Meu nome é Emanuel. Há tempos, eu pensava em criar um blog sobre leitura mas não encontrava o nome.
"Crônicas Recolhidas e Cia Ilimitada" é, por enquanto, o nome provisório do blog. Além das crônicas, artigos de opinião, contos e poemas terão seu espaço aqui.
Sempre que possível, além do texto, serão incluídos links e/ou imagens relativos ao tema.
Das muitas coisas que li sobre a arte da escrita, sempre tive especial encanto pelos mandamentos literários, espécies de tábuas da lei para o universo ficcional, mais fáceis de cumprir ou desrespeitar do que aquelas ditadas a Moisés. O escritor uruguaio Horácio Quiroga tem um famoso decálogo para o contista, deliciosamente arbitrário e útil. Juan Carlos Onetti, seu conterrâneo, escreveu 12 e não 10 mandamentos, supondo que dois podiam ser descartados. Hemingway e Raymond Carver também têm suas listas, cheias de caprichos.
Gosto em especial das proibições. No Decálogo original, nada pode ser melhor em estilo e matéria de reflexão do que os vetos enxutos: Não matarás, não roubarás, não adulterarás. Também uma lição sobre o fracasso das leis, mesmo quando divinas.
Anos atrás, preparando uma oficina, modestamente compus um decálogo, que tantas vezes desrespeitei, brasileiro que sou. Mas se uns cinco artigos pegarem, terei vencido a média nacional.
Decálogo da crônica
1 - No canto, como na escrita, trata-se de encontrar o tom certo para a canção.
2 - Valorize o evento que justifica a crônica. Que não seja óbvio a ponto que todos já o conheçam, que não seja particular a ponto de que ninguém mais o entenda.
3 - Seja breve, mesmo que não consiga.
4 - Trata-se de uma conversa. É preciso saber ouvir, mais do que saber falar.
5 - Equilibre razão e sensibilidade. Nem só artigo, nem só confissão. A crônica precisa do comprometimento dos diálogos de botequim quando as gentes já se foram.
6 - A crônica é sobre a luta da criatura humana contra o tempo: o que se perde, o que se preserva, o que se transforma durante o combate. Os despojos desse combate, a isso chamamos crônica.
7 - Lembre-se das duas melhores armas para a crônica (e talvez para a vida): humor e lirismo. O riso e a poesia estão entre as poucas vitórias de nossa triste espécie.
8 - Se tiver certeza, duvide. Se for opinar, espere. Se quiser propor, não imponha. Escrever muitas vezes é descobrir o que ainda não se sabe.
9 - Que seja sempre sobre nós, nunca sobre mim, mesmo que a crônica pareça um relato sumamente pessoal.
10 - Escreva sem pensar o quão perecível é o assunto da crônica. Abrace o problema da experiência humana, fonte do prazer da criação, que é, se tudo der certo, o próprio prazer da leitura também.
Nas comemorações da descida do Neil Armstrong na Lua também foram lembrados os 50 anos de teorias conspiratórias sobre o evento, que não teria acontecido. Segundo as teorias, os Estados Unidos estavam perdendo a corrida espacial para a União Soviética, que já tinha colocado um robô na Lua, e precisavam de um lance espetacular para superá-la. Na impossibilidade de botar um homem no nosso satélite sem o risco de uma tragédia que seria vista em todas as TVs do mundo, encenaram o espetáculo sem o risco.
Construíram um trecho da Lua num estúdio da Terra com um chão de, sabe-se lá, raspa de isopor, no qual plantaram uma bandeira americana. Primeira evidência de que a cena era falsa (arrá): a bandeira tremulava. De onde vinha o vento que fazia tremular a bandeira americana na superfície sem ar da Lua?
*
O problema com as teorias conspiratórias é que elas dependem de um somatório de coincidências e conluios que não resistem ao bom senso. A bandeira podia muito bem parecer tremular a um vento imaginário, nada que uma pilha AAA comum não garantiria.
As teorias conspiratórias costumam ser derrotadas pela excessiva criatividade, que muitas vezes beira o delírio. Numa das primeiras missões do programa de voos espaciais tripulados americano, o módulo incendiou antes de ser lançado, matando os três astronautas no seu interior. Surgiu a teoria de que os três tinham feito um pacto para denunciar a farsa do primeiro homem a pisar na Lua, que estava sendo armada pela Nasa, e por isso precisavam ser eliminados. A Nasa teria assassinado os astronautas!
*
Episódios das recentes eleições presidenciais brasileiras geraram teorias para todos os gostos. Alguém podia acreditar que o acidente aéreo que matara o ministro do Supremo, Teori Zavascki, em Paraty fora mesmo um acidente? Ali tinha coisa, o mais provável era um retoque na mecânica do voo programada para derrubar o avião numa manobra mais violenta, no mau tempo que é comum nas aterrissagens na região. A quem interessava calar o ministro?
E a punhalada que supostamente quase matou o Bolsonaro, mas ajudou a elegê-lo? Estranho que o ataque tenha produzido tão pouco sangue, né? Estranho que o autor da punhalada tenha sido diagnosticado como maluco, incapaz de dar qualquer informação sobre seu gesto, como, por exemplo, quem o encomendou. Ali, decididamente, teve coisa. Segundo as teorias, teve coisa.
*
Não tenho gosto ou imaginação suficiente para seguir conspirações, mas confesso que tem uma dúvida sobre a chegada do homem (ou da humanidade, disse Armstrong) à Lua que me persegue há 50 anos: a localização da câmera, daquela maldita câmera separada do módulo, que capta a cena do histórico primeiro passo de uma distância perfeita.
Quer dizer: o primeiro a pisar na Lua não foi o Armstrong, foi quem desceu a escada com o tripé e uma câmera, que montou num ângulo irretocável.
A onda agora é proibir celulares em shows, exposições, até em restaurantes. A saída é simples: cases com travas. A empresa Yondr patenteou uma carteira de lona, em que se coloca o celular dentro, e ela é lacrada.
O aparelho inoperante continua com o dono. Ao ir embora, basta liberá-lo na base que destrava. Engenhosa saída para a sociopatia dos tempos atuais: levantar celulares para gravar eventos.
A Apple acaba de patentear uma tecnologia de infravermelho que pode desabilitar do palco por um tempo as câmeras dos telefones da plateia. Evita-se a pirataria e também a chatice de termos que desviar de cabeças e braços erguidos com câmeras.
Beyonce tem pedido com educação: “Poderiam abaixar as câmeras para curtir um pouco do show?”. Adele faz o mesmo sem a mesma paciência: “A mocinha poderia parar de me filmar com sua câmera? Eu estou aqui na vida real, você pode curti-la”.
A banda The Lumineers fez shows bloqueando os celulares com os cases da Yondr. Não queria o vazamento das músicas inéditas. Estabeleceu-se a “phone-free zone” (espaço sem telefones).
Louis C.K., Hannibal Buress, Alicia Keys, Guns N’ Roses, Maxwell, Donald Glover (Childish Gambino) também contrataram a Yondr e bloquearam os celulares em seus shows.
Empresa fundada por um moleque nos seus 20 anos, Graham Dugoni, formado em ciência política, a Yondr cria espaços “phone-free” para artistas, educadores, organizações e indivíduos. Anuncia: “Em nosso mundo hiperconectado, fornecemos um refúgio para nos envolver com o que você está fazendo e com quem”.
Ela tem alugado seus equipamentos para escolas, restaurantes, casamentos e até empresas. E cita Kierkegaard na apresentação: “The highest and most beautiful things in life are not to be heard about, nor read about, nor seen but, if one will, are to be lived”. (As coisas da vida mais intensas e belas não são para serem ouvidas, lidas, vistas, mas para serem vividas, se assim quisermos.)
*
Saí do Instagram. Não sabia operar, me confundiam os muitos comandos. Fiz tudo errado. Abri para qualquer um, o que me deu milhares de seguidores desconhecidos para quem oferecia sem mais parte da minha intimidade. Eu queria apenas me comunicar e stalkear amigos e amigos de amigos.
Stories até hoje não sei para que servem. Todo artista divulga divagações sobre seu caos pessoal e almeja ser imortalizado. Qual o sentido de uma ferramenta que dura 24 horas e se autodestrói como uma mensagem do Chefe a Maxwel Smart, o Agente 86, que combatia a KAOS.
Apesar de ser informado que é a rede social que mais cresce e influencia, não via sentido num aplicativo em que você passa o dedo e curte as fotos de outros. E não me arrependo de ter saído.
As redes sociais nasceram para reaproximar pessoas, facilitar a troca de arquivos, democratizar a informação. Passou a combater o totalitarismo, as injustiças, denunciar desastres ambientais, violência contra animais, abusos. Foi fundamental o papel delas na Primavera Árabe e eleição de Obama.
Hoje, elas ampliam a solidão, são responsáveis por um alto índice de depressão e, pior, roubam dados dos usuários para as grandes corporações. Sem contar a difusão do discurso de ódio. Sair do Instagram e hibernar o Face me deram um certo alívio, já que limito o acesso à minha privacidade.
Às vezes, eu postava uma foto qualquer, quando me lembrava de que o Insta precisa ser alimentado. Estava no mecânico. “Ah, tenho Insta”. Postava uma foto minha com o capô do carro aberto e o radiador estourado. Nunca postei em hospital, velório. Nem de comida. Postava fotos dos filhos, mais divertidas do que minha vida de pai correndo atrás de filhos.
Entrei influenciado pela mulher, uma adepta que virou ex-mulher por culpa do Insta. Claro. Depois de duas gravidezes e partos exaustivos, tensos, com final feliz, viver enfim a experiência de ser o que somos, mamíferos, com noites sem dormir, choros, ao lado de duas linhas de montagem 24 horas por dia de cocôs e vômitos que não param de jorrar, sem contar as noites em claro, enquanto via fotos com filtros das amigas sem filhos na Croácia, magras, exultantes, queimadas pelo sol do verão báltico, deliciando-se com drinques de nomes impronunciáveis e acentos incomuns, levava a se considerar a mais desgraçada das criaturas.
Todas as pessoas do seu universo eram mais felizes do que ela. Não conheço uma mãe que posta fotos com uma fralda na mão, do filho todo cagado, ou stories com o mais velho chorando, dizendo “eu te odeio”.
Saí do Insta para romper com a falsa felicidade e viver a vida real sem comparações e inveja. Porque rede social não é apenas para socializar, mas causar inveja.
No mais, em final de casamentos, dividem-se quadros, Neruda, amigos e redes sociais. Insta é seu, Twitter é meu. Pode ficar com o Face. LinkedIn preciso, por conta do trabalho. Vai pro Tinder, fico no Happn.
Um fica responsável pela rede social do grupo da escola do mais novo, o outro, do mais velho. Grupo da família? Da minha família?! Você conhece a minha família, são malucos, estão doidos para falar mal de você.
A epidemia do selfie virou histeria. Na exposição da Tarsila (no Masp), tornou-se problema de logística: a fila não andava. As pessoas tiravam fotos das obras, do texto explicativo, e selfies diante delas. Não sei se reparavam no original espectro de cores e formas únicas.
Eu dizia: “Anda, gente, tem tudo isso no site da exposição”. Não. Precisavam do registro de estarem ali, na Tarsila. Para causar inveja e admiração. Que carência...
Bem diferente dos barracos extraliterários aqui relatados na semana passada – nos quais as desavenças, com toques até cômicos, não renderam mais que pugilato, tabefe e palavrão –, a história de hoje, vou avisando, acaba em tragédia. Sem prejuízo disso, os dois protagonistas, se colocados no centro de um ringue, formariam uma dupla capaz de provocar risadas.
De fato, um deles, jornalista e deputado federal, autor, já aos 28, dos ensaios de A Chave de Salomão e do romance Inocentes e Culpados, era um baixinho que, posto ao lado do outro, poeta fisicamente avultado, com um livro na praça e 41 anos nas costas, pareceria ainda mais miúdo. A uni-los, além da circunstância de serem ambos gente conhecida nos meios literários do Rio de Janeiro – estamos no ano de 1915 –, havia apenas o fato de arrastarem, um e outro, nomes quilométricos.
Até nisso, aliás, o deputado – que veio a ser um figurão não só das letras, com assento na Academia Brasileira, como embaixador luzidio – perdia para o outro, também onomasticamente avantajado: no registro civil, o sergipano Gilberto Amado era Gilberto de Lima Azevedo Souza Ferreira Amado de Faria, enquanto o gaúcho Aníbal Teófilo, provido de nada menos que três conjunções hispânicas Y, era Aníbal Teófilo de Ladislau y Silva de Figueiredo y Melo de Giron de Torres y Espinosa. Posto por inteiro nos 140 caracteres do twitter, o nome deste deixaria pouco espaço para a mensagem propriamente dita.
Assassinado – antecipemos o final da história – com um tiro que lhe seccionou a medula, Aníbal Teófilo não pôde ir além do livro de estreia, Rimas, do qual apenas um soneto, A Cegonha, haveria de ser lembrado, ainda assim por não muito tempo. Décadas mais tarde, o crítico Brito Broca lamentaria que o autor tenha estragado seu poema ao encravar um substantivo infeliz no último verso do terceiro terceto: “Qual morosa, tenaz, paciente lesma”. “Horrível essa lesma”, arrepiou-se ele, pois “desencanta a beleza do soneto com algo repugnante, destoando de todo o sentido poético”.
Mas não deixemos que um molusco gastrópode torne ainda mais arrastado o nosso relato. Vamos aos fatos.
Um século e pico depois, ainda não se sabe exatamente quando e por que começou a malquerença que levou Gilberto Amado a sacar sua Mauser e abater Aníbal Teófilo no saguão do prédio do Jornal do Commercio, em plena avenida Rio Branco, no início da noite de 19 de junho de 1915. A crer no autor do tiro – que um ano depois seria absolvido –, o poeta de A Cegonha, por alguma razão, costumava praticar contra ele o que hoje se chamaria de bullying. Pelo menos foi o que contou, quatro décadas mais tarde, em seu penúltimo livro de memórias, Presença na Política.
Nas quase 20 páginas do capítulo Terrível Prova, o nome de Aníbal Teófilo não é citado uma única vez. Gilberto Amado limita-se a apresentá-lo como “pessoa já madura, anos e anos mais velha do eu, atleta, homem de alta estatura, conhecido desde a mocidade pelo vigor físico”, em brutal contraste com ele próprio, descrito como “pequenino e magrinho”.
Amado diz que tempos antes, assim do nada, o poeta o “estupefez” com uma ameaça – proferida em português corretíssimo, diga-se: “Quebro-lhe a cara, puxo-lhe as orelhas... seu...”. A crer no memorialista, seu desafeto sofria de uma “obsessão de puxavante de orelhas”, e voltou a ameaçá-lo quando, no derradeiro encontro, os dois se cruzaram na saída de uma “hora literária”, no 5.º andar da sede do Jornal do Commercio.
Embora “miopíssimo”, o deputado estava sem óculos – que poderiam, talvez, ter evitado a tragédia. Num ambiente mal iluminado, ele saiu cumprimentando “à direita e à esquerda”, sem saber exatamente a quem se dirigia – e nisso teve a infelicidade de abanar a cabeça justamente para o belicoso Aníbal. “A você não cumprimento!”, teria rugido o poeta, cujo pavio, em contraste com a estatura de seu dono, era dos mais curtos – e, aos brados, renovou o propósito de puxar as orelhas do deputado, as quais, por sinal, vistas em fotografias, nada mostram de especialmente chamativo.
No bafafá que se seguiu, já no saguão do edifício, o dono das orelhas sacou a arma e, meio às cegas, disparou três ou quatro tiros contra o autor de A Cegonha, um dos quais acertou o alvo. Minutos depois, Amado era detido e Aníbal Teófilo morria no hospital. Numa passagem pitoresca de seu relato, o assassino conta que naquele dia estreava um terno, e não qualquer: talhado pelo Nagib, “o alfaiate da moda”, em casimira azul. Foi a primeira vez, acrescenta, que pagou roupa com sua verba de parlamentar. Ficou traumatizado: “Nunca mais usei fazenda de cor azul”, esconjura, e “só de ver fazenda com essa cor me arrepio”.
Minutos antes de ser abatido, Aníbal Teófilo tinha posado para uma foto em companhia de amigos escritores, entre eles Olavo Bilac, Martins Fontes, Emílio de Menezes, Olegário Mariano e Humberto de Campos. Todos estes, e muitos mais, engrossaram a multidão que compareceu ao velório e ao sepultamento, no cemitério do Caju. “O enterro de Aníbal foi uma apoteose”, escreverá o poeta Emílio de Menezes. “Nunca houve no Rio um movimento de solidariedade literária como este.”
Não faltou àquele adeus um toque romântico-macabro. Biógrafo de Emílio, Raimundo de Menezes (nenhum parentesco) conta que por volta da meia-noite entrou no velório uma mulher de negro, usando véu, com um ramalhete de cravos brancos, e, erguendo a echarpe, beijou “demoradamente a face, a boca e as mãos esquálidas do poeta”, que era pai de família, para em seguida desaparecer, sem que se soubesse quem era.
Houve mais. É também Menezes quem conta que Aníbal Teófilo e sua patota literária tinham selado um pacto pelo qual, na hora de fechar-se o caixão do primeiro que se fosse, cada um deles derramaria determinado perfume sobre o coração do falecido. Olavo Bilac, ninguém menos, puxou a fila, e tantos vieram em seguida que o ambiente “ficou balsamizado, cheio de celestial suavidade”. Naquele dia, registra Raimundo de Menezes, não restou no comércio do Rio de Janeiro um único frasco de Idéal, da perfumaria francesa Houbigant.
A biblioteca do barco que me leva a Anchorage é pequena e bonita. Salvo uma coleção de clássicos cuja letra microscópica os põe fora de meu alcance, seus romances de aeroporto, de autores desconhecidos, me deixam indiferente, assim como as biografias de jogadores de beisebol, de ases do atletismo ou do rei do ringue, e seus livros de autoajuda e de fofocas de Hollywood. Mas, perdido na prateleira de atualidades, encontrei um livro de um jovem professor de Harvard, Kevin Birmingham, que valeu a pena: The Most Dangerous Book: The Battle for James Joyces’ Ulysses (livremente, O livro mais perigoso: a batalha de James Joyce por Ulisses).
O livro abrange muito mais que o que dizem seu título e subtítulo, ou seja, as dificuldades pelas quais passou James Joyce com seus livros devido à cegueira e covardia dos editores do Reino Unido e Estados Unidos, que, com medo da censura, das multas e dos processos, não se atreviam a publicá-los. O caso de Joyce é único: foi famoso antes de ter um só livro editado.
Em boa parte, isso se deveu ao extraordinário caçador de talentos literários que foi o poeta Ezra Pound. Sabe-se bem o que ele fez por T. S. Eliot e o tempo que dedicou (renunciando à preparação de sua própria obra) a corrigir A Terra Inútil. Mas provavelmente fez muito mais para que o gênio de Joyce fosse reconhecido e, principalmente, publicado.
Pound ouviu falar em Joyce pela primeira vez em 1914, pelo poeta W. B. Yeats, que o aconselhou a pedir uma colaboração a Joyce para uma antologia dedicada à literatura irlandesa que Pound preparava. Pound pediu e Joyce, que era totalmente desconhecido, lhe enviou vários contos de Dublinenses e fragmentos de Retrato do Artista Quando Jovem, livros para os quais procurava editor.
O deslumbramento de Pound ao ler esses textos está documentado em suas cartas. Homem prático que era, inundou imediatamente com informações os melhores editores ingleses e americanos, exortando-os a publicar esses primeiros livros de Joyce que, assegurava, eram de altíssima qualidade literária e de grande originalidade.
As respostas que recebeu foram de estarrecer. Nenhum dos editores reconheceu em Joyce o menor talento literário. Diziam que recusavam os livros por que eram mal escritos, desorganizados e tinham estruturas deficientes, além de vulgares e de mau gosto. Por que se arriscariam a ser multados e processados por livros que não passariam por nenhuma censura e, acima de tudo, eram tão medíocres?
Pound não deu o braço a torcer. Respondeu a todas essas objeções com argumentos literários, acusando os editores de serem cegos e medíocres e afirmando que o jovem escritor irlandês estava revolucionando a literatura de seu tempo, em especial a prosa literária inglesa. Seu entusiasmo contagiou duas mulheres extraordinárias: Harriet Wheaver, diretora de uma pequena revista literária inglesa, The Egoist, na qual apareceriam os primeiros contos de Dublinenses e capítulos de Retrato do Artista Quando Jovem, e Margaret Anderson, que em 1918 começou a publicar episódios de Ulisses numa revista que editava nos Estados Unidos, The Little Review.
Por sua ousadia, ambas foram processadas. Destemidas, elas continuaram empenhadas em divulgar a obra de Joyce e até lhe mandaram dinheiro para ajudá-lo a enfrentar suas crônicas crises econômicas e seus gastos com oculistas.
Ao contrário de muitos editores da época, escritores e donos de livraria (entre eles a primeira editora de Ulisses, Sylvia Beach, criadora da Shakespeare and Company, livraria americana de Paris), ficaram impressionados ao conhecer os textos de Joyce. Mas provavelmente nenhum chegou a demonstrar mais isso que Valery Larbaud (o primeiro tradutor francês de Ulisses), que, após ler em The Little Review aqueles fragmentos do grande romance de Joyce, escreveu ao escritor oferecendo-lhe sua casa (com uma empregada) e sua grande biblioteca, além de pôr a sua disposição sua célebre coleção de soldadinhos de chumbo. Joyce mudou-se para lá com a mulher, Norah, e os dois filhos, e por um bom tempo pôde continuar trabalhando com tranquilidade no romance que ainda lhe tomaria sete anos.
Ainda que a primeira edição de Ulisses tenha aparecido em Paris em 1922, graças a Sylvia Beach, apenas 12 anos mais tarde – 1934 – um juiz de Nova York, John Woolsey, em uma memorável sentença autorizou a circulação do romance, que apareceria pouco depois na edição da Random House. A sentença de Woolsey foi reproduzida nessa nova edição e abriria um precedente decisivo contra todas as tentativas de proibir a circulação de obras “atrevidas ou desavergonhadas” nos Estados Unidos. Uma sentença semelhante foi dada na Inglaterra naquele mesmo ano.
Semelhantes também foram as reações da crítica nos dois países. Quase todos os que escreveram sobre o romance reconheceram – alguns rangendo os dentes – o gênio de Joyce e as extraordinárias novidades que o livro trazia, tanto no domínio da língua como na estrutura narrativa, nesse dia de Leopold Bloom tão minuciosamente descrito. Mas quase todos também denunciaram a vulgaridade atroz do palavreado “pestilento” com o qual se manifestavam não apenas os personagens, mas o próprio narrador. Sobretudo, criticaram o longo monólogo final de Molly Bloom, que alguns tacharam de “insolente” e outros até de “demoníaco”.
Mais cedo ou mais tarde, todos eles chegariam a reconhecer que o gênero romance seria a partir de então radicalmente diferente, graças a Joyce e a sua prodigiosa realização. Esse êxito se deveu em boa parte ao instinto e aos esforços de Ezra Pound.
No extraordinário ensaio que dedicou ao livro, ele foi o primeiro a assinalar que, desde a aparição de Ulisses, todos os romancistas contemporâneos, incluindo os que nunca haviam lido a obra, passariam a ser discípulos de Joyce. Foi o que também admitiu William Faulkner, outro romancista fora do comum que provavelmente nunca teria escrito sua saga sulista sem as lições que teve lendo Joyce.
O serviço que Ezra Pound prestou ao autor de Ulisses não consistiu apenas em encontrar leitores para seus textos. Pound também conseguiu mecenas que ajudaram Joyce economicamente e lhe permitiram, por exemplo, operar-se tantas vezes do olho direito.
Quando se conheceram pessoalmente, em Paris, em 1918, já fazia quatro anos que Pound multiplicava esforços para divulgar aquele a que chamaria de “o renovador da cultura do Ocidente”. Pound é a figura mais simpática que aparece no livro de Kevin Birmingham.
É difícil identificar nesse homem generoso e altruísta o Ezra Pound que, durante a 2.ª Guerra Mundial, exortava na rádio italiana os jovens recrutas americanos a desertarem de suas fileiras e repetia todas as crueldades que os nazistas atribuíam aos judeus. Por isso ele foi capturado pelo Exército americano e exibido por toda a Itália em uma jaula, como um louco furioso.
Em seguida, nos EUA um tribunal, para não fuzilá-lo por traição à pátria, declarou-o insano. Ele passou um bom número de anos num manicômio. Hoje, na Itália fascistoide de Matteo Salvini uma das seitas mais radicais da ultradireita antidemocrática se chama nada menos que CasaPound. Georges Bataille escreveu que o ser humano é uma jaula na qual se aninham anjos e demônios. Em poucas pessoas isso foi tão evidente como no caso de Ezra Pound.
Foi no século 19 que ir ao banheiro passou a ser uma atividade privada, sem trocadilho. Até então podia ser um ato social. Reis se reuniam com seus ministros sentados em “tronos” eufemísticos. Há quem diga que se deve à transformação da evacuação num hábito solitário, propício à leitura e à reflexão, o nascimento do pensamento moderno na obra de gente como Hegel, Marx, Nietzsche e etc.
*
Paralelos históricos nunca são exatos e por isso sempre são suspeitos. Mas no século 19 está o começo de tudo que nos aborrece hoje, e que pode ser resumido como a falência do pensamento moderno, produto do iluminismo e das melhores intenções humanas, mas que escoou pela cloaca da História.
*
A restauração pós-Bonaparte nasceu da frustração com a promessa descumprida da Revolução Francesa, que começou libertária e acabou no Terror. O que sobrou do fracasso das nossas melhores intenções foi essa sensação de insuficiência mental crônica, que nos condena a nem mudar o mundo nem aprender com a História. O socialismo “puro” nem foi puro nem deu certo onde foi mal aplicado. O capitalismo criminoso continua fazendo suas vítimas. A frustração envenenou tudo: da filosofia da História à teoria econômica.
*
O espírito da Restauração depois do terremoto bonapartista também determinou uma mudança no pensamento econômico. Adam Smith, por exemplo, cuja obra antes da Revolução podia ser confundida com pregação reformista (ele era até citado por Tom Paine, o Che Guevara da Revolução Americana) incluía uma “Teoria do sentimento moral”, passou a ser o profeta da economia como uma ciência moralmente neutra – “aética” é o termo preferido – e um herói da reação, como é até hoje, 229 anos depois da sua morte.
*
Enfim, somos todos filhos do século 19 – e da pior parte. Algo para pensar no banheiro.
Há quem diga que o único humanista autêntico é o canibal. Seu amor pela humanidade é o mesmo amor que temos por um bom bife, e é sincero. Já o humanismo, na sua forma não antropofágica, é mais difícil de classificar. O que é, afinal, um humanista?
A própria palavra humanismo tem interpretações e conotações diferentes. No dicionário, ela é descrita como uma doutrina segundo a qual o ser humano é o criador dos seus próprios valores morais. O que não ajuda muito.
Melhor, ou mais simples, seria dizer que para um humanista o ser humano é, ou deve ser, a medida de todas as coisas, e assim como o sistema métrico que mede o mundo teve origem nas dimensões do corpo humano, todos os sistemas éticos e morais do mundo devem obedecer à primazia do humano. Ou seja: ser humanista é não reconhecer nenhum determinante metafísico, nenhuma interferência divina, no ser humano e nas suas circunstâncias.
Mas estas interpretações não cobrem todos os significados de “humanismo”. A própria história do humanismo é discutível. Sua origem seria na Renascença, quando as trevas da Idade Média retrocederam diante da redescoberta do mundo clássico e não só as pinturas e esculturas de Michelangelo, Leonardo e os outros glorificaram o corpo humano redescoberto como a glória da Grécia antiga, berço da democracia e da filosofia, também voltou à luz do dia depois da noite medieval.
Mas a arte da Renascença foi toda feita em louvor e com o subsídio da Igreja, seus temas predominantes eram os santos, os mártires e os mitos da Igreja e dificilmente se encontraria um humanista, mesmo camuflado, entre os seus praticantes. E antes de se exaltar a Grécia antiga como um ideal de virtudes cívicas e civilização, é bom não esquecer que aquela era uma sociedade escravocrata, também um mau exemplo de humanismo.
O humanismo autêntico seria então um subproduto do Iluminismo do século 18, e sua origem estaria no pensamento iconoclasta de alguns magníficos hereges como Voltaire, Diderot, Descartes, aquela turma. Mas até hoje se debate a ligação direta entre o Iluminismo e o terror que se seguiu a revolução francesa, e se a idade da razão não gerou um monstro em vez de uma sociedade iluminada. O mesmo pode-se dizer de Marx e dos outros filósofos dedicados a mudar o mundo e a História em vez de apenas entendê-los, e cuja generosa proposta de igualdade e fraternidade universal desaguou no totalitarismo e no terror stalinista.
O escritor e satirista Karl Kraus, talvez o mais vienense de todos os vienenses, escreveu certa vez que na Áustria, nos estertores do império austro-húngaro, estava acontecendo um ensaio do fim do mundo. Na verdade, o que tomava forma em Viena no começo do século 20 era um novo mundo. O colapso do império dos Habsburg coincidiu com duas novidades de certa forma opostas no espírito europeu e na História: o fascismo e a psicanálise. Dizem que a história do mundo teria sido outra se Hitler tivesse se tratado com seu contemporâneo e conterrâneo Freud, mas infelizmente o encontro nunca se deu.
Freud era um humanista, mas assim como suas teorias sobre patologia e neuroses coletivas nada fizeram para deter o pesadelo nazista que se iniciava, suas descobertas sobre o inconsciente humano em nada ajudaram o humanismo. Pois o que ele dizia era que o ser humano não devia sua existência e seu destino à interferência divina, mas era regido por forças imateriais, quase que por uma metafísica interna, que desconhecia tanto quanto desconhecia os desígnios de Deus. O ser humano não era a medida de todas as coisas. O ser humano, seus recônditos obscuros e os mistérios do seu ego, eram a medida de todas as coisas.
O que significa ser um humanista hoje? Ao contrário dos canibais, que sabem do que gostam, não temos muita certeza que a humanidade nos apeteça, depois de tudo que ela aprontou. Continuamos preferindo a lógica e a razão a qualquer tipo de superstição ou pensamento mágico, mas com a consciência de que cada vez mais humanos preferem o contrário.
A divisão entre ricos e pobres aumenta, uma superprodução de alimentos convive com a fome endêmica no mesmo planeta há anos, a intransigência e o fanatismo religioso conflagram regiões inteiras - tudo prova que o humanismo está longe das sedes do poder e dos princípios da maioria. E muito longe de ser uma doutrina viável, ou mesmo um sonho para um outro tempo.
A solução talvez seja o humanismo se reconciliar com a metafísica e pedir ajuda à providência divina, para não desaparecer.
Vocês acompanharam. Primeiro, ele disse que o único fato grave seria a invasão dos celulares dos procuradores por um hacker. Sobre o conteúdo, silêncio. Depois, sem lograr materializar um bode expiatório nem encontrar respaldo legal para punir o mensageiro, alegou que as mensagens vazadas pelo InterceptBr seriam falsas ou adulteradas. E ainda que fossem verdadeiras, concedeu, nada tinham de ilegais.
Atolado em negaças e contradições, apelou para o seu último shazam: a teoria conspiratória segundo a qual imprensa e oposição se mancomunaram para favorecer a corrupção ou mesmo arruinar a Lava Jato.
Apelação bandida. Quero crer que só quem tem o rabo preso conspira contra a Lava Jato – e, por incrível que pareça, também contra os vazamentos, agora divulgados em cadeia. O que prevalece é a intenção de preservar a integridade da Lava Jato, apagar-lhe a imagem de uma operação judicial que parece ter virado uma holding ou uma sociedade secreta, para não usar correlatos mais próximos da esfera criminal e da avacalhação.
Assim como as denúncias contra o Banco Ambrosiano não destruíram o Vaticano, nem as pesadas críticas ao FBI e seu czar J. Edgar Hoover afetaram as atividades da PF americana, não há por que recear que imprensa e oposição possam – ou sequer pretendam – destruir a Lava Jato.
As únicas ameaças de extermínio feitas ou esboçadas até agora tiveram como alvo justamente o InterceptBr, contra o qual, porém, nossa Justiça nada pode fazer – e, se tentar fazê-lo, terá de explicar por que até hoje não conseguiu prender quem mandou matar Marielle nem desvendar o paradeiro do Queiroz.
Ora, direis, que Hoover, o lúcifer do FBI, desbaratou o gangsterismo na América. Confere. E que nem por isso ele foi alçado ao posto de secretário de Justiça, o ministro da Justiça de lá. Confere de novo.
Hoover só agia nas sombras. Liquidou Dillinger, prendeu Al Capone, perseguiu uma legião de foras da lei e espiões nazistas, mas suas exorbitâncias e patifarias, expostas à exaustão pela imprensa e políticos, o difamaram até a eternidade.
Ninguém mandou mais na América do que ele entre 1924 e 1972; mais tempo no poder que Stalin. Atravessou oito presidentes da República, 32 Congressos e 16 secretários de Justiça, 48 anos à frente de um império pessoal, a confundir segurança nacional com a segurança de sua própria reputação, a usar os G-men (agentes policiais do governo) sob seu comando para perseguir desafetos, falsos inimigos e quem mais sua paranoia anticomunista julgasse conspirar contra o “mundo livre”.
Hoover pressionou e chantageou presidentes, congressistas, celebridades, intelectuais, grampeou telefones, xeretou correspondências, franqueou os arquivos do Bureau ao macarthismo, até olheiros disfarçados de mordomos e jardineiros infiltrou em residências consideradas suspeitas. “Uma Gestapo”, na avaliação isentérrima do presidente Harry Truman.
De todas as perversidades perpetradas pelo ogro de Washington, com a ajuda de Clyde Tolson, misto de capacho, alter ego e bem-querer, nenhuma me enfureceu mais que o seu obstinado e mortífero acosso à atriz Jean Seberg.
Por mais volúvel que eu seja ou tenha sido, no meu altar de deusas cinematográficas apenas quatro nunca perderam a estabilidade. Esther Williams foi a primeira, rabicho infantil; sucedida por Ava Gardner e Marilyn Monroe, feitiços tão juvenis quanto Jean Seberg, coup de foudre instantâneo ao vê-la numa foto da revista Cinelândia, circa 1957, uma mocinha do Meio-Oeste (Marshalltown, Iowa) fazendo testes para seu primeiro filme, o desastroso Santa Joana, dirigido por Otto Preminger.
Aquele cabelinho curto, aquele rosto angelical, aquele olhar enigmático e maroto, aquela nuca – aquela nuca! – me fizeram esquecer Falconetti, Ingrid Bergman e todas as Joana D’Arc conhecidas e por conhecer. A paixão se consolidou quando ela virou Cécile (Bom dia, Tristeza) e chegou ao êxtase, de resto coletivo e universal, quando a vimos descer o Champs-Elysées oferecendo aos passantes o International Herald Tribune, em Acossado.
Primeira musa da Nouvelle Vague, Seberg apareceu em 36 filmes, a maioria medíocre. François Truffaut esperou o máximo que pôde para tê-la como Julie, a estrela de Noite Americana. Embora tenha vivido e filmado anos a fio na Europa, sua melhor performance dramática foi num filme americano, Lilith, de Robert Rossen.
Muito sensível e inteligente, politizou-se, fácil e intensamente, na França dos anos 1960-70. Fez doações em dinheiro a vários grupos envolvidos na campanha pelos direitos civis nos Estados Unidos. Ao colaborar financeiramente com o Partido dos Panteras Negras, entrou no radar do FBI, que passou a investigar até sua vida amorosa, por intermédio do Cointelpro, programa secreto de contrainteligência criado por Hoover para uma série de operações ilegais e clandestinas, mutreta há tempos reconhecida como terrorismo de Estado conduzido em nome da Segurança Nacional.
No início dos anos 1970, o FBI espalhou o boato de que ela estava grávida não do marido, o escritor Romain Gary, mas do líder black panther Raymond Hewitt. Plantado na coluna de Joyce Harber, do Los Angeles Times, e na Newsweek, destruiu o casamento da atriz e abalou seus nervos para sempre. O bebê, uma menina, nasceu prematuro, em 23 de agosto de 1973, e morreu dois dias depois. No funeral, em Marshalltown, Seberg fez questão de manter o caixão aberto para que todos verificassem que sua filha era branca, filha de Romain.
Após algumas tentativas de suicídio, em Paris, Seberg desapareceu na noite de 30 de agosto de 1979. Seu corpo foi encontrado nove dias depois, enrolado num cobertor no banco traseiro do seu Renault, ao lado de um frasco vazio de barbitúricos.
Tom, meu gato preto e branco, anda inquieto. O nome veio da homenagem que Rita, minha filha, quis fazer a Tom Jobim, afinal, ela é cantora. Tom, gato de rua, veio para substituir Marieta, que morreu há dois anos. Perceberam que Marieta foi outra homenagem àquela que na vida real é Severo. Agora, devo esclarecer que Tom anda esquisito desde que Chico morreu. Outra homenagem, desta vez ao Buarque.
Chico foi um daqueles gatos de rua, miúdos, rajados, espertos. Viveu 18 anos conosco. Até hoje não consigo traduzir a idade dos gatos em índices humanos. Fiz o que todo jovem faz. Em lugar de ligar para a Emilia, a veterinária que cuida de meus gatos há décadas, fui ao Google e descobri que os 18 anos do Chico equivalem a 88 anos. Com essa idade meu pai morreu e ainda estava lúcido e querendo conhecer Roma, o que nunca aconteceu, culpa que carrego. Como somos cheios de culpas.
Meus três gatos foram diferentes no comportamento. Chico era tranquilo, vivia sempre próximo, gostava de se enfiar debaixo das cobertas. Nos últimos anos, eu me sentava para ver televisão à noite, ele pulava em meu colo, ficava uns dez minutos me encarando fixamente. Jamais decifrei esse olhar. Depois, dava duas ou três voltas em torno dele, até encontrar uma posição e se aquietar e dormir. Tinha o costume de nos esperar, Marcia e eu, na porta, a qualquer hora que chegássemos. Como advinham que aquela chamada de elevador é a que nos vai trazer?
Por muito anos, ele me seguiu até a mesa de trabalho, saltava e sentava-se no teclado, depois se instalava na impressora e ali dormia, me olhando. Quando eu estava com algum problema na escrita, uma trava, uma dúvida, a busca de uma palavra, ele abria os olhos e assim ficava, até eu voltar a digitar.
Quando um desses grossos dicionários (ainda uso, folheio as páginas em busca de palavras) do Aurélio, do Houaiss ou o Michaelis ficavam sobre a mesa, ele corria e deitava-se sobre eles. Parecia entender que aquele era um de meus instrumentos de trabalho, que ali estava a fonte maior. Muitas vezes, abria o dicionário, olhava uma palavra qualquer e repetia para ele, fragor, manga, recinto, picardia. Ele jamais aprendeu, e olhem que foram muitas palavras.
Ele miava, dava alguns passos, olhava para trás, miava e na terceira vez eu sabia que queria água, ou desses biscoitinhos que têm feito a fortuna dos donos de pet shops. O ser humano neste século 21 adora celular, WhatsApp e catar cocô de cachorro na rua. A discussão é eterna, mas gatos não pedem que você os leve a passear, a caminhar na rua, e a levá-los para fazer xixi. Gatos vivem na deles. O mundo dos animais está polarizado também, dividido em nós e eles, cães, gatos.
Chico aprendeu a beber água na torneira. Ter achado lindo ele subir na pia, um dia, e beber água foi fatal, ele se viciou, mais do que alguém que fuma crack uma vez e nunca mais larga. Amigos se cansaram de receber posts do Chico bebendo água na torneira.
Apesar de tantos anos junto aos gatos, nunca decifrei o rabo e seus variados movimentos, por que o rabo engrossa de repente ou por que, em certos momentos, só agita a pontinha. Para que servem os bigodes? E é verdade que o ronronar dele significa que ele está feliz ou preocupado conosco? Verdade que ronronar acalma, alivia a depressão? Assim, será melhor ter dois gatos do que viver tomando Prozac e Rivotril?
Chico foi definhando mansamente, emagrecendo, os pelos mais duros, perdeu a agilidade de saltar. Um dia, caiu de costas ao querer subir para a pia. Jamais tinha visto um gato cair de costas, é de suas qualidades mais belas. Três semanas atrás fizemos uma rápida viagem. Chico já estava imóvel, inerte. Ao voltarmos, ele nos olhou, deu um miado fraquíssimo. Colocamos sobre um cobertor, fizemos uma carícia, ele parou de respirar. Minha filha disse que ele piorou demais desde que nos fomos. Parece que nos esperou para morrer.
Descobrimos em seguida um negócio curioso, o das cremações de animais. Telefonamos para vários e nos pediam de 500 a 1.500 reais para buscar o gato, cremá-lo e devolver as cinzas em uma caixinha “artisticamente” reproduzida. E nos atendiam com “meus pêsames mais profundos pela perda de seu adorado bichinho”. Eu, hein? Descobrimos o serviço oficial da Prefeitura, no Bom Retiro, onde os funcionários são gentilíssimos e cordiais. Gratuito. Ao menos algo funciona.
Desde que Chico morreu, Tom anda estranho. Fuça todos os cantos. Fica parado olhando para a escada, ou para o corredor, como que à espera do companheiro. Pula no beiral da janela, contempla a rua. De noite, fica do lado da cama e nos acorda, com miados agoniados. Quando come biscoitinho, levanta a cabeça a todo momento, olhando para a vasilha que era do Chico e deixamos ali, por enquanto. Tom sente a solidão e deve sentir falta das vezes em que infernizava o pacato e idoso Chico que, todavia, velho e experiente, dava uma virada ágil de corpo, no estilo de Jackie Chan, e o companheiro rolava surpreso.
“Paternidade ativa” é a expressão da moda. Como “empoderamento”, aliás, reflexo da paternidade ativa. Elogia-se aquele que pratica a ação denominada paternidade ativa. Que tipo não participa? A classificação é como se eximisse o pai de ter participação e responsabilidade na vida de uma (sua) criança. Ativar a paternidade é admitir que existe paternidade inativa. Ou seja, inexiste paternidade. A paternidade então é classificada entre ativa, semiativa, inativa, preguiçosa e burra. Alguns chamam de “pai consciente”, ou “pãe” (pai + mãe). Outros, de “pai mamífero”, uma aberração darwinista, já que leões comem sua prole, enquanto leoas caçam. Garanto que, na Idade da Pedra e Bronze, pais coletores, caçadores, construtores ou guerreiros formam a prova do sucesso e burrice humana, já que se deixassem as mulheres coletarem, caçarem, construírem e guerrearem, saboreariam com mais tempo as delícias da criação. Antes, o pai exercia uma atividade financeira apenas. Paternidade ativa é fruto da revolução industrial e emancipação feminina. Espantar-se com ela hoje em dia é o mesmo que se espantar com uma tripulação feminina na cabine de um Boeing. Mas, OK, sei o que querem dizer: existe ainda o pai que não troca fraldas do filho, que acha que é tarefa da mãe. Mas aí não é um pai inativo, é um desumano sobrevivente que virou pai. Não existe maior prazer do qual os homens do passado, meu pai, meus tios, meus avós, os pais, tios e avós dos meus amigos, nunca se lambuzaram: sentir o peso de uma fralda na mão, avaliar um cocozinho, ver a cor, preocupar-se se é devidamente denso ou indevidamente colorido “cheguei”, sentir o cheirinho de uma fralda nova, uma bunda limpinha com creminho hidratante, tomar banho junto, esfregar o sabonete de nenê na pele de nenê do nenê, limpar a bundinha, a barriguinha os bracinhos o pescocinho o sovaquinho do nenê, obrigá-lo a aguentar o jato d’água, agarrá-lo mesmo que queira voar dali, passar o xampu de nenê do nenê, ensiná-lo a fazer xixi no chuveiro, a limpar suas partes baixas, a reconhecê-las como partes a serem sempre limpas, segurar uma mamadeira, um bebê, enrolá-lo no corpo e sair por aí, com o rostinho dele colado no nosso peito, correr atrás dele, brincar, ensinar cores, números, bichos, frutas, quente e frio, uma música, colocar na cama, contar história, inventar, ler, contar piadas, fazê-lo rir, fazê-lo dormir, roncar e sonhar, para acordar com ele ao lado, sorrindo, o examinando e se perguntando quem é exatamente este grandão que me ama e eu amo tanto, que me faz rir, suar, me limpa, me mostra um monte de coisas, me fotografa o tempo todo, me leva para conhecer carro de bombeiro, imita o “baiúiu’ que ele faz, me leva a teatros que me assustam, a shows que me fazem pular, me busca na escola sempre feliz, me carrega no colo, quando me bate aquele sono, me mostra a cor dos ônibus, dos carros, imita o “baiúiu” da motoca, ensina coisas, impede que eu me machuque, ri quando eu caio, fala para eu não puxar o rabo do gato, não enfiar o dedo no olho do cachorro, na tomada, não pegar ovo, que é “peligo”, impõem limites que sempre tento romper, e que cuida tão bem de mim? Existe o pai que nunca experimentou ser um pai canguru e aquele sai com a criança amarrada por um sling (ou baby wrap) no corpo, malha que embrulha ou enrola um bebê na gente. Sai e ri à toa, caminha orgulhoso e cuidadoso pelas calçadas. Existe e aquele que afirma que passou o dia no escritório e não tem tempo, e o que dá o mamá, o papá, o baínho, veste a criança e sorri sem parar. Em Mad Men, a série de TV mais premiada dos últimos tempos, um casal dos anos 1960, Don e Betty, reproduz o casal cujo marido no passado age como agia meu pai, meus tios, meus avós, os pais, tios e avós dos amigos da minha geração, que têm mais de 50 anos. E este talvez seja o grande achado da série: apontar o que até há poucas décadas era rotina, e hoje nos espanta. Os pais não participavam dos partos dos filhos. Ficavam na antessala exercendo sua macheza com charutos fálicos, enquanto a mulher sofria solitária. Se o bebê chorava na madrugada, era a mãe quem saía da cama. Assuntos íntimos dos filhos cabiam às mulheres. Alimentar, vestir, dar pitos, eram coisas da mãe. E, claro, ele preferia que ela não trabalhasse. Seu mundo paralelo, o escritório, garantia prazeres não aprovados pelo núcleo familiar, mas incentivados pelo mundo dos negócios. Já não tem Darwin nisso, mas pura manipulação da força, união do poder masculino, executores de leis escritas por eles, opressão disfarçada com o apoio de religiões, fundadas e geridas por homens inspirados por seus profetas homens. Malvados - André Dahmer
Tal pai, tal filho - Antonio Prata
Não é uma questão subjetiva, que seria facilmente explicada por um psicanalista com termos como "projeção" ou "deslocamento" ou sei lá quais nomes dão os psicanalistas para casos semelhantes, é um fato objetivo, constatado por todos os que nos visitam ou veem as fotos no Instagram: meu filho é idêntico ao meu pai.
Não idêntico ao meu pai quando criança, mas idêntico ao meu pai, hoje: o mesmo sorriso irônico quando faz gracinhas, a mesma carranca furibunda quando é contrariado. Às vezes, indo espiá-lo no berço, temo encontrá-lo com um Minister aceso no canto da boca –então me lembro que o meu pai parou de fumar e respiro aliviado.
Sei que é normal eles se parecerem. Afinal, 25% dos genes do meu filho vieram do avô –e, por alguma razão, 100% desses genes resolveram se estabelecer na região que vai do queixo ao cocuruto–, mas que é estranho olhar pra um bebezinho de três meses e ver ali meu progenitor, de 69 anos, é. Tal semelhança, confesso, tem atrapalhado um pouco a nossa relação. Minha com o meu filho, digo. Minha com o meu pai, digo também.
Quando nasce um filho, o amor não é imediato. Pelo menos, no caso dos meus dois, não foi. Ao pegar minha primeira filha no colo, olhei-a nos olhos e pensei, assustado: "E agora, meu Deus, não temos nenhuma intimidade!".
Devagarinho, contudo, o amor vai nascendo. Você troca a fralda, passa pomada, pinga Rinosoro, nina o bebê revoltado às dez pras quatro da manhã e, mistério dos mistérios, quanto mais coisa chata você faz, mais o seu amor cresce, até o ponto em que se vê completamente apaixonado, descrevendo para uma plateia bocejante ou enojada os incríveis aspectos físico-químicos do cocô daquela manhã.
O problema do meu filho ser a cara do meu pai é que tá dando uma linha cruzada nos vínculos. Na última quarta, por exemplo, meu pai me ligou, lá pela meia-noite, pra falar mal do Corinthians, que perdeu pro Guaraní paraguaio e foi limado, ou melhor, "tolimado" da Libertadores.
Atendi mal-humorado. Por quê? Ora, porque eu estava há mais de uma hora olhando pra sua cara chorosa, quero dizer, pra cara chorosa do meu filho, em meus braços, tentando fazê-lo dormir. Como pode um senhor de 69 anos demorar tanto pra pegar no sono?
Eu já sabia, com a minha psicanálise de botequim, que o nascimento de um menino cria o tal triângulo edípico, que a criança se interpõe entre marido e esposa e que dá ciúmes daquele outro homem, mesmo sabendo que ele é um nenenzinho.
Agora, imaginem a minha situação: todo dia, várias vezes, flagro minha mulher dando o peito pro meu pai. Cantando pro meu pai. Dando banho no meu pai. E eu lá, quietinho, do lado, fazendo bilu-bilu –no meu pai.
Tá puxado. E, pra piorar, minha psicanalista mudou pra Argentina. Ela sugeriu fazermos sessões por Skype, mas tenho medo de minhas neuroses serem hackeadas e exibidas no Fantástico. Pelo visto, terei que me virar sozinho. Beleza. Vamos que vamos. Vai dar tudo certo.
Meu pai, quer dizer, meu filho, você pode ficar tranquilo, pois será cuidado com todo amor e carinho: mesmo porque, daqui a algumas décadas, deste saquinho besuntado de Hipoglós, sairei eu –e o mínimo que espero é reciprocidade no tratamento.
Adão Iturrusgarai
Não e Não - Antonio Prata
Assistindo a Nemo pela quinquagésima nona vez, meu filho enfia o dedo no nariz. “Não, filhote, dedo no nariz não pode!” Mal o reprimo e sou tomado por um desconforto.
Alguns nãos eu digo com convicção: não pode mamar às três da manhã, não pode regar o aparelho da Net, não pode comer bola de gude, por mais que elas insistam em imitar lindas uvas ou jabuticabas. Essas não são proibições vazias: se meus filhos não tivessem só dois e três anos, eu lhes explicaria direitinho as razões.
“Não pode mamar às três da manhã porque, se tiver tudo que quiser à hora que bem entender, você vai crescer achando que a vida é um Club Med all-inclusive e, quando o mundo começar a te negar todas as mamadeiras que inevitavelmente te negará, você vai ficar deprimidíssima e desorientada e vai terminar viciada em crack, em paçoca com Nutella ou coisa pior, tipo bingo – então abraça esse coelhinho e vamos dormir bem gostoso até amanhã, tá?”
“Não pode regar o aparelho da Net porque ele é elétrico e vai causar um curto-circuito e talvez pegue fogo no prédio e embora eu entenda que você queira regar todos os objetos à sua volta com o regador da vovó Tuni pra ver se eles crescem ou florescem, melhor se restringir ao vaso de girassol. (Além do mais, te garanto por experiência própria que os botões do aparelho da Net não são do tipo que se abrem em flores).”
“Não pode comer bola de gude porque embora o Homo sapiens seja onívoro, na ampla lista que inclui alface, boi, ouriço, ovo, alga, cogumelo e gafanhoto, não se encontra o vidro.”
Com relação a enfiar o dedo no nariz, contudo... Convenhamos: eu, você, o papa Francisco e o Wesley Safadão enfiamos, só não saímos por aí, tipo, admitindo aos quatro ventos num grande jornal de circulação nacional. Para ser coerente eu deveria dizer: “Filho: dedo no nariz é uma coisa que todo mundo acha nojento nos outros, mas não em si próprio, de modo que todo mundo faz e não conta. Esse é um pacto silencioso da nossa espécie. Um segredo guardado pelos 7 bilhões de habitantes do planeta”.
O problema de tal admissão é que ela me obrigaria a dar um segundo passo. “É o que chamamos de hipocrisia. Muito do que ensinamos a vocês é isso: hipocrisia. Quando a gente fala que tem que emprestar as coisas pros outros, por exemplo. Os adultos não agem assim. Veja: 1 bilhão de adultos têm um monte de coisas e 6 bilhões de adultos não têm coisa nenhuma, mas esse 1 bilhão não empresta as coisas, nem a pau. Quando a gente diz que só ganha sobremesa se comer brócolis, por exemplo, é outra tremenda hipocrisia. Ontem, o papai e a mamãe saíram pra jantar e racharam um cheesecake do tamanho de um jabuti depois de comerem x-salada e batata frita, bebendo cerveja.
Quando a gente diz que tem que falar sempre a verdade, então, é a maior hipocrisia de todas. A gente mente a torto e a direito. Se todos falassem a verdade, teríamos que admitir, por exemplo, que 1 bilhão de pessoas têm todos os brinquedos e não deixam os outros 6 bilhões brincarem, que a Gisele Bündchen põe o dedo no nariz ou que a mamãe do Nemo não está no trabalho, como sempre te digo, ela é devorada por um tubarão na primeira cena do filme, por isso toda vez nós começamos pelo minuto sete. Um mundo assim seria impraticável, não?”
“Ei, Dani! Tira esse dedo do nariz. Isso.”
Nani
Adams Carvalho/Folhapress
Gugu-dadaismo - Antonio Prata
Ser pai de crianças pequenas implica uma relação compulsória com o surrealismo. É como se, de uma hora pra outra (apesar da gravidez durar quase dez meses e levar uns dois anos pros filhos falarem, é de uma hora pra outra que você se descobre pai de dois seres humanos, como, aliás, acontece com tudo na vida, ontem mesmo eu estava na 4ª A, batendo as figurinhas da Copa União, agora estou checando on-line minha previdência privada, mas isso é tema pra outra crônica, abrir parênteses é sempre um risco, essas paredes aconchegantes nos fazem esquecer do mundo lá fora, assunto, aliás, para uma terceira crônica, enfim, voltemos ao início, não é porque vá falar sobre a infância e o surrealismo que precise escrever um texto cubista, pois bem, como eu ia dizendo, é como se, de uma hora pra outra) você passasse a conviver com um pequeno Dalí e uma mini Buñuela.
Não me refiro às grandes questões metafísicas, tipo "Todo mundo tem que morrer?" ou "Onde os bebês ficam antes da barriga da mamãe?" (essas são as questões dos pequenos Sócrates e Darwins), mas a diálogos mais prosaicos que transformam qualquer ida ao posto de gasolina numa cena de "O Anjo Exterminador".
Paramos no posto. Meu filho de dois e minha filha de quatro anos vão atrás, nas cadeirinhas. Ele pergunta: "A gente vai pôr gasolina no carro?". "Vai". "Muita gasolina?". "Muita!", digo, empolgado, sabendo que "muito" é uma das suas palavras favoritas, "Muito biscoito", "Muito filminho", "Muito suco no copo da Frozen", me pede, sempre, mas agora começa a chorar: "Muita gasolina não! Muita gasolina não!". "Por que não?". "Muita gasolina vai cair! Vai cair muita gasolina do carro!". "Não vai cair, filhote, tem tampa no carro, que nem no copo da Frozen", "Não! Não quero muita gasolina! Não quero muita gasolina!".
"Encho?", pergunta o frentista. Eu, sem perceber que meu cérebro está operando no modo "Irmãos Marx", respondo bem baixo, esperando que meu filho não ouça, "Enche", mas ele ouve, "Não! Enchido é muito! Não quero muito (sic) gasolina!". Repreendo-o, sério: "Olha aqui, a gente precisa chegar até a casa da vovó, a gente vai botar muita gasolina, sim!". Ele grita: "Pouca gasolina!". Eu, dedo em riste: "Muita gasolina!". Minha filha decide tomar uma posição na contenda e entra no choro: "Papai, ele não quer muita gasolina! Põe pouca gasolina!".
A caminho da casa da avó o silêncio é pétreo. Ele queria pouca gasolina. Eu pus muita. Ambos sabemos que o traí. Alguns minutos mais tarde, minha filha resolve sair da trincheira. "Papai, o que é a bolinha da água de bolinha?". "É ar, filhota". "Não é não, papai. O ar a gente não vê e as bolinhas a gente vê". Depois do raciocínio mais complexo de que já fui capaz, respondo: "Acho que o que a gente vê não é o ar das bolinhas, mas a água em torno do ar". Fico orgulhoso da minha resposta. Há nela qualquer coisa de zen budismo. Minha filha, contudo, parece encarar os mistérios da existência de modo mais cartesiano e retoma o choro: "Não, papai! Não tô falando da água! Tô falando da bolinha! Do que que é feita a bolinha?!". Encorajado, meu filho se junta a ela: "Eu não queria muita gasolina!", "Não é de ar a bolinha!", "Eu odeio muita gasolina!", "Não dá pra ver o ar!", gritam, indiferentes ao pai, que, como se fosse a coisa mais normal do mundo, sobe a Rebouças cantando "I sipi ni livi i pi/ Ni livi pirqui ni qui/ Ili miri li ni liguii/ Ni livi i pi pirqui ni qui/ Mis qui chili!".
Catarina Bessell/Folhapress
O sacolejo no canguru e o mala da manhã – Gregorio Duvivier
São seis da manhã e minha filha acordou. “Agora é com você”, minha mulher me diz, com um olhar fulminante de quem virou a noite amamentando. “Dá teu jeito.” Minha filha dorme bem, mas pra isso ela precisa de sacolejo. Não um balanço, como o Bebeto fez com seu bebê imaginário na Copa de 94. Tampouco funciona chacoalhar como se chacoalha um drinque numa coqueteleira (o resultado nesse caso vai ser uma espécie de piña colada no seu ombro). Ela gosta mesmo é do sacolejo, aquele balanço irregular e imprevisível da caçamba de uma picape descendo uma ladeira de paralelepípedo. Na falta de uma caçamba, serve um passeio no canguru, aquela mochilinha porta-bebês. Junto com o passeio, o batuque. Lá em casa, nenhum ritmo atingiu a eficácia da marchinha. “Foi Deus que te fez formosa”, canto, percebendo tarde demais o absurdo da frase. Ela não se importa. Dorme sorrindo, imaginando, imagino eu, o Carnaval. Aproveito então pra comer um queijo-quente da vitória. Os atendentes da padaria já me conhecem e nem estranham quando, do nada, preciso voltar a sambar. E ela volta a dormir. Até que chega o chato das sete da manhã. Não conhecia, antes da paternidade, o chato das sete da manhã. Acostumado à vida boêmia, me familiarizei desde cedo com o mala das três, que senta na sua mesa com o nariz coçando e altos projetos de documentário que nunca vão acontecer. Reconheço de longe o mala das cinco, que não articula nem o próprio nome mas quer discutir a relação (e vocês mal se conhecem). Passei mais tempo da vida em bares do que em padarias. Não tinha me familiarizado com o cardume de chatos em roupas de ginástica que irrompe no balcão ao raiar do dia. Com olhar preocupado, o chato das sete interrompe meu queijo-quente: “Esse negócio não tá sufocando ela?”, diz, se referindo ao canguru. “Sim, tá sufocando ela. Inclusive essa é a ideia, chama Child Suffocator, mas ela fez por merecer ser sufocada”, penso em responder, mas não tenho coragem. “Ela adora”, respondo. Silêncio. “Mas tem que ver, hein?”, o mala insiste. “Ver o quê?”, pergunto. “Tem que ver isso no médico, se não sufoca.” “Pode deixar, vou ver”. “É um perigo esse negócio.” “Não é não.” “Ah, com filho todo cuidado é pouco.” Respiro. “Verdade”. Silêncio. E o mala: “Cadê a mãe dessa criança?” “Eu matei. Sufocada. Quem mandou cochilar no canguru?”
Limpando manchas com a saliva - Fabrício Carpinejar
Eu fiz aquilo que sempre odiei. Notei uma mancha de pasta de dente no casaco do abrigo de meu filho antes da saída para a escola e tentei limpar com a saliva. Foi um gesto impensado, passional, visceral. Quando vi, já raspava a unha no tecido. Havia desaparecido o pedágio do pudor dos pensamentos e segui com os braços em alta velocidade.
- Que é isso, pai?
Ele me censurou e, então, caí em mim. Acordei do transe paterno, do coma do instinto que atinge os bichos com as suas crias. Resmunguei uma desculpa, mas ainda estava, mesmo errado, me sentindo convicto do meu ato. Veio a confusão de lembranças: ser pai é voltar a ser filho.
Lembrei que a mãe tinha a mania de tirar alguma mancha do meu uniforme escolar umedecendo o dedo em sua boca. Assim como ela virava as páginas das revistas nas salas de espera dos consultórios. Achava nojento. Preferia ir para a aula sujo a ir com o casaco cuspido. Não me faziam mal manchas de café ou do Nescau, justificáveis, eu me incomodava com a esfregação improvisada. Jamais sonhei que estaria no outro lado do balcão da alma, realizando o que abominava. Jamais imaginava que, de vítima, viraria protetor.
Mas a vida propõe a mudança generosa de lugares. Eu só não queria o meu filho entrando na sala deselegante. Ele pairava acima dos meus nojos e preconceitos. Não teria mesmo como me controlar. A educação supera condicionamentos e medos e somos mais do que a nossa mera identidade.
Não sofro com a fama de chato que possa receber por minhas tempestuosas manias.
Uma hora ou outra, o feitiço atingirá o feiticeiro. O que mais odiamos, com o tempo, será o que mais amaremos. Eu amo o que odiava. Amo fazer coisas de meus pais que odiava neles. Amo ser hoje os meus pais. Com os hábitos invasivos de mexer no cabelo dos filhos de repente, para ajeitar o penteado, ou de me agachar do nada para arrumar as bainhas das calças presas nas meias.
E apanhando até terminar as tarefas: eles estapeiam as minhas mãos quando sou frenético pente ou começam a caminhar quando sou imóvel engraxate. A resistência deles com "para, pai" ou "não precisa disso" aumenta a minha ternura. Experimento cenas patéticas e ridículas publicamente.
Surgem relâmpagos de cuidados que não sei frear. Riscam o céu de minhas veias. O clarão impulsiona o corpo e ele simplesmente obedece. A impressão é de que morreria se não fizesse. Chamava a minha mãe de dramática e agora divido o palco com ela na ópera do cotidiano.
Talvez o zelo morasse em mim desde pequeno, esperando a paternidade para aflorar.
"Alike" é uma animação dirigida por Daniel Martínez Lara & Rafa Cano Méndez.
O mistério do cofre de meu pai - Fabrício Carpinejar
Meu pai tinha um cofre. Ficava atrás de um quadro do Vasco Prado, em nossa antiga casa na Rua Corte Real, em Porto Alegre (RS).
Ninguém conhecia a senha, a não ser ele.
Ninguém enxergava o que ele colocava lá.
Imaginávamos maços de dólares e sacos de cruzeiros. Imaginávamos, eu e os irmãos, que ele alimentava uma montanha de moedas do Tio Patinhas. Que usava uma pá para tirar o excesso e nos repassar a mesada que gastávamos com balas Xaxá no armazém da esquina.
Quando ele mexia no esconderijo, não podíamos permanecer perto. Chamava a nossa mãe para nos levar embora. Era uma questão de segurança.
Um dia, o Rodrigo apareceu com estetoscópio de médico para ouvir o que tinha dentro. Outro dia, o Miguel bateu com um martelinho para verificar a profundidade do fosso. E ainda teve um dia em que a Carla arriscou uma combinação a partir da data de aniversário do pai, não deu certo e quase fomos pegos.
O segredo durou minha infância inteira. Até nossa residência ser assaltada enquanto veraneávamos em Pinhal (RS).
Assaltantes entraram pela janela do banheiro. Entortaram as grades. Levaram a televisão preto e branco e grande parte dos eletrodomésticos.
Ao voltar da praia, meu pai – percebendo a casa depenada – correu em direção ao escritório. Aproveitamos o desespero para ir atrás. Não seríamos impedidos naquela hora trágica.
Largamos as malas no meio do corredor e seguimos a sombra paterna.
O cofre está escancarado. A porta de metal finalmente aberta, estouraram o disco de acesso.
O pai pôs, com extremo cuidado, sua mão no interior do quadrado na parede. Lembro o suspense, a minha respiração parou.
E trouxe do fundo do buraco seis espirais, seis cadernos amarelados.
– Ufa, não levaram!
Carla, a irmã mais velha, perguntou o que era aquilo, pois aquilo não era dinheiro.
– Meus livros de poesia! – o pai respondeu.
Ele usou o cofre para guardar o que possuía de mais precioso: sua obra inédita.
Antevejo a decepção dos ladrões ao puxar um amontoado de versos. Tanto trabalho para explodir o cofre e só acabariam mais cultos e ricos de espírito.
Mergulhamos em estado de choque. Tampouco cogitávamos a hipótese de ser algo diferente do que uma poupança.
O episódio transtornou o meu modo simplista e direto de entender as pessoas. Cada um tem sua fortuna misteriosa. Algo que é somente valioso pelo sentimento e que não tem como ser valorizado por quem é de fora: um brinco dado pelo marido, uma compilação de receitas herdada da avó, um álbum de figurinhas, uma caneta tinteiro, uma camisola.
Não menosprezo os objetos da casa dos outros. Não jogo nada fora que não seja meu. Toda recordação pode ser de amor, e o amor é um cofre onde nos protegemos do esquecimento. Malvados - André Dahmer
Prontuário de meu pai - Fabrício Carpinejar
Meu pai, 79 anos, estava com pressão alta e o levei para a emergência do hospital. Ele foi conduzido para a enfermaria e fiquei com o seu celular e a sua carteira. Na doença, não existe posses. Era o seu responsável pela primeira vez na vida. Precisava preencher o prontuário médico. A atendente me alcançou a folha alertando que se tratava de perguntas simples. Peguei a caneta e mordi a tampa, em vez de deslizar a tinta na página.
- Biotipo sanguíneo?
Eu não sabia. - Alergia a medicação? Eu não sabia.
- Já teve sarampo, caxumba, catapora?
Eu não sabia. - Realizou alguma cirurgia?
Eu não sabia. - Vem usando medicação?
Eu não sabia. Vi que eu não conhecia o meu pai. Ele que me conhecia de cor e teria facilidade em preencher qualquer ficha a meu respeito.
Mesmo possuindo quatro décadas e meia de oportunidades, o pai surgia como um desconhecido íntimo. Um anônimo. Eu não me esforcei em descobrir quem me cuidava durante todo esse tempo. Nossa relação foi uma via de mão única.
Terminei reprovado no teste de filho. Deixei o teste em branco, para o meu constrangimento. A atendente tentou disfarçar o desconforto: "Depois perguntamos para ele".
O prontuário médico tornou-se o meu obituário filial. Eu me dei conta de que nunca me preocupei em desvendar quem habitava a função "pai", em determinar as suas escolhas, em revelar a pessoa atrás da roupagem familiar.
Meu pai veio com uma encomenda pronta quando nasci, e jamais desfiz o embrulho para buscar o que havia dentro. Não desfrutava de condições de responder nada por ele, pois o reconhecia como eterno provedor, uma fortaleza inexpugnável, onde me socorria em caso de necessidade. Só eu pedia ajuda, não ajudava. Só eu cobrava afeto, não devolvia. Só eu esperava recompensas, não observava também a sua carência e sua fragilidade.
Não questionei o que ele viveu antes de mim. Não sabia se ele teve cachorro, qual o nome, se ele sofreu com a perda do mascote, se sofria castigo na infância, qual o seu melhor amigo, se dançava nas festas da escola ou permanecia encostado na parede, se nadava, se andava de bicicleta, qual a carreira que sonhou, qual o seu pior trauma, qual a sua maior felicidade, se içou pandorga, se pescou, se participou de acampamento, com o que brincava, se jogava futebol, qual a sua posição, se terminava como goleiro por não fazer gol, se dividia o quarto com os irmãos, com qual idade começou a ler e a escrever.
Eu simplesmente me conformei em ser o seu filho, jamais fui seu amigo.
VIVER DÓI - FABIANE LANGONA
DIA DOS PAIS NA CASA DO FIMOSE! (Dois episódios clássicos)
Meu próprio pai - Piangers
Quando eu ainda tinha mãozinhas gordas e bracinhos fofos, me lembro de levar até a minha mãe meu cobertor favorito. Ela chorava na cama uma desilusão amorosa. Lembro que ela sempre chorava quando eu lhe pedia pra ter um pai. Ela chorava quando estávamos sozinhos em casa. Percebi que era algo forte demais pra pedir. Ter um pai. Eu queria ter um pai que me pegasse no colo na saída do colégio. Que me ensinasse a fazer uma pipa. Que passasse a mão na minha cabeça, como via o pai dos meus amigos fazer. Que me assistisse em apresentações escolares. Eu queria ter um pai porque todo mundo tinha pai menos eu. Porque eu queria ser normal.
É algo injusto de se pedir pra uma mãe. Percebo só agora. Ela se esforçou pra manter relacionamentos nos quais sofria, pra me dar um pai. Aguentou traições. Finalmente, convenceu um namorado a me registrar no cartório. Era pra ser meu pai. Mas nunca tive pai. Nunca dormi abraçado com um pai. Nunca ouvi "eu te amo" de um pai. Essas coisas que os pais fazem com os filhos. Nunca tive um pai me trazendo remédio pra tosse. Aprendi a andar de bicicleta depois de velho, com um amigo. Aprendi a dirigir com 20 anos. Nunca torci para um time de futebol, realmente. Essas coisas que os pais fazem com os filhos.
Cresci inseguro. Como todo inseguro, agressivo. Tinha problema com autoridade, especialmente masculina. Desafiava professores na faculdade. Desrespeitei chefes nos meus primeiros empregos. Sentia a necessidade de agredir os outros com comentários malvados, com piadas pesadas. Acho que me transformei em uma pessoa desagradável. Tive a sorte de conhecer uma mulher especial, de me reconectar com a minha mãe, de ter duas filhas que me ajudaram a ser quem eu posso ser. Não precisava mais agredir ninguém. Me dedicar a elas me curava todos os dias.
Não faz muito tempo, ouvi uma história linda de um pai. Quando o filho de sete anos brincava de skate, caiu, ralou o joelho e começou a gritar de dor e susto. Naquele momento, o homem me contou que se lembrou dele mesmo, quando criança, ralando o joelho e ouvindo do pai: "Não chora! Homem não chora! Engole o choro!". Com seu próprio filho, ele resolveu fazer diferente. Abraçou a criança e disse: "Pode chorar, filho. Eu sei que dói. Papai está aqui". E enquanto a criança parava de chorar, o pai chorava, emocionadamente. Lembrando do seu próprio pai. Imaginando seu próprio pai fazendo diferente. Ele estava curando seu trauma. Ele estava abraçando ele mesmo, quando era criança.
Quando durmo abraçado com minhas filhas estou dormindo comigo mesmo, quando eu era criança. Estou sendo o pai que eu não tive. Estou sendo meu próprio pai. Estou sendo alguém que minha mãe sempre quis pra ela. Alguém que sempre quis pra mim mesmo.
Um amigo disse pro filho, dia desses, antes de dormirem, que o amava daqui até o céu. O garoto ouviu, levantou as sobrancelhas, calculando a distância impressionante. Olhou pro pai e, na tentativa de expressar amor de volta, falou: Eu te amo tipo daqui até o ventilador.
Somos uma geração de pais carinhosos. Dizemos "eu te amo" como quem diz "bom dia". É tanto "eu te amo, filho" que tenho medo que não valorizem. Às vezes, inventamos novas formas de comparação. "Amo você daqui até a lua." "Amo você mais que tudo." "Amo você 10 vezes infinito." Já ouvi tantas vezes de minhas filhas e valorizo cada uma delas. Todas me dão água nos olhos. Abracei-as mais do que abracei minha mãe, acredito. Tenho mais fotos delas, guardadas em HDs e com backup na nuvem, do que as câmeras de 24 poses jamais conseguiriam tirar.
Em geral, tivemos pais mais distantes. Queriam que fôssemos durões. Meu avô trabalhava na roça, cortou cabelo e dirigiu caminhão pra dar estudo pra minha mãe. Esta, por sua vez, criou sozinha o filho e sustentou a casa com salário minguado. A vida, realmente, era mais séria pra eles. Nada de delicadezas. Nada de desperdício de comida.
Nada de tablet e iogurte. Nada de "eu te amo" terça à tarde. Abraços eram ocasiões especiais, Natal e olhe lá, que a vida não é fácil e você tem que estar preparado. Mas, quando vinha um carinho na cabeça, rapaz, a gente ficava bobo. Um pouquinho de colo, quando a gente já era grande demais, era o céu. Beijo de boa noite, paraíso.
Uma amiga contou que o pai nunca lhe disse "eu te amo". Ela procurava carinho, ele não era muito de papo. A conversa era toda com a mãe. O pai era comunicado e comunicava, não havia diálogo.
De vez em quando, ele botava as crianças pra dormir. Era assim: os três filhos de banho tomado deitavam, cada um em sua cama. O pai entrava no quarto, o silêncio respeitoso tomava conta do lugar, e o senhor começava a desenrolar os mosquiteiros que ficavam em cima da cama deles. Estendia a proteção cuidadosamente sobre os filhos, sem dizer uma palavra.
Olhava com atenção pra ver se nenhum mosquito tinha ficado do lado de dentro. Verificava se não havia frestas para outros mosquitos entrarem. Fazia isso para cada um dos três filhos, sem trocar uma palavra. Depois de tudo pronto, ia até a porta e dizia: "boa noite". As crianças respondiam: "boa noite". O pai se ia. E as crianças sentiam como se tivessem ouvido "amo vocês".
Que trabalho inglório ser pai. Tenho
certeza de que, todos os pais que leem isso, concordam que foi a melhor coisa
que nos aconteceu. Nos deu significado, alegrias, memórias maravilhosas. Mas
que trabalho inglório! Vocês hão de concordar!
A começar com o bebê. Apenas chora e
suga e produz xixi e cocô. Apenas devolve todo o leite mamado na sua roupa.
Você vira noites, troca fraldas, atende a todos os gritos, corre para dar conta
de tudo, e o bebê nem pra aprender a falar "obrigado". Uma amiga, depois
de dar de mamar por dias sem nenhuma recompensa, percebeu que o neném ensaiava
um sorrisinho. "O primeiro sorriso dele!", pensou. Para descobrir,
segundos depois, que era apenas mais um cocozão saindo na fralda.
Depois vem a infância. Você vai a
restaurantes apenas para ver sua comida esfriando enquanto a criança corre pelo
ambiente aterrorizando garçons. Passam os dias e nada parece estar bom. O
infante não valoriza nada: sua comida está ruim, sua roupa pinica, o local está
chato, papai e mamãe só querem dormir! Acordem! Já é seis da manhã!
Mas, calma, que piora. Virá a
adolescência e o desprezo completo. A falta de mão dada, o nojo de abraço, o
desdenhar dos carinhos. O constrangimento em ser visto ao lado dos pais em
público, a vergonha de todo e qualquer comentário dos pais, que, de um dia pro
outro, viraram antigos e patéticos. E nem um obrigado recebemos por tudo o que
fizemos.
E tudo é estudo e amigos e namoradas,
e, quando você vê, o bebê vai morar sozinho ou fazer intercâmbio, ou casar.
"Mas você é muito novo!", diremos para nossos filhos de 40 anos. Eles
não telefonarão nem aos domingos, estarão na Europa durante as datas
comemorativas, receberemos vídeos mal filmados no WhatsApp.
E, então, vêm os netos. E os filhos
voltam a aparecer. E querem que a gente cuide dos pequenos para que possam
resolver coisas do trabalho ou ir ao cinema. E cuidaremos felizes daquelas
crianças ingratas, mas fantasticamente fofas. E nossos filhos virão pegar seus
próprios filhos com pressa, as crianças gritando, aquela confusão que
preencherá a vida. E, já indo embora e acenando, sem nem olhar pra gente
direito, nossos filhos gritarão de longe: "Obrigado pela força!".
Gosto
desta história e a repito tanto que não sei se já contei aqui. Quando eu e a
Ana estávamos no hospital, após a nossa primeira filha nascer, ela com dores da
cesariana e com dificuldade para amamentar, a noite chegou e, com ela, um
cansaço gigantesco. A Ana me pediu: Cuida do bebê que eu preciso dormir, e eu
respondi: Relaxa!, porque, obviamente, eu não sabia como era difícil cuidar de
uma criança. Quando me atrapalhei com as fraldas e o choro, fui até o corredor
do hospital com o bebê no colo e pedi para que a enfermeira me ajudasse. Ela
disse que o trabalho dela era ajudar em caso de problema de saúde, apenas.
Agora é com você, ela disse, percebendo minha cara assustada.
Essa
frase virou uma espécie de mantra. "Agora é com você". É uma
lembrança constante de que não posso delegar a responsabilidade da criação de
um filho pra outra pessoa. Agora é comigo. Não é com os avós nem com babá, nem
com a Galinha Pintadinha. Não é com sua esposa, com a professora ou com a
escola. Agora é com você.
O trabalho pode ser
em equipe, mas a contribuição do resto do time não pode ser motivo pra fazer
corpo mole. Agora é com você. Se o avô mora perto, ótimo. Se a escola é
perfeita, maravilhoso. Mas é com você. É com a gente.
Se nossos filhos vão ou
não estar preparados para se comportar civilizadamente em sociedade, será nosso
exemplo que dirá. São nossas conversas sobre os assuntos mais complicados que
irão esclarecê-los. Será nossa participação efetiva que garantirá boas notas.
Será nossa atenção em todos os sinais que eles nos passam que os protegerão dos
perigos do mundo. Que são muitos.
Percebo tantos pais
reclamando da escola, sem perceber que aquilo que acontece em casa tem um
impacto maior no comportamento e no bem-estar da criança. Percebo tanta gente
indignada com o que aparece na televisão, sem entender que ninguém é obrigado a
ligar o aparelho. Percebo pais sem tempo nem paciência, querendo delegar
responsabilidades que são suas. Quanto mais tempo você perde se abstendo, maior
trabalho terá no futuro. Respire fundo, segure o bebê e reconheça: agora é com
você. Calvin- Bill Watterson
O nome certo para as coisas - Piangers
Uma mulher me apresenta a filha como sendo "filha do coração". Presumo que seja adotada. Estão juntas há tanto tempo, pergunto se só "filha" não seria o bastante. "É", ela diz. Um homem me apresenta dois garotos, "meus enteados, mas é como se fossem meus filhos", ele diz. "Então, são filhos", respondi. São filhos da sua companheira, mas se você os trata como filhos, se eles chamam você de pai, oras, pra que "enteados"?
Uma mãe me conta que o pai dos seus filhos mal aparece, mas que o padrasto deles é atencioso e muito participativo. "Este é o pai, então", eu disse. Ela não entendeu. "Não, esse é o padrasto. O pai de verdade nem participa de nada", me respondeu. "Se não participa, não é o pai de verdade. O pai de verdade é esse. Se participa e faz tudo, se é companheiro e carinhoso com as crianças, esse é o pai. O outro é um tio", disse eu.
Precisamos dar o nome certo para as coisas. Se é como se fosse um filho, é filho. Se é como se fosse um pai, é pai. Se é como se fosse um estranho, é estranho. Por isso, costumo dizer que não tenho pai. Porque não tenho. Tem um homem que deu uma célula - uma célula! - pra minha mãe, e ela transformou aqui nisso que eu sou. Ela fez tudo. Tive mãe. Não tive pai.
Quando alguém me diz "pai de verdade" pra se referir a um pai que não participa, ou "filho adotivo" pra se referir a um filho de verdade, doem meu ouvido e o peito. Quando um filho ouve o tempo todo que é adotivo ou enteado, se sente menos filho. Quando um pai ouve o tempo todo que é "como se fosse um pai", é menos pai.
É tanta família misturada hoje em dia, buscando ambiente de amor e afeto, que é muito injusto chamar pelo nome errado. A gente tem que dar o nome certo. "Filho de coração", "enteado", "pai adotivo", esses termos distanciam. Filho é filho, e chamá-lo assim é uma declaração de amor. O mesmo vale pra "pai" e "mãe". São declarações de amor. É eu te amo disfarçado de substantivo. É o nome certo para as coisas.
Gabriel Moon - Fábio Bá
Não existe tempo de qualidade - Marcos Piangers
Você
já deve ter ouvido essa história de "tempo de qualidade". É um termo
que pais ocupados inventaram para dizer que, apesar de não terem tempo para os
próprios filhos, o pouco tempo que têm é o que chamam de "tempo de
qualidade". Você sabe: o pai que está sempre em alguma reunião importante,
a mãe que está sempre no celular, o casal que está sempre viajando e deixa os
filhos com a babá. Eles não têm tempo para as bobagens da criação de filhos.
Mas o pouco tempo que têm é um "tempo de qualidade".
Tempo
de qualidade é essa mentira que a gente conta pra gente mesmo pra justificar
nossos únicos 15 minutos por semana ao lado dos nossos filhos. O que dá pra
fazer em 15 minutos? Nada muito formidável. Mas se conseguirmos trocar meia
dúzia de palavras, se tivermos um ensinamento profundo que tiramos de um texto
que lemos na internet, se conseguirmos passar alguns segundos sem brigar,
reclamar ou gritar com nossos filhos, isso é o que podemos chamar de
"tempo de qualidade".
Passamos
a semana correndo, atendendo telefone, lendo e-mail, fazendo reunião,
terceirizando a educação dos nossos filhos, levando-os para o contraturno, a
natação, o futebol, a casa da vó, a colônia de férias, e, quando estamos com
eles, naqueles pequenos minutinhos, fingimos que estamos realmente lá,
prestando atenção genuína. Mas, como temos pouco tempo junto, aquele tempo não
é realmente o que se pode chamar de "qualidade". Porque não existe
qualidade em uma relação que não tem intimidade. E intimidade se conquista com
o tempo de quantidade. Não tem outro nome, é horas mesmo. Dias. De preferência
muitos dias calmos e sem muita coisa pra fazer. Sábados e domingos, mas também
terça-feira à noite e segundas-feiras bem cedo, café da manhã juntos,
confidências sem julgamentos.
Pra
ter tempo de qualidade a gente precisa, antes, ter tempo de quantidade. Longas
horas dedicadas ao prazer de simplesmente estar junto. Qual foi a última vez
que você não tinha nada pra fazer? Qual foi a última vez que passeou de
bicicleta? Que fez uma pintura pra dar de presente pra alguém? Que deitou na
grama? Qual foi a última vez em que você leu pro seu filho? Qual foi a última
vez em que inventaram uma brincadeira nova? Qual foi a última vez em que você
teve tempo de qualidade?
Anita dormiu no sofá, então no caminho da escola percebi algo engraçado: seu rosto estava marcado com aquelas listras do estofado. Quando vamos pra escola caminhando, ela sempre está feliz, fazendo com as mãos dancinhas e coreografias. Assim que falei que ela estava marcada no rosto, ela me olhou preocupada, jogou todo o cabelo na cara, passou a caminhar corcunda. Relaxa, não precisa ter vergonha, já vai sair, eu disse, percebendo pela primeira vez suas inseguranças adolescentes. Ela continuou cabisbaixa. O que eu falei pra ela, então, foi mais o menos o seguinte. Vou abrir um novo parágrafo.
A gente demora décadas pra entender quem a gente é de verdade e, quanto mais relaxado a gente for nesse processo, mais fácil fica se encontrar. Não importa o quanto você é bonita ou popular, se não se sentir bonita e popular pra você mesma será infeliz. Cansei de ver pessoas perfeitamente arrumadas, impecavelmente lindas e extremamente inseguras. Cansei de ver pessoas esquisitas, de quem todo mundo gosta, porque estão bem resolvidas consigo mesmas. O que ninguém gosta é de gente que tem vergonha de ser o que é: e quando a gente é adolescente a gente quer ser tudo, menos a gente mesmo.
Se alguém te perseguir na escola porque você é diferente, só existe uma solução: ser abusadamente feliz. Não há melhor vingança do que esta. Ser feliz. Vale pra todo tipo de gente: pessoas que levaram um pé na bunda, pessoas que foram demitidas, pessoas que não foram aceitas em um grupo social. Seja abusadamente feliz. Tenha uma vida brilhante. Essa é a única forma de se vingar de qualquer pessoa: ser tão feliz que ela vai se contorcer de inveja. Porque você não está nem aí pra opinião dela, porque você está mais interessada em quem você é pra você mesma e para as pessoas que genuinamente gostam de você.
Timidamente ela voltou a cantarolar uma música, fez mais umas dancinhas e entrou portão adentro saltitando. Me lembrou um menino ruivo, tímido e sardento, cheio de espinha na cara, inseguro e com medo do que ia encontrar na escola. Entrando na escola aos 11 anos de idade, 25 anos atrás. Querendo que alguém tivesse dito a ele tudo que eu disse pra minha filha. E, ao mesmo tempo, sem saber se adiantaria pra alguma coisa.
Alexandre Beck - Armandinho
O que acaba com a amargura de um homem? - Ruth Manus
Era um chinês elegante, sem sombra de dúvida. Feio, porém elegante. Era calvo. É raro imaginar, quando se menciona um chinês, alguém sem cabelo, mas este, de fato, não os tinha. Estava frequentemente ali, no restaurante do hotel lisboeta, na mesma mesa, na mesma cadeira, no mesmo horário. Sentava-se de frente para a televisão sintonizada na CNN e observava as notícias com ar severo. Aliás, ele não tinha outro ar além do severo. Seu invariável terno cinza era bastante mais claro do que o astral que ele evidenciava. Era magro e alto, com um belo porte, mas tinha vincos marcados na testa, porque ela estava constantemente franzida. Era como se ele estivesse sempre descontente com alguma coisa, formando aquela ruga entre as sobrancelhas, que as pessoas descontentes sempre têm. Via-se que ele ocupava algum cargo importante. O hotel, o terno e o astral cor de carvão não mentiam. E seu ar tão compenetrado nas desgraças cotidianas anunciadas pela CNN alocava-o facilmente em alguma multinacional à qual cada movimento na economia e na política norte-americana interessava muito. Sem dúvidas, era presidente, CEO, CFO ou qualquer outra sigla moderna que representasse poder e angústia. Ninguém gostaria de tê-lo como chefe. A sensação era a de que ele, apesar dos gestos delicados para espetar os pedaços de abobrinha, poderia, a qualquer momento, fechar aquela mão magra e longa, dando um soco silencioso na mesa, que assustaria muito mais do que berros escandalosos e raivosos de figuras menos austeras. Era um homem silencioso. Sua voz não existia. E eu tinha medo dele, apesar de ele nunca ter me dirigido um único olhar naquele restaurante que dividíamos algumas vezes por semana. Perguntava-me se a total ausência de leveza ou de qualquer indício distante de sorriso era fruto de uma infância dura, de um regime totalitário, de uma carreira sofrida ou, simplesmente, de uma personalidade amarga. Julgava-o absolutamente incapaz de sorrir. Estava certa de que era um homem que não sabia sentir. Que era composto unicamente por regras, horários, metas e planilhas. Até que aconteceu. A garota entrou pela porta automática do hotel, com a pressa típica dos 17 anos. Era bonita. Alta, rosto branco e oval, rasgado por um par de olhos asiáticos perfeitamente enfeitados com delineador preto. Os cabelos lisos tinham as pontas pintadas de vermelho e as longas pernas eram coroadas por um par de botas coturno. Vinha apressada em direção ao restaurante, com sua mochila roxa pendurada em um ombro só, quando ele a viu. Ela, sorrindo por inteira, disse “Pai!!”, bem alto, em chinês. Eu não sei como se diz pai em chinês. Mas qualquer um, croata, indiano ou uruguaio, identificaria que aquela expressão de conforto e aqueles braços que se abriam só poderiam dizer “pai”. O chinês levantou-se automaticamente, num inédito gesto brusco. Seus olhos apáticos foram acometidos de uma overdose de vida. Seus ombros se alargaram, seu peito magro cresceu. As rugas da testa que pareciam não resistir a dose nenhuma de botox, subitamente desapareceram por completo. Seus dentes apareceram, pela primeira vez. Numa fração de segundos, seus olhos ficaram umedecidos, seus braços se esticaram na direção da menina e sua voz ecoou uma palavra doce, que eu reconheceria até em sânscrito. Filha. Filha, filha, filha. Ele repetia com uma voz alegre e trêmula que eu jamais poderia imaginar naquela figura. Abraçaram-se. A mochila roxa caiu no chão. Aquele homem amargo e impassível foi embora no instante em que a menina chegou. No lugar dele, um homem desconhecido floresceu. O chinês já nem era mais feio. E já nem era tão elegante. O chinês já não dava medo, nem inspirava angústia. Já não era executivo nem CEO. O chinês era só um pai. Era sua melhor versão.
Quando pequeno, enlouquecia meu pai pedindo para repetir um passeio. O problema era que eu nunca sabia dizer bem onde fora. Lembrava do trajeto, era uma trilha em um mato, subindo um morro íngreme. Quando chegávamos, abria-se uma vista magnífica e do outro lado descortinava-se um cenário novo, com pedras de várias cores e uma vegetação diferente da habitual.
Esse lugar que alcançávamos era um nicho ecológico atípico, distinto de tudo que era usual em nosso Estado. Na minha cabeça, era próximo de Soledade, tanto por ser uma cidade perto de casa como por ser onde descobrem-se pedras incríveis, portanto um lugar geológico condizente. Tentando fazê-lo recordar, acrescentava que lá comemos, acompanhado de guaraná, o melhor cachorro- quente do mundo. Meu pai quebrava a cabeça e não recordava onde tinha me levado.
Com a idade, me dei conta de que nunca fiz esse passeio, torturei meu pai em vão. De fato, esse cenário era uma colagem de percursos reais, somados com paisagens que vi em enciclopédias, ou em filmes, temperados com minha imaginação. Para um menino pequeno que passeia com seu pai, meia dúzia de macegas é como a Mata Atlântica, um capão é maior do que a Floresta Amazônica. Cem metros mato adentro são um safári com mil perigos, uma trama de significados extraordinários, metade ciência, metade magia. O maior tesouro de um homem são as lembranças das primeiras andanças com seu pai.
Na faculdade, descobri que inventamos memórias. Freud dizia que essas falsas memórias eram recordações encobridoras: verdadeiras pela força do que diziam, falsas porque criadas a posteriori. Porém, elas nos retratam melhor do que a verdade factual. No meu caso, diziam do momento supremo de proximidade com meu pai, antes de os meus irmãos chegarem. Éramos só nós dois, exploradores audazes, enfrentando os desafios da natureza selvagem.
Um dos truques mais simples para saber se uma memória é inventada é se nos vemos na cena. Se nossa memória é como uma foto, ou como um filme onde estamos presentes, trata-se de uma criação. Nas memórias verdadeiras, nós somos a câmera, não o objeto. Nem é preciso dizer que essa minha recordação era uma epopeia cinemascope, com este que vos conta no papel principal.
Sei quando a saudade do meu pai bate mais forte porque agora sonho com esse passeio feérico. O enredo é quase sempre o mesmo: olho outra vez a deslumbrante paisagem ao longe, descubro espécimes de plantas nunca vistas antes pelos biólogos, vejo animais ainda não classificados pelos cientistas. Refaço os passos seguros de quem se sente cuidado e sinto o abraço da floresta como se fosse paterno. A selva segue fascinante, mas não podemos demorar-nos muito, pois mais abaixo aguarda o melhor pastel com guaraná do mundo.
Tenho um paciente que, quando a esposa viaja, faz seu prato favorito: miojo com sardinha. Não há o que o faça mais feliz. Reclama que nenhum restaurante serve seu manjar. Sabe que a escolha evoca a infância e é esquisita. Percebe que é um prato para quando está só. Salvo no aniversário, quando a esposa faz para os dois a sua versão de miojo com sardinha.
Explica que o pai fazia essa massa para ele na infância. Quando recém separado, o pai era um trapalhão na cozinha.
Em um jantar com o pai, a esposa comenta o fato. O sogro mareja o olhos e conta a sua versão da história. Fora a pior época de sua vida. Quando a falência da firma da família se anunciava, o casamento que já não ia bem acabou. Sentiu-se, além de abandonado, que era amado pela carteira.
Devia para todos e perdeu o crédito. Na primeira visita do filho a seu novo apartamento, não havia nada para preparar o almoço. Juntou umas moedas, dessas que esquecemos pela casa. Mas só conseguiu comprar miojo e sardinha.
Habituado a sair para comer fora, tapou-se de vergonha em servir para o filho tal improviso. Não lembra como o pequeno reagiu. Recorda que passaram o resto do dia no videogame.
Foi tão doído e marcante o episódio, que ele jamais repetiu. Passava longe de miojo. Os almoços de domingo eram tradicionalmente pão com molho feito com carne moída. Prato ainda simples, porém mais sofisticado do que o anterior.
O filho lembrava como se tivesse sido uma série o que fora apenas um episódio. Estava pasmo, mas não tinha como duvidar da memória do pai.
Eu lhe disse que, com a aprovação entusiasta de uma comida tão simples, ele fizera um gesto de amor. Um ato que continuou repetindo-se cada vez que a massa e a sardinha mostravam sua perfeita comunhão. O prato restituiu o valor que aquele homem entristecido julgava perdido.
Um pai é também forjado pelo discurso da mãe. Para aquela mulher, a falência havia destituído o marido dos encantos. Para o filho, o paladar foi a via de expressão de um afeto altruísta, aceitou seu pai como ele era: frágil e falível. Implicitamente disse que estaria com seu pai na riqueza e na pobreza, como sua mãe não o fez.
Não era a lembrança de um prato. O prato era o signo da cumplicidade com o pai. As memórias que guardam os afetos mentem para dizer outra verdade.
Pai e Filho - Luis Fernando Verissimo
Ele tinha 65 anos e um dia surpreendeu todo o mundo com a informação de que estava, finalmente, conseguindo falar com seu pai. Foi um espanto. Ninguém imaginava que ele ainda tivesse pai. Alguns chegaram a pensar que o contato se dera numa sessão espírita. Mas não, o pai estava vivo. Casara cedo, tinha 20 e poucos anos quando o filho nascera. Por isso mesmo, nunca haviam se entendido muito bem. Não tinham interesses em comum. Não tinham assunto. Mas agora tinham. * O pai era fã da Ingrid Bergman e dizia que nunca apareceria outra como a Ingrid Bergman. – O que é isso, papai? E a Jennifer Lawrence? – Não conheço. O pai jogava golfe e sabia pouco sobre futebol. Mas dizia: – Bom mesmo é o Didi. – Quem? – O Didi. Ele ainda joga? – Não, papai. Acho que até já morreu. * O pai falava do seu desempenho no golfe, apesar da idade. O filho falava do seu desempenho no tênis, apesar da idade. Um não ouvia o que o outro contava. Também não podiam falar de política. O pai era conservador, ex-simpatizante da UDN. O filho não era exatamente de esquerda, mas simpatizava com o PSDB e defendia a social-democracia. – Rá, social-democracia – dizia o pai. – Disfarce de comunismo. * Não havia jeito de se entenderem. Todas as tentativas de diálogo acabavam em briga. Mas agora, finalmente, estavam conversando. Sobre o que conversavam? * Remédios. Comparavam tratamentos. “Qual é o seu betabloqueador?” “Está tomando o que para o colesterol?” “Experimenta este.” E trocavam hemogramas. “A sua taxa de glicose está melhor do que a minha!” Essas coisas. E era comum os dois irem à farmácia de braços dados, conversando. André Dahmer
Toni Tornado Papai, Não Foi Esse O Mundo Que Você Falou 1971
Quando meu pai morreu, há exatos 15 anos, pensei em registrar cada história que lembrava dele para que nada se perdesse. Seria como uma coleção de retratos, uma cápsula do tempo para legar a netos e bisnetos – os encarregados involuntários da missão de transportar seu nome, genes e memórias para o futuro.
Redigi mentalmente muitos inícios diferentes. Começaria na infância, nas lembranças mais antigas, os cílios dele roçando nos meus no delicioso “beijo de olhinho” que eu repetiria mil vezes, anos depois, com a minha própria filha? Ou tentaria reinterpretá-lo, como adulta? Como conciliar o olhar da infância com a perspectiva da maturidade? E o que eu realmente sabia sobre meu pai? O que um filho, qualquer filho, pode dizer sobre o pai sem falar ao mesmo tempo sobre si mesmo?
O grande acontecimento literário do ano, nos EUA, é um livro que traz à superfície algumas dessas questões. Lançado na última semana, Go Set a Watchman, da escritora Harper Lee, 89 anos, retoma os personagens e o cenário de To Kill a Mockingbird (no Brasil, O Sol é para Todos).
Escrito na mesma época, provavelmente antes, esse novo romance autobiográfico tanto pode ser lido como uma versão inicial do texto publicado quanto como um desdobramento da história narrada no best-seller de 1960 – em To Kill a Mockingbird, a narradora é uma menina, Scout (apelido dado pelo pai), personagem que em Go Set a Watchman é a jovem Jean Louise, que retorna já adulta para a cidade natal, Maycomb, onde revê o mundo da infância, o pai inclusive, de forma totalmente diferente.
O que chocou os leitores americanos foi o desmonte da figura heroica de Atticus Finch. O pai honrado e corajoso do primeiro livro, que aceita defender um negro de uma acusação de estupro, nos anos 30, mesmo enfrentando ameaças e o preconceito da pequena cidade, torna-se um velho acuado e racista.
Qual o verdadeiro Atticus Finch? O do livro que Harper Lee escolheu lançar ou este outro, que chega aos leitores quando já há dúvidas de que a autora desejava publicá-lo? O Atticus que aprendemos a amar (no cinema, com o rosto e a fortaleza moral de um Gregory Peck) fez sucesso exatamente porque todos nós, adultos e crianças, precisamos construir heróis para admirar? É possível amar sem admiração incondicional? Seremos cínicos demais, em 2015, para acreditar em homens 100% íntegros? Todas essas dúvidas devem permanecer, a partir de agora, atreladas para sempre aos dois livros que Harper Lee escreveu.
Não redigi o tal retrato definitivo do meu pai. Talvez escreva um dia – não o relato definitivo, mas o possível. O certo é que a imagem que tenho dele não ficou congelada naquela manhã fria de julho em que nos despedimos com um beijo carinhoso, mas sem solenidade, como se fosse uma terça-feira qualquer de inverno e não a última vez em que nos veríamos. A memória do meu pai permanece e muda o tempo todo comigo – como a imagem do meu próprio rosto no espelho.
Mafalda - Quino
Amor de pai - Ivan Martins
A paternidade nos aproxima de um sentimento suave e agridoce de perdão por nossos pais, que agora somos nós
Meu pai morreu quando eu era criança, há mais de 40 anos. Como muitos homens de seu tempo, e muitos dos tempos atuais, foi ausente e autocentrado. Ao final, destrutivo. Não fez por merecer a homenagem de uma memória duradoura. Ainda assim, a tem. Segue vivo nas minhas lembranças, nos meus traços e no meu temperamento.
Também se prolonga, de forma mais amena, no sorriso dos meus filhos, homens bonitos como ele. Esse pai cada vez mais distante é uma presença tão intensa - e tão costumeira - que me pergunto se um dia desaparecerá. Ou se, do contrário, se tornará cada vez mais pungente, como o fantasma do pai de Hamlet, à medida que eu me torne mais velho. A pergunta é retórica. Sei a resposta.
Durante um tempo, achei que a relação complicada com a figura paterna fosse uma experiência apenas minha. Aos poucos, percebi que não. Boa parte dos homens carregam pela vida emoções semelhantes, embora sejam filhos de pais diferentes do meu. O filósofo francês Jean-Paul Sartre, cujo pai morreu quando ele era bebê, dizia ter sido privilegiado pela ausência de uma figura paterna capaz de moldá-lo ou influenciá-lo.
Ele julgava ser mais livre que o resto dos homens. Li essa afirmação muito jovem. Achei que fazia sentido. Hoje acho bobagem. Não há pai mais influente que o pai que não existe. Ele deixa tamanho vazio, provoca tantas interrogações, que seu filho pode gastar a vida tentando entender-se. A figura paterna é uma referência monumental. Tão grande que, se não existir, terá de ser criada.
O cinema, arte popular que se alimenta dos sentimentos bons e maus das multidões, ilustra isso esplendidamente. Em filmes como Juventude transviada, de 1955, Guerra nas estrelas, de 1977, e o Campeão, de 1979, todos de enorme sucesso, as relações entre pai e filhos estão no centro da trama. É assim também com super-heróis do cinema recente: Batman, Super-Homem, Homem Aranha, Thor. Todos querem provar, dizer ou perguntar algo ao próprio pai. Ou à lembrança dele. Parece ser uma necessidade – ou uma lacuna – universal.
O jeito mais simples e mais bonito de lidar com a herança emocional do pai é ter um filho. No momento em que você ouve as palavras “é menino”, cria-se uma ponte instantânea entre o pai que você teve e o pai que você acaba de se tornar – assim como entre o filho que você foi e o filho que recém-nasceu. É uma espécie de reencontro. Materializa-se, concretamente, a possibilidade de fazer tudo de novo, fazer tudo direito, corrigir os erros. Resolver, no tumulto real da vida, em oposição ao mundo intangível das lembranças e sentimentos, as dificuldades das relações entre pais e filhos. Tem sido assim comigo e com muitos homens que conheço.
Outro dia, um amigo me mostrou algo que ele e seu filho pequeno têm feito juntos. É uma lista de coisas em que os dois acreditam. Começa com a importância de aventurar-se e de experimentar coisas novas. Termina, provisoriamente, com o dever de ser solidário e de ajudar a quem necessita. No meio, há coisas como “aprender a perder” e uma pergunta: o que é mais importante, estar certo ou ser feliz? A resposta de pai e filho é “ser feliz”.
A primeira coisa que me veio ao ler o decálogo do amigo com seu filho foi inveja. Por que não tive uma ideia linda dessas quando meus filhos eram pequenos? Passado esse momento mesquinho, fui tomado pela admiração. Num mundo repleto de valores contraditórios, ou tomado pela falta absoluta de valores, meu amigo tenta criar, num gesto de amor, uma espécie de camada protetora em torno do filho. Esses princípios simples, descobertos e partilhados entre eles, podem orientar o pequeno na ausência do pai, quando ele tiver de fazer suas próprias escolhas. Mais que qualquer objeto, mais que a fortuna, o decálogo é um presente para a vida - mesmo do meu amigo.
No passado, quando os filhos cresciam na mesma casa com pai e mãe, os sentimentos no interior da família não eram simples. Todos sabemos disso. Agora que o conceito de família se ampliou, para envolver novos adultos e novas crianças, as coisas se tornaram ainda mais complicadas. Mas não piores. Pais separados têm a oportunidade de desenvolver com seus filhos uma relação mais intensa e mais íntima do que antes.
A responsabilidade de olhar, cuidar e compartilhar não se dilui “na família”, como os pratos sujos sobre a pia ou o lixo acumulado na varanda. Ela é pessoal, intransferível. Ao pai, cabe estabelecer uma relação intensa e singular com seus filhos, sem a intermediação do amor e dos cuidados maternos. Tendo vivido isso, e vendo outros homens viver, concluo que é uma das experiências mais bonitas que se podem ter.
O passado não vai embora. As coisas perdidas nunca serão inteiramente recuperadas. A vida nos oferece, apesar disso, oportunidades de refazer de outra forma, numa outra esfera. A paternidade é uma delas. Nos permite ser homens melhores e criar homens melhores. Nos permite ser crianças novamente. Nos permite esboçar alguma compreensão e nos aproximar – apenas nos aproximar, mas já é algo – de um sentimento suave e agridoce de perdão por nossos pais, que agora somos nós.
Malvados - André Dahmer
Pai e Filho - Claudio Lovato Filho
“E como vai ser na hora de um dar esporro no outro dentro de campo, hein?” “O que é que tem?” “Você vai querer me dar esporro dentro de campo, garoto?” “Claro! Qual é?” “E o diabo do respeito? Sou seu pai, porra!” “Pai só até a gente entrar em campo. Depois você vai ser um companheiro de time igual a todos os outros. Boto o dedo na tua cara se precisar. Na tua cara!” Os dois riram. Era a primeira vez na história do futebol profissional do país que pai e filho iriam jogar juntos no mesmo time. O pai tinha 39, era lateral-esquerdo. Era seu último ano de carreira. No fim da temporada, pararia, já havia decidido. Ou antes. Queria ter o gostinho de jogar com o garoto. O filho, de 19, jogava de volante. “Porra, moleque, você vai dar cobertura para o seu velho, não vai não?” “Se você está falando em cobertura normal, sim. Se está falando em te dar atenção especial, pode esquecer. Não vou ficar preso lá atrás só para te dar privilégio. Tenho de chegar lá na frente também, você sabe disso.” “Você vai deixar o seu velho desprotegido, já senti. Vai me deixar na mão. Não quer ser acusado de proteger o seu velho.” “É isso aí, coroa. Eu tenho um nome zelar. Foi você que me deu. Me desculpa aí, foi mal.” Os dois soltaram o riso de novo. Estavam sentados à beira do piscina da casa onde moravam. Tinham acabado de comer um churrasco e agora assistiam às mulheres e as crianças da família se movimentando pelo enorme jardim. “Se alguém baixar a porrada no teu velho você vai revidar? Hein? Diz para mim. Vai tomar as minhas dores?” “Eu não! Não vou nem me meter. Não vou nem reclamar para o juiz! Eu, hein!” “Mas que garoto safado, cacete!” Mais risadas. O fato é que nunca estiveram tão felizes na vida. Eram um pai e um filho que se adoravam. Um era o maior motivo de orgulho para o outro. O pai participara de duas Copas. Na segunda, foi capitão da Seleção. E campeão do mundo. O filho fora promovido para os profissionais no ano que havia recém terminado. Estava tudo muito bem, a família vivia um momento muito positivo, muito especial. Mas havia algumas nuvens sobre a alegria do pai, pequenas sombras perturbadoras ainda começando a se formar. Isso porque: O pai não sabia o que aconteceria quando – e se – a torcida, num mau dia, começasse a vaiar o filho. Ele não sabia o que faria quando – e se – um adversário desse uma entrada maldosa no filho. E ele não sabia como reagiria a outras tantas situações que poderiam ocorrer – e facilmente ocorriam – no futebol. O filho, por sua vez, não pensava nessas coisas. O filho estava feliz porque ia jogar; porque era titular; porque atuaria ao lado do pai amado; e porque tinha certeza de que nem ele nem o pai estavam ali, juntos, no mesmo clube, no mesmo time, por nada mais além do futebol de primeira linha que jogavam, do amor que nutriam pela camisa que vestiam e do imenso prazer que sentiam em jogar futebol e estar juntos. E seria dentro das quatro linhas de um campo de futebol que o amor que sentiam um pelo outro se tornaria tão completo quanto poderia ser. Fernando Gonsales
É menino ou menina? É um projeto - Ricardo Araújo Pereira
Luiza Pannunzio/Folhapress
Para os pais de crianças já é difícil: é preciso ajudar com os deveres de casa, ler a história antes de dormir, empurrar o balanço, passear, fazer piquenique, levar a 30 festas de aniversário por ano, comprar a roupa do ballet, levar no ballet, ir pegar no ballet, assistir ao sarau do ballet.
Mas há pais que não têm um filho, têm um projeto. Esses, eu não sei como é que fazem. Têm a vida dos filhos planejada até os garotos fazerem 60 anos. O que a criança aprende na escola não chega.
Quando o projetinho tem 6 anos já estuda mandarim. Dentro de pouco tempo, ninguém vai fazer negócios em inglês, e muito menos em português. Quem não souber mandarim, nem um sanduíche conseguirá comprar.
Também é importante tocar um instrumento musical. O melhor talvez seja mesmo o violino, porque o piano não dá para levar e ficar praticando no caminho para o treino de futebol.
Resumindo: à tarde a criança sai da escola e vai para a equitação (bom para a postura). Depois, violino. A seguir, futebol. Jantar rapidamente e uma hora de mandarim.
E convém ir dormir cedo, porque no dia seguinte, antes da escola, que não pode descurar, tem treino de artes marciais na academia (saber defender-se é importante).
Os pais do projeto estão, por isso, empenhados em criar um cavaleiro violinista carateca bom de bola que sabe fazer-se entender em Pequim.
Esse é, ao que tudo indica, o ser humano do futuro. Que ainda deve ter um doutorado em engenharia informática.
Ou seja, uma espécie de Jackie Chan que gere uma empresa tecnológica multimilionária e joga no Real Madrid. Na verdade, isto não é um filho, são três ou quatro.
Os pais sonham que o garoto seja uma espécie de super-herói rico. É sábio, talentoso, empreendedor e faz gols.
Parece o sonho de uma criança, mas é o sonho que alguns adultos têm para as suas crianças.
A educação que dou às minhas filhas é bastante diferente, mas tem tudo isto em conta: vou tentar convencê-las a estudarem psicologia.
Vão ter muita gente traumatizada por infâncias absurdas para tratar.
Assim que elas saírem da aula de ballet, comunico-lhes a minha estratégia. Teremos tempo para falar, porque hoje elas só têm duas festas de aniversário.
Céllus
Sinovaldo
Escrever é fácil - Marcos Piangers
Estava no corredor número oito do supermercado do bairro assistindo a minha filha pequena fazer um glorioso escarcéu anunciando para todos os clientes o quanto queria ganhar doces e o quanto o seu pai (o papai pop!) era péssimo ao não satisfazer suas vontades chocólatras. Ela gritava coisas do tipo "mas eu queeeeeeeerroooooooooooo" e eu me lembrava que, antes de ter filhos, jurava que jamais aceitaria que filho meu fizesse cena no supermercado, ele iria levar um tapa tão bem dado que ficaria desnorteado e jamais pediria nada nunca mais, pelo contrário, decidiria ali mesmo começar a trabalhar e se formaria em Medicina antes dos 18 anos.
Pobre ilusão, o fato é que minhas filhas vieram e acabei incapaz de agredi-las, que bom que todas as pesquisas científicas comprovam que palmada é a pior atitude mesmo e o certo é explicar as coisas para a criança. Ufa.
Para piorar, toda vez que minhas filhas dão vexame, tem alguma pessoa que me reconhece por perto, todas as pessoas que leem esta coluna, e meus livros, e veem meus vídeos e palestras e esperam que eu seja o pai perfeito e minhas filhas tenham comportamento impecável. Óbvio que isso não acontece, primeiro porque não sou pai perfeito, pergunte à minha esposa, e segundo porque não existe criança que não faça algum tipo de drama quando quer ganhar alguma coisa.
Lá estava eu no corredor número oito do supermercado e um cidadão de bigode e óculos passou com seu carrinho, percebeu a cena que minha filha estava fazendo e disse: "Escrever é fácil, né?", enquanto eu tentava acalmar minha filha. Alguns leitores são muito desagradáveis, como podem ver. Tenho certeza de que não é o seu caso, mas foi o caso daquele senhor de bigode e óculos, que, se eu não me engano levava papel higiênico no carrinho e não era nem da marca mais cara.
Não tenho vergonha de dizer que aqui em casa minha filha de seis anos lava a louça de vez em quando, já preparou sua própria comida (fez arroz, fritou o bife e o ovo) e sempre que acaba de se alimentar coloca o prato na pia. Ela também escova os dentes e dorme cedo, faz a tarefa de casa e arruma o quarto sempre que pedimos. Considero-a uma menina muito obediente mas, como já disse, de vez em quando dá um show de indisciplina, geralmente em lugares públicos e quando alguém que me considera o melhor pai do mundo está vendo.
Quando ela não quer ir embora da casa de uma amiguinha, por exemplo, lá estou eu ajoelhado implorando para que ela venha comigo enquanto peço desculpas aos donos da casa. Ou pior, quando estamos em algum restaurante e ela fica chateada de não ganhar sobremesa, todas as pessoas sentadas perto da nossa mesa ouvem os gritos e pensam: "Jamais permitiremos esta algazarra quando formos pais!". Rá, penso comigo mesmo. Faço votos de fertilidade.
Quando uma repórter me perguntou "como criar crianças perfeitas?" e eu respondi, rapidamente: "Não sei!". Não conheço crianças perfeitas, não conheço pais perfeitos e, certamente, não conheço adultos perfeitos. Conheço apenas aqueles que tentam acertar e que aprendem com os erros. Crianças farão pirraça, como fizemos eu e você. Em lugares públicos, minhas filhas colocarão em xeque minha fama de bom pai. Mas elas são comportadas quando ninguém está olhando. Eu juro que são. Calvin- Bill Watterson
Cat Stevens - Father and Son
Pai e filho (Cat Stevens / versão: Chico Teixeira e Renato Teixeira)
Nara Leão - Pai E Filho (Father And Son) - Versão: Cacá Diegues
“Pai e Filha” (Father and Daughter) é um filme sobre o amor incondicional e a saudade, o tipo de saudade que discretamente, porém totalmente, afeta as nossas vidas.
“Em apenas oito minutos, Michael Dudok de Wit conta a saga da personagem que, ainda criança, vê o pai pela última vez. Ano após ano, e sempre de bicicleta, retorna ao lugar da despedida, esperando que ele volte. Assim como a música ao longo da narrativa – repetição incessante da mesma melodia, que varia, tal qual o Bolero de Ravel, rítmica e harmonicamente –, Pai e Filha se estrutura a partir de sequências a princípios idênticas entre si, que, entretanto, se diferenciam na medida em que são preenchidas pelo Tempo (o devir heraclitiano). Desse modo, enquanto a roda gira, os anos passam, cada corte introduzindo nova elipse temporal. Sobre a bicicleta, a filha envelhece: nós a acompanhamos estudante, com o primeiro namorado, já casada e com filhos, idosa. Trajetória que mostra não somente a degradação física, como também, e principalmente, os sentimentos e a memória e as lembranças cristalizam, ponte entre o passado, o presente e o futuro, visível na sucessão emotiva das estações do ano e das paisagens holandesas que ambientam o filme.” – Paulo Ricardo de Almeida
“Father and Daughter” é um filme de animação em curta-metragem holandês de 2000 dirigido e escrito por Michaël Dudok de Wit, produzido pela Cinété Filmproductie. Venceu o Oscar de melhor curta-metragem de animação na edição de 2001. De Wit também escreve e ilustra livros infantis e ensina animação e arte em escolas da Grã-Bretanha e em outros países. Hagar - Chris Browne