A moeda que caiu no vão do sofá – é sozinha.
O brigadeiro pisado no carpete felpudo – é sozinho.
A garrafa pet que navega o Tietê – é sozinha.
Uma tampa de caneta Bic mordida – é sozinha.
O guarda-chuva pingando na entrada da loja – é sozinho.
Um fone de ouvido quebrado – é silêncio.
O calendário do ano passado – é memória.
Um passaporte vencido – é saudade.
O buraco na parede – é ausência.
Um relógio sem ponteiros – é meio-dia.
O barulho da geladeira – é meia-noite.
Um copo sujo de café – é futuro.
A bengala cinza encostada na parede – é passado.
Fotografias de um amor perdido – é castigo
Um livro não lido – é ficção.
Um celular no modo avião – é viagem.
Um All Star desamarrado – é juventude.
Uma cortina que voa – é Aladdin.
Uma tesoura sem ponta – é precaução.
Um dedo postiço – é mágica (e também serve para nos lembrar que nem tudo precisa ter utilidade).
Cada coisa tem o seu cada qual. Ou pelo menos tinha. Não sei se hoje ainda é assim.
Antigamente, atrás da tampinha de Coca-Cola tinha uma figurinha ou um brinde – e isso era esperança.
Antigamente, nos palitos de sorvete a gente lia que havia outro picolé nos esperando – e isso também era esperança.
Antigamente, eu esperava horas até carregar uma foto de mulher pelada no meu computador – e isso era resiliência (e esperança também).
Antigamente, para não pagar a viagem de ônibus, a gente descia por trás.
Antigamente, eu tinha uma vitrola da Gradiente. Nela, minha mãe ouvia Álibi, um disco lindo da Maria Bethânia – e desde muito novo cantava com ela: “de noite eu rondo a cidade e lá, lá, lá...”
Antigamente, a gente “andava de cavalinho” nos ombros do pai; aprendia a fazer barulho de peido com a avó (assoprando as costas da mão) e a beber espuminha de cerveja com o tio.
Antigamente, a gente escrevia cartas para o Papai Noel, para parentes do exterior, para garotas impossíveis e para o Porta da Esperança.
O e-mail guardado na caixa de rascunhos não é nada – e nem ninguém.
A mensagem no site pede para que eu confirme, com um clique, que eu não sou um robô. Que eu não sou.
A mão treme
Às vezes.
Foto: Tiago Queiroz