quinta-feira, 18 de julho de 2019

Pais & Filhos



Premê (Premeditando o Breque) - Conflito de Gerações





CalvinBill Watterson




Paternidade Ativa - Marcelo Rubens Paiva

“Paternidade ativa” é a expressão da moda. Como “empoderamento”, aliás, reflexo da paternidade ativa. Elogia-se aquele que pratica a ação denominada paternidade ativa. Que tipo não participa?
A classificação é como se eximisse o pai de ter participação e responsabilidade na vida de uma (sua) criança. Ativar a paternidade é admitir que existe paternidade inativa. Ou seja, inexiste paternidade.
A paternidade então é classificada entre ativa, semiativa, inativa, preguiçosa e burra. Alguns chamam de “pai consciente”, ou “pãe” (pai + mãe). Outros, de “pai mamífero”, uma aberração darwinista, já que leões comem sua prole, enquanto leoas caçam.
Garanto que, na Idade da Pedra e Bronze, pais coletores, caçadores, construtores ou guerreiros formam a prova do sucesso e burrice humana, já que se deixassem as mulheres coletarem, caçarem, construírem e guerrearem, saboreariam com mais tempo as delícias da criação.
Antes, o pai exercia uma atividade financeira apenas. Paternidade ativa é fruto da revolução industrial e emancipação feminina. Espantar-se com ela hoje em dia é o mesmo que se espantar com uma tripulação feminina na cabine de um Boeing.
Mas, OK, sei o que querem dizer: existe ainda o pai que não troca fraldas do filho, que acha que é tarefa da mãe. Mas aí não é um pai inativo, é um desumano sobrevivente que virou pai.
Não existe maior prazer do qual os homens do passado, meu pai, meus tios, meus avós, os pais, tios e avós dos meus amigos, nunca se lambuzaram: sentir o peso de uma fralda na mão, avaliar um cocozinho, ver a cor, preocupar-se se é devidamente denso ou indevidamente colorido “cheguei”, sentir o cheirinho de uma fralda nova, uma bunda limpinha com creminho hidratante, tomar banho junto, esfregar o sabonete de nenê na pele de nenê do nenê, limpar a bundinha, a barriguinha os bracinhos o pescocinho o sovaquinho do nenê, obrigá-lo a aguentar o jato d’água, agarrá-lo mesmo que queira voar dali, passar o xampu de nenê do nenê, ensiná-lo a fazer xixi no chuveiro, a limpar suas partes baixas, a reconhecê-las como partes a serem sempre limpas, segurar uma mamadeira, um bebê, enrolá-lo no corpo e sair por aí, com o rostinho dele colado no nosso peito, correr atrás dele, brincar, ensinar cores, números, bichos, frutas, quente e frio, uma música, colocar na cama, contar história, inventar, ler, contar piadas, fazê-lo rir, fazê-lo dormir, roncar e sonhar, para acordar com ele ao lado, sorrindo, o examinando e se perguntando quem é exatamente este grandão que me ama e eu amo tanto, que me faz rir, suar, me limpa, me mostra um monte de coisas, me fotografa o tempo todo, me leva para conhecer carro de bombeiro, imita o “baiúiu’ que ele faz, me leva a teatros que me assustam, a shows que me fazem pular, me busca na escola sempre feliz, me carrega no colo, quando me bate aquele sono, me mostra a cor dos ônibus, dos carros, imita o “baiúiu” da motoca, ensina coisas, impede que eu me machuque, ri quando eu caio, fala para eu não puxar o rabo do gato, não enfiar o dedo no olho do cachorro, na tomada, não pegar ovo, que é “peligo”, impõem limites que sempre tento romper, e que cuida tão bem de mim?
Existe o pai que nunca experimentou ser um pai canguru e aquele sai com a criança amarrada por um sling (ou baby wrap) no corpo, malha que embrulha ou enrola um bebê na gente. Sai e ri à toa, caminha orgulhoso e cuidadoso pelas calçadas.
Existe e aquele que afirma que passou o dia no escritório e não tem tempo, e o que dá o mamá, o papá, o baínho, veste a criança e sorri sem parar.
Em Mad Men, a série de TV mais premiada dos últimos tempos, um casal dos anos 1960, Don e Betty, reproduz o casal cujo marido no passado age como agia meu pai, meus tios, meus avós, os pais, tios e avós dos amigos da minha geração, que têm mais de 50 anos. E este talvez seja o grande achado da série: apontar o que até há poucas décadas era rotina, e hoje nos espanta.
Os pais não participavam dos partos dos filhos. Ficavam na antessala exercendo sua macheza com charutos fálicos, enquanto a mulher sofria solitária. Se o bebê chorava na madrugada, era a mãe quem saía da cama. Assuntos íntimos dos filhos cabiam às mulheres. Alimentar, vestir, dar pitos, eram coisas da mãe. E, claro, ele preferia que ela não trabalhasse.
Seu mundo paralelo, o escritório, garantia prazeres não aprovados pelo núcleo familiar, mas incentivados pelo mundo dos negócios. Já não tem Darwin nisso, mas pura manipulação da força, união do poder masculino, executores de leis escritas por eles, opressão disfarçada com o apoio de religiões, fundadas e geridas por homens inspirados por seus profetas homens.


Malvados - André Dahmer



Tal pai, tal filho - Antonio Prata

Não é uma questão subjetiva, que seria facilmente explicada por um psicanalista com termos como "projeção" ou "deslocamento" ou sei lá quais nomes dão os psicanalistas para casos semelhantes, é um fato objetivo, constatado por todos os que nos visitam ou veem as fotos no Instagram: meu filho é idêntico ao meu pai.
Não idêntico ao meu pai quando criança, mas idêntico ao meu pai, hoje: o mesmo sorriso irônico quando faz gracinhas, a mesma carranca furibunda quando é contrariado. Às vezes, indo espiá-lo no berço, temo encontrá-lo com um Minister aceso no canto da boca –então me lembro que o meu pai parou de fumar e respiro aliviado.
Sei que é normal eles se parecerem. Afinal, 25% dos genes do meu filho vieram do avô –e, por alguma razão, 100% desses genes resolveram se estabelecer na região que vai do queixo ao cocuruto–, mas que é estranho olhar pra um bebezinho de três meses e ver ali meu progenitor, de 69 anos, é. Tal semelhança, confesso, tem atrapalhado um pouco a nossa relação. Minha com o meu filho, digo. Minha com o meu pai, digo também.
Quando nasce um filho, o amor não é imediato. Pelo menos, no caso dos meus dois, não foi. Ao pegar minha primeira filha no colo, olhei-a nos olhos e pensei, assustado: "E agora, meu Deus, não temos nenhuma intimidade!".
Devagarinho, contudo, o amor vai nascendo. Você troca a fralda, passa pomada, pinga Rinosoro, nina o bebê revoltado às dez pras quatro da manhã e, mistério dos mistérios, quanto mais coisa chata você faz, mais o seu amor cresce, até o ponto em que se vê completamente apaixonado, descrevendo para uma plateia bocejante ou enojada os incríveis aspectos físico-químicos do cocô daquela manhã.
O problema do meu filho ser a cara do meu pai é que tá dando uma linha cruzada nos vínculos. Na última quarta, por exemplo, meu pai me ligou, lá pela meia-noite, pra falar mal do Corinthians, que perdeu pro Guaraní paraguaio e foi limado, ou melhor, "tolimado" da Libertadores.
Atendi mal-humorado. Por quê? Ora, porque eu estava há mais de uma hora olhando pra sua cara chorosa, quero dizer, pra cara chorosa do meu filho, em meus braços, tentando fazê-lo dormir. Como pode um senhor de 69 anos demorar tanto pra pegar no sono?
Eu já sabia, com a minha psicanálise de botequim, que o nascimento de um menino cria o tal triângulo edípico, que a criança se interpõe entre marido e esposa e que dá ciúmes daquele outro homem, mesmo sabendo que ele é um nenenzinho.
Agora, imaginem a minha situação: todo dia, várias vezes, flagro minha mulher dando o peito pro meu pai. Cantando pro meu pai. Dando banho no meu pai. E eu lá, quietinho, do lado, fazendo bilu-bilu –no meu pai.
Tá puxado. E, pra piorar, minha psicanalista mudou pra Argentina. Ela sugeriu fazermos sessões por Skype, mas tenho medo de minhas neuroses serem hackeadas e exibidas no Fantástico. Pelo visto, terei que me virar sozinho. Beleza. Vamos que vamos. Vai dar tudo certo.
Meu pai, quer dizer, meu filho, você pode ficar tranquilo, pois será cuidado com todo amor e carinho: mesmo porque, daqui a algumas décadas, deste saquinho besuntado de Hipoglós, sairei eu –e o mínimo que espero é reciprocidade no tratamento.

Adão Iturrusgarai
 

Não e Não - Antonio Prata

Assistindo a Nemo pela quinquagésima nona vez, meu filho enfia o dedo no nariz. “Não, filhote, dedo no nariz não pode!” Mal o reprimo e sou tomado por um desconforto.

Alguns nãos eu digo com convicção: não pode mamar às três da manhã, não pode regar o aparelho da Net, não pode comer bola de gude, por mais que elas insistam em imitar lindas uvas ou jabuticabas. Essas não são proibições vazias: se meus filhos não tivessem só dois e três anos, eu lhes explicaria direitinho as razões.

“Não pode mamar às três da manhã porque, se tiver tudo que quiser à hora que bem entender, você vai crescer achando que a vida é um Club Med all-inclusive e, quando o mundo começar a te negar todas as mamadeiras que inevitavelmente te negará, você vai ficar deprimidíssima e desorientada e vai terminar viciada em crack, em paçoca com Nutella ou coisa pior, tipo bingo – então abraça esse coelhinho e vamos dormir bem gostoso até amanhã, tá?”

“Não pode regar o aparelho da Net porque ele é elétrico e vai causar um curto-circuito e talvez pegue fogo no prédio e embora eu entenda que você queira regar todos os objetos à sua volta com o regador da vovó Tuni pra ver se eles crescem ou florescem, melhor se restringir ao vaso de girassol. (Além do mais, te garanto por experiência própria que os botões do aparelho da Net não são do tipo que se abrem em flores).”

“Não pode comer bola de gude porque embora o Homo sapiens seja onívoro, na ampla lista que inclui alface, boi, ouriço, ovo, alga, cogumelo e gafanhoto, não se encontra o vidro.”

Com relação a enfiar o dedo no nariz, contudo... Convenhamos: eu, você, o papa Francisco e o Wesley Safadão enfiamos, só não saímos por aí, tipo, admitindo aos quatro ventos num grande jornal de circulação nacional. Para ser coerente eu deveria dizer: “Filho: dedo no nariz é uma coisa que todo mundo acha nojento nos outros, mas não em si próprio, de modo que todo mundo faz e não conta. Esse é um pacto silencioso da nossa espécie. Um segredo guardado pelos 7 bilhões de habitantes do planeta”.

O problema de tal admissão é que ela me obrigaria a dar um segundo passo. “É o que chamamos de hipocrisia. Muito do que ensinamos a vocês é isso: hipocrisia. Quando a gente fala que tem que emprestar as coisas pros outros, por exemplo. Os adultos não agem assim. Veja: 1 bilhão de adultos têm um monte de coisas e 6 bilhões de adultos não têm coisa nenhuma, mas esse 1 bilhão não empresta as coisas, nem a pau. Quando a gente diz que só ganha sobremesa se comer brócolis, por exemplo, é outra tremenda hipocrisia. Ontem, o papai e a mamãe saíram pra jantar e racharam um cheesecake do tamanho de um jabuti depois de comerem x-salada e batata frita, bebendo cerveja.

Quando a gente diz que tem que falar sempre a verdade, então, é a maior hipocrisia de todas. A gente mente a torto e a direito. Se todos falassem a verdade, teríamos que admitir, por exemplo, que 1 bilhão de pessoas têm todos os brinquedos e não deixam os outros 6 bilhões brincarem, que a Gisele Bündchen põe o dedo no nariz ou que a mamãe do Nemo não está no trabalho, como sempre te digo, ela é devorada por um tubarão na primeira cena do filme, por isso toda vez nós começamos pelo minuto sete. Um mundo assim seria impraticável, não?”

“Ei, Dani! Tira esse dedo do nariz. Isso.”



Adams Carvalho/Folhapress

Gugu-dadaismo - Antonio Prata

Ser pai de crianças pequenas implica uma relação compulsória com o surrealismo. É como se, de uma hora pra outra (apesar da gravidez durar quase dez meses e levar uns dois anos pros filhos falarem, é de uma hora pra outra que você se descobre pai de dois seres humanos, como, aliás, acontece com tudo na vida, ontem mesmo eu estava na 4ª A, batendo as figurinhas da Copa União, agora estou checando on-line minha previdência privada, mas isso é tema pra outra crônica, abrir parênteses é sempre um risco, essas paredes aconchegantes nos fazem esquecer do mundo lá fora, assunto, aliás, para uma terceira crônica, enfim, voltemos ao início, não é porque vá falar sobre a infância e o surrealismo que precise escrever um texto cubista, pois bem, como eu ia dizendo, é como se, de uma hora pra outra) você passasse a conviver com um pequeno Dalí e uma mini Buñuela.

Não me refiro às grandes questões metafísicas, tipo "Todo mundo tem que morrer?" ou "Onde os bebês ficam antes da barriga da mamãe?" (essas são as questões dos pequenos Sócrates e Darwins), mas a diálogos mais prosaicos que transformam qualquer ida ao posto de gasolina numa cena de "O Anjo Exterminador".

Paramos no posto. Meu filho de dois e minha filha de quatro anos vão atrás, nas cadeirinhas. Ele pergunta: "A gente vai pôr gasolina no carro?". "Vai". "Muita gasolina?". "Muita!", digo, empolgado, sabendo que "muito" é uma das suas palavras favoritas, "Muito biscoito", "Muito filminho", "Muito suco no copo da Frozen", me pede, sempre, mas agora começa a chorar: "Muita gasolina não! Muita gasolina não!". "Por que não?". "Muita gasolina vai cair! Vai cair muita gasolina do carro!". "Não vai cair, filhote, tem tampa no carro, que nem no copo da Frozen", "Não! Não quero muita gasolina! Não quero muita gasolina!".

"Encho?", pergunta o frentista. Eu, sem perceber que meu cérebro está operando no modo "Irmãos Marx", respondo bem baixo, esperando que meu filho não ouça, "Enche", mas ele ouve, "Não! Enchido é muito! Não quero muito (sic) gasolina!". Repreendo-o, sério: "Olha aqui, a gente precisa chegar até a casa da vovó, a gente vai botar muita gasolina, sim!". Ele grita: "Pouca gasolina!". Eu, dedo em riste: "Muita gasolina!". Minha filha decide tomar uma posição na contenda e entra no choro: "Papai, ele não quer muita gasolina! Põe pouca gasolina!".

A caminho da casa da avó o silêncio é pétreo. Ele queria pouca gasolina. Eu pus muita. Ambos sabemos que o traí. Alguns minutos mais tarde, minha filha resolve sair da trincheira. "Papai, o que é a bolinha da água de bolinha?". "É ar, filhota". "Não é não, papai. O ar a gente não vê e as bolinhas a gente vê". Depois do raciocínio mais complexo de que já fui capaz, respondo: "Acho que o que a gente vê não é o ar das bolinhas, mas a água em torno do ar". Fico orgulhoso da minha resposta. Há nela qualquer coisa de zen budismo. Minha filha, contudo, parece encarar os mistérios da existência de modo mais cartesiano e retoma o choro: "Não, papai! Não tô falando da água! Tô falando da bolinha! Do que que é feita a bolinha?!". Encorajado, meu filho se junta a ela: "Eu não queria muita gasolina!", "Não é de ar a bolinha!", "Eu odeio muita gasolina!", "Não dá pra ver o ar!", gritam, indiferentes ao pai, que, como se fosse a coisa mais normal do mundo, sobe a Rebouças cantando "I sipi ni livi i pi/ Ni livi pirqui ni qui/ Ili miri li ni liguii/ Ni livi i pi pirqui ni qui/ Mis qui chili!". 


Catarina Bessell/Folhapress

O sacolejo no canguru e o mala da manhã – Gregorio Duvivier

São seis da manhã e minha filha acordou. “Agora é com você”, minha mulher me diz, com um olhar fulminante de quem virou a noite amamentando. “Dá teu jeito.”
Minha filha dorme bem, mas pra isso ela precisa de sacolejo. Não um balanço, como o Bebeto fez com seu bebê imaginário na Copa de 94. Tampouco funciona chacoalhar como se chacoalha um drinque numa coqueteleira (o resultado nesse caso vai ser uma espécie de piña colada no seu ombro).
Ela gosta mesmo é do sacolejo, aquele balanço irregular e imprevisível da caçamba de uma picape descendo uma ladeira de paralelepípedo. Na falta de uma caçamba, serve um passeio no canguru, aquela mochilinha porta-bebês.
Junto com o passeio, o batuque. Lá em casa, nenhum ritmo atingiu a eficácia da marchinha. “Foi Deus que te fez formosa”, canto, percebendo tarde demais o absurdo da frase. Ela não se importa. Dorme sorrindo, imaginando, imagino eu, o Carnaval.
Aproveito então pra comer um queijo-quente da vitória. Os atendentes da padaria já me conhecem e nem estranham quando, do nada, preciso voltar a sambar. E ela volta a dormir. Até que chega o chato das sete da manhã.
Não conhecia, antes da paternidade, o chato das sete da manhã. Acostumado à vida boêmia, me familiarizei desde cedo com o mala das três, que senta na sua mesa com o nariz coçando e altos projetos de documentário que nunca vão acontecer. Reconheço de longe o mala das cinco, que não articula nem o próprio nome mas quer discutir a relação (e vocês mal se conhecem). Passei mais tempo da vida em bares do que em padarias. Não tinha me familiarizado com o cardume de chatos em roupas de ginástica que irrompe no balcão ao raiar do dia.
Com olhar preocupado, o chato das sete interrompe meu queijo-quente: “Esse negócio não tá sufocando ela?”, diz, se referindo ao canguru.
“Sim, tá sufocando ela. Inclusive essa é a ideia, chama Child Suffocator, mas ela fez por merecer ser sufocada”, penso em responder, mas não tenho coragem. “Ela adora”, respondo.
Silêncio.
“Mas tem que ver, hein?”, o mala insiste. “Ver o quê?”, pergunto. “Tem que ver isso no médico, se não sufoca.” “Pode deixar, vou ver”. “É um perigo esse negócio.” “Não é não.” “Ah, com filho todo cuidado é pouco.” Respiro. “Verdade”.
Silêncio.
E o mala: “Cadê a mãe dessa criança?”
“Eu matei. Sufocada. Quem mandou cochilar no canguru?”



Céllus


Limpando manchas com a saliva - Fabrício Carpinejar

Eu fiz aquilo que sempre odiei.  Notei uma mancha de pasta de dente no casaco do abrigo de meu filho antes da saída para a escola e tentei limpar com a saliva. Foi um gesto impensado, passional, visceral. Quando vi, já raspava a unha no tecido. Havia desaparecido o pedágio do pudor dos pensamentos e segui com os braços em alta velocidade.

- Que é isso, pai?

Ele me censurou e, então, caí em mim. Acordei do transe paterno, do coma do instinto que atinge os bichos com as suas crias. Resmunguei uma desculpa, mas ainda estava, mesmo errado, me sentindo convicto do meu ato. Veio a confusão de lembranças: ser pai é voltar a ser filho.

Lembrei que a mãe tinha a mania de tirar alguma mancha do meu uniforme escolar umedecendo o dedo em sua boca. Assim como ela virava as páginas das revistas nas salas de espera dos consultórios. Achava nojento. Preferia ir para a aula sujo a ir com o casaco cuspido. Não me faziam mal manchas de café ou do Nescau, justificáveis, eu me incomodava com a esfregação improvisada. Jamais sonhei que estaria no outro lado do balcão da alma, realizando o que abominava. Jamais imaginava que, de vítima, viraria protetor.

Mas a vida propõe a mudança generosa de lugares. Eu só não queria o meu filho entrando na sala deselegante. Ele pairava acima dos meus nojos e preconceitos. Não teria mesmo como me controlar. A educação supera condicionamentos e medos e somos mais do que a nossa mera identidade.

Não sofro com a fama de chato que possa receber por minhas tempestuosas manias.

Uma hora ou outra, o feitiço atingirá o feiticeiro. O que mais odiamos, com o tempo, será o que mais amaremos. Eu amo o que odiava. Amo fazer coisas de meus pais que odiava neles. Amo ser hoje os meus pais. Com os hábitos invasivos de mexer no cabelo dos filhos de repente, para ajeitar o penteado, ou de me agachar do nada para arrumar as bainhas das calças presas nas meias. 

E apanhando até terminar as tarefas: eles estapeiam as minhas mãos quando sou frenético pente ou começam a caminhar quando sou imóvel engraxate. A resistência deles com "para, pai" ou "não precisa disso" aumenta a minha ternura. Experimento cenas patéticas e ridículas publicamente.

Surgem relâmpagos de cuidados que não sei frear. Riscam o céu de minhas veias. O clarão impulsiona o corpo e ele simplesmente obedece. A impressão é de que morreria se não fizesse. Chamava a minha mãe de dramática e agora divido o palco com ela na ópera do cotidiano.

Talvez o zelo morasse em mim desde pequeno, esperando a paternidade para aflorar.




"Alike" é uma animação dirigida por Daniel Martínez Lara & Rafa Cano Méndez.




O mistério do cofre de meu pai - Fabrício Carpinejar

Meu pai tinha um cofre. Ficava atrás de um quadro do Vasco Prado, em nossa antiga casa na Rua Corte Real, em Porto Alegre (RS).
Ninguém conhecia a senha, a não ser ele.
Ninguém enxergava o que ele colocava lá.
Imaginávamos maços de dólares e sacos de cruzeiros. Imaginávamos, eu e os irmãos, que ele alimentava uma montanha de moedas do Tio Patinhas. Que usava uma pá para tirar o excesso e nos repassar a mesada que gastávamos com balas Xaxá no armazém da esquina.
Quando ele mexia no esconderijo, não podíamos permanecer perto. Chamava a nossa mãe para nos levar embora. Era uma questão de segurança.
Um dia, o Rodrigo apareceu com estetoscópio de médico para ouvir o que tinha dentro. Outro dia, o Miguel bateu com um martelinho para verificar a profundidade do fosso. E ainda teve um dia em que a Carla arriscou uma combinação a partir da data de aniversário do pai, não deu certo e quase fomos pegos.
O segredo durou minha infância inteira. Até nossa residência ser assaltada enquanto veraneávamos em Pinhal (RS).
Assaltantes entraram pela janela do banheiro. Entortaram as grades. Levaram a televisão preto e branco e grande parte dos eletrodomésticos.
Ao voltar da praia, meu pai – percebendo a casa depenada – correu em direção ao escritório. Aproveitamos o desespero para ir atrás. Não seríamos impedidos naquela hora trágica.
Largamos as malas no meio do corredor e seguimos a sombra paterna.
O cofre está escancarado. A porta de metal finalmente aberta, estouraram o disco de acesso.
O pai pôs, com extremo cuidado, sua mão no interior do quadrado na parede. Lembro o suspense, a minha respiração parou.
E trouxe do fundo do buraco seis espirais, seis cadernos amarelados.
– Ufa, não levaram!
Carla, a irmã mais velha, perguntou o que era aquilo, pois aquilo não era dinheiro.
– Meus livros de poesia! – o pai respondeu.
Ele usou o cofre para guardar o que possuía de mais precioso: sua obra inédita.
Antevejo a decepção dos ladrões ao puxar um amontoado de versos. Tanto trabalho para explodir o cofre e só acabariam mais cultos e ricos de espírito.
Mergulhamos em estado de choque. Tampouco cogitávamos a hipótese de ser algo diferente do que uma poupança.
O episódio transtornou o meu modo simplista e direto de entender as pessoas. Cada um tem sua fortuna misteriosa. Algo que é somente valioso pelo sentimento e que não tem como ser valorizado por quem é de fora: um brinco dado pelo marido, uma compilação de receitas herdada da avó, um álbum de figurinhas, uma caneta tinteiro, uma camisola.
Não menosprezo os objetos da casa dos outros. Não jogo nada fora que não seja meu. Toda recordação pode ser de amor, e o amor é um cofre onde nos protegemos do esquecimento.

Malvados - André Dahmer



Prontuário de meu pai - Fabrício Carpinejar

Meu pai, 79 anos, estava com pressão alta e o levei para a emergência do hospital. Ele foi conduzido para a enfermaria e fiquei com o seu celular e a sua carteira. Na doença, não existe posses. Era o seu responsável pela primeira vez na vida. Precisava preencher o prontuário médico. A atendente me alcançou a folha alertando que se tratava de perguntas simples. Peguei a caneta e mordi a tampa, em vez de deslizar a tinta na página.

- Biotipo sanguíneo?

Eu não sabia. - Alergia a medicação? Eu não sabia.

- Já teve sarampo, caxumba, catapora?

Eu não sabia. - Realizou alguma cirurgia?

Eu não sabia. - Vem usando medicação?

Eu não sabia. Vi que eu não conhecia o meu pai. Ele que me conhecia de cor e teria facilidade em preencher qualquer ficha a meu respeito.

Mesmo possuindo quatro décadas e meia de oportunidades, o pai surgia como um desconhecido íntimo. Um anônimo. Eu não me esforcei em descobrir quem me cuidava durante todo esse tempo. Nossa relação foi uma via de mão única.

Terminei reprovado no teste de filho. Deixei o teste em branco, para o meu constrangimento. A atendente tentou disfarçar o desconforto: "Depois perguntamos para ele".

O prontuário médico tornou-se o meu obituário filial. Eu me dei conta de que nunca me preocupei em desvendar quem habitava a função "pai", em determinar as suas escolhas, em revelar a pessoa atrás da roupagem familiar.

Meu pai veio com uma encomenda pronta quando nasci, e jamais desfiz o embrulho para buscar o que havia dentro. Não desfrutava de condições de responder nada por ele, pois o reconhecia como eterno provedor, uma fortaleza inexpugnável, onde me socorria em caso de necessidade. Só eu pedia ajuda, não ajudava. Só eu cobrava afeto, não devolvia. Só eu esperava recompensas, não observava também a sua carência e sua fragilidade.

Não questionei o que ele viveu antes de mim. Não sabia se ele teve cachorro, qual o nome, se ele sofreu com a perda do mascote, se sofria castigo na infância, qual o seu melhor amigo, se dançava nas festas da escola ou permanecia encostado na parede, se nadava, se andava de bicicleta, qual a carreira que sonhou, qual o seu pior trauma, qual a sua maior felicidade, se içou pandorga, se pescou, se participou de acampamento, com o que brincava, se jogava futebol, qual a sua posição, se terminava como goleiro por não fazer gol, se dividia o quarto com os irmãos, com qual idade começou a ler e a escrever.

Eu simplesmente me conformei em ser o seu filho, jamais fui seu amigo.

VIVER DÓI   -   FABIANE LANGONA






DIA DOS PAIS NA CASA DO FIMOSE! (Dois episódios clássicos)


Meu próprio pai - Piangers

Quando eu ainda tinha mãozinhas gordas e bracinhos fofos, me lembro de levar até a minha mãe meu cobertor favorito. Ela chorava na cama uma desilusão amorosa. Lembro que ela sempre chorava quando eu lhe pedia pra ter um pai. Ela chorava quando estávamos sozinhos em casa. Percebi que era algo forte demais pra pedir. Ter um pai. Eu queria ter um pai que me pegasse no colo na saída do colégio. Que me ensinasse a fazer uma pipa. Que passasse a mão na minha cabeça, como via o pai dos meus amigos fazer. Que me assistisse em apresentações escolares. Eu queria ter um pai porque todo mundo tinha pai menos eu. Porque eu queria ser normal.

É algo injusto de se pedir pra uma mãe. Percebo só agora. Ela se esforçou pra manter relacionamentos nos quais sofria, pra me dar um pai. Aguentou traições. Finalmente, convenceu um namorado a me registrar no cartório. Era pra ser meu pai. Mas nunca tive pai. Nunca dormi abraçado com um pai. Nunca ouvi "eu te amo" de um pai. Essas coisas que os pais fazem com os filhos. Nunca tive um pai me trazendo remédio pra tosse. Aprendi a andar de bicicleta depois de velho, com um amigo. Aprendi a dirigir com 20 anos. Nunca torci para um time de futebol, realmente. Essas coisas que os pais fazem com os filhos.

Cresci inseguro. Como todo inseguro, agressivo. Tinha problema com autoridade, especialmente masculina. Desafiava professores na faculdade. Desrespeitei chefes nos meus primeiros empregos. Sentia a necessidade de agredir os outros com comentários malvados, com piadas pesadas. Acho que me transformei em uma pessoa desagradável. Tive a sorte de conhecer uma mulher especial, de me reconectar com a minha mãe, de ter duas filhas que me ajudaram a ser quem eu posso ser. Não precisava mais agredir ninguém. Me dedicar a elas me curava todos os dias.

Não faz muito tempo, ouvi uma história linda de um pai. Quando o filho de sete anos brincava de skate, caiu, ralou o joelho e começou a gritar de dor e susto. Naquele momento, o homem me contou que se lembrou dele mesmo, quando criança, ralando o joelho e ouvindo do pai: "Não chora! Homem não chora! Engole o choro!". Com seu próprio filho, ele resolveu fazer diferente. Abraçou a criança e disse: "Pode chorar, filho. Eu sei que dói. Papai está aqui". E enquanto a criança parava de chorar, o pai chorava, emocionadamente. Lembrando do seu próprio pai. Imaginando seu próprio pai fazendo diferente. Ele estava curando seu trauma. Ele estava abraçando ele mesmo, quando era criança.

Quando durmo abraçado com minhas filhas estou dormindo comigo mesmo, quando eu era criança. Estou sendo o pai que eu não tive. Estou sendo meu próprio pai. Estou sendo alguém que minha mãe sempre quis pra ela. Alguém que sempre quis pra mim mesmo.

Enfim, conseguimos, mãe.

CalvinBill Watterson




Amor à moda antiga - Piangers

Um amigo disse pro filho, dia desses, antes de dormirem, que o amava daqui até o céu. O garoto ouviu, levantou as sobrancelhas, calculando a distância impressionante. Olhou pro pai e, na tentativa de expressar amor de volta, falou: Eu te amo tipo daqui até o ventilador.

Somos uma geração de pais carinhosos. Dizemos "eu te amo" como quem diz "bom dia". É tanto "eu te amo, filho" que tenho medo que não valorizem. Às vezes, inventamos novas formas de comparação. "Amo você daqui até a lua." "Amo você mais que tudo." "Amo você 10 vezes infinito." Já ouvi tantas vezes de minhas filhas e valorizo cada uma delas. Todas me dão água nos olhos. Abracei-as mais do que abracei minha mãe, acredito. Tenho mais fotos delas, guardadas em HDs e com backup na nuvem, do que as câmeras de 24 poses jamais conseguiriam tirar.

Em geral, tivemos pais mais distantes. Queriam que fôssemos durões. Meu avô trabalhava na roça, cortou cabelo e dirigiu caminhão pra dar estudo pra minha mãe. Esta, por sua vez, criou sozinha o filho e sustentou a casa com salário minguado. A vida, realmente, era mais séria pra eles. Nada de delicadezas. Nada de desperdício de comida. 

Nada de tablet e iogurte. Nada de "eu te amo" terça à tarde. Abraços eram ocasiões especiais, Natal e olhe lá, que a vida não é fácil e você tem que estar preparado. Mas, quando vinha um carinho na cabeça, rapaz, a gente ficava bobo. Um pouquinho de colo, quando a gente já era grande demais, era o céu. Beijo de boa noite, paraíso.

Uma amiga contou que o pai nunca lhe disse "eu te amo". Ela procurava carinho, ele não era muito de papo. A conversa era toda com a mãe. O pai era comunicado e comunicava, não havia diálogo.

De vez em quando, ele botava as crianças pra dormir. Era assim: os três filhos de banho tomado deitavam, cada um em sua cama. O pai entrava no quarto, o silêncio respeitoso tomava conta do lugar, e o senhor começava a desenrolar os mosquiteiros que ficavam em cima da cama deles. Estendia a proteção cuidadosamente sobre os filhos, sem dizer uma palavra. 

Olhava com atenção pra ver se nenhum mosquito tinha ficado do lado de dentro. Verificava se não havia frestas para outros mosquitos entrarem. Fazia isso para cada um dos três filhos, sem trocar uma palavra. Depois de tudo pronto, ia até a porta e dizia: "boa noite". As crianças respondiam: "boa noite". O pai se ia. E as crianças sentiam como se tivessem ouvido "amo vocês".

Benett

Trabalho inglório - Piangers


Que trabalho inglório ser pai. Tenho certeza de que, todos os pais que leem isso, concordam que foi a melhor coisa que nos aconteceu. Nos deu significado, alegrias, memórias maravilhosas. Mas que trabalho inglório! Vocês hão de concordar!

A começar com o bebê. Apenas chora e suga e produz xixi e cocô. Apenas devolve todo o leite mamado na sua roupa. Você vira noites, troca fraldas, atende a todos os gritos, corre para dar conta de tudo, e o bebê nem pra aprender a falar "obrigado". Uma amiga, depois de dar de mamar por dias sem nenhuma recompensa, percebeu que o neném ensaiava um sorrisinho. "O primeiro sorriso dele!", pensou. Para descobrir, segundos depois, que era apenas mais um cocozão saindo na fralda.

Depois vem a infância. Você vai a restaurantes apenas para ver sua comida esfriando enquanto a criança corre pelo ambiente aterrorizando garçons. Passam os dias e nada parece estar bom. O infante não valoriza nada: sua comida está ruim, sua roupa pinica, o local está chato, papai e mamãe só querem dormir! Acordem! Já é seis da manhã!

Mas, calma, que piora. Virá a adolescência e o desprezo completo. A falta de mão dada, o nojo de abraço, o desdenhar dos carinhos. O constrangimento em ser visto ao lado dos pais em público, a vergonha de todo e qualquer comentário dos pais, que, de um dia pro outro, viraram antigos e patéticos. E nem um obrigado recebemos por tudo o que fizemos.

E tudo é estudo e amigos e namoradas, e, quando você vê, o bebê vai morar sozinho ou fazer intercâmbio, ou casar. "Mas você é muito novo!", diremos para nossos filhos de 40 anos. Eles não telefonarão nem aos domingos, estarão na Europa durante as datas comemorativas, receberemos vídeos mal filmados no WhatsApp.

E, então, vêm os netos. E os filhos voltam a aparecer. E querem que a gente cuide dos pequenos para que possam resolver coisas do trabalho ou ir ao cinema. E cuidaremos felizes daquelas crianças ingratas, mas fantasticamente fofas. E nossos filhos virão pegar seus próprios filhos com pressa, as crianças gritando, aquela confusão que preencherá a vida. E, já indo embora e acenando, sem nem olhar pra gente direito, nossos filhos gritarão de longe: "Obrigado pela força!".

E pensaremos: "Não foi nada".

Agora é com você -  Piangers

Gosto desta história e a repito tanto que não sei se já contei aqui. Quando eu e a Ana estávamos no hospital, após a nossa primeira filha nascer, ela com dores da cesariana e com dificuldade para amamentar, a noite chegou e, com ela, um cansaço gigantesco. A Ana me pediu: Cuida do bebê que eu preciso dormir, e eu respondi: Relaxa!, porque, obviamente, eu não sabia como era difícil cuidar de uma criança. Quando me atrapalhei com as fraldas e o choro, fui até o corredor do hospital com o bebê no colo e pedi para que a enfermeira me ajudasse. Ela disse que o trabalho dela era ajudar em caso de problema de saúde, apenas. Agora é com você, ela disse, percebendo minha cara assustada.

Essa frase virou uma espécie de mantra. "Agora é com você". É uma lembrança constante de que não posso delegar a responsabilidade da criação de um filho pra outra pessoa. Agora é comigo. Não é com os avós nem com babá, nem com a Galinha Pintadinha. Não é com sua esposa, com a professora ou com a escola. Agora é com você.

O trabalho pode ser em equipe, mas a contribuição do resto do time não pode ser motivo pra fazer corpo mole. Agora é com você. Se o avô mora perto, ótimo. Se a escola é perfeita, maravilhoso. Mas é com você. É com a gente.

Se nossos filhos vão ou não estar preparados para se comportar civilizadamente em sociedade, será nosso exemplo que dirá. São nossas conversas sobre os assuntos mais complicados que irão esclarecê-los. Será nossa participação efetiva que garantirá boas notas. Será nossa atenção em todos os sinais que eles nos passam que os protegerão dos perigos do mundo. Que são muitos.


Percebo tantos pais reclamando da escola, sem perceber que aquilo que acontece em casa tem um impacto maior no comportamento e no bem-estar da criança. Percebo tanta gente indignada com o que aparece na televisão, sem entender que ninguém é obrigado a ligar o aparelho. Percebo pais sem tempo nem paciência, querendo delegar responsabilidades que são suas. Quanto mais tempo você perde se abstendo, maior trabalho terá no futuro. Respire fundo, segure o bebê e reconheça: agora é com você.

CalvinBill Watterson




O nome certo para as coisas - Piangers

Uma mulher me apresenta a filha como sendo "filha do coração". Presumo que seja adotada. Estão juntas há tanto tempo, pergunto se só "filha" não seria o bastante. "É", ela diz. Um homem me apresenta dois garotos, "meus enteados, mas é como se fossem meus filhos", ele diz. "Então, são filhos", respondi. São filhos da sua companheira, mas se você os trata como filhos, se eles chamam você de pai, oras, pra que "enteados"?

Uma mãe me conta que o pai dos seus filhos mal aparece, mas que o padrasto deles é atencioso e muito participativo. "Este é o pai, então", eu disse. Ela não entendeu. "Não, esse é o padrasto. O pai de verdade nem participa de nada", me respondeu. "Se não participa, não é o pai de verdade. O pai de verdade é esse. Se participa e faz tudo, se é companheiro e carinhoso com as crianças, esse é o pai. O outro é um tio", disse eu.

Precisamos dar o nome certo para as coisas. Se é como se fosse um filho, é filho. Se é como se fosse um pai, é pai. Se é como se fosse um estranho, é estranho. Por isso, costumo dizer que não tenho pai. Porque não tenho. Tem um homem que deu uma célula - uma célula! - pra minha mãe, e ela transformou aqui nisso que eu sou. Ela fez tudo. Tive mãe. Não tive pai.

Quando alguém me diz "pai de verdade" pra se referir a um pai que não participa, ou "filho adotivo" pra se referir a um filho de verdade, doem meu ouvido e o peito. Quando um filho ouve o tempo todo que é adotivo ou enteado, se sente menos filho. Quando um pai ouve o tempo todo que é "como se fosse um pai", é menos pai.

É tanta família misturada hoje em dia, buscando ambiente de amor e afeto, que é muito injusto chamar pelo nome errado. A gente tem que dar o nome certo. "Filho de coração", "enteado", "pai adotivo", esses termos distanciam. Filho é filho, e chamá-lo assim é uma declaração de amor. O mesmo vale pra "pai" e "mãe". São declarações de amor. É eu te amo disfarçado de substantivo. É o nome certo para as coisas.


Gabriel Moon - Fábio Bá

Não existe tempo de qualidade - Marcos Piangers

Você já deve ter ouvido essa história de "tempo de qualidade". É um termo que pais ocupados inventaram para dizer que, apesar de não terem tempo para os próprios filhos, o pouco tempo que têm é o que chamam de "tempo de qualidade". Você sabe: o pai que está sempre em alguma reunião importante, a mãe que está sempre no celular, o casal que está sempre viajando e deixa os filhos com a babá. Eles não têm tempo para as bobagens da criação de filhos. Mas o pouco tempo que têm é um "tempo de qualidade".

Tempo de qualidade é essa mentira que a gente conta pra gente mesmo pra justificar nossos únicos 15 minutos por semana ao lado dos nossos filhos. O que dá pra fazer em 15 minutos? Nada muito formidável. Mas se conseguirmos trocar meia dúzia de palavras, se tivermos um ensinamento profundo que tiramos de um texto que lemos na internet, se conseguirmos passar alguns segundos sem brigar, reclamar ou gritar com nossos filhos, isso é o que podemos chamar de "tempo de qualidade".

Passamos a semana correndo, atendendo telefone, lendo e-mail, fazendo reunião, terceirizando a educação dos nossos filhos, levando-os para o contraturno, a natação, o futebol, a casa da vó, a colônia de férias, e, quando estamos com eles, naqueles pequenos minutinhos, fingimos que estamos realmente lá, prestando atenção genuína. Mas, como temos pouco tempo junto, aquele tempo não é realmente o que se pode chamar de "qualidade". Porque não existe qualidade em uma relação que não tem intimidade. E intimidade se conquista com o tempo de quantidade. Não tem outro nome, é horas mesmo. Dias. De preferência muitos dias calmos e sem muita coisa pra fazer. Sábados e domingos, mas também terça-feira à noite e segundas-feiras bem cedo, café da manhã juntos, confidências sem julgamentos.

Pra ter tempo de qualidade a gente precisa, antes, ter tempo de quantidade. Longas horas dedicadas ao prazer de simplesmente estar junto. Qual foi a última vez que você não tinha nada pra fazer? Qual foi a última vez que passeou de bicicleta? Que fez uma pintura pra dar de presente pra alguém? Que deitou na grama? Qual foi a última vez em que você leu pro seu filho? Qual foi a última vez em que inventaram uma brincadeira nova? Qual foi a última vez em que você teve tempo de qualidade?

Joe Cocker – My Father’s Son


Primeiro dia de aula - Marcos Piangers


Anita dormiu no sofá, então no caminho da escola percebi algo engraçado: seu rosto estava marcado com aquelas listras do estofado. Quando vamos pra escola caminhando, ela sempre está feliz, fazendo com as mãos dancinhas e coreografias. Assim que falei que ela estava marcada no rosto, ela me olhou preocupada, jogou todo o cabelo na cara, passou a caminhar corcunda. Relaxa, não precisa ter vergonha, já vai sair, eu disse, percebendo pela primeira vez suas inseguranças adolescentes. Ela continuou cabisbaixa. O que eu falei pra ela, então, foi mais o menos o seguinte. Vou abrir um novo parágrafo.
A gente demora décadas pra entender quem a gente é de verdade e, quanto mais relaxado a gente for nesse processo, mais fácil fica se encontrar. Não importa o quanto você é bonita ou popular, se não se sentir bonita e popular pra você mesma será infeliz. Cansei de ver pessoas perfeitamente arrumadas, impecavelmente lindas e extremamente inseguras. Cansei de ver pessoas esquisitas, de quem todo mundo gosta, porque estão bem resolvidas consigo mesmas. O que ninguém gosta é de gente que tem vergonha de ser o que é: e quando a gente é adolescente a gente quer ser tudo, menos a gente mesmo.

Se alguém te perseguir na escola porque você é diferente, só existe uma solução: ser abusadamente feliz. Não há melhor vingança do que esta. Ser feliz. Vale pra todo tipo de gente: pessoas que levaram um pé na bunda, pessoas que foram demitidas, pessoas que não foram aceitas em um grupo social. Seja abusadamente feliz. Tenha uma vida brilhante. Essa é a única forma de se vingar de qualquer pessoa: ser tão feliz que ela vai se contorcer de inveja. Porque você não está nem aí pra opinião dela, porque você está mais interessada em quem você é pra você mesma e para as pessoas que genuinamente gostam de você.

Timidamente ela voltou a cantarolar uma música, fez mais umas dancinhas e entrou portão adentro saltitando. Me lembrou um menino ruivo, tímido e sardento, cheio de espinha na cara, inseguro e com medo do que ia encontrar na escola. Entrando na escola aos 11 anos de idade, 25 anos atrás. Querendo que alguém tivesse dito a ele tudo que eu disse pra minha filha. E, ao mesmo tempo, sem saber se adiantaria pra alguma coisa.

Alexandre Beck - Armandinho 







O que acaba com a amargura de um homem? - Ruth Manus

Era um chinês elegante, sem sombra de dúvida. Feio, porém elegante. Era calvo. É raro imaginar, quando se menciona um chinês, alguém sem cabelo, mas este, de fato, não os tinha. Estava frequentemente ali, no restaurante do hotel lisboeta, na mesma mesa, na mesma cadeira, no mesmo horário. Sentava-se de frente para a televisão sintonizada na CNN e observava as notícias com ar severo.
Aliás, ele não tinha outro ar além do severo. Seu invariável terno cinza era bastante mais claro do que o astral que ele evidenciava. Era magro e alto, com um belo porte, mas tinha vincos marcados na testa, porque ela estava constantemente franzida. Era como se ele estivesse sempre descontente com alguma coisa, formando aquela ruga entre as sobrancelhas, que as pessoas descontentes sempre têm.
Via-se que ele ocupava algum cargo importante. O hotel, o terno e o astral cor de carvão não mentiam. E seu ar tão compenetrado nas desgraças cotidianas anunciadas pela CNN alocava-o facilmente em alguma multinacional à qual cada movimento na economia e na política norte-americana interessava muito. Sem dúvidas, era presidente, CEO, CFO ou qualquer outra sigla moderna que representasse poder e angústia.
Ninguém gostaria de tê-lo como chefe. A sensação era a de que ele, apesar dos gestos delicados para espetar os pedaços de abobrinha, poderia, a qualquer momento, fechar aquela mão magra e longa, dando um soco silencioso na mesa, que assustaria muito mais do que berros escandalosos e raivosos de figuras menos austeras. Era um homem silencioso. Sua voz não existia. E eu tinha medo dele, apesar de ele nunca ter me dirigido um único olhar naquele restaurante que dividíamos algumas vezes por semana.
Perguntava-me se a total ausência de leveza ou de qualquer indício distante de sorriso era fruto de uma infância dura, de um regime totalitário, de uma carreira sofrida ou, simplesmente, de uma personalidade amarga. Julgava-o absolutamente incapaz de sorrir. Estava certa de que era um homem que não sabia sentir. Que era composto unicamente por regras, horários, metas e planilhas.
Até que aconteceu. A garota entrou pela porta automática do hotel, com a pressa típica dos 17 anos. Era bonita. Alta, rosto branco e oval, rasgado por um par de olhos asiáticos perfeitamente enfeitados com delineador preto. Os cabelos lisos tinham as pontas pintadas de vermelho e as longas pernas eram coroadas por um par de botas coturno. Vinha apressada em direção ao restaurante, com sua mochila roxa pendurada em um ombro só, quando ele a viu.
Ela, sorrindo por inteira, disse “Pai!!”, bem alto, em chinês. Eu não sei como se diz pai em chinês. Mas qualquer um, croata, indiano ou uruguaio, identificaria que aquela expressão de conforto e aqueles braços que se abriam só poderiam dizer “pai”. O chinês levantou-se automaticamente, num inédito gesto brusco.
Seus olhos apáticos foram acometidos de uma overdose de vida. Seus ombros se alargaram, seu peito magro cresceu. As rugas da testa que pareciam não resistir a dose nenhuma de botox, subitamente desapareceram por completo. Seus dentes apareceram, pela primeira vez.
Numa fração de segundos, seus olhos ficaram umedecidos, seus braços se esticaram na direção da menina e sua voz ecoou uma palavra doce, que eu reconheceria até em sânscrito. Filha. Filha, filha, filha. Ele repetia com uma voz alegre e trêmula que eu jamais poderia imaginar naquela figura. Abraçaram-se. A mochila roxa caiu no chão.
Aquele homem amargo e impassível foi embora no instante em que a menina chegou. No lugar dele, um homem desconhecido floresceu. O chinês já nem era mais feio. E já nem era tão elegante. O chinês já não dava medo, nem inspirava angústia. Já não era executivo nem CEO. O chinês era só um pai. Era sua melhor versão.

O abraço da floresta - Mário Corso


Quando pequeno, enlouquecia meu pai pedindo para repetir um passeio. O problema era que eu nunca sabia dizer bem onde fora. Lembrava do trajeto, era uma trilha em um mato, subindo um morro íngreme. Quando chegávamos, abria-se uma vista magnífica e do outro lado descortinava-se um cenário novo, com pedras de várias cores e uma vegetação diferente da habitual.
Esse lugar que alcançávamos era um nicho ecológico atípico, distinto de tudo que era usual em nosso Estado. Na minha cabeça, era próximo de Soledade, tanto por ser uma cidade perto de casa como por ser onde descobrem-se pedras incríveis, portanto um lugar geológico condizente. Tentando fazê-lo recordar, acrescentava que lá comemos, acompanhado de guaraná, o melhor cachorro- quente do mundo. Meu pai quebrava a cabeça e não recordava onde tinha me levado.
Com a idade, me dei conta de que nunca fiz esse passeio, torturei meu pai em vão. De fato, esse cenário era uma colagem de percursos reais, somados com paisagens que vi em enciclopédias, ou em filmes, temperados com minha imaginação. Para um menino pequeno que passeia com seu pai, meia dúzia de macegas é como a Mata Atlântica, um capão é maior do que a Floresta Amazônica. Cem metros mato adentro são um safári com mil perigos, uma trama de significados extraordinários, metade ciência, metade magia. O maior tesouro de um homem são as lembranças das primeiras andanças com seu pai.
Na faculdade, descobri que inventamos memórias. Freud dizia que essas falsas memórias eram recordações encobridoras: verdadeiras pela força do que diziam, falsas porque criadas a posteriori. Porém, elas nos retratam melhor do que a verdade factual. No meu caso, diziam do momento supremo de proximidade com meu pai, antes de os meus irmãos chegarem. Éramos só nós dois, exploradores audazes, enfrentando os desafios da natureza selvagem.
Um dos truques mais simples para saber se uma memória é inventada é se nos vemos na cena. Se nossa memória é como uma foto, ou como um filme onde estamos presentes, trata-se de uma criação. Nas memórias verdadeiras, nós somos a câmera, não o objeto. Nem é preciso dizer que essa minha recordação era uma epopeia cinemascope, com este que vos conta no papel principal.
Sei quando a saudade do meu pai bate mais forte porque agora sonho com esse passeio feérico. O enredo é quase sempre o mesmo: olho outra vez a deslumbrante paisagem ao longe, descubro espécimes de plantas nunca vistas antes pelos biólogos, vejo animais ainda não classificados pelos cientistas. Refaço os passos seguros de quem se sente cuidado e sinto o abraço da floresta como se fosse paterno. A selva segue fascinante, mas não podemos demorar-nos muito, pois mais abaixo aguarda o melhor pastel com guaraná do mundo.






O paladar do afeto - Mário Corso

Tenho um paciente que, quando a esposa viaja, faz seu prato favorito: miojo com sardinha. Não há o que o faça mais feliz. Reclama que nenhum restaurante serve seu manjar. Sabe que a escolha evoca a infância e é esquisita. Percebe que é um prato para quando está só. Salvo no aniversário, quando a esposa faz para os dois a sua versão de miojo com sardinha.

Explica que o pai fazia essa massa para ele na infância. Quando recém separado, o pai era um trapalhão na cozinha.

Em um jantar com o pai, a esposa comenta o fato. O sogro mareja o olhos e conta a sua versão da história. Fora a pior época de sua vida. Quando a falência da firma da família se anunciava, o casamento que já não ia bem acabou. Sentiu-se, além de abandonado, que era amado pela carteira.

Devia para todos e perdeu o crédito. Na primeira visita do filho a seu novo apartamento, não havia nada para preparar o almoço. Juntou umas moedas, dessas que esquecemos pela casa. Mas só conseguiu comprar miojo e sardinha.

Habituado a sair para comer fora, tapou-se de vergonha em servir para o filho tal improviso. Não lembra como o pequeno reagiu. Recorda que passaram o resto do dia no videogame.

Foi tão doído e marcante o episódio, que ele jamais repetiu. Passava longe de miojo. Os almoços de domingo eram tradicionalmente pão com molho feito com carne moída. Prato ainda simples, porém mais sofisticado do que o anterior.

O filho lembrava como se tivesse sido uma série o que fora apenas um episódio. Estava pasmo, mas não tinha como duvidar da memória do pai.

Eu lhe disse que, com a aprovação entusiasta de uma comida tão simples, ele fizera um gesto de amor. Um ato que continuou repetindo-se cada vez que a massa e a sardinha mostravam sua perfeita comunhão. O prato restituiu o valor que aquele homem entristecido julgava perdido.

Um pai é também forjado pelo discurso da mãe. Para aquela mulher, a falência havia destituído o marido dos encantos. Para o filho, o paladar foi a via de expressão de um afeto altruísta, aceitou seu pai como ele era: frágil e falível. Implicitamente disse que estaria com seu pai na riqueza e na pobreza, como sua mãe não o fez.

Não era a lembrança de um prato. O prato era o signo da cumplicidade com o pai. As memórias que guardam os afetos mentem para dizer outra verdade.








Pai e Filho - Luis Fernando Verissimo


Ele tinha 65 anos e um dia surpreendeu todo o mundo com a informação de que estava, finalmente, conseguindo falar com seu pai. Foi um espanto. Ninguém imaginava que ele ainda tivesse pai. Alguns chegaram a pensar que o contato se dera numa sessão espírita. Mas não, o pai estava vivo. Casara cedo, tinha 20 e poucos anos quando o filho nascera. Por isso mesmo, nunca haviam se entendido muito bem. Não tinham interesses em comum. Não tinham assunto. Mas agora tinham.
*
O pai era fã da Ingrid Bergman e dizia que nunca apareceria outra como a Ingrid Bergman.
– O que é isso, papai? E a Jennifer Lawrence?
– Não conheço.
O pai jogava golfe e sabia pouco sobre futebol. Mas dizia:
– Bom mesmo é o Didi.
– Quem?
– O Didi. Ele ainda joga?
– Não, papai. Acho que até já morreu.
*
O pai falava do seu desempenho no golfe, apesar da idade. O filho falava do seu desempenho no tênis, apesar da idade. Um não ouvia o que o outro contava. Também não podiam falar de política. O pai era conservador, ex-simpatizante da UDN. O filho não era exatamente de esquerda, mas simpatizava com o PSDB e defendia a social-democracia.
– Rá, social-democracia – dizia o pai.
– Disfarce de comunismo.
*
Não havia jeito de se entenderem. Todas as tentativas de diálogo acabavam em briga. Mas agora, finalmente, estavam conversando. Sobre o que conversavam?
*
Remédios. Comparavam tratamentos. “Qual é o seu betabloqueador?” “Está tomando o que para o colesterol?” “Experimenta este.” E trocavam hemogramas. “A sua taxa de glicose está melhor do que a minha!” Essas coisas.
E era comum os dois irem à farmácia de braços dados, conversando.


André Dahmer



Toni Tornado Papai, Não Foi Esse O Mundo Que Você Falou 1971




Renan César




Pai herói - Cláudia Laitano

Quando meu pai morreu, há exatos 15 anos, pensei em registrar cada história que lembrava dele para que nada se perdesse. Seria como uma coleção de retratos, uma cápsula do tempo para legar a netos e bisnetos – os encarregados involuntários da missão de transportar seu nome, genes e memórias para o futuro.

Redigi mentalmente muitos inícios diferentes. Começaria na infância, nas lembranças mais antigas, os cílios dele roçando nos meus no delicioso “beijo de olhinho” que eu repetiria mil vezes, anos depois, com a minha própria filha? Ou tentaria reinterpretá-lo, como adulta? Como conciliar o olhar da infância com a perspectiva da maturidade? E o que eu realmente sabia sobre meu pai? O que um filho, qualquer filho, pode dizer sobre o pai sem falar ao mesmo tempo sobre si mesmo?

O grande acontecimento literário do ano, nos EUA, é um livro que traz à superfície algumas dessas questões. Lançado na última semana, Go Set a Watchman, da escritora Harper Lee, 89 anos, retoma os personagens e o cenário de To Kill a Mockingbird (no Brasil, O Sol é para Todos).

Escrito na mesma época, provavelmente antes, esse novo romance autobiográfico tanto pode ser lido como uma versão inicial do texto publicado quanto como um desdobramento da história narrada no best-seller de 1960 – em To Kill a Mockingbird, a narradora é uma menina, Scout (apelido dado pelo pai), personagem que em Go Set a Watchman é a jovem Jean Louise, que retorna já adulta para a cidade natal, Maycomb, onde revê o mundo da infância, o pai inclusive, de forma totalmente diferente.

O que chocou os leitores americanos foi o desmonte da figura heroica de Atticus Finch. O pai honrado e corajoso do primeiro livro, que aceita defender um negro de uma acusação de estupro, nos anos 30, mesmo enfrentando ameaças e o preconceito da pequena cidade, torna-se um velho acuado e racista.

Qual o verdadeiro Atticus Finch? O do livro que Harper Lee escolheu lançar ou este outro, que chega aos leitores quando já há dúvidas de que a autora desejava publicá-lo? O Atticus que aprendemos a amar (no cinema, com o rosto e a fortaleza moral de um Gregory Peck) fez sucesso exatamente porque todos nós, adultos e crianças, precisamos construir heróis para admirar? É possível amar sem admiração incondicional? Seremos cínicos demais, em 2015, para acreditar em homens 100% íntegros? Todas essas dúvidas devem permanecer, a partir de agora, atreladas para sempre aos dois livros que Harper Lee escreveu.


Não redigi o tal retrato definitivo do meu pai. Talvez escreva um dia – não o relato definitivo, mas o possível. O certo é que a imagem que tenho dele não ficou congelada naquela manhã fria de julho em que nos despedimos com um beijo carinhoso, mas sem solenidade, como se fosse uma terça-feira qualquer de inverno e não a última vez em que nos veríamos. A memória do meu pai permanece e muda o tempo todo comigo – como a imagem do meu próprio rosto no espelho.

Mafalda - Quino




Amor de pai - Ivan Martins

A paternidade nos aproxima de um sentimento suave e agridoce de perdão por nossos pais, que agora somos nós

Meu pai morreu quando eu era criança, há mais de 40 anos. Como muitos homens de seu tempo, e muitos dos tempos atuais, foi ausente e autocentrado. Ao final, destrutivo. Não fez por merecer a homenagem de uma memória duradoura. Ainda assim, a tem. Segue vivo nas minhas lembranças, nos meus traços e no meu temperamento.

Também se prolonga, de forma mais amena, no sorriso dos meus filhos, homens bonitos como ele. Esse pai cada vez mais distante é uma presença tão intensa - e tão costumeira - que me pergunto se um dia desaparecerá. Ou se, do contrário, se tornará cada vez mais pungente, como o fantasma do pai de Hamlet, à medida que eu me torne mais velho. A pergunta é retórica. Sei a resposta.

Durante um tempo, achei que a relação complicada com a figura paterna fosse uma experiência apenas minha. Aos poucos, percebi que não. Boa parte dos homens carregam pela vida emoções semelhantes, embora sejam filhos de pais diferentes do meu. O filósofo francês Jean-Paul Sartre, cujo pai morreu quando ele era bebê, dizia ter sido privilegiado pela ausência de uma figura paterna capaz de moldá-lo ou influenciá-lo.

Ele julgava ser mais livre que o resto dos homens. Li essa afirmação muito jovem. Achei que fazia sentido. Hoje acho bobagem. Não há pai mais influente que o pai que não existe. Ele deixa tamanho vazio, provoca tantas interrogações, que seu filho pode gastar a vida tentando entender-se. A figura paterna é uma referência monumental. Tão grande que, se não existir, terá de ser criada.

O cinema, arte popular que se alimenta dos sentimentos bons e maus das multidões, ilustra isso esplendidamente. Em filmes como Juventude transviada, de 1955, Guerra nas estrelas, de 1977, e o Campeão, de 1979, todos de enorme sucesso, as relações entre pai e filhos estão no centro da trama. É assim também com super-heróis do cinema recente: Batman, Super-Homem, Homem Aranha, Thor. Todos querem provar, dizer ou perguntar algo ao próprio pai. Ou à lembrança dele. Parece ser uma necessidade – ou uma lacuna – universal.

O jeito mais simples e mais bonito de lidar com a herança emocional do pai é ter um filho. No momento em que você ouve as palavras “é menino”, cria-se uma ponte instantânea entre o pai que você teve e o pai que você acaba de se tornar – assim como entre o filho que você foi e o filho que recém-nasceu. É uma espécie de reencontro. Materializa-se, concretamente, a possibilidade de fazer tudo de novo, fazer tudo direito, corrigir os erros. Resolver, no tumulto real da vida, em oposição ao mundo intangível das lembranças e sentimentos, as dificuldades das relações entre pais e filhos. Tem sido assim comigo e com muitos homens que conheço.

Outro dia, um amigo me mostrou algo que ele e seu filho pequeno têm feito juntos. É uma lista de coisas em que os dois acreditam. Começa com a importância de aventurar-se e de experimentar coisas novas. Termina, provisoriamente, com o dever de ser solidário e de ajudar a quem necessita. No meio, há coisas como “aprender a perder” e uma pergunta: o que é mais importante, estar certo ou ser feliz? A resposta de pai e filho é “ser feliz”.

A primeira coisa que me veio ao ler o decálogo do amigo com seu filho foi inveja. Por que não tive uma ideia linda dessas quando meus filhos eram pequenos? Passado esse momento mesquinho, fui tomado pela admiração. Num mundo repleto de valores contraditórios, ou tomado pela falta absoluta de valores, meu amigo tenta criar, num gesto de amor, uma espécie de camada protetora em torno do filho. Esses princípios simples, descobertos e partilhados entre eles, podem orientar o pequeno na ausência do pai, quando ele tiver de fazer suas próprias escolhas. Mais que qualquer objeto, mais que a fortuna, o decálogo é um presente para a vida - mesmo do meu amigo.

No passado, quando os filhos cresciam na mesma casa com pai e mãe, os sentimentos no interior da família não eram simples. Todos sabemos disso. Agora que o conceito de família se ampliou, para envolver novos adultos e novas crianças, as coisas se tornaram ainda mais complicadas. Mas não piores. Pais separados têm a oportunidade de desenvolver com seus filhos uma relação mais intensa e mais íntima do que antes.

A responsabilidade de olhar, cuidar e compartilhar não se dilui “na família”, como os pratos sujos sobre a pia ou o lixo acumulado na varanda. Ela é pessoal, intransferível. Ao pai, cabe estabelecer uma relação intensa e singular com seus filhos, sem a intermediação do amor e dos cuidados maternos. Tendo vivido isso, e vendo outros homens viver, concluo que é uma das experiências mais bonitas que se podem ter.


O passado não vai embora. As coisas perdidas nunca serão inteiramente recuperadas. A vida nos oferece, apesar disso, oportunidades de refazer de outra forma, numa outra esfera. A paternidade é uma delas. Nos permite ser homens melhores e criar homens melhores. Nos permite ser crianças novamente. Nos permite esboçar alguma compreensão e nos aproximar – apenas nos aproximar, mas já é algo – de um sentimento suave e agridoce de perdão por nossos pais, que agora somos nós.

Malvados - André Dahmer


Pai e Filho - Claudio Lovato Filho


“E como vai ser na hora de um dar esporro no outro dentro de campo, hein?”
“O que é que tem?”
“Você vai querer me dar esporro dentro de campo, garoto?”
“Claro! Qual é?”
“E o diabo do respeito? Sou seu pai, porra!”
“Pai só até a gente entrar em campo. Depois você vai ser um companheiro de time igual a todos os outros. Boto o dedo na tua cara se precisar. Na tua cara!”
Os dois riram. Era a primeira vez na história do futebol profissional do país que pai e filho iriam jogar juntos no mesmo time. O pai tinha 39, era lateral-esquerdo. Era seu último ano de carreira. No fim da temporada, pararia, já havia decidido. Ou antes. Queria ter o gostinho de jogar com o garoto. O filho, de 19, jogava de volante.
“Porra, moleque, você vai dar cobertura para o seu velho, não vai não?”
“Se você está falando em cobertura normal, sim. Se está falando em te dar atenção especial, pode esquecer. Não vou ficar preso lá atrás só para te dar privilégio. Tenho de chegar lá na frente também, você sabe disso.”
“Você vai deixar o seu velho desprotegido, já senti. Vai me deixar na mão. Não quer ser acusado de proteger o seu velho.”
“É isso aí, coroa. Eu tenho um nome zelar. Foi você que me deu. Me desculpa aí, foi mal.”
Os dois soltaram o riso de novo. Estavam sentados à beira do piscina da casa onde moravam. Tinham acabado de comer um churrasco e agora assistiam às mulheres e as crianças da família se movimentando pelo enorme jardim.
“Se alguém baixar a porrada no teu velho você vai revidar? Hein? Diz para mim. Vai tomar as minhas dores?”
“Eu não! Não vou nem me meter. Não vou nem reclamar para o juiz! Eu, hein!”
“Mas que garoto safado, cacete!”
Mais risadas.
O fato é que nunca estiveram tão felizes na vida. Eram um pai e um filho que se adoravam. Um era o maior motivo de orgulho para o outro.
O pai participara de duas Copas. Na segunda, foi capitão da Seleção. E campeão do mundo.
O filho fora promovido para os profissionais no ano que havia recém terminado.
Estava tudo muito bem, a família vivia um momento muito positivo, muito especial.
Mas havia algumas nuvens sobre a alegria do pai, pequenas sombras perturbadoras ainda começando a se formar.
Isso porque:
O pai não sabia o que aconteceria quando – e se – a torcida, num mau dia, começasse a vaiar o filho.
Ele não sabia o que faria quando – e se – um adversário desse uma entrada maldosa no filho.
E ele não sabia como reagiria a outras tantas situações que poderiam ocorrer – e facilmente ocorriam – no futebol.
O filho, por sua vez, não pensava nessas coisas. O filho estava feliz porque ia jogar; porque era titular; porque atuaria ao lado do pai amado; e porque tinha certeza de que nem ele nem o pai estavam ali, juntos, no mesmo clube, no mesmo time, por nada mais além do futebol de primeira linha que jogavam, do amor que nutriam pela camisa que vestiam e do imenso prazer que sentiam em jogar futebol e estar juntos. E seria dentro das quatro linhas de um campo de futebol que o amor que sentiam um pelo outro se tornaria tão completo quanto poderia ser.


Fernando Gonsales



É menino ou menina? É um projeto - Ricardo Araújo Pereira

Luiza Pannunzio/Folhapress

Para os pais de crianças já é difícil: é preciso ajudar com os deveres de casa, ler a história antes de dormir, empurrar o balanço, passear, fazer piquenique, levar a 30 festas de aniversário por ano, comprar a roupa do ballet, levar no ballet, ir pegar no ballet, assistir ao sarau do ballet.
Mas há pais que não têm um filho, têm um projeto. Esses, eu não sei como é que fazem. Têm a vida dos filhos planejada até os garotos fazerem 60 anos. O que a criança aprende na escola não chega.
Quando o projetinho tem 6 anos já estuda mandarim. Dentro de pouco tempo, ninguém vai fazer negócios em inglês, e muito menos em português. Quem não souber mandarim, nem um sanduíche conseguirá comprar.
Também é importante tocar um instrumento musical. O melhor talvez seja mesmo o violino, porque o piano não dá para levar e ficar praticando no caminho para o treino de futebol.
Resumindo: à tarde a criança sai da escola e vai para a equitação (bom para a postura). Depois, violino. A seguir, futebol. Jantar rapidamente e uma hora de mandarim.
E convém ir dormir cedo, porque no dia seguinte, antes da escola, que não pode descurar, tem treino de artes marciais na academia (saber defender-se é importante).
Os pais do projeto estão, por isso, empenhados em criar um cavaleiro violinista carateca bom de bola que sabe fazer-se entender em Pequim.
Esse é, ao que tudo indica, o ser humano do futuro. Que ainda deve ter um doutorado em engenharia informática.
Ou seja, uma espécie de Jackie Chan que gere uma empresa tecnológica multimilionária e joga no Real Madrid. Na verdade, isto não é um filho, são três ou quatro.
Os pais sonham que o garoto seja uma espécie de super-herói rico. É sábio, talentoso, empreendedor e faz gols.
Parece o sonho de uma criança, mas é o sonho que alguns adultos têm para as suas crianças.
A educação que dou às minhas filhas é bastante diferente, mas tem tudo isto em conta: vou tentar convencê-las a estudarem psicologia.
Vão ter muita gente traumatizada por infâncias absurdas para tratar.
Assim que elas saírem da aula de ballet, comunico-lhes a minha estratégia. Teremos tempo para falar, porque hoje elas só têm duas festas de aniversário.

Céllus
 


Sinovaldo




Escrever é fácil - Marcos Piangers



Estava no corredor número oito do supermercado do bairro assistindo a minha filha pequena fazer um glorioso escarcéu anunciando para todos os clientes o quanto queria ganhar doces e o quanto o seu pai (o papai pop!) era péssimo ao não satisfazer suas vontades chocólatras. Ela gritava coisas do tipo "mas eu queeeeeeeerroooooooooooo" e eu me lembrava que, antes de ter filhos, jurava que jamais aceitaria que filho meu fizesse cena no supermercado, ele iria levar um tapa tão bem dado que ficaria desnorteado e jamais pediria nada nunca mais, pelo contrário, decidiria ali mesmo começar a trabalhar e se formaria em Medicina antes dos 18 anos. 

Pobre ilusão, o fato é que minhas filhas vieram e acabei incapaz de agredi-las, que bom que todas as pesquisas científicas comprovam que palmada é a pior atitude mesmo e o certo é explicar as coisas para a criança. Ufa.

Para piorar, toda vez que minhas filhas dão vexame, tem alguma pessoa que me reconhece por perto, todas as pessoas que leem esta coluna, e meus livros, e veem meus vídeos e palestras e esperam que eu seja o pai perfeito e minhas filhas tenham comportamento impecável. Óbvio que isso não acontece, primeiro porque não sou pai perfeito, pergunte à minha esposa, e segundo porque não existe criança que não faça algum tipo de drama quando quer ganhar alguma coisa.

Lá estava eu no corredor número oito do supermercado e um cidadão de bigode e óculos passou com seu carrinho, percebeu a cena que minha filha estava fazendo e disse: "Escrever é fácil, né?", enquanto eu tentava acalmar minha filha. Alguns leitores são muito desagradáveis, como podem ver. Tenho certeza de que não é o seu caso, mas foi o caso daquele senhor de bigode e óculos, que, se eu não me engano levava papel higiênico no carrinho e não era nem da marca mais cara.

Não tenho vergonha de dizer que aqui em casa minha filha de seis anos lava a louça de vez em quando, já preparou sua própria comida (fez arroz, fritou o bife e o ovo) e sempre que acaba de se alimentar coloca o prato na pia. Ela também escova os dentes e dorme cedo, faz a tarefa de casa e arruma o quarto sempre que pedimos. Considero-a uma menina muito obediente mas, como já disse, de vez em quando dá um show de indisciplina, geralmente em lugares públicos e quando alguém que me considera o melhor pai do mundo está vendo. 

Quando ela não quer ir embora da casa de uma amiguinha, por exemplo, lá estou eu ajoelhado implorando para que ela venha comigo enquanto peço desculpas aos donos da casa. Ou pior, quando estamos em algum restaurante e ela fica chateada de não ganhar sobremesa, todas as pessoas sentadas perto da nossa mesa ouvem os gritos e pensam: "Jamais permitiremos esta algazarra quando formos pais!". Rá, penso comigo mesmo. Faço votos de fertilidade.


Quando uma repórter me perguntou "como criar crianças perfeitas?" e eu respondi, rapidamente: "Não sei!". Não conheço crianças perfeitas, não conheço pais perfeitos e, certamente, não conheço adultos perfeitos. Conheço apenas aqueles que tentam acertar e que aprendem com os erros. Crianças farão pirraça, como fizemos eu e você. Em lugares públicos, minhas filhas colocarão em xeque minha fama de bom pai. Mas elas são comportadas quando ninguém está olhando. Eu juro que são.

CalvinBill Watterson





Cat Stevens - Father and Son 


Pai e filho (Cat Stevens / versão: Chico Teixeira e Renato Teixeira)



Nara Leão - Pai E Filho (Father And Son) - Versão: Cacá Diegues



Father And Daughter


“Pai e Filha” (Father and Daughter) é um filme sobre o amor incondicional e a saudade, o tipo de saudade que discretamente, porém totalmente, afeta as nossas vidas.

“Em apenas oito minutos, Michael Dudok de Wit conta a saga da personagem que, ainda criança, vê o pai pela última vez. Ano após ano, e sempre de bicicleta, retorna ao lugar da despedida, esperando que ele volte. Assim como a música ao longo da narrativa – repetição incessante da mesma melodia, que varia, tal qual o Bolero de Ravel, rítmica e harmonicamente –, Pai e Filha se estrutura a partir de sequências a princípios idênticas entre si, que, entretanto, se diferenciam na medida em que são preenchidas pelo Tempo (o devir heraclitiano). Desse modo, enquanto a roda gira, os anos passam, cada corte introduzindo nova elipse temporal. Sobre a bicicleta, a filha envelhece: nós a acompanhamos estudante, com o primeiro namorado, já casada e com filhos, idosa. Trajetória que mostra não somente a degradação física, como também, e principalmente, os sentimentos e a memória e as lembranças cristalizam, ponte entre o passado, o presente e o futuro, visível na sucessão emotiva das estações do ano e das paisagens holandesas que ambientam o filme.”
– Paulo Ricardo de Almeida

“Father and Daughter” é um filme de animação em curta-metragem holandês de 2000 dirigido e escrito por Michaël Dudok de Wit, produzido pela Cinété Filmproductie. Venceu o Oscar de melhor curta-metragem de animação na edição de 2001. De Wit também escreve e ilustra livros infantis e ensina animação e arte em escolas da Grã-Bretanha e em outros países.



Hagar - Chris Browne




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