sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Prendem meu corpo, minha mente continua livre - Ignácio de Loyola Brandão

Pouco antes do final do ano, voltei a Araraquara. Direto para a Penitenciária de Pinheirinhos, como é conhecida por lá. Não, não fui preso, como alguns gostariam. Vocês nem imaginam o que é a vida literária. Tem de esconjurar um colega, apenas porque a foto dele saiu no jornal. Fui para um projeto dos mais comoventes, o da Remição de Pena por Meio da Leitura, que vem sendo desenvolvido pela Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel em conjunto com a Academia Paulista de Letras e também com editoras como a Companhia das Letras. 
O projeto contempla 12 penitenciárias paulistas, masculinas e femininas, as quais mantêm clubes de leitura com 20 detentos cada uma. Esses recebem um livro, que deve ser lido em 30 dias. Penso: tem universitário que não lê um só livro o curso inteiro, só apostilas. Após a leitura, o grupo se reúne para uma conversa com mediadores. A cada livro lido, o preso pode reduzir em 4 dias sua pena, num máximo de 12 livros por ano, um por mês.
Cheguei cedo, com o ameno sol araraquarense castigando nos 37 graus e dei com aquele maciço de concreto que me conduziu aos filmes clássicos sobre Alcatraz, Sing Sing, o Castelo de IF, onde ficou Edmond Dantès, o futuro Conde de Monte Cristo e outros. Monitores e mediadores vinham chegando de toda região. Entrei e me vi dentro de portas pesadas de ferro abrindo e batendo, abre-se uma, fecha-se outra às suas costas, você anda um trecho, outra barreira, depois scanners e sensores, a segurança é rígida. Um botão de metal em minha calça quase me obrigou a tirá-la, encontraram uma solução, entrei de lado. Caminhei e cheguei à capela, bom espaço como auditório. Bom astral. Tinham me dado uma pauta. Falar sobre gêneros literários, crítica e resenhas. Olhei para aquela plateia, bem à minha frente estavam quatro presos que fazem parte do projeto. Olhavam-me com caras ansiosas. Pensei: eu ia falar de teorias, assuntos gramaticais importantes, mas áridos? Literatura é emoção, prazer, abertura. Mudei o trajeto em um instante.
Desandei a contar histórias. Coisas que se passaram comigo e outros, que vi e vivi, e imaginei, e transformei em contos, cônicas, romances. Contei de onde vêm os meus assuntos: de um olhar, uma frase, uma conversa. Disse como capturamos os temas, o que é um personagem, como se começa um livro e se termina, o que é inspiração. Em minutos a atmosfera mudou, as pessoas riam, calavam, ficavam em suspense, se entreolhavam admiradas. Os olhos daqueles quatro presidiários me seguiam à medida que eu “desmontava” o ato de escrever, caminhando de um lado para outro. 
Abri para perguntas e elas vieram de todos os cantos, todos os tipos. Uma se repetia. E a inspiração? Eu voltava a minha infância, quando Ruth e Lourdes, minhas professores do primário (fundamental hoje) nos diziam: inspiração é observação, é o olhar, o escutar, o conversar, o perguntar, o usar tudo em volta. Imagino, disse, a quantidade de temas que fornece uma prisão, a vida de cada um, lembrei a trajetória do Drauzio Varella, que, com poucos livros, chegou ao primeiro plano de nossa literatura. Contei crônicas, tristes e divertidas e o que deveria durar uma hora durou duas. E ainda me cercaram, perguntaram, sorriram. 
Um dos presos me disse: “Ler é prazer, não é?”. Completei: “E fuga”. Ele deu uma gargalhada, compreendeu. Porém o que me abalou foi o presidiário que me acompanhou até o corredor, havia uma mesa com café, sucos, bolos, alguns salgadinhos, haveria um lanche, o encontro ia continuar. 
“Não quis perguntar na frente de todos, tive vergonha de não ter entendido. O que o senhor quis dizer foi: podem me prender, podem prender meu corpo, mas minha cabeça, minha mente serão livres. É isso?” 
“É isso. Se há uma coisa nossa que ninguém pode prender é a imaginação!”
Valeu aquela fala. Que meus colegas escritores, se convidados, não percam esse grande instante. Falar nas penitenciárias. Ajudar a libertar pessoas.

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