terça-feira, 19 de maio de 2020

Quando fugi de casa - Fabrício Carpinejar

Durante a infância, quem já não tentou fugir de casa?
Minha fuga aconteceu aos seis anos. Escolhi o fim da tarde para escapar de meus pais. Levei uma malinha. Fico pensando o que tinha dentro dela. Lembro que nada que pudesse me sustentar nos próximos dias. Criança não consegue pensar em mais de dois dias para a frente.
Carregava meu saco de bolitas, um pião, cinco chocolates Bis, um pijama, e uma bola de futebol. Achava que isso seria suficiente para o resto da vida. Não incluí nenhum produto de higiene – como menino, abominava os banhos e as escovadas de dente.
Não me despedi, bati apenas a porta com força. Caminhei 10 quadras para frente e decidi fazer um lanche na praça. Já entendia que fugir de casa cansa e dá fome.
Comi o chocolate imaginando que os pais e irmãos choravam com a minha partida, fariam equipes de busca para me localizar, que receberia cartaz com meu rosto de desaparecido nos postes e finalmente seria famoso.
Transcorreram 10 minutos e eu já estava entediado. Dez minutos para uma criança não fazendo nada equivalem a uma semana. Aguentei uma hora brincando de sonhar a tristeza familiar.
Mas começou a esfriar, a escurecer, latidos e piares estranhos surgiram atrás de mim, não quis arriscar, meus olhos ligaram o farol alto do medo. Com meus passos miúdos e derrotados, retornei ao lar arrastando a mala.
Quando entrei na sala, jurando que seria aclamado entre abraços e lágrimas, constatei que a mãe cozinhava, o pai escrevia, os irmãos assistiam televisão. Todos tranquilos e ocupados com alguma coisa, nem viraram o pescoço para me cumprimentar.
Abandonei a família e ninguém reparou. Ninguém soube. Ninguém desconfiou.
Pretendia chamar atenção e não vingou a estratégia. Qualquer despedida é uma maneira desesperada de ser chamado de volta. Tive que suportar a frustração, a discrição do amor, a falta de importância diante de tanta idealização.
Hoje vejo que coragem não era sair de casa, mas voltar. Não amadureci fugindo, mas ao reconhecer minhas fraquezas e regressar para a residência.

20/05/2014

Fuga nº II - Mutantes

domingo, 17 de maio de 2020

O segundo encontro - Martha Medeiros



Afinal, um encontro não é uma boa notícia?
O segundo, ela me respondeu.
Ela estava sentada bem na minha frente, abalada, desanimada, com péssimos presságios em relação ao que aconteceria dali a duas horas: ela teria o primeiro encontro com um homem de quem estava muito a fim. Me explica, pedi. Me explica por que você não está soltando foguete. Me explica o motivo para não estar no cabeleireiro. Me explica a parte que eu perdi: afinal, um encontro não é uma boa notícia?
O segundo, ela me respondeu. O segundo encontro me faz soltar rojão. O primeiro é ir para o sacrifício.
Diante do meu espanto, ela resolveu reavivar minha memória.
Primeiro encontro, disse ela, é que nem entrevista de emprego. O nível de stress é o mesmo. Você não pode ir produzida demais, para que ele não pense que você está desesperada, nem ir vestida de qualquer jeito, para ele não pensar que você está pouco se lixando. Você não pode ser muito engraçada, para não passar a impressão de frivolidade, nem séria demais, para ele não te considerar uma chata.
Você não pode falar dos seus ex-amores, para ele não ficar inseguro, mas se não mencionar nenhum ele vai pensar que você é uma laranja podre que ninguém quis catar do chão. Você não deve beber demais, pois seria deselegante, mas pedir um suco vai fazê-lo pensar que você tem 14 anos.
Você passa a noite falando sobre tudo de que gosta – filmes, cidades, programas de tevê, esportes, música – e precisa se controlar para não pedi-lo em casamento quando ele concordar com suas preferências, ou se controlar para não cair em prantos quando ele disser que os Rolling Stones são detestáveis e que não suporta rock, mas que morreria por um show ao vivo do Lionel Richie.
Ela continua: “Aí você lembra que o Lionel Richie bem que se esforçou, compôs We Are the World com o Michael Jackson e você quase gostou daquela música que ele fez para o filme O Sol da Meia-Noite, e percebe que já está fazendo concessões antes mesmo de seu pretendente pedir a conta, e ia esquecendo esta parte, a conta: se você se oferece para dividir, ele pode te achar bacana, mas também pode desconfiar de que você seja uma feminista que nem ao menos se depila.
E se você não se oferece para pagar ele pode te achar uma folgada ou, ao contrário, te considerar uma fêmea que reconhece seu papel no jogo, uma mulher acostumada a sair com cavalheiros – como saber?”.
Apavorada com o quadro esquizoide que ela me apresentava, arrisquei: nenhuma possibilidade de ser você mesma, criatura?
“Claro que existe a possibilidade de ser eu mesma. No segun...”
Não, não: nenhuma possibilidade de ser você mesma no primeiro encontro?
“Zero”. E assim, convicta, preparou-se para a ida ao sacrifício. Retirou seu Crocs e pediu minha sandália emprestada.


maio/2015

terça-feira, 12 de maio de 2020

Os morlocks - Sérgio Augusto

Muita gente se fez essa pergunta às primeiras irrupções dos black blocs nas manifestações de rua de alguns anos atrás, embora sem aquele tom prazenteiro com que há mais tempo os turistas estrangeiros indagam aos cariocas onde é que aquelas mulatas esculturais das escolas de samba se escondem antes e depois do carnaval. 
Muita gente agora repete a pergunta quando os militantes bolsominions saem às ruas, fantasiados de verde e amarelo, para mais uma marcha da insensatez e do orgulho nazi-fascista.
Os black blocs nada tinham ou têm a ver com os squadistri do duce brasiliense, esses belicosos gigolôs do patriotismo e do farisaísmo evangélico que nos fins de semana pressionam pelo fim da democracia e prometem deflagrar uma guerra civil, uns até já metidos em uniformes de campanha, como se viu num vídeo grotesco e criminoso veiculado nas redes sociais quarta-feira à noite. 
Os black blocs – inesperados, incontroláveis e apenas visíveis no breve momento da baderna – vandalizavam símbolos materiais do capitalismo selvagem, atacavam vitrines de butiques, caixas eletrônicos, carros de luxo, jogavam pedras e outros objetos à mão; mas não agrediam pessoas física ou verbalmente; não faziam ameaças nem incitavam a intervenção de outras forças além das suas próprias, que nunca botaram para quebrar exigindo o fechamento do Congresso e do STJ, a reedição do AI-5 e o que mais pudesse resultar de um putsch militar. 
De que trevas afinal vieram essas criaturas que se enrolam no pavilhão nacional e, destilando ódio e ostentando uma ferocidade homicida, agridem jornalistas e até enfermeiras, reverberando desejos trogloditas que ressentimentos incubaram, a ignorância exacerbou e o insano, narcisista e messiânico capitão-presidente não se cansa de insuflar? 
Meu palpite é que saíram de lugar nada recomendável, onde, no mínimo, reina a escuridão. Como os Morlocks. 
Taí um nome que lhes cai bem. Tem mais pedigree que os black blocs. Inventou-o o britânico H.G. Wells, no romance A Máquina do Tempo, a mais lida aventura sobre engenhocas que nos levam ao passado e ao futuro. Zumbis antropoides, que se homiziaram debaixo da Terra após uma guerra nuclear que quase destruiu o planeta, os morlocks viviam aterrorizando os Elois, os habitantes da superfície terrestre. As duas adaptações do livro ao cinema respeitaram sua configuração original: medonhas criaturas de aspecto simiesco (Darwin explica), inteiramente cegas (Platão explica) e canibalescas – os vilões da história. 
Cinco décadas atrás, os quadrinhos dos X-Men os reciclaram como mutantes proscritos da sociedade por preconceitos físicos e raciais, que sobreviviam nos subterrâneos de Manhattan, em abandonados abrigos antiatômicos, grandes tubulações de ar refrigerado e esgotos ainda mais carregados de simbolismo. Ganharam outro status sociopolítico no auge da luta pelos Direitos Civis nos EUA, bem mais expressivo do que lhes dera Wells, ao paragoná-los, superficialmente, com a classe operária da Inglaterra vitoriana.
Nossos morlocks assemelham-se aos que nos aterrorizaram no romance e na tela: cegas e desatinadas criaturas incapazes de ver a luz. 
Durante a ditadura militar, sempre que morria um grande artista reprimido pelo regime, alguém espanava o bordão “assassinato cultural” e o devolvia à prateleira da retórica elegíaca. Às vezes era mais uma hipérbole do que uma acusação fundamentada, um desabafo inflamado pela dor da perda e a certeza de que o autoritarismo também destrói vidas por vias tortas. 
Esta semana caiu na conta do governo Bolsonaro um binômio fadado a prosperar, “suicídio cultural”. Na carta em que justificou seu gesto extremo, o ator Flávio Migliaccio deixou claro que já não aguentava mais ser velho no Boçalnistão. 
“Não deu mais”, desabafou. E prosseguiu: “A velhice neste país é o caos como tudo agora”. Migliaccio, que na juventude enfrentou com destemor, tenacidade e arte a ditadura cultuada pelos morlocks, no inverno do seu descontentamento, capitulou. “Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este. E com este tipo de gente que acabei encontrando”, arrematou. 
Como bem notou a jornalista Cynara Menezes, em sua página na internet, Migliaccio não escreveu uma carta de suicida, mas “um protesto, um apelo, uma súplica”. Mais: “um documento histórico dos tempos atuais”. Cynara foi quem melhor abordou, nas mídias sociais, a polêmica que se armou em torno da divulgação da carta, por alguns vista como uma invasão (ou evasão) de privacidade. Não confere: o ator a deixou na cabeceira da cama, para que todos a lessem. 
Manifesto não se engaveta. O “caos” da velhice a que Migliaccio se refere é uma clara alusão à reforma da Previdência e ao contumaz desprezo dos atuais governantes pelos idosos, tidos como vítimas inevitavelmente preferenciais da covid-19 (uma doença que “só mata velho”) e pacientes a sempre serem preteridos por um jovem quando houver apenas um leito com respirador disponível. 
Imagine-se na emergência de um hospital, com apenas um leito disponível e dois candidatos: Aldir Blanc, 73 anos, e um garotão qualquer, que não estuda, não trabalha, um inútil. A escolha esperada não é a de Sofia e merecia ser batizada com o nome do ministro da Saúde que a recomendou. Mas para que preservar a vida de um garotão, se ao que tudo indica, seu futuro é uma miragem dantesca?

domingo, 10 de maio de 2020

Uma freira de verdade - Antonio Prata

A voz no sistema de som avisa que o embarque foi encerrado. Olho as poltronas vazias ao meu lado e sorrio, naquela pequena euforia que nos toma quando encontramos uma vaga bem na frente do cinema ou damos com o banco sem viv'alma na fila –como se o nosso anjo da guarda, num momento de bom humor, resolvesse nos dar uma gorjeta. O meu anjo da guarda, porém, deve estar com o humor um pouco avariado, pois não só guarda a gorjeta no bolso como me bate a carteira: eis que surge, detrás do biombo que separa dos passageiros a porta do avião, uma freira. É botar os olhos nela para ter certeza –não sem alguma aflição, confesso– de que irá se sentar ao meu lado.
Não quero soar preconceituoso, mas é impossível evitar: nunca me sentei ao lado de uma freira. Ateu, filho de ateus, aluno de ateus, leitor de ateus, amigo de ateus, casado com uma ateia e, se Deus quiser, pai de dois ateusinhos, freiras são, para mim, personagens excêntricas que só existem nos filmes do Fellini, nas calçadas de Perdizes (perto da faculdade Santa Marcelina) e, por algum mistério, em aeroportos.
Com passinhos curtos, conferindo os números dos assentos, ela vem se aproximando. Quase a chamo, "Irmã! Irmã! É aqui! Tenho certeza que é do meu lado!", mas não é necessário: ela para a cinco centímetros do meu cotovelo e, com um sorriso protocolar, me pede licença. Levanto e noto, surpreso, que aquele sorriso falso me incomodou. Percebo que, por trás da minha aflição, havia certa expectativa: vou conhecer uma freira! Uma freira de verdade! E, na minha cabeça, uma freira de verdade traz Jesus no coração: para ela, todo encontro deveria ser genuíno e prazeroso.
Decolamos. O nervosismo me faz esquecer da freira e, em seguida, me faz lembrar dela, de novo: tenho medo de voar, mas ao meu lado há alguém que confia nos inescrutáveis desígnios da Providência, alguém que tem fé na salvação e na vida eterna. Penso que olhá-la, nem que de relance, me trará algum conforto. Para meu espanto, contudo, a freira se agarra aos apoios de braço como a mais desamparada das ateias diante da possibilidade de aniquilação. Tenho vontade de repreendê-la: "Um policial não pode ter medo de ladrão, um médico não pode chorar numa consulta, um padeiro não pode ser intolerante a glúten: aja como uma freira!".
Ela, definitivamente, não age: assim que aterrissamos, o avião mal acabou de taxiar, os sinais de apertar cintos continuam acesos, a voz no sistema de som pede para que todos permaneçam sentados, mas a freira se levanta e me encara, um sorrisinho passivo-agressivo nos lábios, querendo passar. Ora, os desígnios da Providência podem ser inescrutáveis, mas as normas da Anac, não. Finjo que não é comigo. Ela se adianta três centímetros, quase roçando nas minhas pernas. Abro a revista de bordo. "Licença?!", ela pede, ligeiramente indignada. Eu aponto o aviso luminoso e ali permaneço, inabalável, vendo seu ódio contido crescer em minha visão periférica, sem saber se estou provocando a ira de Javé ou –me ocorre, num estalo– arrumando encrenca com uma talentosíssima traficante de drogas. Como já disse, não creio em Deus, mas, se tiver que escolher entre as duas opções acima –vai que?–, fico com a segunda.


 10/05/2015

Estou preocupado com a quantidade de pessoas que desejam que eu não me preocupe - Ricardo Araújo Pereira

Um dos aspectos mais difíceis de compreender no mundo atual é a profusão de livros, páginas de internet e serviços de profissionais de saúde mental que se destinam a ensinar as pessoas a não se preocuparem. Não se preocupar era, no meu tempo, uma operação que se efetuava sem qualquer esforço. Era tão fácil que não requeria aprendizagem.

As únicas pessoas que viviam uma vida livre de preocupações eram os idiotas, os ricos e os ricos idiotas —um grupo surpreendentemente vasto.
Havia, sim, a necessidade oposta de ensinar as pessoas a se preocuparem. Durante toda a minha infância e juventude, a minha avó se dedicou a tentar que eu deixasse de ser um idiota e passasse a me preocupar com as coisas. Quanto a conseguir que eu me preocupasse foi bem-sucedida; no projeto de evitar que eu fosse idiota teve menos êxito.
Neste momento, estou bastante preocupado com a quantidade de pessoas que desejam que eu não me preocupe. Uma rápida pesquisa no Google devolve milhões de resultados a quem procura deixar de se preocupar e nenhum a quem pretende se preocupar mais. Quem queira se inquietar não obtém ajuda. E quem quer deixar de se preocupar recebe auxílio de pessoas que, claramente, não se preocuparam em delinear um plano sensato e credível.

Há dois grandes grupos de teóricos da despreocupação: os que sugerem que a gente respire e os que apelam a que a gente se acalme. Os primeiros ignoram que a maneira mais rápida e fácil de ficarmos livres de todas as preocupações é, precisamente, deixar de respirar; os segundos desconhecem por completo a história. Nunca, em qualquer tempo ou lugar, alguém se acalmou por lhe terem sugerido que se acalmasse. O efeito costuma ser, aliás, agravar a irritação, normalmente porque quem apela à calma o faz com uma superioridade bonacheirona de quem teve uma ideia que, sendo excelente, era também óbvia e, mesmo assim, escapou-nos.
Julgo que as únicas vezes que perdi a calma foi na sequência de apelos à calma.
Ao mesmo tempo que se defende a fuga às preocupações, louva-se a sabedoria antiga, o que não faz sentido. Como creio que deixei claro, os antigos sabiam que: 1. As preocupações tinham várias vantagens; 2. A melhor maneira de aliviar temporariamente algumas preocupações não é com livros de autoajuda caros. É com duas garrafas de vinho barato.

Luiza Pannunzio/Folhapress

segunda-feira, 4 de maio de 2020

O Melhor - Luis Fernando Verissimo

Era uma época cheia de perigos. Sarampo, caxumba, catapora, bicho-do-pé. Engolir chiclé era perigoso porque colava nas tripas. Fazer careta era perigoso porque, se batesse um vento, você ficaria com o rosto deformado pelo resto da vida. Pé descalço em ladrilho: pneumonia. Melancia com leite: morte certa. Banho depois de comer: congestão.

Um dia fizeram uma cabana num terreno baldio. Ainda havia terrenos baldios. A cabana era o mundo secreto deles, da turma. Ganhou um nome: Clube da Sacanagem. Ninguém precisava saber o que acontecia lá dentro. Os cigarros roubados de casa. As revistinhas. Mas a primeira coisa que o menino fez dentro da cabana foi comer melancia com leite e não morrer.
Com o tempo, os perigos mudavam. Desatenção na escola, falta de estudo, notas baixas: fracasso, nenhum futuro, ruína. Sexo sem camisinha: doença, gravidez indesejada, ruína. Amizades perigosas: drogas, dependência, nenhum futuro, ruína, morte.
– E banho depois da comida? A ironia não era entendida. – Pode.
O grande amor deixava olhar, mas estabelecera um ponto nas suas coxas do qual era proibido passar. Como o paralelo 38, que dividia as duas Coreias. E ela era rigorosa. No caso de transgressão, soavam os alarmes e havia o perigo até de intervenção americana.
Mas bom, bom mesmo, era o orgulho de um pião bem lançado, o prazer de abrir um envelope e dar com a figurinha rara que faltava no álbum, o volume voluptuoso de uma bola de gude daquelas boas entre os dedos, o cheiro de terra úmida, o cheiro de caderno novo, o cheiro inesquecível de Vick VapoRub.
Mas melhor do que tudo, melhor do que acordar com febre e não precisar ir à aula, melhor até do que fazer xixi em piscina, era passe de calcanhar que dava certo.
É ou não é?

5/5/2013

Dos chatos - Luis Fernando Verissimo

Há chatos e chatos. Há o chato pegajoso, o chato que telefona muito, o chato que cutuca. Há o enochato, que faz questão de que você saiba que ele sabe tudo sobre vinhos, e o ecochato, assim chamado porque se preocupa demais com ecologia ou porque vive se repetindo, como um eco.
Há o egochato, cujo único assunto é ele mesmo, e o chato hipocondríaco, uma especialização do egochato, cujo único assunto é sua própria saúde, ou falta dela. Há o chato invasivo, que fala a centímetros do seu nariz, e o chato hiperglota, que não para de falar. Mas também há – embora seja raro – o chato que se flagra, que tem consciência de que é chato e quer se regenerar, e que diz muito “Eu estou sendo chato? Hein? Hein?”, e portanto é o pior chato de todos.
Tem o caso daquele chato com autocrítica que decidiu pedir ajuda, mas não sabia quem procurar. Chatice não se cura com remédios ou com exercícios, muito menos com cirurgia. Não existem clínicas para a recuperação de chatos. O que fazer? Nosso chato resolveu consultar um psicanalista.
– É que eu sou chato, doutor, e sei que sou chato.
– Deve ter alguma coisa a ver com sua mãe.
– Minha mãe? Por que minha mãe?
– É que na psicanálise sempre partimos da hipótese de que, seja o que for, a culpada é a mãe. Facilita o tratamento. Mas me fale da sua infância.
– Bem, na escola meu apelido era “Sarna”. Também me chamavam de “Desmancha Bolinho”, porque, assim que eu chegava num grupo, o grupo se desfazia.
– Sua família também o achava chato?
– Não sei. Mas desconfiei quando, nos meus 18 anos, eles me deram as chaves da casa e em seguida mudaram todas as fechaduras.
– E sua vida amorosa?
– É normal, eu acho. Até me casei, embora minha mulher alegue que meu pedido de casamento a fez dormir e que só saiu do estado comatoso no altar, onde teve que dizer “sim” para não dar vexame. Hoje, vivemos bem, em casas separadas, apesar de eu só poder visitá-la nos dias 29 de fevereiro, se ela não mandar dizer que não está. Tivemos um filho que eu ninava quando era bebê, mas ele fingia que dormia para eu parar. É o efeito que eu tenho nas pessoas, doutor.
Ser chato é uma fatalidade biológica ou a chatice é um produto do meio? É possível deixar de ser chato com algum programa de reorientação? É o meu tom de voz que chateia ou o que eu digo? Ou as duas coisas juntas? Hein, doutor? Doutor...? Doutor...? Acorde, doutor!


5/5/2013

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...