sexta-feira, 30 de julho de 2021

O invencível bate-estacas? - Ignácio de Loyola Brandão

 bonde na Avenida São João




Meu pai ao voltar do escritório comunicou: “Este mês vocês irão comigo para São Paulo”. De tempos em tempos ele participava na capital de uma reunião com chefes de Contadoria das ferrovias brasileiras. O aviso era recebido com alvoroço por mim e meu irmão Luis Gonzaga. Aquela era uma viagem encantada. Só quem nasceu no interior viveu a experiência arrepiante de chegar de trem na Estação da Luz, passando por baixo da rede de fios elétricos de uma super aranha acima de nossas cabeças. Havia a expectativa na capital de outra viagem dentro da viagem. Pegar o bonde Penha-Lapa, ida e volta, o que nos ocupava meia-tarde atravessando a cidade. 

As reuniões dos chefes eram na Estação da Sorocabana, e Luis e eu ficávamos em um jardim interno à espera até o final, quando meu pai nos apanhava para almoçar no Hotel das Bandeiras, ou do Giuseppino, na Rua da Conceição. O prediozinho foi sacrificado pelo metrô. Ah, aquele jardim hoje é a Sala São Paulo. No restaurante, sentávamos e começava o desfile de travessinhas, uma com ovo, outras com bife, linguiça, abobrinha, berinjela, jiló, chuchu, ervilhas, couve, saladinha, arroz, feijão, macarrão. Também visitaríamos a Catedral da Sé em construção, e eu achava inacreditável ver um bonde que entrava na igreja com material de construção. 

Maravilha das maravilhas sempre foi o anúncio luminoso de um café (seria o Paraventi?), em cima do prédio da Light, vizinho ao Mappin. Em uma animação (pensem, eram os anos 1940), o bule se inclinava e derramava o líquido na xícara. Para mim, havia um mistério. Por que as lojas mantinham luzes acesas durante o dia? No interior, luzes só eram acesas depois de seis da tarde. Isso significava o que era para mim a cidade grande, luzes acesas durante o dia. 

Mas São Paulo era a cidade dos prédios, dos arranha-céus. Araraquara não tinha ainda nenhum. Meu pai, Luis e eu nos instalávamos na calçada, do outro lado da rua, a contemplar elevadores de madeira periclitantes que subiam e desciam, levando carrinhos com pedras, concreto, cal, tijolos. Víamos pedreiros se equilibrando nos andaimes sem nenhum medo. Homens dos ares, dizíamos arrepiados. Os prédios subiam lentos, muitas vezes ao voltarmos, meses depois, eles tinham crescido pouco. Para tudo há um ritmo, dizia seu Totó, não adianta ter pressa ou o prédio cai. Não existiam ainda os caminhões de concreto com betoneiras girando, girando. Assim se constrói uma grande cidade, murmurava meu pai, aquilo era progresso.

Em 1957 vim morar aqui. Os prédios subiam velozes. O encantamento continuava, havia cinemas, teatros, livrarias, eu trabalhava em jornal, tinha um único medo, ser demitido, mas se você perdia a vaga, em uma semana estava empregado de novo. Agora, não tenho mais medo de demissões, me demiti, aposentei, e trabalho mais do que antes. Continuei fascinado pelas construções, cada vez mais velozes. Um dia era um buraco, vinha o bate-estacas ruidoso, pram, bum, tcham, tchum, logo anunciavam o apartamento decorado, abriam o showroom. Piscou um dia, no dia seguinte edifício pronto. Passei por muitas fases da história da construção. Agora chegamos aos tempos de aceleração total. Um tapume, um buraco, um andar hoje, outro amanhã, no final da semana tem mais não sei quantos caminhões de todos os tipos. Concreteiras mandam o cimento armado por tubos a alturas inacreditáveis. 

Porém, há um mistério indecifrável. Pensem bem. Vejam se não tenho razão. A revolução industrial avançou, veio a tecnologia de ponta, a informática, o celular, o computador, os robôs, a descoberta do DNA, implantes substituem as dentaduras, transplantam-se corações, fígados, rins, um dia transplantarão almas. O homem foi à lua, a Marte, os trens (europeus, claro) correm a 500 por hora, usa-se a energia solar, criaram-se os games, a internet, o Twitter, a revolução digital, as fake news, os caminhões gigantescos, os treminhões, o radar, o laser, a corrupção.

No entanto, quem me explica, esclarece, justifica, encontra uma única razão para a existência dos bate-estacas ruidosos como tiros de canhão que continuam a nos atormentar desde 7 da manhã? A cada pancada, vibram os edifícios todos em volta. Há silenciadores de armas, mas não se criou um para o bate-estacas. De Newton a Darwin, de Niels Bohr a Pauling, de Einstein a Fleming a Osvaldo Cruz, de Madame Curie e Steve Jobs, de Salk a Mendel, sempre tivemos pessoas querendo o bem-estar da humanidade. Mas nenhum se colocou frente a esse tormento primitivo, rompedor de tímpanos e mentes. Mistérios.

terça-feira, 27 de julho de 2021

Uma criança nessa coisa de ser velho - Gilberto Amendola

 



Com o avanço da vacinação e a compulsão coletiva em postar selfies do momento mais importante do ano, tenho me especializado em...

– O quê? Ele só tem 34 anos? 

Sim, me transformei naquilo que eu mais temia: um fiscal da idade alheia. 

Como assim fulana ainda não se vacinou? O quê? Ela tem 27 anos!

Ainda que alguns tenham aplicado o golpe “Gloria Maria”, e postado a foto da vacinação semanas ou meses depois da data em que ela aconteceu, consegui montar uma espécie de linha do tempo com todos os meus amigos e conhecidos.

O meu círculo mais próximo é 36+. No meu trabalho, a idade cai bastante e, pelas minhas contas, esse círculo aumenta e abraça uma turma que é 24+. 

Da minha parte, aos 45, e com o registro da minha primeira dose devidamente postado nas redes sociais (obedecendo algum artigo constitucional), sinto que ainda sou uma criança nesta coisa de ser velho.

Ou já sou suficientemente velho para entender que, a partir de agora, tudo é sobre o tempo. Sobre como gastei o tempo que tive e, principalmente, sobre como posso usá-lo daqui pra frente. 

Veja só os milionários que estão protagonizando uma nova corrida para o espaço. Penso que são impulsionados pela montanha de dinheiro em que vivem sentados, mas também pela sensação de finitude, pelo tic-tac traiçoeiro da mortalidade.

Já não sonho com o espaço (talvez um coach possa me convencer do contrário). A minha sensação de finitude vai precisar ser preenchida com prazer e conquistas muito mais pés no chão.

Ao encarar a passagem do tempo, cada um de nós vai fazer suas contas e elencar suas prioridades. Quer salvar a Amazônia? Faça por onde. Quer tomar o melhor dry martini da vida? Faça por onde. Quer acabar com a fome no mundo? Faça por onde. Quer comer um boeuf bourguignon em um bistrô parisiense? Faça por onde.

Em algum ponto do infinito, a consciência social e a frugalidade irão se encontrar. Por isso, sem julgamentos. Faça o que quiser fazer (e tente não machucar ninguém no caminho).

A pandemia está prestes a tirar dois anos de vida plena de quem teve a sorte de sobreviver até aqui, até o momento da vacina (e da selfie). Por isso, acho justo e necessário que a gente possa subtrair dois anos do nosso calendário. Para efeitos práticos e legais, não contarei o meu aniversário do ano passado e o deste ano. Ou seja, corrigindo o que disse acima: tenho 44 (e pretendi fazer 45 só em 2022).

Vou organizar um abaixo-assinado.

Quero começar de onde parei. 

Ainda posso melhorar o mundo e tomar meu dry martini. 

segunda-feira, 26 de julho de 2021

The day after - Antonio Prata


ET – E acabou por que?
Último Remanescente da Humanidade – Resumindo bem, a Terra esquentou muito e a gente, tipo, cozinhou.
ET – Ah... Foi meteoro? Vulcão? Gigante Vermelha?
URH – Não, no caso, foi vacilo, mesmo. A gente queimou petróleo, muito petróleo, até o mundo virar uma sauna seca.
ET – E queimaram petróleo pra que?
URM – Pra se locomover, basicamente. A gente criou umas caixas de metal que queimavam petróleo e te levavam de lá pra cá, sem você ter que cansar as pernas.
ET – E vocês iam de lá pra cá, pra que? Pra fugir de predadores?
URH – Não, não. Os predadores viraram bolsa e tapete bem antes. A gente queimava petróleo pra ir e voltar do trabalho, da padaria, do posto, onde a galera ia encher a caixa de metal com mais petróleo e fazer uma social na lojinha, tomando Skol latão.
ET – E por que vocês não iam a pé pro trabalho, pra padaria, pro posto, fazer social na lojinha, tomando Skol latão?
URH – Porque todo mundo se aglomerava numas cidades enormes e acabava ficando meio longe do trabalho, da padaria, do posto.
ET – E por que vocês não se dividiam em cidades menores, onde dava pra fazer tudo a pé?
URH – Porque nas cidades enormes tinha mais possibilidade de trabalhar e de ganhar dinheiro pra poder comprar uma caixa de metal maior e mais cara, que gastasse mais petróleo.
ET – E por que alguém quereria isso?
URH – Porque dava status e status era tudo. No trabalho, na padaria, no posto, neguinho via tua caixona de metal, capaz de ir a 240 KM/H e dizia: “pô, ó o cara!”.
ET – Nossa, olhando esses escombros, agora, nem dá pra imaginar que por aqui passavam caixas de metal a 240 quilômetros por hora.
URH – Não, na verdade, não era assim, não: como eram muitas caixas de metal e todos queriam se locomover ao mesmo tempo, ficava tudo engarrafado. Nos horários de pico a média era de de oito quilômetros por hora.
ET – Ué, até onde eu sei, com as pernas vocês podiam ir mais rápido que isso, não?
URH – Poder, podia. Mas a gente preferia ir devagarinho na caixa de metal, com os vidros fechados, ar condicionado e insulfilm, de boa, ouvindo notícias sobre o trânsito e tirando meleca do nariz.
ET – Tirando meleca do nariz? Dava algum prazer físico, isso?
URH – Dava um prazer medíocre. E uma culpinha, também. Prazer mesmo dava era o sexo, mas no fim ninguém mais tinha tempo pro sexo, porque tava ou trabalhando que nem louco pra comprar uma caixa de metal, ou parado dentro da caixa de metal, por horas, tentando chegar ao trabalho, onde trabalharia que nem louco pra comprar outra caixa de metal.
ET – Então vocês todos morreram porque gostavam de ficar parados em caixas de metal que queimavam petróleo pra levar vocês de lá pra cá a uma velocidade inferior a das próprias pernas?
URH – É. Por causa disso, das bandejinhas de isopor e de umas pessoas que insistiram até o fim em empurrar folha na calçada com o esguicho.
ET – Oi?
URH – Esquece. Podemos falar de outro assunto? E lá de onde cê vem, é bonito? Fresquinho? Tem praia?

publicada na Folha - 25/06/2015 (estava nas minhas lembranças do Face)

domingo, 25 de julho de 2021

A primeira vez - Marcelo Rubens Paiva

 


Ele se surpreendeu quando entrou e a viu com roupa de grife, esmaltes bem pintados, a pele bem tratada, o cabelo mais bem penteado do câmpus, numa cadeira escolar rabiscada, lascada, bamba, com chiclete debaixo da tampa. 

Ela tinha olhos esverdeados que brilhavam e o queimaram. O seu coração disparou, pois ela o convidou para se sentar ao lado, com o gesto de tirar a bolsa de cima da carteira vizinha. Era uma aula de francês do Instituto de Linguagem. Alunos da graduação de outros departamentos podiam estudar línguas de graça. Serviam de cobaias para professores recém-formados, experiências didáticas.

Ao sair da classe, se despediram formalmente. No ponto de ônibus, ele fechava os olhos e respirava fundo para sair do estado de encantamento. Nunca uma garota o tinha afetado daquele jeito. 

Sua elegância, aparência, olhar flamejante e a autoconfiança eram um contraste com o ambiente informal daquela universidade pública degradada, tomada por jovens inseguros. Reprisava o convite, ou melhor, a indireta, de o convidar para se sentar ao seu lado, assim que o viu: ela gostou dele, tirou a bolsa da carteira vizinha, indicando é aqui que você tem que ficar. 

Se perguntou o que acabou de acontecer. Via na janela do ônibus o rosto dela refletido, como se estivesse ao lado. Um arrepio involuntário percorreu a espinha. Torceu muito para o tempo acelerar e chegarem as próximas aulas de francês.

Eram calouros, tinham 18 anos e nada em comum. Quer dizer... Ele era de Humanas, morava numa república esculachada e não tinha um tostão. Ela, da Engenharia, e o pai era um grande empreiteiro, nasceu e se criou numa Campinas que ele não conhecia: rica, ainda agrária, mas também tecnológica. 

Campinas já foi do café. Passou a ser da indústria e logística, com o maior centro de carga aérea da América Latina, o Viracopos. Lá, foi inventada a fotografia, por Hercule Florence. De Campinas é Carlos Gomes, o compositor de óperas. Campinas foi maior que São Paulo. Dela, saíam várias ferrovias, e chegava o café. Cresceu demais e desordenadamente. Até ser atacada por uma epidemia mortal de febre amarela. 

Ela falava de tudo isso com tanta veemência, que ele começou a achar a Elétrica um dos ramos mais importante do conhecimento, e Campinas um polo de inovação, cultura e tecnologia. E a empolgação era tamanha, que ele se perguntava como viveu até então sem saber da história de Campinas, que tem uma escola centenária com o belíssimo nome de Colégio Culto à Ciência, em que estudou Santos-Dumont, o poeta Guilherme de Almeida e o jornalista Julio de Mesquita, do Estadão

Um dia, ela o convidou para uma festinha da Engenharia. Foi pegá-lo na sua república caindo aos pedaços, no seu carro zerinho. Ele foi com a roupa que tinha. Ela caprichou. Ao redor, um perfume doce e envolvente.

Entraram na festa. Ela o segurou na mão e puxou. E as mãos não se desgrudaram. Seus dedos, entrelaçados. Como com o dedo na tomada, uma onda de choque circulou por todo o corpo. Se desgrudaram para cumprimentar as pessoas. Queriam que não fosse obrigatório cumprimentar os outros. Beberam.

- No que você está pensando? - ela perguntou. 

- Vamos dançar?

Ele dançava bem para os padrões da estudantada de Exatas. Quer dizer, era uma dança exótica, livre, não matemática, como uma girafa tonta e com um prego na pata.

Deviam achá-lo um menininho drogado, espaçoso, que queria aparecer, como coreografado por Nijinsky, exibindo Stravinski a Paris. Ela fazia os passos que todos faziam, os da moda: os pés parados, mexendo os braços e quadris, balançando cabelos. 

Foram para uma varanda respirar. Tinha vista para a cidade. Ficaram grudadinhos. Até se beijarem pela primeira vez. Daqueles beijos que se dão com amor e tesão, que as bocas não se desgrudam, e cada um tenta abri-la mais, para se oferecer e sentir o gosto do outro.

- Por que estamos aqui? - ela perguntou do nada.

- Para beber, dançar e beijar.

- No planeta. Você pensa no futuro? Nós existimos por alguma razão. Pra salvar o planeta, melhorar a vida das pessoas. E temos pressa. A maioria aqui quer se formar e trabalhar numa grande concessionária, estrangeira de preferência, em parques industriais, fábricas, para construir, erguer e faturar. A gente tem uma missão. Somos privilegiados: nascemos, temos saúde e entramos numa universidade de ponta. Não quero me formar e trabalhar para uma empresa. Penso em fazer algo de útil.

- Eu não sou nada, mas devo ser tudo. Qualquer um que saiba alguma coisa da história, sabe que grandes mudanças sociais são impossíveis sem o fermento feminino.

- Que lindo. Quem disse isso?

- Marx. 

Foram embora sem se despedir de ninguém. Ela estacionou na porta da república dele e subiu no seu colo. Com as pernas bem abertas, o agarrou, beijava, segurava seu pescoço, se esfregava, fechava os olhos, mexia o quadril, ia explodir, quando uma ereção se completou. Ela travou, fulminou seus olhos e disse:

- Sou virgem.

- Eu também.

Ela voltou para o lugar da motorista, arfando, ajeitando-se. Sorriu e disse:

- Não temos pressa.


sexta-feira, 23 de julho de 2021

Aquários de Proust - Milton Hatoum

 Numa noite fria de junho, aproveitei os últimos minutos do nosso encontro para perguntar a Irma se a memória dela ainda estava afiada. 

Minha amiga respondeu sem titubear:

“Quando o sono leva uma pessoa para longe do mundo habitado pela lembrança e pelo pensamento, através de um éter onde essa pessoa estava sozinha, mais que sozinha, sem nem mesmo esse companheiro em que é possível reconhecer-se a si mesmo, é sinal de que essa pessoa estava fora do tempo e de suas medidas.” 

Tomou fôlego e acrescentou:

“Mas o duro é quando o sono acaba numa curva súbita e a gente abre os olhos para a realidade assustadora. Porque o prazer do sono não se renova durante o dia, ainda mais nesses dias de tanta ira e de tantas mentiras.”

Irma talvez seja a mais proustiana das minhas amigas; ela cita em tradução libérrima e voz comovida passagens de Sodoma e Gomorra. Inspirada, acrescenta palavras ou frases que lhe vêm à mente. 

Desde o século passado, quando ficamos amigos, Irma me humilha com sua memória prodigiosa, que parece mais elástica com a passagem do tempo, pois há anos nós dois já ultrapassamos a linha do Equador. 

Quando digo que ela tem a memória de Funes - o personagem borgiano capaz de se lembrar de tudo com todos os detalhes -, Irma sorri com ironia: 

“É a releitura, mon cher. O que mais pode fazer uma aposentada? Reler bons livros, rever filmes, fazer uns bicos e ajudar os necessitados.”

Nasceu numa família humilde de Ribeirão Preto; estudou, batalhou e, como se diz, subiu na vida. Subiu tanto, que alcançou um cargo importante num banco, onde trabalhou por décadas. Não teve filhos; nunca teve carro. Fez viagens ao exterior a trabalho, e andou por muitos lugares do Brasil, para conhecer nossas graças e desgraças. 

E a Trovoada, vai bem? 

“Por enquanto, ignora a velhice”, ela riu. “Ainda late, salta, brinca e morde. Você conhece minha companheira. A idade dela equivale à minha. E agora tenho quatro gatos.

Não sentem falta de afeto nem de comida.” 

Comprou um apartamento em Perdizes e, mesmo aposentada, dá consultoria a pequenos e médios investidores; não é preciso dizer que fez uma poupança gorda. Agora faz centenas de sanduíches por semana e os distribui aos pobres. 

“Sei que é um paliativo. Mas uma família na miséria, com pai e mãe sem emprego, não sobrevive com 250 reais por mês. Vale o paliativo. Vale todo tipo de ajuda...

Sanduíches, dinheiro, cobertor, roupa, livros para crianças...” 

Ela se lembrou do passeio noturno da Trovoada e se apressou a voltar a Perdizes. A caminho do metrô, a gente parou diante de um restaurante com janelões de vidro; na sala cheia, a luminosidade era um pouco menos exagerada que as gargalhadas; na calçada, uma mulher e duas meninas esperavam alguma sobra. 

“Você se lembra da cena do aquário?”, perguntou.

Cena de um filme?

“Não, de um livro, do meu querido autor francês.”

Tirou da bolsa duas cédulas, entregou-as à mãe das crianças e se agachou para conversar com elas. Depois mencionou uma cena do romance de Proust: o restaurante cheio de comensais elegantes, e os pobres na calçada parisiense, olhando através da vidraça o jantar.

Não me recordava desse aquário proustiano, mas sim de outro, talvez no Sodoma e Gomorra. 

“Bem lembrado”, disse Irma. “É uma das cenas com o barão de Charlus. Esse aristocrata é o personagem mais excêntrico, mais cômico e um dos mais perturbados... E quanta desgraça!”

Perto da estação, Irma ainda falava do barão, difamado por parentes e amantes. Ela notou que Proust usara o aquário como metáfora da falta do sentido de visibilidade e das distâncias. 

“Charlus, Charlus”, repetia Irma. “Memé para os íntimos, lembra? O barão é como um peixe que quer nadar além de seu aquário, enganado pelo reflexo do vidro na água. O atormentado Memé não vê ao lado dele um piscicultor, o sujeito todo-poderoso que tira o peixe de seu meio natural para trancafiá-lo sem piedade num cárcere de vidro.” 

Foram as últimas palavras da minha amiga, antes do adeus. 

No caminho de volta, parei por uns segundos diante do restaurante-aquário, tão pleno de luz e risadas. Reparei numa parede um colar de lâmpadas miúdas, que emitiam um brilho de pérolas falsas. Olhei a calçada: a mulher e suas filhas, ausentes. 

Onze graus, neblina, céu sem estrelas. Andava devagar na noite gelada de junho; pensava na filantropia de minha amiga, no difamado barão de Charlus, nos que estão dentro e fora dos aquários, em Paris, aqui, por toda parte... 

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...