Dostoiévski teria sido quem foi se tivesse vivido no Leblon? Não. Se tivesse vivido no Leblon, Dostoiévski teria escrito uma crônica de manhã e passado a tarde entre o futevôlei com Renato Portaluppi e o Jobi com o Admar Barreto.
Frio combina com mocotó e vinho tinto, sim, mas também com literatura. Há exatos 200 anos, o mundo viveu o chamado Ano Sem Verão. Em 1815, ocorreu o evento mais espetacular em 10 milênios de história: o vulcão Tambora entrou em erupção, com a potência de 60 mil bombas atômicas, e, no ato, explodiu uma ilha da Indonésia e matou 100 mil pessoas. As cinzas liberadas formaram uma capa na atmosfera que tapou o sol por mais de um ano, a temperatura desabou, as plantas e os animais morreram, e as pessoas também. Não se sabe quantas foram as vítimas daquela isolada manifestação da natureza. Centenas de milhares, talvez.
Por isso, não houve verão em 1816. Foi um ano soturno, de sentimentos soturnos. Numa casa na Suíça, jovens escritores, sentindo-se soturnos, reuniram-se para beber e escrever. Um deles, Lord Byron, propôs que cada um concebesse uma história de terror. E assim nasceram Frankenstein, da imaginação de Mary Shelley, e o primeiro de todos os vampiros, o pai de Drácula, da imaginação de Polidori.

Clássicos de um ano sem verão. O que será gestado no próximo e temível inverno do sul do Brasil? 2016 poderá ser um ano de glórias. Depende de você.



A roupa para dormir que nos acorda - Fabrício Carpinejar



A mulher mais sexy não dorme de baby doll.
Não dorme de camisola.
Não dorme de pijama.
Não é a que dorme nua tampouco.
É a que dorme com as roupas emprestadas de seu homem. Aquela que veste sua camiseta.
Você vê sua roupa nela e fica com vontade de botar no dia seguinte, deseja levar o perfume futuro adentro. Você lembrará dela ao escolher o que vestir de manhã, não somente ao se despir de noite.
É uma armadilha para a dependência. Para criar vínculo e intimidade.
A mulher que dorme com sua roupa devolverá a crença do sexo no casamento e o gosto pela rotina, além de ser uma prova incontestável de beleza. Pois, apesar de seu traje, ela permanece linda. Nem as medidas masculinas estragam sua volúpia. Ela transforma a camiseta larga em um vestido curto, sofisticando a simplicidade.
A mulher fatal não é a que encarna figurino de sex shop, que está armada para o crime.
A mulher fatal não é a que realiza espetáculo e pole dance.
A mulher fatal não será previsível com rendas e cinta-liga, não aparecerá rebolando com chicote e algemas.
A mulher fatal é absolutamente caseira. Ela disfarça seu desejo, não entrega sua intenção de imediato.
Jamais imaginará que terá sexo com alguém que colocou sua camiseta.
Mas ela engana para impressionar, é uma pureza que excita, uma ingenuidade que desconcerta.
Com a despretensão de uma peça emprestada, ela não segue roteiro, faz com que a transa seja inesperada.
Você cogitará que ela quer apenas dormir, mas ela acordará seus instintos selvagens.
É um golpe de estado. Uma impressionante virada de mesa. Na verdade, uma virada de cama.
A mulher que toma sua roupa para dormir arma um ataque caseiro, uma invasão camuflada. Finge que não se interessa para assumir o controle da situação.
Uma mulher que pega sua roupa para dormir irá enlouquecê-lo (o que é mais sensual do que o improviso?).
Ela vai dizendo nas entrelinhas: “Enquanto não tenho seu corpo, uso sua roupa”.
Não existe cena mais encantadora do que uma mulher que rouba sua roupa para dormir. É o começo de todos os saques. Roubará sua vida dali por diante.

Naldo Junio - Desenhos de um garoto solitário




quinta-feira, 20 de julho de 2017

Trato bicho como filho - Mariliz Pereira Jorge



Confesso. Trato meus dois gatos como filhos, falo com eles com voz de criança. Pergunto se estão com fome, com frio, com sede, com sono. Chego em casa e quero saber "cadê os amores da mamãe?". Paro no meio do caminho até a cozinha para fazer carinho, dar beijinho, amassar. Vin-te ve-zes por dia.
Meu colega de coluna Marcius Melhem escreveu esta semana que não existe a menor possibilidade de ele tratar bicho como gente. "Bicho é bicho, gente é gente."
Eu era mais ou menos desse time. A primeira vez que tive um cachorro só meu, há uns 20 anos, disse que ele jamais dormiria na cama. Minha convicção durou até a primeira manhã em que acordei e dei de cara com a cabecinha do Oscar no travesseiro. Poucas vezes me olharam de forma tão amorosa e sincera. Derreteu meu coração e minhas regras de higiene.
Há um ano, adotamos uma gata. Comprei enxoval, caminha, mantinha e travesseirinho. E ganhei a carteirinha do bizarro mundo das pessoas que apelam ao diminutivo para falar com bebês, animais e plantas. Como se isso estabelecesse um canal de comunicação mais eficiente e não me deixasse apenas patética. No começo, tentei me policiar para falar apenas na presença dos gatos. Agora, parentes, amigos e desconhecidos já consideram caso perdido.
O chão da sala parece um playground e a mala de uma viagem tinha mais presentes para os bichos do que para os donos da casa. Precisei colocar limites, mas estou prestes a ceder e deixar que sejam instaladas prateleiras nas paredes, não para mais livros, mas para que os pitucos sintam-se estimulados a brincar. Eles gostam de ficar em lugares altos, diz Jackson Galaxy, uma espécie de Super Nanny dos gatos. Adeus, decoração.
Em dois meses, descobrimos que a "princesinha do papai", encontrada na lata do lixo, era um menino. Aparentemente quem tem gato tem uma história dessa para contar. Mas nos sentimos especiais e sempre damos um jeito de entediar alguma pessoa, relatando o caso como quem descreve a descoberta de um filho trans. Final feliz.
Adotamos mais um felino há quatro meses e nosso grau de insanidade –ops, de cuidados– só piorou.
Recentemente vimos o documentário "Pet Fooled" e concluímos que a comida industrializada é veneno para os pixucos. A gente come até pedra, comida com agrotóxico acima dos limites, carne com papelão, mas o freezer agora é metade comida crua para gato, devidamente balanceada, com ômega 3, complexo B e taurina manipulada. Feita em casa. Já contei como o pelo está maravilhoso e o cocô sequinho e sem cheiro? Eu sei, é grave.
No momento em que escrevo, um deles sobe no meu colo, se aninha e dorme, o que me deixa imóvel, com um olhar de adoração. Fico com a perna dormente, o prazo no limite, a bexiga cheia, mas não ouso me mover porque o coração suspira quentinho.
O leitor talvez diga que preciso de um filho. Talvez. Meu psicanalista diz que querer ter filho é uma coisa, tratar bicho como filho é outra coisa. Me tranquilizei.
O "pai" dos pitucos fecha a janela porque o vento está frio e diminui o volume da TV. Tudo para não atrapalhar a soneca dos meninos. Falei que cubro com mantinha? Dia desses dei de cara com ele com os olhos cheios d'água porque o gato de um amigo morreu. Pensei na hora nos pixuquinhos, me disse. Poucas vezes o vi daquele jeito. Nem no nosso casamento.
Três semanas fora de casa, ele chega de viagem. Eu, toda trabalhada no coque despretensioso e numa bata sexy, curtinha, caída no ombro, descalça, fazendo a brejeira, rímel preto nos cílios e blush na bochecha, para dar um ar natural de "acordei assim, saudável".
Abro a porta, ele larga as malas, como no clipe do Roberto Carlos... "eu voltei, aqui é meu lugar...". Entra correndo e abraça o gato. Nunca fomos tão felizes.

sexta-feira, 14 de julho de 2017

O abismo que nos separa... - Milton Hatoum

“Trabalhar nós trabalhamos/Porém pra comprar as pérolas/Do pescocinho da moça/Do deputado Fulano”. (Mário de Andrade, ‘Acalanto do Seringueiro’, em ‘Clã do Jabuti’, 1927)

Numa tarde de 2001, quando ainda morava perto do centro da cidade, um homem de uns 50 anos veio ao meu encontro: “Sou preto, mas não sou ladrão, doutor. Só quero o dinheiro do ônibus”. 

Ele havia procurado emprego num supermercado, e queria voltar à sua casa. Nunca mais esqueci as frases desse brasileiro desempregado, frases que resumem o abismo que separa os pobres (afrodescendentes em sua maioria, mas também mestiços e brancos) da classe média e dos ricos. Claro: há razões históricas que explicam ou esclarecem isso. Quase quatro séculos de escravidão, e mais de um século de uma democracia manca, interrompida por várias ditaduras só poderiam gerar uma sociedade extremamente desigual.
A “democracia” brasileira, ou sua máscara caricata e grotesca, reproduz os privilégios do clientelismo, patrimonialismo, do mandonismo. Quando uma pessoa mais humilde nos chama de “doutor”, parece que todo o passado da escravidão reverbera nessa palavra, que só faz sentido se dirigida aos médicos.
Nosso ar de superioridade e petulância em relação aos pobres, nossa indiferença e desprezo pelos índios e pelos afrodescendentes inviabiliza qualquer projeto verdadeiramente democrático. Uma sociedade e um governo que toleram ou aceitam passivamente o assassinato de 50 mil jovens por ano não podem ser democráticos. 
Depois de ter visitado presídios de várias capitais, a presidente do STF ficou estarrecida com as condições desumanas dos detentos. Apesar da sincera indignação da ministra, é provável que pouca coisa mude. Sabemos que uma mãe pobre foi condenada a quase dois anos de prisão por ter furtado ovos de Páscoa. Mulheres pobres que cometem um pequeno delito sofrem penas pesadas, enquanto esposas e irmãs de chefões do crime são brindadas com prisão domiciliar. A coroação da injustiça (ou da justiça assimétrica de uma parte do Judiciário) foi a sentença de prisão domiciliar do homem da mala. 
Faz parte da desfaçatez nacional manter o conluio entre os três poderes. Sem isso, o País seria outro. E só um otimista ou ingênuo acredita que o próximo Congresso será plenamente renovado, e que uma maioria decente de deputados e senadores será eleita. Infelizmente, os chantagistas e corruptos serão maioria nas próximas eleições, apenas mudarão os nomes dos “doutores” e excelências. Como diz o sobrinho do príncipe Dom Fabrizio no romance de Lampedusa ('O Leopardo'): “Tudo continuará na mesma quando tudo tiver mudado”. 
Uma reforma política profunda e investimentos maciços na educação pública são tão urgentes quanto necessários, mas não serão feitos. Os que usam (e usarão) tornozeleiras eletrônicas em sua confortável reclusão domiciliar abominam essas duas grandes questões. E a maioria dos deputados, senadores, prefeitos e governadores tampouco se interessa por essas duas grandes questões. Preferem mudanças superficiais, pois assim garantem que tudo continue na mesma. 
O caminho que conduz à verdadeira democracia é longo e sinuoso. Os péssimos exemplos que vêm do alto da pirâmide política e econômica são nocivos a toda a sociedade. Mas afirmar que somos um povo corrupto é uma generalização absurda, uma autoflagelação moral tresloucada, inaceitável. É na base social – formada pelos desvalidos e a classe média – que as mudanças deverão ocorrer. O voto consciente, a pressão popular, os protestos e a indignação são os únicos vetores de uma verdadeira mudança política. Enquanto isso não ocorrer, a barbárie, movida pela impunidade e pela desigualdade, seguirá seu curso. 
As frases do desempregado de algum modo dialogam com os versos da epígrafe de Mário de Andrade. No mesmo poema ('Acalanto do Seringueiro'), ele escreve: 
“Você, seringueiro do Acre, brasileiro que nem eu”. 
O seringueiro do rio Purus, ou de outras regiões da Amazônia, é o migrante nordestino, mestiço de várias origens: africana, indígena, europeia. Mas pode ser o índio escravizado, forçado a trabalhar nos seringais desde o século 19. Enquanto esses Outros não forem considerados brasileiros como nós por nós mesmos e pelos três poderes, o País continuará fraturado, incapaz de compreender a si mesmo. Este é o abismo que nos separa uns dos outros... 

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...