domingo, 30 de agosto de 2020

O Elefante - Luis Fernando Verissimo


Meu pai foi convidado a lecionar literatura brasileira na Universidade da Califórnia. Um ano em São Francisco, um ano em Los Angeles. Fomos todos: pai, mãe, minha irmã Clarissa e eu com inimagináveis 7 anos de idade. Na nossa primeira noite na casa de São Francisco, um choque: terremoto! Felizmente, dos mais fracos, calibrado só para assustar brasileiros. Mais traumatizante do que o terremoto foi o primeiro dia na escola, onde nos botaram sem saber uma palavra de inglês e pedir para ir ao banheiro. E aconteceu o inevitável. Fiz xixi nas calças e voltei pra casa escoltado por dois solenes colegas, sem tirar os olhos do chão. Não fiz uma boa primeira impressão na América. 
Em Los Angeles, Clarissa e eu já estávamos ambientados e falando inglês como nativos. Todos os sábados íamos a um cinema do bairro para ver o último capítulo do seriado Masked Marvel, Maravilha Mascarada, e não me pergunte como eu ainda me lembro do título depois de tantos anos. O Maravilha lutava contra espiões e outros inimigos da democracia dentro dos Estados Unidos. Pelo menos ele nunca foi visto de paletó e gravata numa selva do Pacífico ou trincheira da Europa. Ao contrário de mim, que lutava com armas de brinquedo contra inimigos imaginários, mas em todas as frentes.
Nossa escola de Los Angeles tinha um programa de artes e me botaram numa turma de quatro que esculpia um elefante de argila do tamanho aproximado de um cachorro médio. Meus companheiros de turma foram desistindo do projeto, um por um, mas eu – era isso que eu queria contar – tinha desenvolvido uma ligação com o bicho que até hoje não consigo decifrar. Era uma espécie de cumplicidade, nós dois contra os desistentes do mundo? Ou uma coisa assim meio, sei lá, mística? Não esqueça que eu estava com 9 anos de idade, ainda vibrava com o Maravilha Mascarada no cinema. Mesmo que entendesse a minha persistência não saberia lhe dar um nome. 
A professora veio me elogiar.
– Muito bem. Você foi o único persistente. Acho que o elefante está pronto, não?
– NÃO! – gritei. Pra dentro ou pra fora, isso eu não me lembro.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Crônicas de SP: O homem de papelão - Gilberto Amendola

O homem de papelão trabalha como totem em estádio de futebol. Sorridente, assiste a um sofrido 0 x 0 sem reclamar, sem xingar o juiz ou pedir a cabeça do treinador.
Mesmo se um gol tivesse acontecido aos 45 minutos do segundo tempo, ele permaneceria com aquela fleuma aristocrática de quem não admite emoções vadias.
Sustos, supetão, tropeços, arrepios e surpresinhas não fazem parte do seu repertório. Ou seja, do ponto de vista do Senhor Papelão, um 0 x 0 é totalmente satisfatório. 
Profissional dedicado ao ofício de ocupação de espaços vazios, já atuou no comércio popular, em supermercados, shoppings, concessionárias, campanhas políticas e parques de diversão.
Ele teve uma breve passagem pelo mundo das artes, mais especificamente no canto esquerdo do palco de um espetáculo musical. Mas essa experiência não foi satisfatória. O homem de papelão não se sentia confortável no chamado “meio artístico”. 
No caminho de casa, ele não se abala com a chuva. Mesmo ensopado, continua sorrindo. É impecável em sua confiança de papelão.
No trajeto, ignora os apelos para que use uma simples máscara no rosto. A covid, segundo o seu próprio evangelho, é uma invenção da mídia-comunista-globalista-gayzista-candomblé.
No máximo, admite que ela pode ter a força de uma gripezinha. Nada que abale seu histórico – que também é de papelão. 
Em casa, mesa posta, orgulha-se de ver a família totem reunida. Por uma questão de ordem, prefere não chamar os filhos pelo nome, usa apenas números para identificá-los. 
Antes da refeição, puxa uma oração dedicada ao seu deus particular, um deus que cabe direitinho no seu próprio evangelho. Um deus que também é de papelão, que não admite curvas, dobraduras ou furinhos. Um deus implacável com os outros, com os diferentes. Um deus totalitário e infalível.
Com a televisão ligada, o homem de papelão transforma-se no juiz do mundo. Sem reações exasperadas, como é do seu feitio, demonstra seu desprezo por essa gente de carne e osso, por essa gente emocionalmente desequilibrada, por essa gente que grita quando se machuca.
O homem de papelão tem opiniões inabaláveis sobre coisas que desconhece. 
Na cama, com sua mulher de papelão, o sexo é protocolar. Pronto, acabou. Mais de plástico do que de papel (vai entender...). Acho que tem mais pressa do que amor. Se fosse possível espiar pelo buraco da fechadura, não me surpreenderia de encontrar ali mais raiva do que pressa.
Enfim, o homem de papelão dorme. 
E nessa noite, pela primeira vez em muito tempo, ele sonha. O homem de papelão sonha que é um origami. O homem de papelão sonha que está sendo dobrado e transformado. 
Agora, o homem de papelão é um cisne. 
Um lindo cisne de papel. Maleável, curioso, leve e oriental como outros tantos origamis. 
Ele acorda assustado. E jura que nunca ninguém vai saber nada sobre aquilo que acabou de sonhar. Aquela “imaginação”, aquela peça pregada pelo seu subconsciente, não faz parte do seu evangelho.
Então, o homem de papelão vira-se para o lado. Ele precisa dormir mais um pouco. Amanhã tem mais um dia de trabalho. E um outro 0 x 0 para acompanhar. 

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Pombas - Luis Fernando Verissimo

Num dia do ano 1859, o editor de uma respeitada revista inglesa chamada Quarterly Review recebeu os originais do livro de um certo Charles Darwin, que leu e achou interessante, mas que, na sua opinião, não atrairia muitos leitores. O editor aconselhou Darwin a escrever sobre pombas. O público adorava livros sobre pássaros. E o título do livro de Darwin não ajudava: Sobre a origem das espécies por meio da seleção natural ou a preservação de raças favorecidas na luta pela vida. Pouco comercial, segundo o editor, que mesmo assim concordou em publicar o livro, com uma tiragem de 1.250 exemplares, vendidos todos num dia só. Desde então e até hoje o livro não parou de vender, e nunca deixou de ser discutido. Nada mal para um autor que, se não tivesse publicado sua teoria sabendo o alvoroço que provocaria, nunca seria mais do que um anônimo naturalista provinciano especializado em minhocas. 

O alvoroço continua. Quase 160 anos depois, muita gente ainda prefere que Darwin tivesse seguido o conselho de escrever sobre pombas. Os índices de leitura de horóscopos atestam o fracasso de Copérnico em convencer a humanidade de que a Terra não é o centro do Universo, como ela ainda pensa. A ciência em geral tem tido um péssimo desempenho na tarefa de vencer a crendice e o obscurantismo, embora a versão “oficial” da História humana desde, pelo menos, o século 18 tenha sido a de conquistas irreversíveis da razão secular, com alguns soluços de irracionalidade.

Darwin também não convenceu muita gente. Numa enquete recente, mais de 70% dos americanos pesquisados responderam que preferem a explicação bíblica da origem da sua espécie à de Darwin. Em vários Estados americanos há leis que obrigam o ensino da versão bíblica juntamente com a da evolução, que deve ser identificada como apenas uma especulação teórica em contraste com a palavra de Deus. A influência do fundamentalismo religioso cresce na política e nos costumes do mundo e, cada vez mais, do Brasil. E ainda por cima, ou por baixo, vem a pandemia mexer com nossos nervos.

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...