sexta-feira, 22 de junho de 2018

Propaganda de margarina - Jaime Cimenti

O presidente falou para o Cadu, diretor de criação: nosso cliente, fabricante de margarina, quer uma campanha diferente, quer vender muuuuito, fazer história. Se vira, só não pensa em casal e filhos maravilhosos no café da manhã, junto com um cocker cor de mel, criança cantando gospel ou gente saudável na praia ou de bicicleta.
O lance é pensar no que o consumidor é e não no que ele imagina ou gostaria de ser. O anunciante está focado nas famílias de hoje e está cobrando ousadia, criatividade. Disse que a propaganda e o cinema andam previsíveis, tudo meio igual. Se vira, Cadu! Cadu foi para sua sala pensando nas ordens do chefão, no seu emprego e nos dados do IBGE.
Mais da metade das famílias no Brasil já não é mais a “tradicional”, composta de papai, mamãe e filhos. Tem família de uma pessoa; de uma com um gato, periquito ou cachorro; outras de tia com sobrinhos; casais homossexuais com ou sem filhos; neto morando com a avó; pai ou mãe solteiros com os filhos; divorciados morando com enteados; divorciados morando com amigos etc. Cadu ficou pensando como vender margarina para essa gente toda.
Pensou num comercial com um velhinho sozinho e feliz numa casa de campo, num entardecer púrpura; imaginou um casal gay com dois bebês rosados e som de Elton John ao fundo numa sala aconchegante; pensou numa mulher solitária com ar jovial e com o cachorro no colo.
Claro, todos com uma fatia dourada de pão crocante nas mãos, coberto de margarina. Cadu até achou legal as ideias, mas ficou pensando mais e imaginou um grande encontro familiar, numa tardinha de domingo, no antigo chalé da chácara da bisavó, tipo zona Sul de Porto Alegre. Vão chegando cachorros, gatos, filhos, sobrinhos, pais, avôs, padrastos, madrastas, netos, amigos, companheiros, todo mundo reunido, como nos velhos tempos. Debaixo da velha figueira, a grande mesa, posta com as louças e talheres da bisa, a toalha rendada.
Muitos bolos, salgados, doces, café, chá, chocolate, leite e, ao centro, fatias do enorme pão colonial, desses feitos no forno de tijolos, com vários potes de margarina. Música suave ao fundo, violinos, Primavera de Vivaldi; Summertime de Gershwin ou Emoções do Roberto Carlos, por aí. Depois a mensagem final: Margarina......a saúde de todas as famílias.

Terezinha dos olhos cor de safira - Ignácio de Loyola Brandão

‘Era tão bonito, mas tão bonito, que até tremia de tanta beleza’, dizia minha tia
Manhã de domingo, na padaria a ler o Ugo Giorgetti na página da Copa, lembrei-me de tio José e da paixão que ele tinha por futebol. E junto a memória de tia Terezinha, com quem ele esteve casado por 55 anos. Acontece que esta tia, de olhos azuis safira, foi marcante em minha vida. Frasista inspirada, nunca esqueci uma tirada dela, junto ao tanque de lavar roupa, em Estrela D’Oeste, boca do sertão na época, onde o marido era chefe da estação. Um cavalo se aproximou da cerca, ela definiu: “Era tão bonito, mas tão bonito, que até tremia de tanta beleza”. A beleza ganhava imagens variadas, como esta outra não me lembro a respeito do que: “Era bonito, mais bonito que o azul”.
Quando se casou com José ela tinha 17 anos. A ferrovia, EFA, deu ao meu tio apenas um dia de folga para ir a Araraquara, casar e voltar. Ele foi, casou e os dois partiram no trem noturno para a estação de Cosmorama, próxima a Votuporanga. Fim de mundo. Chegaram noite alta, direto para a cama. Ela acordou antes, levantou-se em uma casa que não conhecia ainda e fazia parte da estação. Viu-se na plataforma. “Olhei para a frente, mato. Olhei para a direita, de onde eu imaginava que tivesse vindo, mato. À esquerda, também. Atrás de mim, mato. Cosmorama não passava de uma estação em meio à mata virgem do sertão. Ali éramos eu, José e a solidão. E foi aquela solidão que nos ensinou a viver juntos, a nos inventarmos a cada momento, a descobrirmos que a felicidade estava em poucas coisas. Ríamos muito, um com o outro, de nós dois, de m pássaro que cantava no mato.”
Os dois acompanharam a abertura do sertão da alta araraquarense, os ciclos agrícolas, o café, o arroz, o desenvolvimento de São José do Rio Preto e Votuporanga. Foi nesta cidade que frequentei a casa deles, chefes de ferrovia eram importantes, ainda que não gozassem de foro privilegiado. Ali em Votuporanga ensinei todos a jogar buraco e tranca, as tardes calorentas corriam entre gritos de “bati” e apitos de trem e sinos de locomotivas. Ali soube por ela a história do cachorro lendário que conhecia os trens que tinham vagão-restaurante, subia, comia e descia na próxima parada, sabendo os trens que o trariam de volta. Em Araraquara, os almoços de domingo eram no “quartão” e reuniam uma trempe de filhos, parentes, agregados. Tia Terezinha servia a cada um, matronal e autoritária, e não adiantava você dizer chega, depois disso ela ainda acrescentava quatro porções, debaixo de risos.
Muito celebradas foram as viagens a São Paulo, os dois e meus pais, Antonio e Maria. Não existia para os quatro maior delícia do que bater pernas, ir ao cinema, teatro, à catedral da Sé, à Barão de Itapetininga, ou tomar chocolate na Leiteira Americana. Divertiam-se no bonde Penha-Lapa ou no João Mendes-Santo Amaro, longuíssimos trajetos. Era luxo hospedar-se no Hotel das Bandeiras, vizinho à Estação da Luz, hoje demolido pelo metrô. Desse hotel, Terezinha e meu tio traziam uma imagem forte que compartilhavam comigo. Os almoços e jantares em que eram servidas dezenas de travessinhas com arroz, feijão, bife, lombo de porco, torresmo, fígado acebolado, ovo frito, linguiça, couve, almeirão, abobrinha, farofa, quiabo, polenta frita, favas, batata frita em rodelinhas, batata-doce, saladas de abobrinha, alface, palmito, tomate, ovo cozido, cebola. Aquele quarteto era ligadíssimo, todos pessoas simples, mas cabeças boas, abertas, tio José meu pai liam muito, compravam, trocavam, emprestavam livros. Terezinha poderia ter sido diplomata, aparou arestas entre vários parentes, apaziguava. Tinha um humor sarcástico, às vezes rascante, sedutor. A cada mulher nova na família, noras, noivas de sobrinhos e que tais, ela chamava: “Deixe-me ver seu pé. Quero ver se tem pé de puta”. Era o rito de incorporação. Gargalhadas. A recém-chegada era admitida, passava a adorar Terezinha.
Quando minha mãe morreu, aos 60 anos, Terezinha estava no quarto. De repente, contou-me: “Senti um perfume estonteante e fui até a janela, saber de onde vinha. Quando me virei, Maria tinha acabado de morrer”. Sempre fui para ela um “filhão”, tornei-me “irmão” de meus primos. Felicidades, agruras, angústias se misturaram em nossas vidas, mortes, doenças, dores, mas o riso com que ela me recebia era o mesmo quando a conheci aos 11 anos, linda, exuberante.
Então, a idade, 88 anos, cobrou juros, a viuvez, perdas de amigos e amigas, uma queda, o fêmur quebrado, passava o tempo na cadeira, perdeu a audição. Recentemente, fui avisado: ela acabou de receber a extrema-unção, está com a respiração por um fio, o médico avisou que não passa desta noite. Manhã seguinte, um telefonema: a tia acordou, sentou-se na cama, sorridente, tomou café, conversou, xingou (ela não poupava um palavrão, tinha humor) alguém. Voamos para Araraquara Marcia e eu, greve de caminhoneiros, nem sei como arranjamos gasolina, atravessamos barreiras, chegamos lá. Quando nos viu entrar, tia Terezinha sorriu, uma lágrima azul desceu daqueles olhos que não perderam o brilho até o final. Sorria para nós o tempo inteiro. Enérgica, para quem nem falava mais, mandou que a cuidadora fizesse um café. Nos deu a sensação daquela mulher da vida inteira. Ao nos despedirmos, mandava beijos repetidos, avisando que Santo Antônio, pelo qual tinha fé absoluta, ficaria no lugar dela a me olhar. No dia seguinte, entrou em coma. Morreu dois dias depois. Partiu no mesmo dia em que tio José também se foi, 16 anos atrás. Nada na vida é acaso. Tenho certeza de que ela voltou por um breve momento para nos vermos.

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Escritoras usam literatura fantástica para discutir feminismo - André Cáceres

No filme Eu Não Sou um Homem Fácil (2018), dirigido pela francesa Eléonore Pourriat, o protagonista Damien (Vincent Elbaz) é um machista contumaz que acorda em um mundo paralelo exatamente igual ao nosso, a não ser por um detalhe: os homens são sistematicamente oprimidos por um matriarcado cruel. Nessa comédia, a cineasta aprofunda a mesma ideia de seu curta Majorité Opprimée (2010). Ferrenho crítico do feminismo, Damien torna-se um “masculista” convicto nessa realidade alternativa, depois de passar pelas humilhações cotidianas que as mulheres sofrem na vida real. “Eu me tornei uma vítima; antes, era um tirano”, ele admite a uma mulher. “E não há um meio-termo?”, ela questiona. Revelador, esse diálogo não só resume a luta pela igualdade de gêneros como ilustra uma tendência interessante no cinema e na literatura: o uso do elemento fantástico ou especulativo para debater questões delicadas.

A inversão de papéis é a mesma estratégia utilizada pela escritora Naomi Alderman em O Poder, publicado no Brasil pela editora Planeta. Nele, uma mutação concede às mulheres a capacidade de eletrocutar, o que faz o mundo paulatinamente ser dominado por elas. Alderman, assim como Pourriat, não está defendendo uma sociedade assim. Ela demonstra que o feminismo não é a apologia de uma supremacia feminina, mas apenas uma luta por igualdade. Ainda que os atos perpetrados contra personagens masculinos sejam repugnantes, toda aquela opressão já aconteceu no mundo real – e ainda acontece – contra mulheres. “Se é horrível ver homens torturados no livro, e espero que seja, isso é um indício do quão horrorizados deveríamos ficar com essas histórias quando elas ocorrem com mulheres”, afirmou a autora ao Aliás

É nos detalhes que O Poder e Eu Não Sou um Homem Fácil destacam os privilégios, como quando um escritor vê sua obra restrita à prateleira de “literatura masculina”; quando as mulheres passam a ocupar a maioria dos cargos de destaque nas empresas e na administração pública; ou quando são os homens que se policiam quanto à roupa que vestem, temem andar sozinhos à noite ou precisam ceder às investidas sexuais da chefe para manter o emprego ou conseguir uma promoção. 

O título do livro não se refere somente ao poder elétrico, mas à natureza do poder na sociedade. A história é contada do ponto de vista de Margot, uma prefeita que vai galgando cargos e aprovando projetos; Allie, uma órfã que passa a angariar seguidoras para sua seita; Roxanne, filha de um gângster que começa a dominar a Máfia; e Tunde, um homem que faz reportagens sobre as revoltas que acontecem ao redor do mundo graças a esse fenômeno. Essas quatro instâncias – política, religião, violência e mídia –, hoje dominadas por homens, tornam-se os motores de uma revolução silenciosa.
Vencedora do Baileys Women’s Prize em 2017, Alderman vem sendo comparada à escritora canadense Margaret Atwood, o que não é uma surpresa. A autora de O Conto da Aia (1985, reeditado no ano passado pela Rocco), além de ter inspirado essa leva de obras com a adaptação de seu livro, atualmente na segunda temporada, pelo serviço de streaming Hulu, foi uma espécie de mentora de Alderman. Ambas seguem os passos de outras autoras que se utilizavam de elementos especulativos para questionar diferenças de gênero, como Ursula K. Le Guin, em A Mão Esquerda da Escuridão (1969, reeditado em 2017 pela editora Aleph) e Joanna Russ, em The Female Man (1975, ainda inédito em português), além de Octavia Butler, cujos livros distópicos Parábola do Semeador(1993) e Parábola dos Talentos (1998), que abordam feminismo, ambientalismo e religião, serão lançados no Brasil pela primeira vez em 2018. 
Quem inaugurou essa trilha foi a filósofa Margaret Cavendish (1623-1673), autora de The Blazing World (1666), utopia ainda inédita em português. Ela influenciou em grande medida outro livro no mesmo estilo: Herland – A Terra das Mulheres, lançado em folhetim em 1915 pela sufragista norte-americana Charlotte Perkins Gilman (1860-1935) e recém-publicada no Brasil pela Via Leitura e pela Rosa dos Ventos. Nesse livro, três exploradores descobrem um país povoado apenas por mulheres. A princípio, não acreditam na inexistência de homens nesse harém, uma vez que as estradas e plantações são bem cuidadas e as construções são fortes, mas acabam sendo obrigados a admitir não só que aquelas mulheres vivem sozinhas, como que sua sociedade é um paraíso se comparada aos Estados Unidos, de onde eles vêm. 
O romance é um exemplar da literatura de aventura que caracterizou a obra de vários autores na virada do século 19 para o 20, quando ainda não existiam imagens de satélite e a humanidade não sabia se já havia explorado a totalidade do planeta ou se ainda encontraria algum continente perdido. Na época, Gilman não obteve o destaque de homens como Júlio Verne, Henry Rider Haggard e Edgar Rice Burroughs. Seu legado, porém, segue vivo na escritora finlandesa Maria Turtschaninoff. Seu livro Maresi (2014), lançado esse ano no Brasil pela editora Morro Branco, conta a história de uma ilha habitada só por mulheres, que vivem em uma espécie de convento para fugir da violência masculina em um mundo inspirado no medievalismo nórdico e com elementos de magia. A história começa com a chegada de Jai à ilha. A menina viu a própria irmã ser morta pelo pai, um homem violento de uma terra na qual as mulheres não podiam andar com os cabelos soltos ou mesmo rir em público.  
Outra obra especulativa recém-lançada no Brasil que trata de questões de gênero de forma original é o romance espacial Justiça Ancilar (editora Aleph). A autora Ann Leckie abre mão dos pronomes masculinos como norma em seu idioma fictício e decide se referir às personagens, independente de seus gêneros, sempre no feminino. O efeito literário dessa opção evidencia o quão arbitrária é a adoção do masculino como padrão em várias línguas, e causa um estranhamento ainda mais acentuado na tradução para o português.
Não é apenas no exterior que a fantasia é empregada para abordar essas temáticas. As escritoras Aline Valek e Lady Sybylla organizaram, em 2013, o livro Universo Desconstruído, primeira antologia de contos de ficção científica feminista do Brasil. No entanto, enfrentaram resistência quando lançaram a obra. “Essa literatura já tem uma base sólida em outros países desde os anos 1960, mas aqui ainda carecemos de entrar no mercado editorial e ficamos restritas aos nichos”, lamenta Sybylla. 
Uma das poucas casas editoriais que voltaram seu olhar para esse filão foi a Dame Blanche, que publica literatura fantástica e ficção científica escrita por mulheres. “As autoras sempre estiveram lá; são as editoras que, finalmente, perceberam isso e começaram a investir nelas”, afirma Clara Madrigano, uma das editoras da Dame Blanche. “Justamente porque ficção especulativa não costumava ser considerada um gênero sério, os autores se davam permissão de criar em cima do impossível e ela se tornou um laboratório de temas que, de outra forma, não seriam retratados.”
Sybylla, que publicou recentemente a ficção científica Deixe as Estrelas Falarem pela Dame Blanche, afirma que esse gênero confere uma amplitude temática maior para as escritoras. “Envelopar um tema como aborto ou eutanásia em um enredo fantástico pode torná-lo mais palatável. É possível criar uma imersão para um leitor que, na literatura dita realista, torceria o nariz. Às vezes, é a única forma de um público conservador possa ter acesso a esse tipo de conteúdo e de provocar uma discussão.”
Embora esse gênero esteja crescendo no País, ainda falta aos autores formar uma identidade nacional. “A formação do autor nacional de ficção especulativa é curiosa, porque nós temos muitas referências de fora e poucas referências de dentro”, lamenta Madrigano. “Bebemos muito de fontes estrangeiras, e acho que as nossas autoras ainda estão tentando encontrar um tom, algo que seja só nosso”, acrescenta a editora.

A escritora canadense Margaret Atwood (E) foi uma mentora para Naomi Alderman (D) Foto: Bart Mitchiels

sexta-feira, 15 de junho de 2018

A casa do vizinho - Martha Medeiros


Muitas situações provocam estranhamento, e uma das mais inquietantes é entrar no apartamento de um vizinho de prédio. Está ali a mesma sala, do mesmo tamanho que a sua, com a mesma orientação solar, a mesma disposição das paredes, a mesma cozinha, os mesmos quartos e banheiros mas nada, nada é o mesmo.
A parede que na sua casa é cor de marfim, na do vizinho está pintada de vermelho, o que muda a atmosfera do ambiente, faz com que pareça menor. Você, que adora plantas e coleciona bugigangas trazidas de viagens, entra cautelosa naquele apartamento gêmeo ao seu, porém totalmente despojado de humanidade, mais parece um show room.
Onde você tem um aparador lotado de porta-retratos, o vizinho colocou um espelho do teto ao chão. Você deixa um sofá branco e confortável virado em direção à sacada, enquanto seu vizinho têm duas chaise longue de aço cromado e couro preto que ficam paralelas uma a outra, voltadas para uma parede onde ele possui uma televisão do tamanho de um aquário do Sea World.
Ao entrar na cozinha dele, imagina que está dentro de uma nave espacial, tudo é cinza chumbo e imaculadamente limpo, enquanto sua cozinha tem uma fruteira de papel machê trazida da Bahia e armários de madeira.
O lavabo dele é revestido com um papel de parede austero e elegante, o seu se manteve como a construtora entregou, com azulejos sem graça, e você nem trocou a torneira original, simplesinha – a dele deve ter sido transplantada de algum castelo francês, é um colosso. Se você tivesse um lavabo igual, é lá que receberia as visitas. Aí você lembra que tem um igual, só que o seu parece um banheiro de rodoviária.
Apartamento de vizinho causa desconforto porque inevitavelmente será mais bem cuidado ou mais desleixado que o seu, mais escuro ou mais claro, mais atraente ou mais insosso. A disposição dos móveis parece incorreta, tudo sugere uma grande transgressão, e você não se sente acolhido, tem vontade de sair correndo daquele lugar que foi concebido de um jeito estranho a fim de confrontar você. É isso. O apartamento do vizinho lembra que há outras formas de viver, enquanto você julgava que só havia uma: a sua.
Cada um de nós concebe a vida de uma determinada forma, decora a seu modo os dias e noites, colore suas paixões com suavidade ou desespero, dá um revestimento aos seus traumas ou os deixa a nu, expõe suas esquisitices ou as joga para baixo do tapete.
Cada um de nós recebe o mesmo espaço para existir e o arranja, inventa, traduz, transforma e recria de acordo com uma identidade que será sempre única, particular. Quando você tiver um ataque de petulância e achar que só o seu jeito de viver é que é certo, dê um pulo no apartamento do vizinho. E assombre-se com a quantidade de novos mundos que existem nas portas ao lado.

Luz que ilumina e outras desgraças - Tati Bernardi



Terça passada foi Dia dos Namorados, aquela data maravilhosa (criada pelo pai do Doria) em que fica bastante claro que os brasileiros não leem livros.

Sou uma grande incentivadora das declarações de amor. Mais do que isso: vira e mexe, as cometo. As atropeladas, rabiscadas, sem jeito, embriagadas, fora de hora ou endereçadas a quem não merece tendem a ser minhas preferidas.

Contudo, que desgraça ler a maioria das homenagens no Instagram e no Facebook. Amigos, vocês já passaram dos 30 anos, não dá mais para escrever como num bilhetinho de quermesse! “A tempestade que só nos deixou mais fortes”, “a distância que nos uniu”, “o instante daquele abraço”, “o sorriso mais lindo do mundo”, “obrigada por ser assim do jeitinho que você é”, “sou todo dela”, “eternos namorados”. Apenas parem. Nem pagodeiro consegue ir tão fundo no fundo do poço.

O mais chocante é a seriedade com que as pessoas escrevem essas baboseiras. Qualquer ser humano com três livros na estante ou o mínimo de neurônios necessário para uma autocrítica riria de si mesmo. Mas não, os Baudelaires do Dia dos Namorados acham mesmo que estão arrasando. E estão, mas é com a língua portuguesa.

Logo cedo, ainda na cama, já li a primeira afronta a nosso lindo idioma: “Você é a luz que ilumina meus caminhos”. Luz que ilumina! Ah, que misteriosa e diferentona essa luz que sai por aí iluminando! E caminhos, só conheço os que o Waze me narra. O resto é a ordinária claridade do computador do mozão (vendo besteira na madrugada) alumiando a rota quarto-cozinha.

A gente já sofre o ano inteiro com o povo da firma e seus happy hours em bares de Moema, insistindo nas fotos de cerveja acompanhadas da insuportável tiradinha “abrindo os trabalhos”. Já padecemos com os “looks cheios de bossa” de todas as mortais que se decidem it girl só porque compraram uma bota com franja. E a moda de escrever textão para o aniversariante queridão? O “todo dia é seu dia, mas hoje blá-blá-blá” confirma a minha tese de que os piores escritos emergem dos seres que mais perdem tempo sendo boas criaturas.

Mas tem um tipo que é o campeão da incapacidade cognitiva. São aqueles que começam todo post com “não tenho palavras”. Ou as versões pioradas: “ah, você me deixa sem saber o que dizer!”, “você sabe, não preciso falar nada!”, “o que escrever sobre você?” e o fatal “amo tanto que sei lá”. Oi, amigo, você aprendeu a se expressar com que organismo do reino animal? Se você não sabe articular, constatar e tampouco refletir, por favor, procure ajuda especializada! Isso não é amor, isso é grave! Isso não é uma explosão de sentimentos maravilhosos, mas talvez tenha algo prestes a romper no seu cérebro.

Qualquer um desses cursos-enganação sobre técnicas para ser mais criativo ensina que ninguém chega a lugar nenhum ser ler. E pelo menos nisso eles estão certos. Ler matérias, entrevistas, reportagens. Ler crônicas, contos, romances, poesia, cartas. Até bula de remédio é melhor do que nada.

Se se lembrassem do ódio de Bentinho por Capitu, se suportassem a vertigem da “Insustentável Leveza do Ser”, se recordassem as humilhações impostas por Lily a Ricardo em “Travessuras da Menina Má”, se tivessem chorado quando o amor de Paulo Mendes Campos acabou, se soubessem que a menina com uma flor de Vinicius se desesperou ao ver as malas partindo na estação de Roma, se pudessem sentir a última sílaba de Lolita nos dentes, como fez o Humbert de Nabokov…

Mas, infelizmente, o brasileiro não lê nem aviso de “faltará energia” e fica no escuro sem saber o motivo. Era pra ser romântico, mas nenhuma outra data do ano traduz nossa indecência intelectual tão bem quanto o Dia dos Namorados. Feliz Dia dos iletrados!

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Os Podres - Luis Fernando Verissimo



A conversa entre os dois casais estava boa, até que a Márcia resolveu criticar o marido.
– Sabem que o Alaor não joga papel fora?
– Marcinha... – tentou protestar o Alaor.
Mas Márcia continuou:
– Não joga nem deixa eu jogar. Há anos que ele acumula papéis. Revistas, recortes de jornal...
– Marcinha, precisa falar nisso agora?
– Precisa, Alaor. Precisa porque eu não sei mais o que fazer com tanto papel dentro de casa. Desculpe, mas eu não aguento mais.
O desabafo de Márcia criou um constrangimento no outro casal. Mas Márcia não parou.
– Vocês sabem que ele encheu um armário inteiro com revistas velhas? Aí eu não aguentei. Botei todas fora.
– É. Minha coleção da Placar. Desde o primeiro número. Você jogou no lixo!
– Precisava do armário para guardar roupa. Armário é pra isso.
– A coleção inteira!
– Sabem esses volantes que distribuem na rua? Ele pega todos. A casa está cheia de volantes. De telepizzas, de detetives, de tudo. Até de cartomante. Vocês acreditam? Cartomante!
Agora o Alaor estava brabo:
– Já que estamos botando os podres pra fora, o que você me diz das suas calcinhas?
– O que que tem as minhas calcinhas?
– As suas calcinhas penduradas no banheiro. Há anos que eu pergunto por que tem calcinhas penduradas no banheiro e você não dá bola. Explique, agora. Na frente de testemunhas. Por que nosso banheiro tem calcinhas penduradas por tudo que é lado?
– Que ridículo, Alaor.
– Há anos eu peço uma explicação, que não vem. Anos!
Quando Márcia e Alaor saíram, o outro casal ficou comentando aquela explosão intempestiva de ressentimentos domésticos. Como era que um casal chegava àquele ponto?
– Se bem – disse a mulher – que a Márcia tem um pouco de razão. Você também tem mania de colecionar papel...
– Peralá. Eu só guardo suplemento literário para ler depois.
– E nunca lê. Mas francamente, guardar volante de cartomante é demais.
Mais tarde, na cama:
– Bem...– Mmm?
– Por que mesmo suas calcinhas ficam penduradas no banheiro?

domingo, 10 de junho de 2018

Prometeu acorrentado ao GPS - Ricardo Araujo Pereira

Luiza Pannunzio/Folhapress


Introduzi o endereço no GPS e ele perguntou: "Aceitar destino?". Nunca tinha reparado na pergunta. E agora? Como assim, "aceitar destino"? Não vinha preparado para uma decisão dessas. Uma pessoa pensa que vai dar uma volta de carro e de repente está numa peça de Sófocles.
Que destino estarei a aceitar? Posso responder que não, mas aí estarei a rebelar-me contra o destino. Dizem que isso não é bom. Mas também não vou aceitar um destino qualquer. O GPS tem de ser mais específico. E se me calha o destino de ter o fígado comido diariamente por uma águia? Aconteceu a outros, por que não a mim?
Na verdade, eu só queria ir ao supermercado. Preciso de cerveja. Só que também não estou confortável com a ideia de aceitar que o meu destino seja ir ao supermercado. Que destino mixuruca. Tem ligeiramente menos páthos do que matar o pai e casar com a mãe. E dá uma peça muito fraca.
Que dirá o coro das oceânides? "Olha como ele percorre a seção das frutas e legumes. Agora já está na zona das cervejas. Está indeciso entre duas marcas. Uma é pilsen, outra é lager, mas ele nunca entendeu qual era a diferença. Oh, ignorância. Oh, indecisão." Ninguém quer ver três atos disso.
Enfim, haverá destinos piores. Mais memoráveis, mas piores. E se a morte me espera no supermercado? Aceitar o destino será ir entregar-me nos seus braços.
Por curiosidade, coloco Samarcanda no GPS. Há aquela história do homem que vê a morte num mercado e foge para Samarcanda. O patrão do homem pergunta à morte: "Por que fizeste um gesto ameaçador ao meu servo?". A morte diz: "Não foi um gesto ameaçador, foi de surpresa: tenho um encontro marcado com ele amanhã, em Samarcanda". Pois bem, segundo o GPS, de Lisboa, onde moro, até Samarcanda, são 91 horas. É um esforço muito grande, mesmo para fugir à morte. E deve ser uma fortuna em pedágio. O servo precipitou-se.
Acabei por decidir o seguinte: introduzi Samarcanda no GPS e aceitei o destino. Depois desliguei o carro e voltei para casa. Na melhor das hipóteses, despistei a morte, que a esta hora está no Uzbequistão à minha procura. Na pior, ela não se deixa enganar.
Tudo bem, se a morte me quiser, que venha visitar-me em minha casa. Mas aviso já que não se divertirá muito, porque eu não tenho cerveja.

A louca do parquinho - Tati Bernardi

David Magila



Quero pedir desculpas a todas as mães que assustei nos últimos 20 anos. Eu era a louca do parquinho e não sabia.

Não podia ver um bebê na rua, no shopping, na pracinha, numa festa, até em sala de espera de médico, que lá ia eu infernizar o pequeno ser e incomodar sua pobre mãe. Quando estava comigo, meu marido apertava minha mão e diminuía o passo, como se pressentisse que faria alguma besteira, tipo quando a gente puxa a guia do cachorro ao ver outro menorzinho se aproximando.
Sentia um forte clima de “corre com a criança antes que seja tarde”, mas não entendia por que meu simples desejo de afagar (e cheirar e agarrar e morder) bebês era visto como infame. Ué, mulher desconhecida, eu (com todos os meus potenciais vírus, bactérias e outros germes) quero apenas dar amor ao seu filho, qual o problema? 
Há quatro anos, fui ao aniversário da Mayra, produtora do último filme que escrevi, e ela estava com um bebê maravilhoso no colo. Corado, gordinho, sorridente. Me desesperei. Era agarrar aquele mini-humano ou passar o resto da vida achando tudo enfadonho. 
Simplesmente NÃO PERGUNTEI NADA pra mãe (que eu não conhecia) e me lancei pra cima da criança. A Mayra tentou argumentar, mas era tarde demais. Mordi a barriga, cheirei a nuca, ninei, falei “te amo pra sempre” no ouvido dele. A mãe fechou a cara e foi embora pouco depois. Moça, esse texto é pra te pedir perdão de joelhos. Mayra, desculpa ter causado na sua festa. 
Agora que sou mãe, tenho pavor que desconhecidos sequer sorriam para minha filha. Se encostam um dedo no pezinho dela, já tenho vontade de espirrar álcool gel nos olhos da pessoa. Se a pegam no colo, me contorço em ciúmes e em desejo profundo de que o mundo todo use máscara cirúrgica. Contratei uma babá e demorei 40 dias para deixá-la me ajudar. Os amigos sabem que qualquer visita que passe de meia hora já me dá angústia.
A mãe e seu bebê formam um universo completo e delicado. Para furar essa bolha, é preciso ser muito cuidadoso, amável e, sobretudo, convidado. Continuo sendo a louca do parquinho, só que agora estou do outro lado da história.

Manual da faxineira - Fabrício Corsaletti


Romolo
para Alberto Martins

meu grande desejo seria escrever
um livro triste e engraçado
ao mesmo tempo
que fizesse as pessoas
rirem e chorarem
dentro do instante desprotegido
meu grande desejo seria escrever como Lucia Berlin
para ser amado por Lucia Berlin
para ser amigo de Lucia Berlin
e um dia ser convidado por ela
para ir ao México
Lucia Berlin minha mulher e eu
de carro pelos pueblos de Oaxaca
saudando os mortos e os sobreviventes
tomando mezcal nos bares escuros
mergulhando nas águas cristalinas
e partilhando histórias e bombinhas
de cortisona


na última noite elas me deixariam no aeroporto
com um beijo e a promessa de viajarmos juntos
no ano seguinte de novo talvez

Estereótipos de gênero - Ruth Manus

Em que pese o fato de eu detestar os estereótipos de gênero, há algumas verdades das quais nós dificilmente conseguimos fugir. Certos comportamentos que se repetem dia após dia, ano após ano, que nos fazem pensar que, sim, nós somos realmente muito diferentes, homens e mulheres.
E uma das principais coisas que me faz pensar nisso é a diferença essencial que reside no comportamento masculino e feminino na hora de procurar coisas. É claro que há exceções, mas por vezes a regra é tão latente que não podemos fugir dela.
O raciocínio é o seguinte: imagine que você esqueceu alguma coisa em casa e precisa que alguém a leve até a porta, pois você passará para buscar o objeto dentro de 10 minutos. Vamos supor que o objeto seja algo complexo e desafiador como a sua carteira.
Situação 1: você liga para casa e quem atende é sua filha, sua empregada, sua irmã, sua esposa, sua enteada, sua cunhada, sua prima, sua neta, sua mãe, sua tia, sua avó, sua madrasta ou qualquer outro indivíduo tido como mulher.
O diálogo é o seguinte:
– Oi.
– Oi.
– Olha, esqueci minha carteira em casa, preciso que você traga para mim, na porta de casa, daqui dez minutos.
– Ok. Onde está?
– No meu quarto, em cima da cômoda, ao lado do porta-retrato. 
– Beleza.
– Obrigada, até já.
– De nada, até.
E é assim que a coisa acontece, sem maiores polêmicas ou desafios. A carteira é entregue para o(a) proprietário(a), na porta de casa, dentro de um lapso de dez minutos, com variações de dois minutos para mais ou para menos.
Situação 2: você liga para casa e quem atende é seu pai, seu filho, seu enteado, seu marido, seu padrasto, seu empregado, seu cunhado, seu primo, seu tio, seu avô, seu sobrinho ou qualquer outro ser humano considerado homem.
O diálogo é o seguinte:
- Oi.
- Oi.
- Olha, esqueci minha carteira em casa, preciso que você traga para mim, na porta casa, daqui dez minutos.
- ESQUECEU O QUÊ?
- Minha carteira.
- E DAÍ?
- E daí que eu preciso que você pegue a carteira e leve na porta daqui 10 minutos.
- QUE PORTA?
De casa.
- TÁ. MAS CADÊ?
- Tá no meu quarto, em cima da cômoda, ao lado do porta-retrato.
QUAL QUARTO?
- O meu.
- TÁ. MAS FICA NA LINHA QUE EU VOU LÁ VER.
- Tá.
TÔ NO QUARTO. CADÊ A CARTEIRA?
- Na cômoda.
- NÃO TEM NENHUMA CARTEIRA NA CÔMODA.
- Como não? Tá aí, eu vi hoje cedo.
- NÃO. SÓ TEM UNS LIVROS, UM VASO, UNS ÓCULOS.
Não. Essa é a estante. A carteira tá na cômoda.
- CÔMODA É O GAVETEIRO?
- Isso, chame como você quiser. Tá ali em cima.
- HUM... NÃO TÁ.
- Gente do céu. Tá vendo minha agenda?
- UMA LARANJA?
- É vermelha, mas, sim, é ela.
- AHN.
Atrás dela não tem um porta-retrato?
- UM COM UMA FOTO SUA COM A JUJU?
- Não é a Juju, é a Luísa, mas, sim, é esse. Ao lado dele tá a carteira.
- NÃO TÁ NÃO.
- Ai meu Deus. Não tem nada do lado do porta-retrato?
- SÓ TEM UMA BOLSINHA.
- Roxa?
- AH, EU ACHO QUE ISSO É MEIO AZUL, MAS PRA VOCÊ É CAPAZ DE SER ROXO.
- Então, isso é a minha carteira.
- NOSSA, SUA CARTEIRA TEM ZÍPER?
- Tem.
- E É IMENSA, QUE QUE VOCÊ COLOCA AQUI?
- Minhas coisas. Olha, você pode levar pra mim na porta?
- QUE PORTA?
- De casa.
- QUANDO?
- Agora.
- MAS NÃO ERA DAQUI DEZ MINUTOS?
- Você levou quinze procurando.
- MAS É PORQUE VOCÊ NÃO EXPLICA DIREITO.
- Tô aqui na frente.
- DO QUÊ?
- Da porta.
- QUE PORTA?
- De casa. Você traz?
- AGORA?
- Isso.
- MAS EU TÔ DE PIJAMA.
- Pode ser de pijama mesmo.
- MAS EU PRECISO COLOCAR UM CHINELO.
- Tudo bem. Eu espero. Obrigada.
E é assim que acontece. Ele ainda leva uns minutos para chegar – porque precisou ir até o banheiro com urgência –, depois resolve te dar um pequeno sermão, dizendo que você precisa se organizar melhor e que não pode ficar irritada com uma pessoa que está te ajudando.
Quando se afasta ele ainda se vira e diz AH, VOCÊ POR ACASO SABE ONDE ESTÁ MEU CASACO PRETO? e você diz tranquilamente “Tá atrás da porta” e ele arregala o olhos e diz QUE PORTA?

domingo, 3 de junho de 2018

Contra o tchau - Antonio Prata

Adams Carvalho/Folhapress

O oi é importante. É o mínimo de civilidade e pode ser legal, também, se a pessoa não for mala. Você encontra o conhecido na festa. Há uma surpresa genuína, “Ah, você!”, “Olha só!”, “Há quanto tempo!”. Vocês pensam um pouco: quanto, mesmo? “Foi na casa do Ricardo, aquele churrasco?”.
“Não, depois do churrasco a gente se trombou na Virada Cultural.” “A Virada Cultural não foi antes da casa do Ricardo?!”. “Não sei. Na casa do Ricardo você contou que tinha acabado de tirar o aparelho, tava reclamando que precisou usar aparelho, adulto”. “Ah, então foi depois da Virada. Eu tava de aparelho na Virada. Foi 2011!”.
“Dois mil e onze!” “Nossa, sete anos, já!”. Você não tinha filhos. A mulher dele estava grávida das gêmeas. Rola um papinho sobre como tudo está passando rápido. As gêmeas já estão com dentes permanentes. Vocês estão ficando velhos. Ele diz que você tá ótimo, cabeludo, “isso é Finasterida ou Minoxidil?”. Você ri. Diz que ótimo tá ele, em forma, “é pilates ou crossfit?!”. Ele ri. Por fim os dois aceitam que estão bem, na medida do possível. Você recomenda Finasterida, ele te passa o contato do crossfit.
“E o Ricardo? Tem visto o Ricardo?”. Ele diz que não. O Ricardo separou. Agora mora em Natal. Então é aquela coisa de festa, você vê outra pessoa, ele quer pegar uma bebida, vão cada um pra um lado, mas você sai com uma sensação boa, como se tivesse remexido numas fotos antigas ou folheado sua agenda do colegial. É um “Stories” que o encontro produziu dentro da sua cabeça.
O tchau não é assim. O tchau é mentira do começo ao fim. Você se despede e em vez da surpresa do encontro surge uma pequena culpa por estar partindo. Aí você fala, depois do abraço, “Ah, a gente precisa se ver mais!”. Balela. Os dois estão no Facebook, poderiam ter se visto em qualquer momento dos últimos sete anos. “Vamos marcar!”. “Claro!”. 
Os dois sentem a falsidade no ar e resolvem maquiá-la trocando os telefones. Ele pede seu número e disca. Toca, você desliga, diz que saindo dali vai botar na agenda. Talvez bote. Talvez não. “Vamos chamar o Ricardo!”, ele sugere. (O Ricardo mora em Natal). “Vamos fazer outro churrasco com o Ricardo! Pode ser lá em casa!”, você diz. Ele se sente em dívida porque você ofereceu a casa pro churrasco, diz que leva as bebidas e emenda: “Melhor, vamos fazer um churrasco e depois ir na Virada, ano que vem!”. “Marcado!”. 
Ele diz que vai ver quando o Ricardo vem a São Paulo. Vocês se despedem de novo. Dão mais um abraço. (O tchau brasileiro nunca é no singular. São vários tchaus. Dois. Três. Sete. Às vezes começa lá dentro, vai indo pra porta, não acaba). Você finalmente vai embora.
Se o oi te deixou com uma sensação boa, que legal é aquele cara, que legal era o Ricardo, que legal foi aquele churrasco, aquela Virada, os filhos que vieram depois, a vida que vai passando, o “Stories” da última década rolando na sua cabeça, o tchau te faz partir com um gosto meio amargo. O tchau é emissão de papel moeda afetivo sem lastro e a inflação que começa ali desvaloriza até a alegria produzida pelo oi.
Se fosse por mim, acabava o tchau. Dá um oi bem dado e na hora que quiser ir embora, vai, sem olhar pra trás —e um dia, se o Ricardo voltar de Natal e a gente quiser fazer um churrasco, faz.

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Temendo o povo - Vladimir Safatle

Marcelo Cipis
Poucos foram os acontecimentos que explicitaram de forma tão cabal a realidade brasileira quanto a atual greve dos caminhoneiros.
Primeiro, saiu de cena a narrativa delirante de que, apesar da degradação política, a economia nacional caminharia a passos seguros rumo à recuperação. Os caminhoneiros explicitaram a dinâmica destrutiva que alimenta a dita racionalidade econômica em vigor no governo. Racionalidade esta capaz de estrangular a atividade produtiva, como ficou evidente na exposição da lógica que atualmente comanda a política de preços da Petrobras, com seu modelo de importação de petróleo refinado enquanto deixa em ociosidade refinarias nacionais.
Mas essa greve de caminhoneiros explicitou principalmente a inanidade política dos principais atores nacionais. Não apenas porque ele deixou a nu o simples fato de que não existe governo no Brasil.
Aquilo que alguns chamam de governo demonstrou sua inépcia absoluta em lidar com movimentos sociais e reivindicações populares. O que lhe resta é apelar sistematicamente às Forças Armadas na esperança de criar alguma ilusão de comando.
Vemos nascer um Estado tutelado no qual as Forças Armadas são o verdadeiro gestor e poder moderador a definir os limites de atuação do campo político. Aqueles que temem um golpe de Estado deveriam se dar conta de que um golpe já ocorreu. Nós já habitamos um sistema, no mínimo, híbrido de governo.
Essa greve demonstrou a inanidade política a que estamos submetidos porque ela demonstrou como até mesmo setores hegemônicos da esquerda brasileira têm medo de mobilizações populares, e essa greve esteve longe de ser simplesmente um locaute.
Os caminhoneiros conseguiram literalmente parar o país e deveriam ter sido seguidos por uma mobilização radical de outros setores, tendo em vista a pura e simples derrubada de um governo que não representa ninguém, que não tem legitimidade alguma e cuja única razão de existência é procurar defender uma casta corrupta de políticos que nunca desaparecem.
A derrubada do governo por pressão grevista seria um processo civilizatório na política brasileira, pois mostraria que nenhum governo indiferente à vontade popular absolutamente majoritária tem direito de existência. A democracia representativa precisa caminhar para a incorporação do poder destituinte efetivo da pressão popular.
No entanto, vários entenderam que estávamos diante de um movimento claramente autoritário devido à presença de pedidos por golpe militar vindos de setores dos grevistas.
Mais correto seria lembrar que as classes populares entraram, e não apenas no Brasil, em uma clara dinâmica anti-institucional. Elas sabem que a estrutura institucional da democracia liberal é incapaz de garantir condições mínimas de justiça social.
Esta dinâmica anti-institucional pode tanto ir em direção às fantasias paranoicas de um regime forte e ditatorial quanto a um fortalecimento de movimentos de transferência do poder decisório a instâncias imanentes à vontade popular. A história nos mostra que as classes populares, quando assumem uma dinâmica anti-institucional, podem ir tanto para um extremo quanto para o outro.
Neste sentido, o erro é deixar o campo livre para a paranoia autoritária e não procurar construir hegemonia por meio de processos de proliferação de greves e movimentos de ocupação das ruas.
Um erro similar já aconteceu em junho de 2013. Pois há de se entender que uma das polaridades decisivas da política contemporânea passa pelo confronto entre saídas institucionais e saídas anti-institucionais.
Essas últimas não são mera expressão de regressão social. Algumas delas são a expressão de um desejo efetivo de construir uma democracia ainda por vir, distinta do modelo tecnocrata e oligárquico que conhecemos hoje. Ignorar essa dimensão é o caminho mais curto para a derrota contínua.

Sob tortura - Tati Bernardi


“Mas é família.” Tem que aturar ou, ainda pior, tem que amar porque é família. Quem tem cachorro sabe: a gente gosta bem mais dos animais domésticos do que de 99,5% dos parentes.
Para visitar a avó no interior lotavam um Veraneio. A mãe dizia: “Vai bem na frente! Se chacoalhar muito, dá menos vontade de vomitar”. Durante o trajeto, tios e primos soltavam sonoros e terríveis flatos e falavam de “namoradas” como se fossem funcionárias insuportáveis de um telemarketing do inferno.
A garotinha é maluca porque a mãe da garotinha está cada hora com um macho. O garotinho é bicha porque a mãe do garotinho nunca prestou muito. E assim iam comentando, ao longo do trajeto e sempre com muito desvelo, as crianças próximas e, ainda com mais brandura no coração, as mães desses rebentos “degenerados”. 
Quando pequenos, fomos todos torturados por alguém da família. O mundo, ainda tão limitado, era essa galera que, mesmo sentando na frente do Veraneio, dá muita vontade de vomitar. Os filhos já deram errado antes mesmo de saberem o que é isso, as mães seguem “dando” errado, esquecendo que depois de parir não deveriam mais ter desejos. E os senhores que bufam e riem (e detestam mulheres) se juntam às senhoras que odeiam outras mulheres (e também bufam e riem) e juntos formam o espírito natalino. E o espírito natalino (Páscoa, aniversário da avó, Ano Novo, batizado, Dia dos Pais, bodas da bisa, não importa a data, o espírito natalino nada tem a ver com o Natal, e sim com uma turma bem estranha reunida em prol de se aliviar e detonar os outros) é a maior tortura da vida de um adolescente bacana.
A cada 178 humanos desnecessários (ou apesar deles), forma-se, assombrosamente, uma pessoa notável. E este jovem, essa flor de lótus que nasceu do asfalto fétido, sabe, desde os tempos de miúdo, que tem algo de muito errado com o tio do pavê que defende a intervenção militar. O parente que explica, com a grandiloquência inútil de um tenor desafinado, que nunca existiu a ditadura. Ou que foi necessária para acabar com terroristas. Ou que “precisa crescer o bolo antes de repartir”, esquecendo que ele jamais foi repartido. Ou que defende que o “milagre econômico” não foi uma “religião” apenas para ricos e empresários. Ou que tem saudade do tempo “que era realmente seguro sair na rua”, esquecendo que jovens morriam, sumiam, eram despedaçados, queimados, apagados. Desprezam as grávidas que eram estupradas, levavam choques, perdiam seus bebês. Desdenham que jornalistas, artistas, amigos eram amarrados pelos pés, currados, espancados, afogados, eletrocutados.
Esses broncos e boçais que defendem a intervenção militar são nossos torturadores de toda uma vida. Quem não tem pelo menos um na família? Nos jantares em que não rimos das piadas sobre nossos defeitos, nos almoços em que ninguém falou de livros ou cinema ou viagens ou filosofia ou artes ou psicanálise ou música ou teatro (mas sim de como a fulana é vaca e o fulano é viado e a vizinha é sapata enrustida e a prima é obesa e o namorado da tia é um artista vagabundo), nas festas em que não sentimos nenhum conforto ao abraçar as pessoas, nos casamentos em que celebramos a falsidade, fomos torturados.
Ficamos loucos, inseguros, solitários, incapacitados de amar, dependentes de terapia, dependentes de antidepressivos e, ainda assim, nada disso se compara ao sofrimento de uma ditadura. São eles, os parentes ignorantes que nos aviltam com seus comentários, os torturadores do Brasil de hoje. Agora é torcer para que eles sejam o pior que pode nos acontecer.

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...