segunda-feira, 29 de junho de 2020

Separações na quarentena - Gilberto Amendola

Alguém, um dia, vai escrever um compêndio sobre os motivos de tantas separações durante esse período de quarentena. Longe de mim querer participar de qualquer coisa remotamente séria quando tudo isso acabar, mas trago aqui minha modesta contribuição para esse futuro cancioneiro dos corações partidos.



O homem feng shui


O home office foi um inferno na vida de Otávio. A sua estação de trabalho precisou ser mudada de lugar pelo menos quatro vezes em apenas dois meses. A mesinha e o computador foram transferidos do quarto para a sala, da sala para a cozinha, da cozinha para a área de serviço e, finalmente, da área de serviço para o banheiro.


Ao chegar no banheiro, ele sentiu que algo não estava cheirando bem em seu casamento e disse “chegaaaa”.. 
O problema é que Laís, a mulher de Otávio, era absolutamente partidária do feng shui e estava, honestamente, tentando encontrar um lugar adequado para instalar a estação de trabalho do marido. Ela procurava um ponto da casa que não interrompesse o fluxo de energia ou afetasse o equilíbrio do lar. 
Quando a discussão irrompeu, Laís estava certa que a circulação cármica e os chacras do apartamento estariam alinhados com o marido instalado no banheiro.
Ele achou humilhante. Ela acusou-o de não pensar no bem-estar da família. Ele disse que não era um móvel qualquer que você põe em qualquer canto da casa. Ela disse que ele não entendia nada de energia cósmica. Três dias depois, ele foi embora. 
A vida de Laís melhorou muito. A do Otávio também. Era mesmo uma questão de feng shui.

Me deixe mudo

A harmonia do casal a seguir estava baseada em um curioso tripé temático: trabalho, viagens e a vida acadêmica do filho.
Fofocas sobre pequenas intrigas nas respectivas firmas, planejamento de férias (escolha de destino, hotel, roteiros...) e discussões sobre as notas decepcionantes do Junior eram os elementos que mantinham o forninho daquele relacionamento aceso. 
Mas, com a quarentena, a fonte secou. Os dois estavam trabalhando de casa, viajar era impossível e o Junior não tinha mais notas baixas para preocupá-los. Ou seja, não havia mais nenhum assunto, nenhum ponto de convergência, nadica de nada. 
Começaram os silêncios no café da manhã, os silêncios no jantar e no sofá. Era como se o casal tivesse desaprendido a articular as palavras ou esquecido o próprio idioma. 
Quando a mudez começou, eles ainda trocavam algumas mensagens por WhatsApp, um bom dia, um meme bobo, uma fake news qualquer. Com o tempo, até isso acabou. Uma noite fizeram sexo sem emitir uma única palavra. Foi triste demais.
Junior entendeu o que estava acontecendo e conseguiu marcar uma sessão de terapia online para os pais. 
Mas não funcionou. A mudez só acabou quando cada um foi para o seu lado e o casamento acabou.

O café


Tinha uma coisa que deixava Fabiana muito irritada: o marido nunca lavava a própria xícara depois de tomar café. 
A xícara jazia em cima da mesa por horas. Se ela não intercedesse, talvez, a xícara ficasse no mesmo lugar por dias. O desleixo do marido foi o estopim de algumas discussões graves.
Depois de uma dessas brigas, Fabiana foi desabafar com uma amiga no WhatsApp. Ela enviou uma foto da xícara suja para a amiga. “Eu não aguento mais”, escreveu na sequência. 
O que Fabiana não sabia é que a amiga tinha o dom de ler o futuro por meio da borra de café. Depois de cinco minutos, Fabi recebeu a seguinte mensagem: “A xícara suja é o menor dos seus problemas”.
De acordo com a leitura da borra, o marido de Fabiana tinha um caso extraconjugal e estava pensando em deixá-la. Fabiana antecipou-se. Pediu o divórcio e comprou um novo jogo de xícaras para café. 

Me dê motivos


Tem marcas de batom na sua máscara e um vidrinho de álcool em gel diferente no porta-luvas do carro.
Explique-se. 
Ou pegue esse seu arzinho de assintomático e suma da minha vida.

domingo, 28 de junho de 2020

O novo normal - Antonio Prata



Primeira festa pós-quarentena. O anfitrião, ansioso, passa de roda em roda entretendo os convidados. Ao lado da janela avista, sozinho, um desconhecido.

— Oi, tudo bem? Você é o...?

— Novo Normal.

— Não acredito! Você é o Novo Normal?!

— Eu mesmo.

— Rapaz! Você chegou, finalmente! Faz um ano que só falam de você! Ah, o Novo Normal vai ser assim, o Novo Normal vai ser assado! Posso te dar um abraço?

O Novo Normal recua.

— Ah, claro! Contágio, né? Óbvio! Gente, gente! Vem cá! Esse aqui é o Novo Normal!

Uma meia dúzia se aproxima, uns estendem as mãos, outros já se espicham pra um beijo.

— Péra, pessoal, o Novo Normal é sem abraço, beijo ou aperto de mão, certo, Novo? Pode chamar de Novo?

— Prefiro Novo Normal, pra não confundir com o partido.

Uma convidada o olha, curiosa.

— Não sei por que, mas confesso que eu te esperava baixo, gordinho e careca.

— Muita gente me imagina assim. Acho que é o nome, né? Novo Normal, muito “o”, lembra ovo... Mas durante a quarentena o pessoal comeu muito, o Novo Normal é alto.

— Escuta, cê aceita uma bebida? Uma comida?

— Obrigado, eu engordei 7 kg durante a quarentena e bebi demais. Os hábitos do Novo Normal agora são comida saudável e zero álcool.

Uma convidada abandona, discretamente, a taça de vinho sobre uma mesa. Um convidado dispensa uma empada num vaso de pacová. Um outro puxa papo.

— Fala mais de você. O Novo Normal gosta de sair? De ir no cinema? No teatro? Em show?

— Não. Nada disso rola com o Novo Normal. Com a quarentena, as relações à distância se estabeleceram pra ficar.

Uma convidada, decepcionada, toma a dianteira:

— E aquela previsão de que o Carnaval pós-quarentena ia ser tão louco que faria Sodoma e Gomorra ficarem parecendo Aparecida do Norte?

— Deu chabu. O Novo Normal é saudável, cauteloso, precavido. O carnaval pós pandemia será pelo Zoom. Quem quiser anotar aí, aliás: www.telecotech.ziriguizoom.med.

— Ponto med?!

— É. O Carnaval agora é organizado pelo Ministério da Saúde. E o Carnaval de rua, pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, porque é todo dentro do Minecraft.

— Que horror! Eu tô solteira! Como eu vou arrumar um namorado, assim?

— Uma das coisas que a quarentena provou é que todo mundo pode viver sem sexo, contanto que o Pornhub e o Redtube liberem o acesso.

— Você não tem namorada?

— Presencialmente, não.

Deprimido com o Novo Normal, o anfitrião sai da roda discretamente e vai tomar uma água na cozinha. Ali encontra uma galera aglomerada, morrendo de rir de uma história contada por um gordinho, baixinho, careca, uma versão gente fina de um George Costanza, com uma cerveja numa mão e um cigarro na outra. O anfitrião cutuca uma amiga por ali:

— Quem é o figura?!

— Não tá reconhecendo? É o Velho Normal! Saindo daqui a gente vai pra um caraoquê na Liberdade e vamos terminar a noite comendo uma bisteca no Sujinho. Topa?

Quatro e meia da manhã, abraçados, todos sobem a Consolação pulando e cantando: “Ooooo! Velho Normal voltô ô ô! Velho Normal voltô ô ô! Velho Normal voltôôôô oooo!”.


Adams Carvalho

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Óculos, nariz e bigode - Gilberto Amendola

Tenho medo de não mudar. Na verdade, eu sei que não vou mudar. Quando tudo isso acabar, não terei um novo eu para exibir ao mundo. 
Alguém há de perguntar: como a quarentena mudou a sua vida? Vou coçar a cabeça e começar a enumerar coisas como “ganhei uns quilinhos, uma dor nas costas, aprendi a usar o zoom meeting...”
Mas não, não basta, o perguntador vai querer tripudiar da minha superficialidade e moer e remoer algum grão de profundidade.
A pressão para transformar o isolamento social na “grande experiência das nossas vidas” vai me agarrar pelo sovaco e me exibir feito um pequeno Simba indefeso (todo mundo aqui viu O Rei Leão, né?): “Vai, Gilberto! Conte ao mundo sobre sua grande transformação...”
“Hum, deixa eu ver... Bom, vejamos, eu diria que usar vinagre para tirar manchas do sofá foi um aprendizado e...”
Esse pequeno Simba indefeso que vos escreve vai ser largado ao relento por não ter nada remotamente maravilhoso para contar. Vou perder pontos na escala social por não ter encontrado o meu novo eu. Pois é, não achei.
Meu novo eu deve andar com aquela fantasia de Groucho Marx, com o conjunto de óculos, nariz e bigode. Meu novo eu deve se esgueirar pelos cantos e se esconder atrás das pilastras. Meu novo eu deve mudar a voz ao falar ao telefone ou ter adotado um nome artístico qualquer.
Ou seja: meu novo eu não está afim de ser encontrado.
Vou ter apenas meu velho eu para passear por aí quando a pandemia da covid-19 acabar. Sem um novo jeito de enxergar a vida, sem a luz de alguma religião, sem aprender um novo idioma, sem ler James Joyce, sem mudanças profundas naquilo que eu já tinha para apresentar lá no início do ano.
Em minha defesa, até um impostor como eu merece alguma defesa, digo que, talvez, meu novo eu apareça por aqui exatamente depois que tudo isso acabar. 
Talvez o meu Groucho Marx de óculos, nariz e bigode apareça quando puder sentar-se em uma mesinha bamba de bar, quando puder ficar espremido no assento do meio de um avião, quando tiver carnaval e ele puder cruzar um bloquinho atrás de um banheiro químico – e sair dele secando as mãos na própria bermuda. 
Meu novo eu só vai dar o ar da graça (ainda que de óculos, nariz e bigode) quando puder reclamar de baladas lotadas, da molecada fazendo barulho no cinema ou das viagens de ônibus percorridas em pé. Meu novo eu quer um abraço. E essa, provavelmente, é a condição para que ele floresça. 
No fundo, o meu novo eu é um saudosista. Talvez ele ainda espere pela volta do velho normal. Ou aguarde até esse novo normal envelhecer um pouquinho. 

Cantarolando - Luis Fernando Verissimo

“Existirmos: a que será que se destina?” Caetano. Bom Caetano. Por que será que eu sempre cantarolo essa música do Caetano no banheiro, na frente do espelho? E só essa frase, e sempre na frente do espelho? Eu nem sei o resto da música. Cantarolo sem saber a música ou a letra. Só tenho direito a um verso cantarolado na frente do espelho, o resto não é da minha jurisdição. Não sou o responsável. Cantarolo “Existirmos: a que será que se destina?” e cumpro com minha obrigação de todos os dias.
Mas hoje de manhã foi diferente. Eu estava escovando os dentes ou fazendo a barba ou espremendo os cravos, sei lá, quando me dei conta de que estava cantarolando a música com mais força do que de costume, num registro quase operístico. Eu estava berrando no banheiro. E veio a revelação! Na noite anterior, eu lera que cientistas ingleses tinham calculado que 36 civilizações teriam condições de se comunicar entre elas e conosco, na Via-Láctea. O cálculo dos ingleses pressupunha que, nessas hipotéticas civilizações, alguma forma de vida inteligente teria se desenvolvido e crescido junto com a da Terra que, por sua vez, já teria a capacidade de se comunicar com qualquer uma das civilizações mais próximas.
“Claro!”, gritei. E passei a cantar ainda mais alto. Como esperado, meus vizinhos começaram a reclamar, batendo nas paredes. Me chamam de louco, só porque eu toco violino no meio da noite e não sei tocar violino. Mas agora eles verão com quem estão tratando, nas paredes de quem estão batendo, todos esses anos. Finalmente, entendi qual é a minha missão na Terra. A que será que nos destina, existirmos? Eu sei. Preciso me preparar para o primeiro contato com outra civilização. Preciso de uma gravata.
Procurarei os cientistas ingleses e direi que entendi o chamado deles. Direi que minha imagem no espelho tinha sido um mensageiro eficiente. Contarei que planejava recrutar os vizinhos do meu prédio que me chamavam de louco para levá-los para o primeiro contato com outra civilização, para eles saberem com quem estão tratando.
Mas, quando eu perguntar quando será o primeiro contato, os ingleses recomendarão gentilmente que eu leia o resto da notícia. O primeiro contato será daqui a 6.000 anos, mais ou menos. Esses ingleses são pontuais demais. Agradecerei e voltarei para casa, cantarolando. “Existirmos...” 

sábado, 13 de junho de 2020

Meia-volta - Marcelo Rubens Paiva

Sempre invejei o porteiro pernambucano, filho de pescador. Perguntava por que ele preferia morar aqui, no Jardim Ângela, e não na praia com a família. Mais opções, dizia. Um barbeiro do bairro voltou com a mulher pra João Pessoa. Montaram um salão por lá. 
Um amigo cientista político foi com a filha pequena para a casa da mulher numa praia de Floripa. Dá aulas e escreve colunas de lá. Eu aqui, onde um elevador é considerado lugar de risco.
Se São Paulo tem 70 mil bares e restaurantes cadastrados, por onde andam os cozinheiros, chefes, garçons, maîtres, sommeliers? E migrantes do interior do Estado, cearenses, pernambucanos, baianos, mineiros?
Uma amiga separada enfurnada na quarentena em São Paulo, num bairro em que os prédios não têm vista, estava sem trabalhar. Deprimiu, definhou, afundou num colchão sob o manto da tristeza. A filha de seis anos entrava e tirava sua temperatura, achando que mamãe estava dodói. Mamãe virara cobaia da indústria farmacêutica; não acertava a dose certa do antidepressivo perfeito.
Claro que as aulas online do Fundamental 1 não rolavam. Crianças não conseguem entender a educação via aquela tela sem contato físico. De que são proibidas e estão encharcadas de fake news, ódio, youtubers tagarelas e desbocados, games sanguinários, com tiros e zumbis.
Ela teve forças para pegar a filha e ir à fazendinha da família, a cinco horas de carro, onde chegou com incertezas, especialmente depois de rever alguns fantasmas da adolescência que acreditava estarem enterrados. 
Aqui na cidade grande, era a farrista doidinha que não parava quieta, estava em todas, a da balada forte, excessos. Ficou sem rumo antes da pandemia, piorou com ela, chorou sem sair da cama, numa culpa sem tamanho por não poder confortar quem precisava, a filha. O poço parecia sem fim. Fizeram as malas e se mandaram. Mandaram muito bem.
No campo, anda a cavalo com a menina, passeia pelas montanhas, vê céus estrelados, revê primos, acaricia cachorros, lê bastante e se dá ao luxo de fazer cursos via Zoom ao vivo e on demand de literatura, história. Descobre filmes de arte em streamings independentes. 
Postou no Insta as vaquinhas não confinadas da família, deitadas felizes nos pastos. Mostrou o leite sendo tirado sem ordenha mecânica. Contou que atendem pelo nome, e vêm quando convocadas. A filha aprendeu a tirar leite. Decidiu comprar mais vaquinhas. A novidade: parou de tomar antidepressivos e se tornou vegana. Eventualmente, ela me manda fotos que mexem comigo. Queria estar lá. Como a invejo... 
Eu aqui nesse estresse, rodeado de estressados, temendo a rua, amigos, a família, com dois filhos pequenos, sem bares, opções culturais, restaurantes, sem poder viajar. Se marco bobeira, lá estão bagunçando a cozinha, atacando a geladeira, no tablet, no YouTube. Se desço, lambem o elevador.
Nos anos 1970 houve a virada, Brasil rural se tornou urbano: mais de 50% da população passou a morar em cidades, gente expulsa pela concentração de terra, latifúndio, grilagem, agronegócio, mecanização, ou atraída pela vida da sociedade, vida consumista de rolê agitado, opções. 
O pequeno sitiante, o que vivia da roça, o que tinha uma chácara com galinhas, o trabalhador do campo, pulou de plantação em plantação, como numa cena de John Steinbeck ou Graciliano Ramos, e caiçara trocou o bucólico pela periferia de uma cidade industrial.
Lembrei-me da fazenda da minha família no Vale do Ribeira, em que na infância me deixavam por meses com 30 primos, entre cavalos pangarés e cachorros, com a opção de nadarmos no lago barrento ou no rio cristalino, ainda não poluído, com praias de areia, cercados pela Mata Atlântica. 
Programas: caminhadas, jogos de futebol com colonos, leite da vaca às manhãs, e uma quantidade enorme de opções noturnas, jogos de salão como pingue-pongue, sinuca, teatrinho, violão, fogueira, festinhas à fantasia, carteado, xadrez, livros, histórias contadas pelos mais velhos, e um piano de cauda em que tios insistiam em tocar Chopin, sempre Chopin.
A fazenda não era lucrativa. Dizia-se: fazendeiro vive pobre e morre rico. Era uma forma de meu avô agregar a família em férias de verão, inverno, feriadões. Ao morrer, os herdeiros se desfizeram dela, torraram os cobres, e a diáspora familiar começou. Cada um está num canto do mundo seguindo a sua vida. Rachas políticos e éticos rolaram. Poucos se falam.
Outro dia, me ligaram. A sede da fazenda estava à venda. Por um valor que eu não podia pagar. O valor sentimental que não tem volta. O rio ficou poluído. Roubaram a areia da praia. Não tem mais vacas nem cavalos, apenas bananeiras. A casa pegou fogo. 
Mas, com tanto tempo vago, me lembrei de cada canto: naquele galpão, faria uma horta hidropônica; plantaria produtos orgânicos baseado na agricultura sintrópica ao redor do lago; quem chegasse, ficaria de quarentena na casa de hóspedes; uma vaca pode dar, dependendo da raça, de 25 a 70 litros/dia; deixo-as pastando pelo gramado, com cabras, para queijos; cerco tudo de, árvores frutíferas; meto umas galinhas. Vendo tudo na cidade grande.
O futuro será uma volta ao campo. Temos as redes, internet, cinema, museus, teatro e escolas online. Teremos comida de primeira e vida ao ar livre de volta. A pandemia acendeu a luz: o conglomerado urbano faliu.

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...