sexta-feira, 31 de julho de 2020

Vida de Cinema - Luis Fernando Verissimo

Os filmes que víamos antigamente não nos prepararam para a vida. Em alguns casos, continuam nos iludindo. Por exemplo: briga de socos. Entre as convenções do cinema que persistem até hoje está a de que socos na cara produzem um som que na vida real nunca se ouviu.
O choque de punho contra rosto fazia estrago nos rostos – ou não fazia, eram comuns lutas em que os brigões quase se matavam a murros terminarem sem nenhuma marca nos rostos –, mas poupava os punhos. E como sabe quem, mal informado pelo cinema, entrou numa briga a socos, o punho quando acerta o alvo sofre tanto quanto o alvo.
No cinema de antigamente, você já sabia: quando alguém tossia, era porque iria morrer em pouco tempo. Tosse nunca significava apenas algo preso na garganta ou uma gripe passageira – era morte certa. Quando um casal se beijava apaixonadamente e em seguida desaparecia da tela era sinal de que tinha se deitado. E depois, não falhava: a mulher aparecia grávida.
Nunca se ficava sabendo o que acontecia, exatamente, depois que o casal desaparecia da tela, a não ser que o filme fosse francês. Pode-se mesmo dizer que o começo da mudança do cinema americano começou na primeira vez em que a câmera acompanhou a descida do casal e mostrou o que eles faziam deitados. Depois desse momento revolucionário, não demoraria até aparecerem o beijo de língua e o seio de fora. E chegarmos ao cinema americano de hoje, em que, de cada duas palavras ditas, uma é “fucking”.
Se a vida fosse como o cinema nos dizia, nunca faltaria bala nas nossas pistolas ou gelo no balde para o nosso uísque quando chegássemos em casa. E, sempre que tivéssemos de sair às pressas de um restaurante, atiraríamos dinheiro em cima da mesa sem precisar contá-lo e sem esperar que o garçom trouxesse a nota.
Seria uma vida mais simples, a cores ou em preto e branco, interrompida a intervalos por números musicais em que cantaríamos acompanhados por violinos invisíveis, e quando dançássemos com nossas namoradas seria como se tivéssemos ensaiado durante semanas, e não erraríamos um passo, e seríamos felizes até the end.

31 de julho de 2014

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Falsidades - Luis Fernando Verissimo

O polegar opositor não era apenas o dedo que começara a nossa transformação de bicho em gente, permitindo ao pré-homem catar piolhos nos pelos do próximo, segurar um bastão com firmeza para usá-lo como arma na cabeça do inimigo e outras conquistas da civilização. Através dos anos, o dedão opositor foi adquirindo outras utilidades, como a da sinalização a distância. No Coliseu de Roma, por exemplo, polegar virado para baixo significava que o público queria ver a vitória do leão, polegar para cima a vitória do gladiador, aos gritos de “poupem o desgraçado!”. 
Fora do Coliseu, a comunicação também funcionava. Polegar para cima queria dizer “positivo!”, “legal”, “tudo bem em casa?”, etc. Polegar para baixo: “A coisa está preta”. Não faz muito, surgiu um historiador revisionista com a tese de que era o contrário: polegar pra baixo, vitória do gladiador; polegar pra cima, vitória do leão. Tudo bem. Mas não podemos deixar de pensar nos gladiadores – e também nos leões, claro – injustiçados pela confusão histórica e a falta de clareza das regras do Coliseu. 
A culpa é do cinema americano, que espalhou pelo mundo hábitos e convenções que o mundo nunca teve, e erros que se eternizaram, é verdade, com a nossa cumplicidade. Desde que começamos a ir ao cinema, nunca nos ocorreu protestar contra as falsidades que o cinema nos impingia com a maior cara de celulose. Brigas entre mocinho e bandido sem nenhuma proteção nos pulsos que, depois de se soquearem até arrasarem o saloon, não ficavam com uma marca no rosto, e ficavam com todos os dentes. Durante as lutas, ouvia-se um som jamais reproduzido fora de uma trilha sonora de filme, o som falso de punho se chocando com queixo. 
Em filme americano, depois de receber uma notícia surpreendente por telefone, o protagonista invariavelmente olha para o fone como se esperasse ver ali o que o surpreendera. Não há notícia de que em qualquer lugar do mundo, em qualquer tempo depois da invenção do telefone, alguém tenha feito o mesmo gesto. E quantas vezes não invejamos o personagem que, com pressa para sair de um restaurante, deixa o dinheiro certinho na mesa sem precisar olhar a conta? Só em Hollywood. 


Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...