sexta-feira, 26 de maio de 2023

Ninguém obriga ninguém a chegar perto de uma escritora - Tati Bernardi

 Uma mulher branca, baixinha, de aproximadamente 55 anos, escolhe tomates em um pequeno mercado no Pacaembu. Ela coloca muitos tomates no saco, e eu pressinto o desastre. Quando dá o primeiro passo em direção às laranjas, o saquinho plástico arrebenta. Ansiosa, ela não sabe se abaixa para pegar os tomates caídos ou se contém os outros que estão prestes a sair rolando. Então olha para mim, me reconhece e ameaça, em tom de brincadeira: "Não vá escrever sobre isso, hein?!". Minha senhora, entenda: você derrubar tomates no mercadinho é a sua história. Eu estar num mercadinho onde uma mulher branca, baixinha, de uns 55 anos derrubou tomates é a minha história.

Um homem de quase dois metros de altura, poderosíssimo, gato, com a mão do tamanho do meu antebraço, dono de uma cabeleira cacheada potente, premiado em Cannes e até no Oscar, um self made man com sotaque carioca de malandro pobre que virou malandro rico e hoje sustenta 28 parentes, que é humilde, de esquerda, mas faz parte de uma elite-intelectual-arrogante —enfim, essa explosão de sabores toda que só o Rio de Janeiro é capaz de oferecer—, me chama para jantar. Horas depois de um ótimo papo harmonizado por uma voz de fazer tremer toda a água do meu corpo, concluo: terei o melhor sexo da minha vida. O que acontece a seguir eu já contei numa crônica, que foi marcante para alguns leitores.

Assim que chegamos a sua casa, ele pede: "Eu só transo usando meus mamilos. Você poderia, por favor, esfregá-los enquanto nos beijamos? Mas tem que usar a sua mão direita no meu mamilo esquerdo e a sua mão esquerda no meu mamilo direito". Meus braços até cogitam um Wakanda Forever*  estranhíssimo, mas desisto. O homem então diz: "Jamais escreva sobre isso". Meu amigo, entenda: você gostar de petelecos cruzados nas tetas é a sua história. Você me fazer um pedido desses é a minha história.

Trabalhei para uma empresa há alguns anos. Faço certo sucesso, ganho até uns prêmios. Uma hora a coisa desanda, porque é da vida. Um funcionário de lá, bem assessorado por advogados gringos, me chama para uma reunião. Ele tem um incômodo latente com meu perfil. Mas que perfil? De uma mulher que, ao se sentir injustiçada ou assediada moralmente, pode escrever sobre isso. Empresas, homens, sobretudo homens em empresas, odeiam esse tipo de mulher. Esse tipo de mulher louca que pode, de um dia para o outro, meter numa crônica o que fizeram com ela. Empresa gringa tem mais medo de compliance e processo do que macho hétero top tatuado tem medo de gozar no Pula Pirata ou de ter disfunção erétil.

Esse funcionário é desumano e machista, mas tudo numa embalagem de corporativo-legalzão-simpaticão-calma-querida-está-tudo-em cópia-nos-e-mails. Uma coisa tão violenta quanto murro na cara, mas murro na cara a gente enquadra em lei. Eu digo: "O que vocês estão fazendo comigo não é legal". No dia seguinte recebo uma minuta: "Você nunca pode falar mal de mim, nem do meu amigão que fez minha cabeça contra você, nem da empresa". O medo que os homens, seus amigos homens e as empresas têm de mulheres que falam, que escrevem! Meus caros ex-colegas, vocês terem sido escrotos comigo é a história de vocês. Eu ter sido tratada de forma escrota por vocês é a minha história.

Um ex-namorado é aconselhado por seu analista a me procurar para um café. Ele viu uma entrevista minha sobre uma futura peça de teatro cujo texto é baseado em uma relação amorosa que vivi. "Foi a nossa?" Na mesma semana, outro ex me chama para o seu aniversário. Ele viu a mesma entrevista e quer se aproximar, ficar numa boa. "É sobre o nosso relacionamento?" Uns dias depois, um terceiro ex-namoradinho, de quando eu tinha 20 anos, aparece do nada. "Vai estrear como dramaturga? Sobre o que é?" Meus queridos, eu jamais poderia expor o que vocês viveram comigo. Já o que eu vivi com vocês, bem, essa é a minha história.

Ninguém obriga ninguém a chegar perto de uma escritora.


Wakanda Forever (Wakanda Par Sempre)

https://guia.folha.uol.com.br/cinema/2022/11/novo-pantera-negra-com-reino-de-mulheres-e-mais-interessante-do-que-uma-mera-continuacao.shtml

terça-feira, 23 de maio de 2023

Três homens e uma marreta – Antonio Prata

Isso parece, sei lá, um título troncho dado pelo ChatGPT 4 para uma comédia da Sessão da Tarde. (O ChatGPT 5, mais aprimorado, provavelmente o batizaria como "Três homens e uma marreta muito louca"). Não tem nada a ver, no entanto, com Sessão da Tarde ou IA: foi o que vi pela janela logo após despertar de sonhos tranquilos e encontrar o bufê vizinho metamorfoseado numa monstruosa demolição.

Vou deixar para outra crônica os lamentos sobre um mastodonte sendo erguido a três metros do meu nariz, sobre a desgraça que é vivermos numa cidade que etc. O assunto aqui é outro.

Há meses, passo longos minutos bisbilhotando o trabalho, sete andares abaixo. Na primeira semana foi só marreta. Em poucos dias, três caras de macacão azul e capacete amarelo derrubaram o telhado e todas as paredes do casarão. (Quando chegavam perto dos batentes e das esquadrias, vinham com uma marreta menor e talhadeira, iam recortando em volta, com esmero, até tirar as janelas e portas intactas).

Quando restou só estrutura de concreto armado —pilares, vigas, lajes—, a brincadeira ficou mais interessante. Com marteletes (umas minibritadeiras —ou, deveria dizer, megafuradeiras?) eles foram escavando o concreto armado, até ficarem só as redes de vergalhões, que eram cortadas com maçarico.

Quarta passada, começaram a recortar uma laje de uns 12 metros quadrados, no martelete. Não entendo patavinas de (des)construção civil, mas intuí que uma hora aquele rinoceronte ia desabar e se espatifar no chão, três metros abaixo. Dia após dia, assisti ao corte da laje como se fosse novela, até sentir que ontem era o capítulo final da trama. Terminado o trabalho do martelete, o outro maçaricou os metais, e a laje veio abaixo como um Odete Roitman de cinco toneladas, deixando não um rastro de sangue na parede, mas um cogumelo atômico de poeira.

Nos primeiros dias de demolição, achei que o meu interesse brotava de algum instinto ogro, um rincão Homer Simpson do meu córtex. Aos poucos, porém, fui entendendo que era bem o contrário. O que eu invejava nos demolidores era apolíneo, não dionisíaco. Invejava a certeza daquele trabalho, o contrário do meu. Eles chegam numa obra pronta e vão desmontando. Eu paro diante da página em branco e vou construindo. Eles sabem, desde o início, aonde vão chegar e cada passo que darão para tanto. Eu passo semanas diante de dois pilares com sete janelas. Derrubo. Ergo três portas e um telhado. Apago tudo e recomeço só pela caixa d’água, uma caixa d’água gigante, de 500 mil litros, que não tenho a menor ideia de para que me servirá.

Tem vezes, não raro, que depois de dias, semanas, meses ou anos eu descubro que não havia obra nenhuma a ser construída sobre aquele terreno. Entre as frases abandonadas já cresce mato, sujeitos molambentos chutam objetos diretos e indiretos em busca de predicados. Não é muito agradável.

Eu sei, eu sei que este senhor do sétimo andar é um privilegiado, que trabalha com o que gosta e goza de uma vida confortável, enquanto os três operários ganham mal para suar de sol a sol, sonhando em ser jogadores de futebol, astronautas, médicos, tiktokers ou xás da Pérsia. Não é disso que tô falando. (Ainda existe espaço pra crônica ou ela já foi cancelada em nome das guerras culturais?).

O que eu queria dizer é que, às vezes, eu não queria dizer nada. Queria pegar uma marreta ou um martelete e sair quebrando tudo até que houvesse só um papel sulfite de 2.000 metros quadrados. Outro que decida o que erguer ali.

 



ilustração: Adams Carvalho


 

quarta-feira, 17 de maio de 2023

CORAÇÂO


Gang 90 - Do Fundo do Coração





PÉSSIMAS INFLUÊNCIAS      ESTELA MAY




Rafael Corrêa
Galvão Bertazzi  


'Uma mensagem de amor...' - Roberta Martinelli


Tentei evitar o óbvio. Mas o amor venceu. Nesta semana, eu escrevo sobre este sentimento tão desejado: o amor e a música. Na minha época (olha que coisa!, já comecei a escrever “na minha época”), eu gravava fitas K7 com músicas para o garoto que estava interessada. Não falava nada, só flertava com uma seleção musical toda pensada para ele. Depois mudei para CD, gravava um a cada paixão. Não sei quantos corações conquistei, mas achei minha profissão, hoje trabalho em rádio e faço seleções musicais todos os dias. Na busca por um grande amor, eu achei uma grande paixão. E, sim, isso também tem que ser comemorado. Eu sei, é uma data comercial, eu sei, é clichê, eu sei...

O amor e a música, ó dupla inseparável. Quantos discos lindos não resultam de um coração partido? Tem até artista que busca o sofrimento para criar. Vai de relacionamento/roubada em relacionamento/roubada e a cada coração partido uma nova canção. Isso do lado do artista.

E do nosso lado, ouvintes? Ahhhhh prezadíssimos ouvintes. Me lembro que uma vez terminei um namoro e não conseguia ouvir música nenhuma sem chorar. Fugia de todas as canções. Em momentos como esses é que você percebe que a música está em todo lugar. E não tem como evitar. Se você está na rua e toca uma música, você pode sair de perto, desligar o rádio, mas evitar de ouvir é impossível.

E, do nada, começa a chorar na espera do dentista quando Caetano começa a cantar “E agora, que faço eu da vida sem você, você não me ensinou a te esquecer, você só me ensinou a te querer e te querendo eu vou tentando me encontrar”.

E, de repente, quando passa a fase mais crítica, aí vem aquela seleção musical feita especialmente para a dor, que vira em um certo momento a paixão, o foco central, objeto de todos os papos e todos os sons. Por favor, não me julguem, mas eu já berrei “Amaldiçoei o dia em que te conheci, com muitos brilhos me vesti, depois me pintei, me pintei, me pintei”, seguida de “Eu sei que um outro deve estar falando ao seu ouvido, palavras de amor como eu falei, mas eu duvido! Duvido que ele tenha tanto amor e até os erros do meu português ruim, e nessa hora você vai lembrar de mim” e, claro, não deixei faltar o rei da dor de cotovelo Lupicínio Rodrigues “Agora você vai ouvir aquilo que merece, as coisas ficam muito boas quando a gente esquece, mas acontece que eu não esqueci a sua covardia e a sua ingratidão”.

E depois vem “Reconhece a queda e não desanima, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”, pro mesmo amor que antes era lembrado por “Exagerado, jogado aos teus pés, eu sou mesmo exagerado”.

Não importa o momento do amor. O que importa é que sempre tem uma trilha sonora. A gente olha de longe, começa a papear, se apaixona, namora, casa, separa, nunca mais fala, não é correspondido, é traído... e todas as variáveis, mas, quando toca aquela música, o momento logo volta, superado ou não, você sorri ou chora e pensa no que viveu. E, para mim, isso é o amor, a música. 


Adão Iturrusgarai




Belchior - Coração Selvagem





Cordialidades - Mário Corso


A qual restaurante você voltaria? O primeiro é honesto, pontual, tem o preço justo e a qualidade irrepreensível, mas é impessoal, o garçom não mostra os dentes. Mesmo que você retorne, ninguém demonstra te conhecer, apenas te servem. Você é mais um entre tantos clientes.

No segundo, tanto o garçom quanto o dono te recebem com sorrisos. A qualidade é boa, mas nem sempre. Nada grave, atrasos e erros aqui e ali. Porém, a cortesia do garçom reconhecendo a falha desarma qualquer reclamação. Todos te chamam pelo nome, perguntam pela família e sabem teu time.

Se você descarta o primeiro por ser gelado e sente-se melhor no segundo, perdoando certas falhas, você é bem brasileiro. Era isso que Sérgio Buarque de Holanda, retomando o termo de outros pensadores, definia como a “cordialidade” brasileira. Ele escreveu que no Brasil os laços pessoais se sobrepõem aos mecanismos de eficácia.

Nesse exemplo, o brasileiro quer algo além da refeição, ser bem recebido pode ser mais importante do que a comida. Já um estrangeiro vai a um restaurante querendo comer bem e não considera prioritário que o garçom goste dele, afinal, é uma relação comercial. Se o funcionário for simpático melhor, mas o importante é o serviço.

Para compreender o conceito de Holanda, transporte esse mecanismo para os outros cenários da vida: a relação com a trabalhadora doméstica, com o médico, com o advogado. Todos querem sentir-se íntimos daqueles com os quais têm, de fato, apenas um laço de prestação de serviços. Essa aversão à impessoalidade instaura uma proximidade nem sempre viável, que pode inclusive atrapalhar, mas o brasileiro está disposto a ceder um pouco da qualidade em troca de uma manifestação que o faça sentir-se próximo.

Para dar-se bem aqui, é preciso investir na relação com o cliente, priorizando isso sobre a eficiência. Os estrangeiros que desembarcam aqui para negócios ficam pasmos ao descobrir que, para ganhar um cliente, às vezes é necessário fazer um amigo. O brasileiro resiste ao anonimato natural do capitalismo.

Por tocar de ouvido, sem ler o conceito, a maioria de nós entendeu a ideia de cordialidade como sendo uma peculiar amorosidade, uma tendência à gentileza. Seríamos, nesse caso, um povo afetuoso. Lembro desse conceito, tão mal compreendido, porque o Brasil anda particularmente violento e muitos dizem que não somos mais cordiais. A questão é que somos cordiais e, por isso mesmo, violentos.

Cordialidade vem do latim corda, coração. No caso, significa reagir emocionalmente frente a algo que poderia ser respondido com a cabeça. A violência é a suspensão da razão, é o extravasamento da emoção. Por isso, infelizmente, ao contrário do que pareceria, ela está mais próxima da cordialidade do que da frieza, da indiferença. O coração não é bom governante.


Laerte



Itamar Assumpção - Coração Absurdo




O meu coração é um absurdo Bate forte bate fraco Bate surdo mudo Bate por nada bate em vão Bate por tudo Bate pouco bate muito Bate por ti sobre tudo My heart beat strong Beat ping pong Beat beat beat weak Beat deaf and dumb Beat for nothing beat alone Beat and jump Beat little beat more In the middle of this dump Meine herz schlägt Stark schlägt tun tun tun Fein takt takt takt Hat einem grund Schlägt für dich Schlägt für sich Sein klang ist dumpf dumpf Macht takt takt takt In der nitte von der sumpf



Minduim Charles - M. Schulz

Frank & Ernest - Bob Thaves


Walter Franco - Coração Tranquilo (Clipe)




Mauricio Pereira - Os Amigos ou O Coração é Um Órgão



Frases de ( ou atribuídas a) Clarice Lispector

"Pois logo a mim, tão cheia de garras e sonhos, coubera arrancar de seu coração a flecha farpada. De chofre explicava-se para que eu nascera com mão dura, e para que eu nascera sem nojo da dor. Para que te servem essas unhas longas? Para te arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo do homem. Para que te serve essa cruel boca de fome? Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais, meu amor, já que tenho que te doer, eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada. Para que te servem essas mãos que ardem e prendem? Para ficarmos de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto, tanto - uivaram os lobos e olharam intimidados as próprias garras antes de se aconchegarem um no outro para amar e dormir."

(Trecho do conto 'Os desastres de Sofia', in "Felicidade Clandestina)

"Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz."


"Como se ela não tivesse suportado sentir o que sentira, desviou subitamente o rosto e olhou uma árvore. Seu coração não bateu no peito, o coração batia oco entre o estômago e os intestinos."

"Faz de conta que ela não estava chorando por dentro, pois agora, mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado; ela saíra agora da voracidade de viver."

"Aceitar-me plenamente? É uma violentação de minha vida. 
Cada mudança, cada projeto novo causa espanto:meu coração está espantado. 
É por isso que toda minha palavra tem um coração onde circula sangue" 
(Um sopro de vida)

"Sou um coração batendo no mundo."

"Fico às vezes reduzida ao essencial, quer dizer, só meu coração bate."

"Tranqüilidade e inconstância, pedra e coração. Sou abraços, sorrisos, ânimo, bom humor, sarcasmo, preguiça e sono. Música alta e silêncio. Serei o que você quiser, mas só quando eu quiser. Não me limito, não sou cruel comigo! Serei sempre apego pelo que vale a pena e desapego pelo que não quer valer… Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato… Ou toca, ou não toca."

"O que sou então? Sou uma pessoa que tem um coração que por vezes percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ou animal.”

"Só se sente nos ouvidos o próprio coração, pois nós não fomos feitos senão para o pequeno silêncio."

"Desculpa, mas não entendo. Eu quero tudo e mais ainda. Amor tem que encher o coração, a casa, a alma. Pouco ou metades nunca me completaram."

"Qualquer um pode amar uma rosa, mas é preciso um grande coração para incluir os espinhos."

"Não me mostre o que esperam de mim porque vou seguir meu coração, não me façam ser o que não sou. 
Não me convidem a ser igual porque sinceramente sou diferente."

"Fico com medo. Mas o coração bate. O amor inexplicável faz o coração bater mais depressa. A garantia única é que eu nasci. Tu és uma forma de ser eu, e eu uma forma de te ser: Eis os limites de minha possibilidade."

"Sou companhia, mas posso ser solidão. Tranqüilidade e inconstância, pedra e coração. Sou abraços, sorrisos, ânimo, bom humor, sarcasmo, preguiça e sono. Música alta e silêncio…"

"Toda mulher leva um sorriso no rosto e mil segredos no coração."

“Sorria sempre. Seus lábios não precisam traduzir o que acontece no seu coração.”

"Antes de abrir a porta do coração novamente, melhor limpar a bagunça que ficou da última vez."

Benett










Celso Blues Boy - As rosas não falam


Celso Blues Boy - Corações Perdidos




Andei vagando no Vale do Nada Estava escuro e tão só Vi toda a minha vida a girar E os abutres me olhavam felizes Ao me ver quase desistir É inútil preciso, não cair Não havia uma senha Apenas tempo pra recordar Pois eu estive lá e não vou voltar Aonde vivem escondidos os corações perdidos Aonde vivem esquecidos os corações perdidos Foram tempos de lágrimas justas Eu pensei que me abandonei Num labirinto de dores me perdi E os inimigos que me perdoem Mas eu consegui sair Sobre diante do medo voltei a existir Agora sei onde piso Não tente me enganar Pois eu estive lá e não vou voltar Aonde vivem escondidos os corações perdidos Aonde vivem esquecidos os corações perdidos Os corações perdidos, os corações perdidos...


Gal Costa - Coração Vagabundo


Joyce - Coração de Criança



Joyce - Clareana











Dentro do meu coração... - Roberto DaMatta

“Somos sensíveis, amorosos, desagradáveis e instáveis porque (querendo ou não) temos um coração. Grande ou pequeno, generoso ou sovina, vaidoso ou humilde, duro ou mole. Quando ele para de bater é sinal de que o nosso corpo anoiteceu na profunda indiferença da morte.”

Ademais – continuou Demostenes, um amigo de infância que se recupera de um ataque cardíaco hospedado aqui em casa –, o coração é uma gaveta ou uma imensa caixa-forte guardadora de sentimentos, acontecimentos e pessoas. Sendo músculo e bomba, ele tem afinidade com os atletas e com os que jamais deixam de trabalhar. Mas, como os velhos automóveis, pode parar de funcionar.

“Somos sensíveis, amorosos, desagradáveis e instáveis porque (querendo ou não) temos um coração. Grande ou pequeno, generoso ou sovina, vaidoso ou humilde, duro ou mole. Quando ele para de bater é sinal de que o nosso corpo anoiteceu na profunda indiferença da morte.”

aram ventrículos e válvulas. Tudo vasculharam, mas nada 

Ademais – continuou Demostenes, um amigo de infância que se recupera de um ataque cardíaco hospedado aqui em casa –, o coração é uma gaveta ou uma imensa caixa-forte guardadora de sentimentos, acontecimentos e pessoas. Sendo músculo e bomba, ele tem afinidade com os atletas e com os que jamais deixam de trabalhar. Mas, como os velhos automóveis, pode parar de funcionar.

– Olha, Roberto – continuou Demostenes com a serenidade de velho amigo –, enquanto a anestesia dopava a minha consciência, eu ouvia a minha alma e a equipe de médicos que futucava meu coração. Pensei no dentista e, surpreso, descobri que tratar de uma cárie era pior do que a viagem que os cirurgiões faziam no meu coração.

– Verdade? Ainda bem que não doeu nada – falei entre o descrente e o aliviado.

– De fato, Roberto, eles desvendaram o meu coração, desentupiram uma coronária e de quebra mapearam ventrículos e válvulas. Tudo vasculharam, mas nada souberam do lado negro de inveja ou dos rios entupidos pelo ressentimento e pela angústia. Uma verdadeira Amazônia que eu, em plena cirurgia, percorria invocando meus avós, pais, tios, amigos e irmãos; meus filhos e netos, meus trabalhos, amores e perdas. Os caras nem sequer tocaram no álbum de retrato dos mortos enterrados no meu peito. O ventrículo do erotismo, por exemplo, permaneceu virgem e a memória daquele beijo primeiro que o invadiu escapou ilesa da angioplastia. O mesmo ocorreu com o último ósculo dado no idoso um tanto atordoado pelas lúcidas recordações do coração, enquanto buliam no seu coração...

Curavam a veia, mas nada fizeram para sanar o coração como um bombeador de fantasias.

– Num dado momento, Roberto, tentei falar, mas a tristeza não deixou. Como era possível que o meu coração tivesse abandonado o coração que entesourava dores, perdas e gozos entre tantas preciosidades descarnadas que fazem a minha vida? 

Ah! Amigo, o meu coração foi dividido com muita gente. Eu planejei meticulosamente, como faz um gângster de filme americano, entregá-lo para todo mundo. Meu coração jamais foi meu, sendo como é uma verdadeira casa da sogra. Um albergue aberto aos meus filhos, netos, amigos, alunos e viajantes.

Jamais cogitei de deixá-lo nas mãos firmes de cirurgiões e, sobretudo, de políticos – esses doutores em assassinar moralidades. Envolto, então, pelo torpor que me deixava pensar os extremos, eu juntava conscientemente o coração físico que vai morrer com o outro: o coração que guarda a minha vida e que – queira Deus – vai bater de quando em vez em outros corações até ser definitivamente esquecido.

– Quando num ecocardiograma – continuou Demostenes – o meu coração foi examinado, maravilhou-me descobrir que, na sua banal feição fisiológica, havia uma banda. O examinador buscava padrões, mas meus ouvidos musicais distinguiam um piano, um violino, um saxofone e pelo menos dois pandeiros. 

– Roberto, o coração falava sua língua lida como patologia, mas para meus ouvidos era a prova daquilo que chamamos de “ritmo” e de harmonia. Uma música que vem do fundo de cada ser vivo e que, fora de seus algozes peitorais, inspira musicalidade.

– Mas, Demostenes, vem cá. Em nenhum momento você teve medo ou ficou angustiado? 

– Não! Tivesse eu meus planos juvenis, com certeza. Mas em nenhum momento rezei para os deuses que eu tanto amo e respeito. Mas tive uma imensa saudade do meu velho coração, que vovó Emerentina dizia que podia cair porque estava pendurado por um fio... 

– Hoje eu sei, meu querido amigo, que corações não caem. Eles sobem ou se enterram na lama insípida que produzem ao longo de vidas sem sentido. De existências ranzinzas sem beleza e sentimento. Idoso, é claro que penso na morte, mas, eu velho, a velha senhora como um grato epílogo de um livro ou de uma melodia de Jerome Kern. Estou seguro, porém, que vou sentir muita saudade...

PS: Demostenes e eu falamos muito. Conversamos toda a semana até que ele e sua esposa, a santa Glorinha, voltaram para o sítio onde moram. Tentei traduzir aqui sutilezas emocionais que um coração amigo exprimia. Imagine agora juntar as vozes de todos os corações. Que sinfonia de inexprimível beleza, amor e saudade elas iriam orquestrar. Não haveria nada mais sublime. Porque um coração cabe dentro do outro e do outro e do outro e do outro...



Luli & Lucina - Coração Aprisionado

AÍ NO CORAÇÃO, música de Lucina e Aloísio Brandão



Roberta Sá - Insensatez


Eduardo Gudin - Coração Marginal






https://www.youtube.com/watch?v=DwB6iusUgAI

 Raul Seixas - Coração noturno


Ira! - Coração




Picassos Falsos - Carne e Osso


 
André Dahmer



O coração é uma bomba hidráulica aborrecida, não ama coisa
nenhuma – Ricardo Araújo Pereira

Um amigo escreve qualquer coisa sentimental no Facebook e apertamos o botão do coração. A mãe faz anos e compramos uma caixa de chocolates em forma de coração. Alguém se apaixona e recorta na casca de uma árvore um coração.

Ora, se não se importam, parece-me que o coração tem um prestígio totalmente injustificado. Sei que estou a pôr em causa toda a indústria de cartões de aniversário, mas nunca tive medo de dizer aos poderosos aquilo que eles não querem ouvir, e não é agora que vou começar.

O coração é uma bomba hidráulica, gente. Uma aborrecida,

burocrática, fabril bomba hidráulica. Suga sangue por um lado, esguicha sangue pelo outro. Não sente nada. Não ama coisa nenhuma. É um músculo.

Além do mais, é horrível. Tão feio que, para lhe melhorar a

imagem, alguém resolveu desenhar a versão estilizada que hoje conhecemos, e que é em tudo igual ao traseiro de um babuíno. Notem bem: trata-se de um órgão tão grotesco que assemelhá-lo ao traseiro de um babuíno foi um favor que lhe fizeram.

No entanto, o coração exerce sobre as pessoas um fascínio

incompreensível. Sobretudo em comparação com o cérebro, que tem muita má fama. O coração é puro, o cérebro é diabólico.

Às vezes, alguém diz “agora eu vou falar do coração”, como se fosse uma coisa boa. Respondo sempre: “Não, obrigado. Fala do cérebro, que prefiro”.

Falar do coração, normalmente, significa exprimir sentimentos inalterados pelo raciocínio. Ou seja, é dizer coisas sem pensar. É uma opção muito usada por quem deveria ter preparado um discurso, mas não se deu ao trabalho. Transforma a preguiça e a falta de consideração em honestidade e franqueza (uma operação bastante indecente que o coração sempre patrocina) e fala de improviso.

Eu desconfio demasiado dos meus sentimentos para os expor dessa maneira. De vez em quando sinto coisas que, pensando bem, são absurdas.

Mas é curioso que o coração nunca tem culpa. Há sempre alguém que descobre uma maneira de pôr a culpa dos sentimentos desagradáveis no cérebro. “Sim, ele disse isso, mas estava de cabeça quente.” O coração é sempre puro.

Lamento, mas comigo não contem para essa mistificação. E eu sei o que digo, porque são palavras que vêm do fundo do meu pâncreas.


Luiza Pannunzio


Márcio Vaccari 




Alceu Valença - Coração Bobo




Coração e Cérebro - Adão Iturrusgarai 






Coração e Cérebro se encontram em um balcão de bar. Coração pede um chope.

— Com colarinho, por favor.
— Pra mim, vodka com Coca-Cola — rebate o Cérebro.
— Sempre tomando essas coisas estranhas...

Coração toma um gole de chope.

— Como anda a vida, Cérebro?
— Levando. Agora tô gastando uma fortuna com psicanálise. Sabe como é: traumas, medicamentos, antidepressivos, drogas. Essas coisas arrasam comigo.
— Você continua igual, sempre reclamando... mas sou eu que sempre me fodo mais — diz o Coração, todo ressentido.

E segue o desabafo:

— Você acha que é o único prejudicado por traumas, medicamentos, drogas e tudo o mais? Eu me ferro também. E ainda tenho que ficar bombeando toda a porra do sangue. Não importa se estou ficando mais velho. Sou obrigado a trabalhar sem parar, dia e noite, faça chuva ou faça sol.
— Ah, você se acha mais importante, Coração? Se eu não existisse, não existiria consciência. Seríamos ocos. Carne sem pensamento, sem nenhum sentimento!
— Ra ra ra! E se eu paro de mandar sangue, o que acontece? Vamos todos pro saco, manezão! — protesta o Coração.
— Você não passa de um órgão supervalorizado, Coração. Por exemplo, sempre usaram sua imagem para ilustrar o amor. Só que amor não está dentro do coração. Está dentro de mim. Dentro do cérebro. Entendeu ou quer que eu desenhe?
— O seu negócio é simplificar tudo. O problema é que você é racional demais. Pensa demais. Te falta sentimento!

Entornando mais um gole de vodka com Coca-Cola, Cérebro continua a destilar seu discurso ao Coração.

— Você não passa de um órgão oco. A inteligência sou eu. Você é o peão do corpo humano.
— Pobre dos peões. Além de tudo, você é preconceituoso — diz o Coração, dando as costas para Cérebro enquanto vira o copo de chope de uma vez.
— Fazer o quê? Sou superior mesmo... Sou complexo. Tenho bilhões de neurônios ligados por conexões sinápticas, fibras protoplasmáticas — provoca o Cérebro.
— Não viaja, Cérebro. Para de beber vodka com Coca-Cola. Isso está arruinando o seu raciocínio. Mais um chope para mim, por favor?
— Um brinde. Trégua? Vamos esquecer nossas escaramuças — pede Cérebro enquanto levanta o copo.
— Agora sim! — diz o Coração também erguendo seu copo.

Os dois brindam.

Enquanto os dois copos se tocam, Fígado entra no bar, falando alto:

— Vocês não são de nada, não sabem de nada. O órgão mais importante sou eu. Se eu não existisse, ninguém poderia estar aqui enchendo a cara. Garçom, um uísque duplo sem gelo!

Os três brindam.





Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...