terça-feira, 29 de outubro de 2019

Dormição - Nílson Souza

A frase genial é do poeta Antônio Maria, e chegou até nós pela boca do colega Paulo Sant’Ana, no pretérito sempre presente de suas andanças pela nossa sala de trabalho. Numa das vezes em que se acomodou na sua poltrona favorita para ressonar e aguardar a inspiração, balbuciou:
– Se eu estiver dormindo, me deixe dormir. Se eu estiver morto, me acorde.
Fiquei tão encantado com a sacada, que imediatamente procurei na editoria de Arte o arteiro Paulo Zarif, e fiz a encomenda: um letreiro bem visível. Quando Sant’Ana acordou, o cartaz com a citação já estava colado na parede acima de sua cabeça. Conhecendo a sensibilidade do cronista atualmente em recesso para tratamento de saúde, tivemos o cuidado de selecionar também uma frase de sua autoria para colocar junto à do poeta que nasceu pernambucano e morreu carioca.
O sono é o prenúncio da morte, escreveu Shakespeare, para horror dos dorminhocos. Alguns menos encucados e mais espiritualizados acreditam que se trata de um momento de liberdade para a alma dar uma saidinha e passear por onde desejar. Materialistas convictos dizem que é apenas uma forma de descansar o corpo, já que o cérebro não para de funcionar, muitas vezes nos levando a reboque pelo mundo dos sonhos.
Nunca fui de muita dormição. Sempre preferi a madrugada para leituras e trabalhos intelectuais, pois o silêncio e o sono dos outros me facilitam a concentração. Mas já ando menos apaixonado pela insônia, principalmente depois que tomei conhecimento de um estudo do Centro de Pesquisa da Luz, de Nova York, sobre a interferência das telinhas luminosas (de celulares, tablets e computadores) no nosso ritmo circadiano, que vem a ser o nosso ritmo de sono. Segundo os cientistas, a luz emitida por esses dispositivos interfere no nosso cérebro e impede a produção do hormônio que nos faz desacelerar e dormir.
Como as pessoas que descansam bem à noite são mais resistentes a doenças e se tornam mais longevas, já ando pensando em trocar o computador pela velha máquina de escrever durante a madrugada. Aí os outros é que não vão dormir.


quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Nosso bairro é um recanto especial - Ignácio de Loyola Brandão

No ginásio e científico, em Araraquara, a hora do recreio estabelecia as classes sociais. Os coxinhas (então a palavra significava mesmo coxinha de galinha) iam direto ao misto quente do Hanai, a classe média buscava o cachorro quente do Oguri e remediados, como eu, consolavam-se com o pão com molho de tomate do Chafih. Os que iam a São Paulo voltavam falando de um hot-dog muito chique e diferente vendido na Augusta, rua dos playboys.
Assim que cheguei aqui, corri ao Hot-Dog, lanchonete vizinha ao cine Paulista, esquina da Oscar Freire. O cinema que foi depredado pelos playboys quando exibiu Ao Balanço das Horas (Rock Around The Clock), com Bill Halley e seus cometas. Hot-Dog. Deliciei-me, achei linda a caixinha listada de vermelho que vinha com batatas fritas, secas. O Paulista também tinha as poltronas com listas em preto e branco. De qualquer modo, fiquei com essa história de cachorro quente na cabeça; até hoje, gosto e não perco festa infantil quando sei que tem mini hot-dog.
Assim, quando a noticia bombou, salivei. Roberta Sudbrack abriu o Suddog, espaço de cachorro quente na Vila Madalena. Estupefação. Afinal, uma das chefs mais sofisticadas do Brasil faz cachorro quente? Aquela Roberta que, chamada por Ruth Cardoso, deu requinte à cozinha do Planalto? A chefe que tem um restaurante excepcional no Jardim Botânico, Rio de janeiro? Pois é, já está fazendo na Vila Madalena, na Rua Girassol, junto a loja Uma.
Não me espantei. Conhecendo Roberta e sua vida e tendo inclusive escrito um caderno especial para o livro dela Eu Sou do Camarão Ensopadinho com Chuchu, posso dizer que essa mulher está fazendo um aceno ao seu início. Sabem como ela começou? Conto. Em Brasília, décadas passadas, pessoas comentavam, entusiasmadas: “Você já comeu o cachorro quente do Canil Quente & Cia?” Era um carrinho que ficava na entrada da 102 Sul, comandado por uma menina com olhos cor de mel. Mal sabiam que o cachorro quente da menina Roberta era apenas o começo. Intuitiva, ela se acumpliciava com os amigos: “Quer ganhar um hot-dog? Vá para os lados da universidade e estacione seu carro junto ao meu carrinho. Finja que é freguês”. As pessoas passavam, viam aquela fila, desciam para olhar, acabavam por experimentar o cachorro quente. Ficavam seduzidos.
Porque o pão, a Sudbrack convencia o padeiro a fazer à maneira dela; porque: “o pão é a alma do sanduíche”. A salsicha tinha sido escolhida no Rio Grande do Sul, terra dela, entre centenas que foram testadas e o molho vinha das panelas da avó Iracema, com quem ela vivia e que a criara. No auge, Roberta vendia 300 cachorros quentes por dia. Tudo de primeira, diferenciado. A batata que chegava ao freguês era fresca, crocante, comprada de madrugada no mercadão brasiliense. Nada de Ruffles plastificada.
Depois de uma temporada nos Estados Unidos, ela – a fim de sobreviver – começou fazer jantares em domicilio, até o dia em que, chamada por José Gregory, preparou um banquete para FHC, que encantou Ruth Cardoso. Vieram anos e anos no Planalto e, enfim, a abertura do próprio restaurante no Rio de Janeiro.
A Rua Girassol é quase vizinha e isso me lembra que, sobre comidas e sanduíches, por aqui estamos bem servidos. A cinquenta metros de casa, na João Moura, abriu-se uma portinhola com o letreiro, Underdog. Xi!!!, disseram, uma lanchonete que vai ser um pé sujo, confusão. Mordemos a língua, calamos a boca! Foi tudo diferente e percebemos pelo perfume intenso da carne que nos fascina quando passamos por ali. Começaram a vir jovens, as poucas mesas lotaram, um mundo de gente em pé, esperando e tomando cervejas artesanais. Tentei ir várias vezes, fracassei. Um dia, mal percebi que estavam colocando as mesas, corri, sentei-me, brinquei com a bela atendente cheia de piercings: ‘Gente da minha idade pode sentar aqui?” Ela sorriu: “quando quiser, chegue antes do meio dia ou pelas cinco e meia da tarde. Vale a pena”. O hambúrguer e as carnes ali não têm igual em questão de ponto, tempero, maciez, sabor. Qualquer dia, aposto que aquelas professoras universitárias aposentadas, que chamo de “as meninas da padaria”, estarão no Underdog. Este recanto João Moura, Artur de Azevedo, Lisboa, Cristiano Viana, nosso mundo, nosso bairro é uma delícia. O pão na chapa é na CPL; se viro a esquina, posso comer uma Vera Porchetta (dia desses falo dela), no bar Vianna. Bolo de banana com café é no pequenino Little Coffee Shop. O advogado Mariz de Oliveira vem enfrentar a Pasta e faggioli no Genova. Subindo um pouco, tem, na Oscar Freire, o Las Chicas, ao lado do Bonde Paulista, onde intelectuais da USP se reúnem aos domingos para comer pizza. E acreditam que, na Quitanda da chinesa Claudia, se faz compra de caderneta? Não somos Jardins, ainda que apenas a Rebouças nos separe. Mas é bem bom por aqui.

Um solteirão da província - Milton Hatoum

“ Não conheceste o Valongo”, disse tio Adam. “Usava terno e gravata até nas tardes mais calorentas de agosto... A gravatinha borboleta parecia um coração de rubi, abotoado no pescoço. Era outra época, as pessoas liam poesia, escutavam Mozart e Noel Rosa, e diziam palavras em desuso hoje em dia: com licença, muito obrigado, por gentileza...”
“O que ele fazia?”
“O Valongo? Cultivava e vendia orquídeas da floresta...”
“Orquídeas?”
“O orquidário do grande fotógrafo alemão George Huebner. Em 1935, quando Huebner morreu, Valongo cuidou do estúdio fotográfico e do orquidário. O estúdio durou pouco tempo, mas o orquidário e as fotografias sobreviveram. Vi fotos maravilhosas no livro do teu amigo Andreas Valentin. Índios de várias etnias e regiões fotografados no estúdio de Huebner, aqui em Manaus. Mas Valongo nunca saiu da cidade. Dizia que o alemão tinha viajado por ele, e que as imagens do fotógrafo bastavam. A gente se conheceu numa tarde de 1956... Valongo circulava pela praça da Saudade... Um velho elegante, vestido na pinta, segurando flores de uma orquídea... Aliás, mais galante que elegante. Acho que ele foi com a minha cara e me pagou uma cuia de tacacá. Nossa amizade começou nesta praça, ali perto do caramanchão, onde ficava a banca de tacacá. Valongo tomava duas cuias fumegantes, o suor escorria pelo rosto e molhava a gravatinha vermelha. Quando mastigava as folhas de jambu, o olhar parecia imergir num sonho lúbrico. No finzinho da tarde, ia oferecer flores de orquídea a uma aluna da Escola Normal...”
Morava no centro?
“Numa casa na Joaquim Nabuco, perto da antiga Renascença, o armazém de secos e molhados. Morava sozinho, com as orquídeas e as lembranças. Cultivava orquídeas no quintal, as mesmas espécies que ele tinha visto na chácara de Huebner. Uma vez, disse que a paixão era uma loucura ardilosa, e que as orquídeas que oferecia às moças, na verdade eram oferecidas a uma única mulher, uma viúva que tinha se mudado para o Rio de Janeiro. Fui um covarde, Adam, ele disse, com ar de arrependido. Não sei se falava sério, porque a voz era burlona... Eu tinha uns vinte anos, e ele, a idade que tenho hoje: oitenta. Na casa da Joaquim Nabuco, aprendi a admirar fotografias, orquídeas, lindas trepadeiras... E um dia, uma tarde de 1960, Valongo me chamou para contar um segredo.”
Qual?
“Fiz a mesma pergunta”, riu tio Adam. “Era o segredo do cofre. Um cofre alemão, verde-escuro... Valongo revelou o segredo, mas não abriu o cofre. Revelou também que tinha dois sobrinhos, que raramente o visitavam. Aí, sem mais nem menos, disse que ia dormir um pouco, e que amanhã a gente se encontraria na praça da Saudade. Não, ele não queria tirar um cochilo, queria morrer. E morreu mesmo... Morreu naquela tarde, quase noite... E aí conheci os dois sobrinhos no velório, herdeiros da casinha e do orquidário... Olhavam o morto, mas pensavam no cofre. Desconfiavam que eu tinha o segredo... E ficaram nervosos quando leram o testamento.”
E o que dizia?
“Estava escrito que o dinheiro guardado no cofre deveria ser dividido entre os sobrinhos, e os papéis ficariam comigo. Abri o cofre na presença dos dois marmanjos e de um advogado. O dinheiro era uma mixaria, um valor tão baixo que revoltou os herdeiros. Os papéis eram mais valiosos: sete cartas para uma mulher e uma fotografia dessa mesma mulher com o Valongo. Um bilhete pedia para que eu enviasse as cartas e a foto para um endereço no Rio. Uma casa na Tijuca. E eu fiz isso. Fiz por amizade, e também por uma história de amor. A foto antiga dizia muito... No avesso da fotografia, li esses versos que nunca mais esqueci:
“Minha alma se embriaga/E eu nem preciso beber o vinho do enlevo e do amor/Tua beleza é êxtase/E o teu corpo, meu único abrigo...”.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Árvore Genealógica - Luiz Fernando Veríssimo

- Mãe, vou casar!

- Jura, meu filho?! Estou tão feliz! Quem é a moça?

- Não é moça. Vou casar com um moço. O nome dele é Murilo.

- Você falou Murilo... Ou foi meu cérebro que sofreu um pequeno surto psicótico?

- Eu falei Murilo. Por que, mãe? Está acontecendo alguma coisa?

- Nada, não. Só minha visão que está um pouco turva. E meu coração, que talvez dê uma parada. No mais, está tudo ótimo.

- Se você tiver algum problema em relação a isto, melhor falar logo...

- Problema? Problema nenhum. Só pensei que algum dia ia ter uma nora... Ou isso.

- Você vai ter uma nora. Só que uma nora... Meio macho. Ou um genro meio fêmeo. Resumindo: uma nora quase macha, tendendo a um genro quase fêmea...

- E quando eu vou conhecer o meu. A minha... O Murilo?

- Pode chamar ele de Biscoito. É o apelido.

- Está! Biscoito... Já gostei dele... Alguém com esse apelido só pode ser uma pessoa bacana. Quando o Biscoito vem aqui?

- Por quê?

- Por nada. Só pra eu poder desacordar seu pai com antecedência.

- Você acha que o Papai não vai aceitar?

- Claro que vai aceitar! Lógico que vai. Só não sei se ele vai sobreviver... Mas isso também é uma bobagem. Ele morre sabendo que você achou sua cara-metade... E olha que espetáculo: as duas metades com bigode.

- Mãe, que besteira ... Hoje em dia ... praticamente todos os meus amigos são gays.

- Só espero que tenha sobrado algum que não seja... Pra poder apresentar pra tua irmã.

- A Bel já tá namorando.

- A Bel? Namorando?! Ela não me falou nada... Quem é?

- Uma tal de Veruska.

- Como?

- Veruska...

- Ah!, bom! Que susto! Pensei que você tivesse falado Veruska.

- Mãe !!!...

- Tá..., tá..., tudo bem... Se vocês são felizes. Só fico triste porque não vou ter um neto...

- Por que não? Eu e o Biscoito queremos dois filhos. Eu vou doar os espermatozóides. E a ex-namorada do Biscoito vai doar os óvulos.

- Ex-namorada? O Biscoito tem ex-namorada?

- Quando ele era hétero... A Veruska.

- Que Veruska?

- Namorada da Bel.…

- "Peraí". A ex-namorada do teu atual namorado... E a atual namorada da tua irmã. Que é minha filha também... Que se chama Bel. É isso? Porque eu me perdi um pouco...

- É isso. Pois é... A Veruska doou os óvulos. E nós vamos alugar um útero.

- De quem ?

- Da Bel.

- Mas . Logo da Bel?! Quer dizer então... Que a Bel vai gerar um filho teu e do Biscoito. Com o teu espermatozóide e com o óvulo da namorada dela, que é a Veruska...

- Isso.

- Essa criança, de uma certa forma, vai ser tua filha, filha do Biscoito, filha da Veruska e filha da Bel.

- Em termos...

- A criança vai ter duas mães: você e o Biscoito. E dois pais: a Veruska e a Bel.

- Por aí...

- Por outro lado, a Bel.…, além de mãe, é tia... Ou tio.... Porque é tua irmã.

- Exato. E ano que vem vamos ter um segundo filho. Aí o Biscoito é que entra com o espermatozóide. Que dessa vez vai ser gerado no ventre da Veruska... Com o óvulo da Bel. A gente só vai trocar.

- Só trocar, né ? Agora o óvulo vai ser da Bel. E o ventre da Veruska.

- Exato!

- Agora eu entendi! Agora eu realmente entendi...

- Entendeu o quê?

- Entendi que é uma espécie de swing dos tempos modernos!

- Que swing, mãe?!!…

- É swing, sim! Uma troca de casais... Com os óvulos e os espermatozóides, uma hora no útero de uma, outra hora no útero de outra...

- Mas...

- Mas uns tomates! Isso é uma bacanal de última geração! E pior... Com incesto no meio...

- A Bel e a Veruska só vão ajudar na concepção do nosso filho, só isso...

- Sei!!!... E quando elas quiserem ter filhos...

- Nós ajudamos.

- Quer saber? No final das contas não entendi mais nada. Não entendi quem vai ser mãe de quem, quem vai ser pai de quem, de quem vai ser o útero, o espermatozóide... A única coisa que eu entendi é que...

- Que...?

- Fazer árvore genealógica daqui pra frente... vai ser tramado...

terça-feira, 1 de outubro de 2019

A Menina e A Boneca - 2 crônicas


Uma mãe menina - Fabrício Carpinejar


Aquilo me marcou para sempre. Estudava em escola pública. Fizemos arrecadação de alimentos para um orfanato do bairro.



No dia da visita, roubei uma boneca da minha irmã Carla para entregar a uma das crianças. Escondi em minha mochila. Procurei alguma que ela não estivesse usando, empoeirada, em cima do armário.

A professora explicou que conheceríamos um lar de transição, de meninos e meninas sem pai nem mãe, que ainda seriam adotados por uma nova família. Jogaríamos futebol, vôlei, brincaríamos no pátio, trocaríamos os nossos sorrisos.

Foi quando conheci Mirela, de seis anos, olhos negros, com tranças longas e um jeito tímido e abafado de conversar. Eu era dois anos mais velho. Não consegui descobrir muito dela, a não ser que gostava de desenhar árvores, a ponto de ultrapassar o tamanho da folha. Ela me mostrou um desenho, onde via apenas um tronco marrom ocupando inteiramente a página em branco. A copa e as folhas não apareciam. A árvore chegava até o céu, de acordo com a sua lógica.

Entreguei o presente para ela, cuidando para não ser visto. Ninguém falou que não poderíamos entregar lembranças, mas ninguém também tinha falado que poderíamos. Não quis puxar o assunto com a professora e sofrer uma possível censura.

Na hora em que eu dei a boneca, ela me devolveu, daí eu dei de novo, e ela me devolveu de novo, até que eu dei e saí correndo. Ficou um empurra-empurra estranho, finalizado porque fugi e não possibilitei mais proximidade para outra devolução.

Evidente que a minha "sora" descobriu, três dias depois, por um evento incomum no orfanato.

Mirela dormiu no chão na noite seguinte à nossa visita, encontrada no piso frio do inverno, encolhida, usando os sapatos de travesseiro. A orientadora do lar deduziu que a queda havia sido provocada por algum pesadelo ou medo de um monstro. Não desconsiderou a hipótese de bullying de seus colegas.

Mas não. Mirela explicou que ofereceu a sua cama quente e seus cobertores fofos para a boneca.

A boneca ficou deitada em seu colchão, enquanto ela se recolheu ao piso. De tanto que gostou do brinquedo, cedeu o que possuía de mais valioso.

Montou um berço para a sua filha recém-chegada. Zelou os cabelos dela. Arrancou dentro de si a mãe que nunca teve na vida para criar um ventre de pano.

Tão franzina, tão pequena, Mirela não fez nenhuma loucura. Fez com a boneca o que sempre sonhou para si.


A Menina e A Boneca de Milho - Rangel Alves da Costa


Era uma vez... Sim, era uma vez porque toda história bonita deve começar assim, indicando que algo alegre ou triste aconteceu e que precisa ser contado. Então conto o que me contaram...
Era uma vez uma menina muito pobre, vivendo num mundo distante da cidade grande, filha única de uma família que mal tinha o alimento do dia a dia. Não estudava porque a escola mais próxima ficava a meio dia de caminhada, não tinha amigos na mesma idade porque não havia outra casa na vizinhança.
Aos três anos, com muito esforço seu pai lhe presenteou com uma bonequinha de plástico. Dessas toda nua e com cabelo que não suporta um puxão. Mas daí em diante a bonequinha se tornou sua companheira inseparável. E com ela continuou até que o cachorro segurou o brinquedo na boca e deu sumiço.
A menina chorou dois dias e duas noites. Já estava com mais de cinco anos e os pais ficaram num aperreio danado ao ver o sofrimento da filha. E o pior, não poder fazer nada que a agradasse. O pai, desesperado com a tristeza da menina, logo procurou alguma coisa que trouxesse de volta aquele singelo sorriso.
Caçou uma borboleta de duas cores, mas a menina soltou-a num sopro entristecido. Trouxe um passarinho do mato, mas a filha fez a mesma coisa. Cortou pedaço de pau para uma casinha de bonequinha, mas foi pior. Não queria casinha de boneca se não existia mais a boneca, disse a menina chorando.
O pai chamou a esposa num canto e disse que tudo já tinha feito e agora não havia mais o que fazer, a não ser deixar o tempo passar até que ele fosse até a cidade e ver se sobrava algum tostão para comprar outra boneca na feira. Então tá certo, mas ela precisa comer, disse a esposa.
Então o pai se dirigiu até o roçado para catar algumas espigas de milho verde para colocar na panela. A menina gostava de milho e talvez ela esquecesse um pouco o motivo do sofrimento e comesse uma ou duas espigas. E depois certamente adormeceria para acordar mais confortada.
Ao retornar do roçado com uma braçada de milho verde, o pai cuidou de colocar as espigas num tronco diante da casa e gritou para que a esposa fosse até ali para retirar as palhas. Ao ouvir a voz do pai, a menina levantou a cabeça na janela e pareceu não acreditar no que via.
Das espigas colocadas no tronco, uma mais novinha se sobressaia pela verdura da palha e pelos fiozinhos dourados que desciam feitos cabelos alongados. Uma boneca, uma boneca, eu quero essa boneca pra mim, gritou a menina, já correndo na direção das espigas.
Mas é só uma boneca de milho novo, minha filha, muito diferente daquela que você tinha e que era de plástico, disse a mãe. Mas eu quero essa pra mim, eu quero brincar com ela, insistia a menina, enquanto recebia sua boneca de milho.
Como se sabe, toda boneca de milho possui espiga molinha, cabelos que descem além da palha, formando um brinquedo perfeito para quem gosta de se divertir com os encantos inusitados da natureza. E aquela boneca era linda mesmo, só que com efêmera duração de vida.
A menina não sabia, mas se ela quisesse brincar com boneca de milho não havia lugar melhor que no próprio roçado, junto às plantas ainda verdejantes. Aquela bonequinha que tinha em mãos, por mais carinho e cuidado que recebesse, não duraria mais que dois dias. Logo a palha começaria a secar, a espiga endurecer e os cabelos caírem totalmente.
Os pais sabiam que não duraria muito aquela alegria da filha. O temor maior era que o sofrimento voltasse e ela novamente definhasse de vez. Mas era tão bonito e festivo ao coração vê-la assim tão feliz e contente, sorrindo e conversando com sua bonequinha, que o pai segredou à mãe o que poderia fazer para prolongar aquele estado de felicidade.
E assim, quando a noite caía e a menina dormia ao lado da bonequinha, o pai corria até o roçado e trazia uma boneca de milho nova. Ao acordar e não percebendo nada, a menina voltava ao encantamento. Mas numa manhã a menina achou sua boneca diferente, maior e mais envelhecida.
É que como a gente, a boneca de milho também cresce, vai envelhecendo, tentou justificar a mãe. E disse isso já com o coração dolorido, pois sabia que não demoraria muito para não restar uma espiga de milho sequer. O roçado já estava seco, as plantas murchando, tudo esturricando.
Chegou o dia que não havia mais nenhuma espiga de milho para ser reposta ao lado da filha. A menina acordou com sua boneca com as palhas secas e tristes, com os cabelos rareando e prestes a cair. Então, por instinto, ela foi tirando as palhas de cima e deixando as mais novas. Até que não restava mais nenhuma palha e a boneca, com grãos secos e sem cabelos, ficou completamente nua.
Diante da boneca nua, a menina chamou os pais e disse que seu brinquedo estava muito doente e que ia morrer. Mas pediu para ficar com ela assim mesmo, até que sumisse de vez de suas mãos. E continuou, até que ela renasceu quando as chuvas novamente caíram e os pés de milho brotaram da terra.



Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...