Podia ser sábado, terça ou sexta-feira: andava uns dois quilômetros, só para tomar o café da manhã na padaria onde ela trabalhava. Saudade da fala mansa e do sotaque do Norte, saudade das águas de lá.
Quando ela perguntava: “Maninho, tu queres uma tapioca com queijo coalho e um tiquinho de manteiga, né?”, os sons das vogais nasalizadas me levavam a Belém, onde Felícia nascera.
Quando saiu da infância e do orfanato, trabalhou no Ver-o-Peso, depois passou a vender açaí, “puro ferro e delícia”. Um dia uma mulher lhe ofereceu emprego de doméstica; Felícia aceitou: o salário era baixo, ia ganhar menos na casa, mas vender açaí na rua era mais perigoso.
“Ou tu pegas o ruim, ou tu ficas na pior.”
Em 2011, quando completou dezoito anos, fez a longa viagem de ônibus para São Paulo.
“Vim na doideira de viver melhor, rapaz.”
Ficou meio perdida na rodoviária, perguntando às pessoas por um quarto de pensão; foi assim que conheceu a viúva Dalva, que acabara de chegar de Ibotirama. A paraense e a baiana conversaram, se deram bem, riram. Dessa conversa, surgiram duas coisas cruciais na vida: a amizade e um lugar para dormir. Outras coisas, não menos cruciais, surgiram com o tempo, que nem sempre é traição.
Dalva, também migrante, morava em Guaianases desde o século passado. Viajara a Ibotirama para ver o irmão, dono de um pequeno sítio. Dalva deu a Felícia teto, comida, palavras e atos de afeição. Com as palavras, trocaram histórias de vida, que Felícia me contava a conta-gotas, enquanto eu mastigava uma tapioquinha e tomava um pingado.
Eu chegava à padaria às oito da manhã; Felícia, para ser pontual, se levantava às quatro e meia e pegava duas conduções; antes das sete, já estava detrás do balcão ou perto da chapa quente.
“Com sol ou com chuva, sempre chego na hora. Quando atraso, é culpa do metrô.”
Tinha feições indígenas, o cabelo muito liso e preto, e o rosto arredondado; as sobrancelhas, um arco perfeito; e o sorriso, franco. Às vezes, depois de atender um cliente, olhava para fora, bem longe e pensativa; eu percebia nesse olhar longos sofrimentos, mas não lhe perguntava sobre o passado; o pouco que ela me contou, sem autocomiseração, bastava para sofrer um século: palavras que traduziam o absoluto da solidão. No entanto, não parecia uma mulher triste. Voltava a Guaianases no fim da tarde, ajudava Dalva a preparar o jantar, dormia às nove. Nos fins de semana, as duas amigas limpavam a casa, lavavam e passavam a roupa, às vezes iam ao mercado municipal e passeavam pelo centro.
Felícia leu, aos poucos e sempre aos sábados, os contos de Antes do Baile Verde e de Alexandre e Outros Heróis. Ela não conhecia esses livros nem os autores. De Belém, trouxera onze livros velhos, que ganhara de uma freira e da ex-patroa. Agora tinha treze. Gostava de ler e de cozinhar, desde o tempo do orfanato.
Certa vez, quando a gente falava dos pratos do Norte, Felícia perguntou se eu já tinha provado filhote na brasa, maniçoba, pato no tucupi...
Sim, mas faltou a sobremesa divina: sorvete de bacuri com castanha ralada.
“É mesmo, faltou um docinho.”
Ficou radiante quando levei para ela uma garrafa de tucupi, um pacote com jambu congelado e outro com farinha d’água de Cruzeiro do Sul. Felícia olhou a garrafa e os pacotes como se fossem totens: há quantos anos não provava essas delícias? Ia fazer uma surpresa à amiga baiana: arroz com jambu e molho de tucupi, farofa com banana, alho e cebola, e peixinho frito. Pediu licença, foi atender um freguês e, lá perto da chapa quente, disse em voz alta:
“Tás com água na boca?”
Muita, mana. Toda a água do Guamá e do rio Negro.
No ano passado, eu a vi uma só vez, em junho. Estava preocupada: temia perder o emprego na padaria, não podia parar de trabalhar, a pobreza no bairro aumentara.
Juntava um dinheirinho pra viajar com Dalva a Ibotirama, mas só depois da pandemia.
Esse “depois” não veio: parece que o tempo parou, cativo de forças maléficas.
Em dezembro, fui levar um presente de Natal à amiga paraense, mas não a vi na padaria. Uma moça, colega dela, me reconheceu:
“Felícia não está mais aqui. Foi embora...”
As frases curtas eram ambíguas: Felícia não trabalhava mais lá ou tinha sido mais uma vítima da pandemia?
Pensava nisso com tristeza, quando a moça deu um tapa na testa, foi até o freezer e voltou com uma caixinha de plástico.
“Felícia deixou esse sorvete pra você. Foi passar o Natal em Ibotirama, parece que vai viver lá, com uma amiga.”
Fiquei duas vezes contente: minha amiga estava viva, e o sorvete era de bacuri, minha fruta preferida.
Bacuri na cesta Foto: Neide Rigo|Estadão