sábado, 28 de novembro de 2020

Pessoas que dizem mas - Cláudia Tajes

 Foi meu filho quem reparou. "Mãe, notou que para tudo tu tens um mas?"

Eu não havia percebido. Então, depois que ele falou, passei a prestar atenção no que eu me tornei: uma pessoa que diz mas.

O filme é interessante, mas o ator é péssimo. O restaurante é ótimo, mas o atendimento é bem ruinzinho.

Entreguei o trabalho, mas podia ter ficado melhor. Pintei o cabelo, mas acho que ficou muito claro.

Chegou a comida, mas veio fria. Comprei um vestido, mas não caiu muito bem. E, assim, ad infinitum.

Não sei em que momento me tornei essa pessoa. Sempre ouvi que eu era positiva, otimista. Talvez seja a idade, é mais fácil ser positiva e otimista aos vinte e poucos, trinta anos. Os problemas existem, apenas não parecem insolúveis na saúde e na juventude. Com um bom amor juvenil, nada é ruim o bastante. Até a falta de dinheiro é menos dura quando existe colágeno.

Claro: tudo dentro da realidade branca e classe média. O parágrafo acima não se aplica, ou não de todo, a pessoas que nasceram em outro contexto. Antes que alguém pense, ih, começou o mimimi, não se trata disso. Só é preciso reconhecer os próprios privilégios e entender que a maioria absoluta da população está submetida a condições que a realidade branca jamais viveu nem vai viver.

Esta coluna é leve, mas não é alienada.

Voltando ao presente.

Nós, as pessoas que dizemos mas, não ficamos satisfeitas nunca. Por mais que se mexa, se invente, se vá atrás, se desdobre, se vire, sempre falta alguma coisa.

Consegui o emprego, mas não era bem o que eu pensava.

Mudei de telefone, mas odiei o sistema.

Emagreci, mas fiquei flácida.

Casei, mas que tédio.

Tive o filho que eu queria, mas não durmo mais.

Mudei de apartamento, mas é muito barulhento.

Pior que o mas não é usado apenas em desproveito próprio. Pessoas que dizem mas nem percebem que estragam a alegria alheia. Gramaticalmente uma conjunção coordenativa adversativa, o mas é também uma crítica - muitas vezes, fora de hora - , uma bola nas costas, um sinal de azedume, uma demonstração de maus bofes. É o elogio com um contrapeso incluído.

Gostei do teu cabelo, mas preferia como era antes.

Teu churrasco é bom, mas tem muita gordura.

Gostei do teu livro, mas o final podia ser melhor.

Tua ideia é ótima, mas eu faria diferente.

Pode sair com essa camisa, mas a outra é mais bonita.

Agora que me reconheci uma pessoa que diz mas, tentarei diminuir o adversativo não nas minhas frases, mas nos meus pensamentos. Ainda que não seja fácil, porque o adverso tem nos acompanhado em praticamente todos os dias deste ano.

Não sei se vai dar certo. Mas assim como cheguei ao fim deste texto sem usar qualquer mas que não fosse de efeito, digamos, cenográfico, vai que consigo ficar limpa de tanto mas também na vida?

sábado, 21 de novembro de 2020

O espírito do cachorro-quente - Mário Corso

 



Aniversário de criança é verdadeiro sem cachorro-quente? Para mim, sem ele, nenhuma festa infantil ganharia alvará. Senão, por que mais iríamos? Só ele compensa o mico.

A versão infantil é uma domesticação da versão raiz. O verdadeiro é com linguiça, envolvendo fogo direto, na grelha ou no espeto. Como tempero, apenas mostarda, acompanha pão francês novinho, casca grossa. Levado para dentro de casa, temos salsicha fervida em água. Ele ganha molho de tomate e repousa sobre um macio pão sovado.

Em todas as versões, o importante é que o pão seja um simples complemento, algo para segurar a peça-chave. A relação deve ser por princípio assimétrica. Ao pão cabe ressaltar a atração principal e proteger os dedos do calor e da gordura; ser o receptáculo dos complementos fugidios, um guardanapo comestível.

A regra de ouro é que o pão não deva esconder toda a linguiça/salsicha. Não sou desses radicais que pregam que cachorro-quente de salsicha picada com molho seja crime inafiançável. Apenas acho lamentável. É um ataque à alma do cachorro-quentismo. Sinto-me menos humilhado comendo um exemplar vegetariano com salsicha de soja.

Existe outra deturpação problemática: o cachorro-quente refeição. Usa-se do conceito para empilhar qualquer absurdo, incluindo salada (por quê?), batata palha, ervilha, milho, queijo ralado, purê de batatas (sim, eu vi com meus olhos), enfim, um desafio de equilíbrio. Para não desandar, usa-se maionese como argamassa.

Você tem que encarar sem talheres. Existe ali uma felicidade primal em não saber como comer o bicho e a certeza de que, mesmo lambuzado, sairá vencedor. O cachorro-quente refeição talvez seja um dos raros casos em que a gastronomia encontra o esporte. Geralmente a contenda é em pé, os mais habilidosos sabem da inclinação e da abertura certa das pernas. Não dá para encarar o desafio com qualquer roupa, recomenda-se jeans escuros, desses que é só espanar o que escorre.

Como a empreitada é um pantagruelismo pocket, talvez seja um reencontro com o lado rústico do cachorro-quente original, mas em outro patamar. Alguns maîtres não concordam, dizem que ele contraria a essência de ser uma refeição leve, ligeira e festiva.

Para os psicanalistas, o cachorro-quente refeição é uma metáfora do circuito dos traumas. Você se encanta com aquela potência calórica. Acredita que será um vencedor e, na primeira mordida, é como se explodisse uma granada de ketchup no rosto. Então você esquece o evento. Um mês depois, pensa que agora pode, e de novo maionese no cabelo.

Esses dias, numa festa, vi um garoto entrar na cozinha. Partiu um pão, colocou apenas o molho e saiu faceiro. Fez um cachorro-quente conjunto vazio. Então aprendi que estava errado. Cachorro-quente é uma palavra-festa, uma palavra-sonho, cada um preenche o seu como quiser.




sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Maricas é quem me xinga - Ignácio de Loyola Brandão

 Quando criança, lá em minha terra, um dos piores xingamentos era o de maricas. Significava que você era covarde, fraco, desprezível. O maricas – ou mariquinha – era ninguém, via-se isolado, fora do grupo. Naquela época ainda não existia o politicamente correto, os machões dominavam, ser macho era ser mandão, prepotente, dono do território, do falar e pensar, líder, chefe. Quanto mais arrogante alguém era, mais admirado. Ninguém queria ser maricas, homem-mulher. 

Para um menino, ser chamado de mariquinha era um terror. Carimbava. Fosse hoje seria demolido pela rede social, imaginem um efeminado, bicha, pederasta, guaxeba, boneca, jiló, gobira, viado, 3x8. O 24 era o viado no jogo de bicho. Todos tinham pavor de ser o 24 na lista de chamada da escola, virava motivo para bullying, era pior do que ter tuberculose, lepra ou gonorreia. Era ser humilhado com o riso das jovens, levava surra dos pais, ouvia o choro das mães. Fosse religioso, não obtinha a absolvição na confissão, não podia comungar. Ser maricas era um pecado.

Ser maricas ou mariquinha era tormento, a vida tornava-se um inferno. Tive vários amigos assim rotulados. Alguns deixaram a cidade, formaram-se, fizeram carreira. Outros foram destruídos, “carimbados” que estavam. O mundo masculino era implacável. Entre os machões estava um de apelido Chola. Nunca soube seu nome. O pai tinha abandonado a mãe, ele fora expulso da escola. Sua avó comandava o jogo do bicho no bairro. Feroz, mandão, humilhava o tempo inteiro. Ele tinha determinado dezenas de garotos como maricas, dizia que não servem para nada, não enfrentam uma briguinha de fim de aula, se pegam sarampo ou resfriadinho se apavoram com medo de morrer. Certo dia, quando a situação chegou ao insuportável, uniram-se os maricas e os supostamente mariquinhas, porque muitos dos não maricas assim tinham sido rotulados em algum momento de suas curtas vidas. A quadrilha do ódio era ativa. O grupo se armou com pedras, estilingues, cabos de vassoura com pregos e folhas serrilhadas de abacaxi, que cortam dolorosamente. Cercaram Chola no jardim. Intimidado, ele “pulou” para trás, deu o falado por não falado. Chola era conhecido, dizia sim, depois dizia não. Falava pau e depois dizia que era pedra, galo virava galinha. Dizia e desdizia. Atemorizado, ele negou:

“Vocês maricas? Que isso? São machos pra valer. Não! Nessa turma ninguém é maricas. Quem disse que eu disse isso?”. 

“Você disse, xingou. Escorraçou tanto que a gente nem podia sair na rua.”

Atemorizado com a folha de abacaxi ameaçadora diante do rosto, Chola saltou de banda, como se dizia, tirou da seringa.

“Vocês sabem! Me conhecem! Sabem até o que minha mãe diz? Que eu falar e um burro cagar é a mesma coisa. É assim mesmo, sou mentiroso.”

“Mas hoje você apanha ou ...”

“Ou o quê?”

“Vai tomar um vidro de sal amargo.

“Ou uma concha de óleo de rícino”, sugeriu Josué, de todos o mais tímido.

Para quem nunca ouviu falar, sal amargo e óleo de rícino eram os piores purgantes. Gosto horroroso, resultados tenebrosos. Era tomar, esperar um pouco, correr para o banheiro. Às vezes, vergonha, nem dava tempo de tirar a calça.

“Um vidro? Não, um vidro, não. Uma colherinha! Só uma. Uma, uma...”

“Uma para cada um que você xingou.”

E assim aconteceu. Nem calculam. Foram três dias passados na casinha. Depois Chola foi transferido para a Santa Casa onde o bondoso doutor Koury, santo homem, conseguiu estancar a cachoeira malcheirosa e nos garantiu:

“Como médico gástrico, em meus 87 anos, tenho visto que todos aqueles que posam de valentes, corajosos, machões, prepotentes, no fundo não passam de maricões camuflados, enrustidos, envergonhados. Na hora H se borram. Borram e negam tudo”.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Capetas angelicais - Humberto Werneck

 Maldita hora, conta o Nelson, em que a dona da casa lhe propôs tomar um banho. 

Mirtes tinha sido sua colega na faculdade e vivia agora em Paris. Depois de um tempo sem se verem, ele estranhou a metamorfose que havia convertido a moça tímida e conservadora do interior goiano naquele ser loquaz a borbotar modernidades.

Escarrapachada no carpete, baseado e birita entre os dedos, a Mirtes desfiava com fartura de palavrões um torrencial relato autobiográfico. Em minutos soube o Nelson que o ex-bicho do mato tinha incinerado todos os condicionamentos burgueses da sua formação goiano-católica – a ponto de ter planejado e tido uma filha à revelia de um incauto inseminador. Graça de menina, a Carol, 5 anos de idade, espevitada que nem a mãe.

Deve ter sido a cara (de cansaço?) do Nelson que levou a Mirtes a interromper a discurseira: quer tomar um banho? Bem... – hesitou ele, estava ali como visita apenas... A amiga insistiu, qual o problema? 

Conformado, o Nelson já tomava o rumo do banheiro quando a Carol anunciou: 

– Quero tomar banho com o tio!

– Mais inesperada ainda foi a reação da mãe:

– Claro, meu amor!

E agora lá estava o Nelson nu sob o chuveiro e o olhar perscrutador da garotinha, ensaboando-se freneticamente para abreviar a agonia.

– O que é isto, tio? – quis saber a Carol, por pouco não cutucando o objeto de sua curiosidade.

– Isto... isto... – tartamudeou o visitante – ... é o pinto do tio...

– Não, tio! O outro, atrás dele!

– Digamos que faz parte do conjunto – balbuciou o Nelson, encerrando, ainda meio ensaboado, o que foi o banho mais rápido de sua vida.

*

Estava a família inteira na casa da praia quando, num final de tarde, veio a notícia de que a água ia acabar. Craque na gestão de crises, uma das mães montou em minutos um esquema de sucessivos banhos a dois, para agilizar o processo – e de saída mandou um dos meninos se juntar ao tio, já sob o chuveiro. Não tardou a vir de lá o berro:

– Meeeuuu! Mais parece um extintor de incêndio!

*

Esta foi comigo.

Apanhado por uma apendicite quando visitava a família, em Belo Horizonte, fui convalescer na casa de meus pais. E lá estava de cama quando, pela porta aberta, pude ver as três sobrinhas sentadas num degrau da escada, a cochichar, de olho em mim. Só podia ser impressionante o espetáculo daquele tio que nunca tinham visto, pois passara anos em outro país, e quando finalmente apareceu foi para ter a barriga aberta pelo médico. De nada adiantaram as gatimonhas que encenei, tentando simpatia. O trio se fechou ainda mais no cochicheio, antes que, designada pelas primas mais velhas, a Ana Luiza viesse até a porta do quarto onde eu jazia, e ali gritasse, antes de voltar correndo para a escada:

– Tio, a Rachel e a Mariana falaram que você morreu! 

*

Saliente, a Raquel tanto encantava pela graça como criava situações embaraçosas. Certa vez entrou na sala onde a avó recebia uma cunhada, criatura bem-humorada, porém feia, muito feia, minuciosamente feia. Entrou e veio vindo, sem tirar os olhos da visita, ao pé da qual estacionou, para finalmente indagar:

– Tia, você é feia? 

Em outra ocasião, fitou demoradamente o jardineiro que aparava a grama, e então lascou:

– É ruim ser preto?

*

Ele andava pelos 3, 4 anos no dia em que, passando pela roda onde a mãe papeava com as amigas, não pôde controlar a tranca, pela qual os intestinos despacharam estrepitosos gases, em decibéis desproporcionais ao corpinho do emitente. Até ele se assustou:

– Mãe, atrás de mim tá tossindo!

*

Não se sabe de onde o pai tirou a ideia de mostrar ao filho uma radiografia da cabeça, feita na busca de explicação para a dor de cabeça que vinha atormentando o garoto. Queria talvez tranquilizá-lo, provar que estava tudo bem – só não esperava o assustado pasmo com que ele reagiu:

– Dentro da minha cara tem uma caveira?!

*

Num daqueles natais da infância, ela pediu um enxoval de anjo, sem faltar o par de asas de penas brancas verdadeiras. Em vão os pais argumentaram que a vestimenta só teria cabimento em maio, o mês das Coroações (talvez seja preciso ter nascido em Ouro Preto, muitas décadas atrás, para saber como era a encenação em que meninas vestidas de anjos escalavam as laterais do altar para adornar a Santa com flores e coroa). Longe de se deixar convencer, a criaturinha quis mais: ser conduzida, assim trajada, pelas ruas da cidade, no calorão de dezembro. Dotada agora de asas, quis saber, mal pôs o pé na rua:

– A gente vai a pé ou vai voando?

*

E essa agora?, afligiu-se o avô, ao perceber que na direção deles vinha vindo um anão. Escaldado, tentou evitar a situação constrangedora que o netinho, na espontaneidade de seus 5 anos, por certo ia criar assim que visse, cada vez mais próximo, o seu primeiro ser humano verticalmente prejudicado. Fez o que pôde para distrair-lhe a atenção, mas quem disse que o diabinho se deixou seduzir pela vitrine de brinquedos, se diante de si havia coisa mais surpreendente? Seja o que Deus quiser, murmurou para dentro o avô, no momento em que, cruzando com o anão, o menino, em voz altíssima, liberou o espanto:

– Vô!!! Cê viu aquele adultinho?

domingo, 15 de novembro de 2020

A conquista - Luis Fernando Verissimo

 Conheceram-se na aula de química. Ele, Carlos, sabia tudo de química. Ela, Carol, era uma negação em química. Foi natural que se juntassem. Carol, a menina mais bonita da classe, muito agradecida pela ajuda que Carlos lhe daria nas aulas de química. Carlos, o mais tímido da classe, maravilhado por estar ao lado da menina mais maravilhosa da turma, logo ele que não sabia falar com meninas sem gaguejar. Logo ele, que era secretamente apaixonado por ela. Secretamente maravilhado por ela.

Passaram a assistir às aulas de química sentados lado a lado, ele explicando tudo para ela, ela tentando entender, às vezes não entendendo e enrugando a testa para mostrar que não entendia, ele pacientemente, maravilhadamente, repetindo a explicação, ela às vezes desistindo de apender e dizendo “eu sou muito burra mesmo” e ele protestando:

– Não é não, não é não. É só prestar atenção.

E pensando: “Será que ela encostou sua coxa na minha por distração ou por intenção?”.

Um dia ela convidou ele a fazer um dever de casa na casa dela e ele foi, maravilhado, pensando “será que eu estou conquistando a menina mais bonita da classe, logo eu, ou será que tudo é só química mesmo, tudo, o suco de maçã com biscoitos na casa dela, a coxa dela contra a dele, distração ou intenção? E se, meu Deus, for amor? Suco de maçã com biscoitos em que sentido?”.

O dever de casa na casa dela se repetiu duas, três vezes, até que um dia, para comemorar o fato de finalmente ter entendido uma questão de química que até então não conseguira, ela o abraçou, gritando:

– Obrigada, Carlão!

Promovido a Carlão, Carlos decidiu dar o bote, e a beijou na boca. Ela se deixou beijar, entre risos. “Fantástico”, pensou ele. “Conquistei a menina mais maravilhosa da classe. Logo eu!” E tentou beijá-la de novo. Mas desta vez ela não retribuiu. Disse:

– Quero lhe fazer um convite, Carlinhos. Pertenço a um grupo que está planejando destruir a escola. Precisamos de alguém que entenda de química para fazer o explosivo. Eu fui encarregada de conquistar você para o grupo. Já disse que você aceita.

Antes de sair da casa, cabisbaixo, Carlos perguntou:

– O grupo é de direita ou de esquerda?

– Nós ainda não decidimos.  

sábado, 14 de novembro de 2020

Só os poetas sabem gritar na escuridão - Milton Hatoum

 É hora de trazer as palavras até aqui nesta linha de frente onde as linguagens se bifurcam...”   Marcos Siscar (Hora de Poesia, do livro Isto Não É Um Documentário)

Esperou o fim da conversa virtual para me dizer que a filha dele era apaixonada por literatura e queria ser poeta. Depois perguntou: Como ela vai ganhar dinheiro? Como vai viver de poesia? 

Não sabia responder àquele pai; os olhos dele piscavam na tela, escutei um canto de pássaro, talvez engaiolado. O tom da pergunta pedia uma resposta, e eu fiquei pensativo por alguns segundos. O pai, também em silêncio, me olhava de algum lugar do Brasil. Tanto silêncio me levou aos poemas difíceis de Mallarmé e, quase ao mesmo tempo, ao livro da Leyla Perrone-Moisés: Inútil Poesia

Mencionei ao pai o poeta francês e o livro de ensaios da Leyla, e acrescentei que era raro uma pessoa receber dinheiro com poesia. Com leitura, imaginação e muito trabalho com a linguagem, um poeta ou uma poetisa talvez ganhasse o pão de cada dia com sua noite. E se, além desses atributos, a filha dele tivesse um pouco de sorte, podia conquistar o Nobel, como a chilena Gabriela Mistral e, neste ano, a estadunidense Louise Glück. Falei que a poesia estava fora do sistema produtivo e utilitarista, e era refratária ao mero consumo e aos ditames do mercado. Livros de poesia são comercializados, mas raríssimos se tornam best-sellers. Poetas e romancistas eram amadores, fascinados pela linguagem, e a maioria tinha uma profissão. Brinquei, citando uma frase de Jorge Luis Borges: “Ninguém é poeta das oito da manhã às cinco da tarde”. 

O pai sorriu pela primeira vez. Era um homem de uns 40 e poucos anos, e a filha, de uns 16 ou 17. Com discrição, perguntei o que ele fazia. 

“Sou empreiteiro... Construo edifícios”, respondeu. 

Mas a poesia é um edifício estranho ao resto do mundo, eu disse, lembrando uma frase de Mallarmé, citada no ensaio da Leyla. 

“Minha filha gosta muito de ler, passa a noite lendo, mas é craque em matemática. Pode ser engenheira e poeta.” 

Sua filha pode ter qualquer profissão e ser poeta, mas ser poeta não é uma profissão, e sim um destino. 

Um pássaro, talvez outro, cantou com agudeza, e logo foi abafado pelo ruído de uma serra circular. 

“Não sei o que fazer”, confessou o pai.

Não faça nada, eu disse. A vida se faz. Ou faça uma terapia. Na melhor das hipóteses, sua filha pode ser uma boa calculista de estrutura e uma poeta talentosa. 

Para não ser vago demais, dei o exemplo de Joaquim Cardozo. 

O pai desconhecia o poeta Joaquim Cardozo, mas sabia que o engenheiro pernambucano havia calculado estruturas complexas de obras monumentais em Brasília. Então dei exemplos de pessoas pobres, ricas e remediadas que tinham exercido diferentes atividades profissionais, mas que não podiam viver sem a poesia.

“Mas se a poesia é inútil!”, protestou.

Inútil para a vida material, mas não para a imaginação, a emoção, os sentimentos. E para sensibilizá-lo, acrescentei: é fundamental para o espírito de uma sociedade e para a liberdade. 

“E se, na pior das hipóteses, minha filha não for uma grande calculista e poeta?”

Mas essa é uma questão para você ou para ela? 

“O futuro da minha filha é uma grande questão para mim.” 

Não é saudável viver no futuro. A grande questão para sua filha e para todo mundo é sobreviver no presente. Se possível, com um pouco de felicidade e amor. 

Nós dois sumimos da tela: mais um apagão em tempo de pandemia. E enquanto olhava o retângulo escuro do computador, me lembrei de uma frase de Joseph Brodsky: Só um poeta sabe gritar na escuridão.




terça-feira, 3 de novembro de 2020

A lógica do Carlito - Luis Fernando Verissimo

 Carlos Eduardo Martins, o Carlito, era filho da tia Lucinda, irmã da minha mãe, e do Justino Martins. Filho único, era um pouco mais moço do que eu. Não chegamos a conviver muito, mas me lembro dele como um primo movimentado e engraçado. “Vivo” talvez fosse o adjetivo que melhor o descreveria.

Uma vez levaram o Carlito, com seus seis ou sete anos de idade, para assistir a uma ópera. Ele voltou do teatro entusiasmadíssimo, impaciente para contar a cena da ópera que mais o impressionara. 

– O cara teve tanta sorte que morreu no cemitério!

Era preciso meditar um pouco – escondendo o riso – sobre o relato do Carlito. Ele tinha a sua lógica. O cara morrer no cemitério e ser enterrado ali mesmo eliminava várias etapas do ritual fúnebre, inclusive o transporte do corpo para o cemitério. Era prático, era rápido, dispensava intermediários e certamente custava menos que um enterro convencional. O Carlito estava certo. A sorte do cara!

Durante muito tempo, na nossa casa, a lógica do Carlito foi lembrada. Tudo na vida, afinal, depende do ponto de vista e, do ponto de vista de vista do morto, morrer no cemitério era um grande negócio.

O Carlito só tinha uma queixa. O cara que morria no cemitério, demonstrando grande senso de oportunidade, morria traspassado por uma espada, mas não sem antes cantar uma longa ária, prostrado no chão. E o Carlito duvidava que alguém traspassado por uma espada tivesse força, sem falar em pulmões, para cantar uma música inteira, ainda mais naquele volume. Não era lógico.

O Carlito, minha irmã Clarissa e eu, ainda crianças, resolvemos publicar um jornal para circulação interna na casa. Aliás, circulação restrita: o jornal de uma folha só era colado na parede ao lado da privada, e “saía” uma vez por semana, com comentários sobre acontecimentos domésticos e nacionais, críticas ao comportamento dos mais velhos, dicas de filmes, charges e, vez por outra, protestos contra a mesmice da comida e sugestões de menus mais criativos com variações de fast-food. O nome do jornal, O Patentino, precisava ser explicado para visitantes de fora do Estado que, por acaso, sentassem na privada sem nada para ler. Durante muito tempo, privadas importadas, suponho, da Inglaterra pelo Rio Grande do Sul traziam o número da patente do vaso, e deduziu-se que “patent” era o seu nome, de fantasia, não o seu número de registro. O Patentino não viveu o suficiente para esclarecer o próprio engano. Éramos crianças. 

Lá está, no expediente: Editor responsável, eu. Secretária, Clarissa. Repórter, Carlito. Que time. O Carlito morreu num acidente de carro, no Rio, por volta dos anos 70, sem nenhuma lógica. Tinha pouco mais de trinta anos. 

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...