‘Era tão bonito, mas tão bonito, que até tremia de tanta beleza’, dizia minha tia
Manhã de domingo, na padaria a ler o Ugo Giorgetti na página da Copa, lembrei-me de tio José e da paixão que ele tinha por futebol. E junto a memória de tia Terezinha, com quem ele esteve casado por 55 anos. Acontece que esta tia, de olhos azuis safira, foi marcante em minha vida. Frasista inspirada, nunca esqueci uma tirada dela, junto ao tanque de lavar roupa, em Estrela D’Oeste, boca do sertão na época, onde o marido era chefe da estação. Um cavalo se aproximou da cerca, ela definiu: “Era tão bonito, mas tão bonito, que até tremia de tanta beleza”. A beleza ganhava imagens variadas, como esta outra não me lembro a respeito do que: “Era bonito, mais bonito que o azul”.
Quando se casou com José ela tinha 17 anos. A ferrovia, EFA, deu ao meu tio apenas um dia de folga para ir a Araraquara, casar e voltar. Ele foi, casou e os dois partiram no trem noturno para a estação de Cosmorama, próxima a Votuporanga. Fim de mundo. Chegaram noite alta, direto para a cama. Ela acordou antes, levantou-se em uma casa que não conhecia ainda e fazia parte da estação. Viu-se na plataforma. “Olhei para a frente, mato. Olhei para a direita, de onde eu imaginava que tivesse vindo, mato. À esquerda, também. Atrás de mim, mato. Cosmorama não passava de uma estação em meio à mata virgem do sertão. Ali éramos eu, José e a solidão. E foi aquela solidão que nos ensinou a viver juntos, a nos inventarmos a cada momento, a descobrirmos que a felicidade estava em poucas coisas. Ríamos muito, um com o outro, de nós dois, de m pássaro que cantava no mato.”
Os dois acompanharam a abertura do sertão da alta araraquarense, os ciclos agrícolas, o café, o arroz, o desenvolvimento de São José do Rio Preto e Votuporanga. Foi nesta cidade que frequentei a casa deles, chefes de ferrovia eram importantes, ainda que não gozassem de foro privilegiado. Ali em Votuporanga ensinei todos a jogar buraco e tranca, as tardes calorentas corriam entre gritos de “bati” e apitos de trem e sinos de locomotivas. Ali soube por ela a história do cachorro lendário que conhecia os trens que tinham vagão-restaurante, subia, comia e descia na próxima parada, sabendo os trens que o trariam de volta. Em Araraquara, os almoços de domingo eram no “quartão” e reuniam uma trempe de filhos, parentes, agregados. Tia Terezinha servia a cada um, matronal e autoritária, e não adiantava você dizer chega, depois disso ela ainda acrescentava quatro porções, debaixo de risos.
Muito celebradas foram as viagens a São Paulo, os dois e meus pais, Antonio e Maria. Não existia para os quatro maior delícia do que bater pernas, ir ao cinema, teatro, à catedral da Sé, à Barão de Itapetininga, ou tomar chocolate na Leiteira Americana. Divertiam-se no bonde Penha-Lapa ou no João Mendes-Santo Amaro, longuíssimos trajetos. Era luxo hospedar-se no Hotel das Bandeiras, vizinho à Estação da Luz, hoje demolido pelo metrô. Desse hotel, Terezinha e meu tio traziam uma imagem forte que compartilhavam comigo. Os almoços e jantares em que eram servidas dezenas de travessinhas com arroz, feijão, bife, lombo de porco, torresmo, fígado acebolado, ovo frito, linguiça, couve, almeirão, abobrinha, farofa, quiabo, polenta frita, favas, batata frita em rodelinhas, batata-doce, saladas de abobrinha, alface, palmito, tomate, ovo cozido, cebola. Aquele quarteto era ligadíssimo, todos pessoas simples, mas cabeças boas, abertas, tio José meu pai liam muito, compravam, trocavam, emprestavam livros. Terezinha poderia ter sido diplomata, aparou arestas entre vários parentes, apaziguava. Tinha um humor sarcástico, às vezes rascante, sedutor. A cada mulher nova na família, noras, noivas de sobrinhos e que tais, ela chamava: “Deixe-me ver seu pé. Quero ver se tem pé de puta”. Era o rito de incorporação. Gargalhadas. A recém-chegada era admitida, passava a adorar Terezinha.
Quando minha mãe morreu, aos 60 anos, Terezinha estava no quarto. De repente, contou-me: “Senti um perfume estonteante e fui até a janela, saber de onde vinha. Quando me virei, Maria tinha acabado de morrer”. Sempre fui para ela um “filhão”, tornei-me “irmão” de meus primos. Felicidades, agruras, angústias se misturaram em nossas vidas, mortes, doenças, dores, mas o riso com que ela me recebia era o mesmo quando a conheci aos 11 anos, linda, exuberante.
Então, a idade, 88 anos, cobrou juros, a viuvez, perdas de amigos e amigas, uma queda, o fêmur quebrado, passava o tempo na cadeira, perdeu a audição. Recentemente, fui avisado: ela acabou de receber a extrema-unção, está com a respiração por um fio, o médico avisou que não passa desta noite. Manhã seguinte, um telefonema: a tia acordou, sentou-se na cama, sorridente, tomou café, conversou, xingou (ela não poupava um palavrão, tinha humor) alguém. Voamos para Araraquara Marcia e eu, greve de caminhoneiros, nem sei como arranjamos gasolina, atravessamos barreiras, chegamos lá. Quando nos viu entrar, tia Terezinha sorriu, uma lágrima azul desceu daqueles olhos que não perderam o brilho até o final. Sorria para nós o tempo inteiro. Enérgica, para quem nem falava mais, mandou que a cuidadora fizesse um café. Nos deu a sensação daquela mulher da vida inteira. Ao nos despedirmos, mandava beijos repetidos, avisando que Santo Antônio, pelo qual tinha fé absoluta, ficaria no lugar dela a me olhar. No dia seguinte, entrou em coma. Morreu dois dias depois. Partiu no mesmo dia em que tio José também se foi, 16 anos atrás. Nada na vida é acaso. Tenho certeza de que ela voltou por um breve momento para nos vermos.