sexta-feira, 28 de maio de 2021

Felícia longe daqui - Milton Hatoum

 Podia ser sábado, terça ou sexta-feira: andava uns dois quilômetros, só para tomar o café da manhã na padaria onde ela trabalhava. Saudade da fala mansa e do sotaque do Norte, saudade das águas de lá. 

Quando ela perguntava: “Maninho, tu queres uma tapioca com queijo coalho e um tiquinho de manteiga, né?”, os sons das vogais nasalizadas me levavam a Belém, onde Felícia nascera.

Quando saiu da infância e do orfanato, trabalhou no Ver-o-Peso, depois passou a vender açaí, “puro ferro e delícia”. Um dia uma mulher lhe ofereceu emprego de doméstica; Felícia aceitou: o salário era baixo, ia ganhar menos na casa, mas vender açaí na rua era mais perigoso. 

“Ou tu pegas o ruim, ou tu ficas na pior.”

Em 2011, quando completou dezoito anos, fez a longa viagem de ônibus para São Paulo.

“Vim na doideira de viver melhor, rapaz.”

Ficou meio perdida na rodoviária, perguntando às pessoas por um quarto de pensão; foi assim que conheceu a viúva Dalva, que acabara de chegar de Ibotirama. A paraense e a baiana conversaram, se deram bem, riram. Dessa conversa, surgiram duas coisas cruciais na vida: a amizade e um lugar para dormir. Outras coisas, não menos cruciais, surgiram com o tempo, que nem sempre é traição. 

Dalva, também migrante, morava em Guaianases desde o século passado. Viajara a Ibotirama para ver o irmão, dono de um pequeno sítio. Dalva deu a Felícia teto, comida, palavras e atos de afeição. Com as palavras, trocaram histórias de vida, que Felícia me contava a conta-gotas, enquanto eu mastigava uma tapioquinha e tomava um pingado. 

Eu chegava à padaria às oito da manhã; Felícia, para ser pontual, se levantava às quatro e meia e pegava duas conduções; antes das sete, já estava detrás do balcão ou perto da chapa quente. 

“Com sol ou com chuva, sempre chego na hora. Quando atraso, é culpa do metrô.”

Tinha feições indígenas, o cabelo muito liso e preto, e o rosto arredondado; as sobrancelhas, um arco perfeito; e o sorriso, franco. Às vezes, depois de atender um cliente, olhava para fora, bem longe e pensativa; eu percebia nesse olhar longos sofrimentos, mas não lhe perguntava sobre o passado; o pouco que ela me contou, sem autocomiseração, bastava para sofrer um século: palavras que traduziam o absoluto da solidão. No entanto, não parecia uma mulher triste. Voltava a Guaianases no fim da tarde, ajudava Dalva a preparar o jantar, dormia às nove. Nos fins de semana, as duas amigas limpavam a casa, lavavam e passavam a roupa, às vezes iam ao mercado municipal e passeavam pelo centro. 

Felícia leu, aos poucos e sempre aos sábados, os contos de Antes do Baile Verde e de Alexandre e Outros Heróis. Ela não conhecia esses livros nem os autores. De Belém, trouxera onze livros velhos, que ganhara de uma freira e da ex-patroa. Agora tinha treze. Gostava de ler e de cozinhar, desde o tempo do orfanato. 

Certa vez, quando a gente falava dos pratos do Norte, Felícia perguntou se eu já tinha provado filhote na brasa, maniçoba, pato no tucupi...

Sim, mas faltou a sobremesa divina: sorvete de bacuri com castanha ralada.

“É mesmo, faltou um docinho.” 

Ficou radiante quando levei para ela uma garrafa de tucupi, um pacote com jambu congelado e outro com farinha d’água de Cruzeiro do Sul. Felícia olhou a garrafa e os pacotes como se fossem totens: há quantos anos não provava essas delícias? Ia fazer uma surpresa à amiga baiana: arroz com jambu e molho de tucupi, farofa com banana, alho e cebola, e peixinho frito. Pediu licença, foi atender um freguês e, lá perto da chapa quente, disse em voz alta: 

“Tás com água na boca?”

Muita, mana. Toda a água do Guamá e do rio Negro. 

No ano passado, eu a vi uma só vez, em junho. Estava preocupada: temia perder o emprego na padaria, não podia parar de trabalhar, a pobreza no bairro aumentara.

Juntava um dinheirinho pra viajar com Dalva a Ibotirama, mas só depois da pandemia. 

Esse “depois” não veio: parece que o tempo parou, cativo de forças maléficas. 

Em dezembro, fui levar um presente de Natal à amiga paraense, mas não a vi na padaria. Uma moça, colega dela, me reconheceu: 

“Felícia não está mais aqui. Foi embora...” 

As frases curtas eram ambíguas: Felícia não trabalhava mais lá ou tinha sido mais uma vítima da pandemia? 

Pensava nisso com tristeza, quando a moça deu um tapa na testa, foi até o freezer e voltou com uma caixinha de plástico. 

“Felícia deixou esse sorvete pra você. Foi passar o Natal em Ibotirama, parece que vai viver lá, com uma amiga.” 

Fiquei duas vezes contente: minha amiga estava viva, e o sorvete era de bacuri, minha fruta preferida. 



Bacuri na cesta Foto: Neide Rigo|Estadão



terça-feira, 25 de maio de 2021

O eterno drama dos machos é pensar demais com o órgão errado - João Pereira Coutinho

 Sou um preguiçoso desgraçado. Quer exemplos? Os aplausos. Sempre que assisto a um concerto ou a uma peça de teatro, nunca aplaudo realmente. Faço apenas o gesto.

Meu raciocínio é preguiçoso: para que bater palmas quando isso é cansativo e redundante? Basta simular. Já há muita gente batendo.

Minha vida é isso: um esforço constante para não fazer esforços. Exceto, é claro, quando está em causa a minha masculinidade.

Anos atrás, li algures que as aeromoças que nos recebem à entrada do avião não estão ali por mera simpatia. O assunto é sério: quando entramos, elas olham para as nossas figuras com atenção clínica. Só para identificarem os passageiros fisicamente pujantes, que podem dar uma ajuda em caso de acidente ou sequestro terrorista.

Depois de ler essa informação, meu comportamento mudou na hora da viagem: encho o peito de ar, encolho a barriga, caminho com passos firmes. Até a voz fica mais grossa, acompanhada por um belo sorriso californiano. Só falta dar um grito de Tarzan. E para que tanta vaidade, meu Deus?

Na hora decisiva, o mais provável era atropelar mulheres e crianças para fugir dali.

Poderia dizer, em minha defesa, que a culpa não é minha. Meus instintos apenas cumprem os rigores da seleção sexual: confrontado com uma “oportunidade de reprodução”, o macho adota certos comportamentos para atrair a fêmea, mesmo que esses comportamentos sejam contrários à sua sobrevivência.

O caso do pavão, que tanto intrigava Charles Darwin, é o melhor exemplo: o bicho abre a sua cauda para conquistar a donzela; mas, ao fazê-lo, o leque das penas chama a atenção dos predadores.

Por isso abri a boca de espanto com a polêmica que rodeia os 150 anos da publicação de “A Descendência do Homem”, em 1871, do referido Darwin.

Fato: o cientista sempre deu boas polêmicas. A maior de todas foi afirmar nesse livro o que toda a gente sabe desde que esteja atenta nos almoços de domingo: há macacos na família.

Acontece que a polêmica recente é de outra natureza: como acusa o antropólogo Agustín Fuentes na Science, Darwin estabeleceu hierarquias entre raças e sexos que ensombram a sua contribuição científica.

Como aceitar que a raça europeia é superior aos povos indígenas da Austrália? E como aceitar que os homens são intelectualmente superiores às mulheres?

A resposta é menos dramática do que os críticos imaginam: não aceitando. Como qualquer cientista, em qualquer época, trabalhando em qualquer área, Darwin era filho do seu tempo. Isso significa que os preconceitos da sociedade vitoriana não ficavam à porta do seu estúdio.

Por outro lado, a afirmação de que Darwin, com tais teorias, ofereceu uma justificação para o imperialismo, o colonialismo e o genocídio, como sustenta Agustín Fuentes, coloca sobre os ombros do velho Charles a responsabilidade pelos crimes que os seus sucessores (e deturpadores) cometeram.

Existe algum cientista ou filósofo que possa afirmar, hoje, com toda a confiança, que jamais será usado e abusado por gerações futuras?

A alegada superioridade de certas raças ou sexos foi oferecida como hipótese. A evolução da ciência pós-Darwin desacreditou essa hipótese, jogando o conceito de “raça” ou uma eventual diferença de inteligência entre os sexos no local apropriado: o caixote do lixo.

Escutando alguns críticos, que se acham tão modernos nos seus julgamentos anacrônicos, uma pessoa pergunta se não terão sido eles a ficar no século 19, imunes ao progresso da ciência. Mesmo quando reconhecem esse progresso.

E, já agora, imunes também ao exemplo do pavão: numa famosa carta a um colega americano, Darwin confessava que as penas do pavão não o deixavam apenas intrigado; também o deixavam enojado. Fácil entender por quê: o eterno drama dos machos é pensarem demasiado com o órgão errado.

Na minha próxima viagem de avião, prometo controlar os meus instintos e entrar na lata como devo: pálido, queixoso, derreado, quase a desfalecer.

De que vale mostrar a penugem quando eu quero é que me deixem em paz?


ilustração: Abu



terça-feira, 11 de maio de 2021

Três siricuticos - Gilberto Amendola

 

O primeiro

Eu quero viajar. Pagar uma fortuna em um café ruim de aeroporto. Check-in antecipado. Expectativa do embarque. Fila desnecessária para o embarque. Pensar na mala. Medo de extravio. Esperança de romance entre desconhecidos que se encontram em um avião. Fileira do meio. Travado entre duas pessoas pouco amigáveis. Dor nas costas. Pernas adormecidas. Fila para o banheiro. Criança chorando. Beef or chicken? Coffee or tea? Remédios para dormir. 

A aeronave arremeteu uma vez. Apertar os cintos. Tentar lembrar de uma oração. Respirar aliviado. Correr para não perder a conexão. Perdê-la. Me perder em um aeroporto desconhecido. Pegar uma van no desembarque. Chegar ao hotel e descobrir que foi enganado pelas fotos no site. Tomar um banho e sair andando pela cidade. 

O primeiro museu. A primeira foto. O primeiro vinho. A primeira promessa de não realizar conversões mentais. Cartão de crédito tremendo na mão. Só se vive uma vez.

*

O segundo

Eu quero festa. Escolher a camisa que esconde a barriga. Banho mais demorado. “Esquenta” em casa. Umas três gim tônicas para chegar no “grau”. Chamar um aplicativo de carro. Aglomerar no carro. Cantar uma música ruim. Fila na porta da balada. Encontrar conhecidos na fila. Comprar latinhas de cerveja para tomar na fila. Maldita fila que não anda. Arrependimento por não comprar ingressos antecipados. 

Se interessar por alguém na fila. Ela já está acompanhada. Ser revistado de forma ostensiva. Um mar de gente na balada. Demorar uma eternidade para chegar no bar. Cerveja gelada. Vodca barata. Fingir que sei dançar. Dançar. A culpa é sempre do DJ.

Tentar puxar assunto com uma desconhecida que não me escuta. Sentir calor. Me afastar da pista para descansar. Me decepcionar com a noite. Ir embora sozinho. Parar na van do Dog. Pedir um dogão completo. Comer um dogão sentado em um banquinho de plástico. Purê e batata palha na minha calça jeans. Achar que tive alguma epifania. Não tive. Chamar o aplicativo de carro. Me jogar na cama com a mesma roupa da balada. 

*

O terceiro

Eu quero você na minha casa. Quero arrumar minha casa para te receber. Quero me arrumar também. A excitação do interfone tocando. O porteiro repetindo seu nome com uma voz que me parece maliciosa. A campainha tocando. Uau! 

Ficar na duvida sobre o tom do elogio. Tentar não parecer ansioso. Ansiedade é um problema. Beijo no rosto. Abraço. Não olhar para o decote. Morar no decote. Tour pelo apartamento minúsculo. Para uma pessoa sozinha até que está bom. Falar do condomínio e aluguel. Vai beber o quê? Eu é que sei? Eu não sei nada (não falo, mas penso). Vou fazer um martini. Colocar um som. Já ouviu o Wilco? Uma ou duas azeitonas? Piadinha sobre calorias. Vamos para o sofá. 

Conversa fiada. Olhares que se cruzam. Mão na perna. Distância encurtada. Beijo. Beijo. Roupas no chão da sala. Procurar o preservativo. Falar besteira. Sentir o coração batendo. É a vida. É a vida. Relaxar. Olhar para o teto. Preparar outra bebida. Ficar em silêncio. Começar de novo. Devagar. 

terça-feira, 4 de maio de 2021

Poeira de estrelas - Cláudio Moreno



Quando Zeus transformou Órion, o caçador, numa estrela, ele não se sentiu sozinho, pois o céu de antigamente era habitado por dezenas de personagens e animais mitológicos. O próprio Sol, a Aurora, a Lua – todos eram divindades, maiores ou menores, que povoavam o firmamento graças à imaginação de nossos antepassados.

Muitos foram os mitos criados para explicar os planetas e as constelações. Um dos mais curiosos, talvez, é o que narra o nascimento da nossa galáxia: Zeus, mesmo sendo casado com Hera, elegeu uma mortal para ser mãe de um filho especial, Hércules, a quem reservava um destino glorioso.
Para garantir que o bebê se tornaria um homem excepcional, levou-o às escondidas para o Olimpo e deixou-o mamar em Hera, que estava adormecida. Contudo, o pequeno Hércules sugava com tanta força que a deusa acordou sobressaltada e, ao ver aquela criança agarrada a seu seio, afastou-a com um gesto instintivo. Com o susto, o guloso deixou escapar da boca um jato do leite divino, que atravessou o céu e deu origem ao que chamamos até hoje, com justa razão, de Via Láctea.
Com o passar dos séculos, veio o declínio do mundo greco-romano – e, consequentemente, de toda essa mitologia; com isso, tornou-se deserto aquele céu tão densamente povoado. Todas aquelas criaturas familiares desapareceram, restando apenas o Universo organizado por suas leis imutáveis. Expressando o sentimento da nova época, o filósofo Pascal, no séc. 17, confessava o temor que sentia diante do que ele definiu como “o silêncio eterno desses espaços infinitos”.
Ora, se ao olharem para cima os gregos viam os deuses e Pascal via o infinito, nós outros não vemos mais nada. Numa madrugada de 1994, um violento terremoto abalou a Califórnia, destruindo cidades e rodovias e provocando um blecaute em toda a região. Ao saírem à rua para avaliar os danos, os californianos, talvez pela primeira vez na vida, viram-se mergulhados na mais profunda escuridão.
Pois naquela noite e nas que se seguiram, a Defesa Civil recebeu incontáveis ligações relatando que depois do terremoto havia surgido no céu uma grande e estranha nuvem prateada, cheia de pontos luminosos – e só a muito custo as pessoas foram convencidas de que a “nuvem” gigantesca e ameaçadora era apenas a Via Láctea, que sempre esteve ali desde a origem do planeta.
Ninguém vai negar que a iluminação elétrica veio aumentar nosso dia e melhorar nossa vida, mas poucos se deram conta do preço secreto que acabamos pagando por isso: o clarão da cidade moderna, ao privar-nos do majestoso espetáculo do céu noturno, tirou-nos também a oportunidade, renovada a cada noite, de sentir o ínfimo papel que representamos na ordem natural das coisas.


texto de 2013

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...