domingo, 19 de novembro de 2017

Sobre pizza e honestidade - Ruth Manus


Dentre as muitas más ideias que as pessoas podem ter, uma das piores certamente é fazer compras de supermercado em família. Esse momento definitivamente não é compatível com as noções de convivência e harmonia. Trata-se de uma estrada cujo destino, único e certo, é a discórdia.
Num certo sábado de fim de verão, o universo arquitetou este desafio para nós. Por alguma razão infeliz estávamos na rua no fim da tarde e a necessidade de passar no supermercado, marido, mulher e criança juntos, apresentou-se como imperiosa. Eu ainda suspirei, pensei em alguma forma de evitar a situação, mas não foi possível.
Chegamos ao supermercado e os pequenos conflitos começaram já na segunda gôndola. Os debates iam desde o tamanho do guardanapo até o quão maduro estava o mamão. Mas dentre tantas faíscas que iam surgindo dentro do carrinho, uma merece destaque: a pizza congelada.
Minha enteada, com seus 7 anos, ao passar pela seção de congelados, pegou uma pizza, que nos pediu para levar. O pai disse que aquilo era uma porcaria, eu disse que nós já comíamos pizza fora de casa, e que em casa a comida precisa ser mais saudável. Dissemos para que ela escolhesse outra coisa. Mas a paixão pela pizza congelada era tanta que nenhum docinho foi capaz de derrubá-la. Acabamos por liberar a pizza, mas frisando que nós dois éramos contra, e que aquilo era um caso excepcional.
Fomos embora, chegamos em casa, guardamos as compras com mais alguns pequenos atritos e a vida seguiu. Passou o domingo, a segunda e a terça. Na quarta, jantamos cedo uma bela sopa de legumes, peito de frango, arroz integral, berinjela no forno, cubinhos de melão. Tudo corria nos conformes. A miúda dormiu antes das 22 e nós fomos assistir a uma série.
Já era quase uma da manhã quando as personagens norte-americanas começaram a comer uma pizza deliciosa com as mãos, com aqueles fios de queijos esticando entre a boca e a fatia que se afasta. Nossos olhos brilharam. Meu marido comenta, sem perceber o perigo “está-me mesmo a apetecer uma pizza”. Eu, já sofrendo, penso na pizza do congelador.
Aguento por uns 40 segundos, até olhar para ele e dizer: a pizza. No congelador. A pizza da miúda. No congelador. Ele arregala os olhos, como se tivesse descoberto a coisa mais fantástica e promíscua do universo. Ficamos em silêncio mais uns 30 segundos. Olhamos um para o outro. Ele define: vamos comer e amanhã colocamos outra no lugar.
O sentimento de culpa que me invade, embora seja grande, não consegue ser maior do que a vontade de comer a pizza. E assim ela foi para o forno, o queijo derreteu, a massa ficou crocante, nós acabamos com tudo e jogamos a caixa no lixo. Fomos dormir como se nada tivesse acontecido. Era quase um tabu.
Ocorre que na manhã seguinte aconteceu o impensável. Por alguma estranha razão, a pequena, entre o curto intervalo de acordar, se vestir, tomar leite, escovar os dentes e sair para a escola, encontrou tempo para levar um papel ao lixo da cozinha. E então nosso mundo caiu.
Ela, com um aspecto assombrado, vira-se para nós e diz, incrédula e decepcionada: OH PÁ!! VOCÊS COMERAM A MINHA PIZZA SEM MIM?! Nós dois só queríamos pular pela janela do terceiro andar para não precisar lidar com aquele constrangimento. Balbuciei algo do tipo “querida... é que seu pai... teve uma dor de estômago... e precisava comer uma coisa quentinha... e acabou o frango... por isso pegamos a pizza... para ele melhorar... mas nós vamos comprar outra já já... fique tranquila”. 
Ela nos olhou de cima a baixo e balançou a cabeça. Francamente, pai. Francamente, Ru. Ela tinha razão. Dissemos tantas vezes no supermercado que aquilo era uma porcaria... Depois comemos a porcaria escondidos da dona da porcaria.
Dentre as porcarias da casa, certamente nós dois éramos as piores.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Natal

Garfield - Jim Davis








DESCUBRA QUAL BICHINHO VOCÊ É! 


A última ceia - Julián Fuks

Sobre a mesa o maior frango da venda, farofa de banana, arroz com frutas secas, cravos fincados no tênder: de fome ninguém vai morrer. Quatro cadeiras em volta, alinhadas com diligência. Acomodados, apenas três, e o silêncio montado no tempo, galgando a noite com indiferença.
Aquele moleque é um inconsequente, o pai disfarça a inquietação em impaciência, tomando de empréstimo a palavra do chefe, preto inconsequente, é o que o chefe lhe diz quando alguma coisa não sai bem. A filha está mais entretida com seus problemas, comprida demais sua saia de renda, a que horas será que a festa começa, por que não comer de uma vez se já é óbvio que ele não vem. A mãe crava a unha entre os dentes, crava os olhos na parede, roga à estatueta de gesso que também esperou seu filho numa noite como essa, indaga o rosto de madeira com suas lágrimas vermelhas, por que é que ele não chega, que foi que lhe fizeram, bom rapaz que ele é. Não é desses que se perderam, ele sabe cuidar de si, não é nenhum pixote, não é nenhum guri; só tem o estranho vício de habitar as ruas e frequentar vielas.
Um jovem o abismo de fardas guardou consigo. Deve dar meia-noite a qualquer momento. O governador não vai ligar para prestar suas condolências.



JULIÁN FUKS é autor de "Procura do Romance" e "Histórias de Literatura e Cegueira" (ambos editados pela Record).



Fernando Gonsales



Hoje é um bom dia - Luisa Geisler

A família viajou. Na cozinha, Ana, a diarista, encara o telefone celular. Odeia o Natal sozinha.
Se ela poderia sair também? Não, passagens durante feriados são sempre caras. Não era a sua folga. E alguém vai cuidar de Lola, a poodle. Ana odeia o natal sozinha em Curitiba.
Se algo falhasse, seria a terceira família em seis meses. Ana se sentiria deslocada em qualquer família já completa, fosse no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Nos cursos de capacitação, sempre recomendavam: mudem pouco, eles conferem a carteira. Após catar suco na geladeira, Ana odeia o natal sozinha em Curitiba, Paraná.
Celular em mãos, Ana se senta. O papel de parede brilhante da ausência que todos os familiares são. Ana vê Lola e sente raiva. Fria e lógica, de um psicopata que sabe -num ensaio acadêmico de 137 folhas-- o que e por que odeia. Não é só Lola. Ana odeia o natal sozinha em Curitiba, Paraná, no bairro do Juvevê.
O celular toca o hino do Atlético Mineiro. Ana deixa tocar por um instante. Quem sabe estejam todos bem. Quem sabe haja solução. Ana pega o celular e sorri ao atender a chamada. É um bom dia.


LUISA GEISLER é autora de "Quiçá" e "Contos de Mentira" (ambos editados pela Record).


Fernando Gonsales






Garota medalha - Paulo Scott 
A garota medalha é a garota das medalhas (e o anjo das vitórias), ganha a vida entregando medalhas nas competições de natação. É um trabalho como outro qualquer e pode ser bem divertido se as duas outras garotas forem do tipo de gente que sabe se divertir. Os atletas não se divertem porque estão concentrados e precisam vencer. Nem todo atleta sabe dar valor a uma garota medalha. Ser garota medalha é apenas um dos trabalhos da nossa garota medalha. Neste mês, ela também será a garota animadora na festa da madrugada do dia vinte e cinco. Ganhará quase dez vezes mais do que ganha sendo a garota medalha, mas não terá tempo para sentar e conversar. A garota medalha teve oito empregos diferentes durante este ano, mas este ano não acabou. A garota medalha ganhará um vestido vermelho para trabalhar na tal festa. Fazer parte de um momento de vitória é fazer parte de um momento de beleza. A garota da medalha é comprovação da beleza e da sorte. A beleza não é a sorte e não é a inteligência. Um atleta precisa ser inteligente. A garota da medalha tem família, mas eles não são daqui. A garota da medalha acordou. A beleza, o vestido para a festa. A garota medalha se esforça. Nossa garota medalha. A beleza é um presente.

PAULO SCOTT é autor de "Habitante Irreal" (Alfaguara) e "Ainda Orangotangos" (Bertrand).



Fernando Gonsales








Miguel







Amely - Pryscila Vieira
Pater



Melancolia - Paloma Vidal

Quando o dente de leite que a Fada tinha levado embora apareceu na caixinha colorida da sua mãe, foi mais um sinal de que as coisas não eram como pareciam. "Suspeito", anotou no caderno que ela tinha lhe dado "para desenhar". Ele só conseguia fazer uns pauzinhos que rematava com círculos de diferentes tamanhos e depois chamava de bonecos, esperando que sua mãe se conformasse. Quase sempre ela não se dava por satisfeita: "e isso aqui?". "É uma árvore", improvisava. "Mas não tem folhas". Sem paciência, acaba dizendo que suas árvores eram assim, para encerrar a discussão. Tudo aquilo era chato e o distraía das suas tarefas como agente secreto. A Fada do Dente, o Coelhinho da Páscoa e o Papai Noel passavam sempre de madrugada, quando ele estava dormindo. Quanto a isso não havia nada a fazer, pois se ficasse acordado eles desistiriam de vir, o que não só não resolveria seu problema como o deixaria sem as recompensas. Sua mãe voltava sempre a esse ponto. Era evidente que eles se comunicavam com ela ou o dente não teria ido parar na caixinha, mas se lhe perguntasse ela nunca admitiria o óbvio. Isso tornava a chegada do Natal um tanto melancólica: de que adiantaria pedir um DS se sua mãe acabaria por convencer o Papai Noel de que ele estava mesmo era precisando de uma mochila nova?

PALOMA VIDAL é autora de "Mar Azul" (Rocco) e "Algum Lugar" (7 Letras)


Fernando Gonsales

Conto de Natal – Gregorio Duvivier

Meus primos já não acreditavam em Papai Noel havia muito tempo. A Barbara, minha irmã mais nova, já não acreditava em Papai Noel havia muito tempo. Eu era o último beato: era pra mim que continuavam a encenação. E que encenação. Como o Natal era sempre na fazenda, meu avô aparecia em cima de um trenó puxado por uma rena. Era tipo Disney, só que mais real. Pros meus amigos descrentes, eu dizia: "Vocês só conhecem aquele Papai Noel do shopping. É claro que aquele não existe. O que vai lá em casa é especial. Ou você acha que é qualquer velhinho que tem um trenó puxado por uma rena?".
Já devia ter uns sete anos de idade quando percebi que tinha alguma coisa errada. Peraí. Esse trenó é uma carroça. Essa rena é um jumento. E esse Papai Noel tem os olhos do meu avô, a voz do meu avô e os dois nunca estão no mesmo lugar ao mesmo tempo. A verdade começou a ecoar como num filme: o Papai Noel é o seu avô. O seu avô é o Papai Noel. Luke, I am your father. Balbuciei: "Vovô?". Ele tossiu. Cobriu os olhos. Ô-ôu.
Olhei em volta e vi que todos estavam prendendo o riso, inclusive a minha irmã mais nova. Todos sabiam de tudo. E o pior: todos sabiam que eu não sabia.
Fui correndo pro banheiro e vomitei a ceia de uma vez só. Na boca, o gosto azedo de decepção, desespero e chester com farofa de ameixa.
"Se o Papai Noel não existe, o que é que existe, então? Por que é que a Barbara não me contou que ele não existe? Será que isso quer dizer que sou mais burro que ela?"
Chorei por horas e nunca mais acreditei em nada: Papai Noel, coelhinho da Páscoa, fada do dente, Deus, o Espírito Santo, homeopatia e relacionamento aberto.
Quando via um quadro de Jesus, eu tinha vontade de puxar a barba postiça. Tadinho do vovô, acha que me engana.
*
Meu primo Santiago (filho dos meus primos) tem três anos de idade. Perguntaram o que é que ele ia pedir ao Papai Noel. Ele disse que não queria nada. Explicaram que o Papai Noel podia conseguir qualquer coisa que ele quisesse. Era só pedir.
Seus olhos brilharam, fascinados com tanto poder. E disse: "Então pede pra ele um empadão".
E de repente o Natal voltou a fazer sentido. E meu avô, depois de 20 anos de férias, vai voltar a desempenhar seu papel. Acho que meu ceticismo não resiste a uma aparição na carroça, trazendo um empadão.

Elvis



Duke




Frank & Ernest - Bob Thaves





Fernando Gonsales














Miguel


ANTÃO - Fabrício Corsaletti

Era negro o Papai Noel da minha infância. Curiosamente, isso nunca foi motivo de estranhamento pros moleques da nossa cidade, racista como qualquer cidadezinha do interior de São Paulo. Como qualquer capital do Brasil. Pelo contrário, estranhávamos quando outro adulto qualquer, branco ou japonês, vestia a roupa e o chapéu vermelhos e punha uma almofada idiota na barriga. Achávamos aquilo de uma falsidade intolerável, e logo alguém reconhecia e desmascarava o impostor.

Certa manhã, entre o Natal e o Ano-Novo, fui sozinho pro Clube dos Bancários —que ficava no final de uma estrada de terra e onde a classe média de Santo Anastácio passava as tardes nadando e jogando futebol— e vi um velho gordo e negro, de olhos verdes e turvos de catarata, fumando um cachimbo sentado na varanda de uma casa de madeira sem pintura, com manchas de musgo nas paredes, telhado caído, quase escondida atrás dos pés de mamona. Era o Papai Noel. Desci da bicicleta e disse:

-Oi, Papai Noel!

Ele levantou e disse:

-Ô, menino, tudo bem? Entra. Como vai seu pai? Sua mãe tá trabalhando essa semana? Preciso passar lá pra arrancar esse dente —e abriu a boca com a mão pra que eu pudesse ver direito.

Mais tarde descobri que seu nome era Antão.

Viveu ainda muitos anos depois que deixei de acreditar em Papai Noel.


Caco Galhardo





Galvão Bertazzi 







Calendário de polêmicas natalinas - Flávia Boggio


Falta pouco para o Natal, uma época de confraternização, perdão e renascimento. Para poucos. A maioria da população brasileira associa a data à melancolia, tristeza e burnout.

Familiares e amigos contribuem para tornar esta época do ano ainda mais miserável. No lugar do amor e abraços, o fim de ano vira temporada de desaforos e remorsos. Esqueça o "ninguém solta a mão de ninguém". Dezembro é tempo de dedo no olho e gritaria.

Para que o leitor se prepare para esta época tão turbulenta, a coluna preparou um cronograma das principais tretas de fim de ano. É o calendário de polêmicas natalinas.

15.dez — "Natal: Confraternização ou Golpe do Capitalismo?". Pior do que "Halloween  ou Festa do Saci", a polêmica do sentido do Natal começa quando alguém que tenta frustrar o ritual de troca de regalos, alegando se tratar de um momento espiritual, não material.

20.dez — "Amigo Secreto: Confraternização ou Filme de Terror?". Mal chega dezembro e aparece alguém com a polêmica sugestão: "vamos fazer amigo secreto?". A família se divide entre os que são contra, os que querem "inimigo secreto" e os do "amigo ladrão", que sempre termina em briga.

22.dez — "Uva Passa: Iguaria ou Heresia?". Todo Natal esse inocente ingrediente vira tema de briga entre os apreciadores e os resistentes a esse toque agridoce. Sobra para a mãe, que só queria fazer um arroz menos insosso.

23.dez — "Chester: Ave ou Aberração?". É frango? É peru? É uma forma de vida? A discussão permanece por séculos, já que são poucos registros da tão polêmica ave. Há quem diga que se trata só de um enorme peito de frango com patas.

24.dez, 19h — "Pavê: É Pá vê ou Pá Cumê?". É só a sobremesa aparecer na mesa que a família fica apreensiva, esperando algum tio lançar a famigerada piada. Aos familiares, resta a dúvida entre responder "é pá cumê" ou protestar contra a piada, o que certamente termina em briga.

24.dez, 23h — "E o PT, Hein?". Tão frequente e temida quanto manjar na sobremesa natalina, a pergunta normalmente é lançada por algum idoso da família para o jovem estudante de humanas da família. Em poucos segundos, a celebração termina em dedo na cara e gritaria.

Mas fiquem tranquilos. As polêmicas terminam no dia 25. Mas em dezembro do ano que vem tudo começa novamente.





O enforcamento do Papai Noel - Luciano Magalhães Melo


Cada pessoa possui suas próprias crenças. O conjunto destas pode ser fixo ou mutável, temporário ou duradouro. Pode ser superficial ou profundamente estruturado, pode ser julgado como racional ou absurdo. O delírio é uma falsa crença, construída sobre inferências incorretas a respeito da realidade. É firmemente mantido a despeito de não ser compatível com o que todo mundo acredita e nem se desfaz frente às óbvias provas do contrário.

 

Ida acredita em um homem mágico que a vigia constantemente. Ela está certa de que, uma vez por ano, o ser encantado a visita e lhe deixa presentes, mas somente se ele julgar o comportamento dela como adequado. A crença de Ida viola os princípios científicos de realidade, é, portanto, um delírio? Depende do contexto. Quando eu disser que Ida tem cinco anos, imediatamente se dissipa a preocupação sobre a saúde mental dela.

O fantástico entorno natalino continua a provocar boas discussões. Vale muito a leitura do ensaio "O Suplício de Papai Noel", do antropólogo Claude Lévi-Strauss, lançado em 1952 na revista Les Temps Modernes. O texto foi republicado na recente edição da coletânea, do mesmo autor, "Somos Todos Canibais", e remete a acontecimentos de 1951. Os fatos narrados ensejam reflexões pertinentes à nossa época, vamos a estes.

 

Autoridades eclesiásticas francesas denunciavam a crescente substituição da temática cristã por símbolos pagãos durante as celebrações natalinas. O Papai Noel contaminara o real propósito do Natal. À insatisfação católica somaram-se forças da Igreja protestante, isso fez o movimento crescer ainda mais. O ápice, então, ocorreu no dia 24 de dezembro, quando o Papai Noel foi enforcado nas grades de uma catedral francesa e, em seguida, queimado em frente às crianças órfãs. O clero havia condenado o personagem herege, um intruso que usurpava o lugar de Cristo e que bania o presépio.

Estas circunstâncias trouxeram oportunidades preciosas aos anticlericais de ataque aos religiosos, faziam-se acusações da intromissão cristã quanto às decisões privadas de festejos. Afinal, o Papai Noel oferta um momentâneo escape da realidade lógica, um descanso que ajuda o enfrentamento posterior. Também realça a pureza e a ideação mágica infantil, algo bonito de se ver e que deve ser incentivado. Mas há um paradoxo, a Igreja criticava um símbolo fantástico enquanto ateus convertiam-se em guardiões da superstição. Essa contradição só existe por haver uma contínua mistura de motes cristãos com motes pagãos.

Lévi-Strauss nos recorda que a diferença entre Papai Noel e uma divindade tradicional é que os adultos não acreditam nele, embora forcem crianças a acreditar. Portanto, o velhinho gordo separa os mais novos dos adolescentes e adultos. A ilusão infantil, cuidada por adultos, se desfaz como se fosse um rito de passagem, um marco do amadurecimento, quando os muito jovens passam a saber o que somente os mais velhos sabem. Os ritos de iniciação auxiliam os adultos a manterem os pequenos em obediência e a disciplinarem suas reivindicações.

 

Este expediente aparece em outras culturas. Os pueblos, nativos do sudoeste dos Estados Unidos, têm um personagem semelhante ao Papai Noel. Membros das tribos surgem periodicamente fantasiados e mascarados, encarnando deuses que retornam às aldeias. Estes são os Katchinas, que punem ou recompensam as crianças, enquanto estas não reconhecem seus familiares debaixo dos disfarces.

 

A tradição do Papai Noel foi construída a partir de combinações de legados de personagens ancestrais. Por exemplo, na Roma clássica, havia a festividade de Saturnália, que ocorria em dezembro. Seus participantes trocavam presentes entre si e celebravam Saturno, uma deidade que devorava as crianças, enquanto idosos bondosos as protegiam. Na Escandinávia, por sua vez, o demônio Julebok trazia presentes aos pequenos em datas especiais.

 

O Papai Noel é um bastião sólido do paganismo moderno.



Pater

Pryscila

Ikenga




Lézio Júnior



Os filhos musicais de Papai Noel - Alvaro Costa e Silva

Uma das histórias mais tristes das quase sempre tristes noites de Natal envolve o autor de "Boas Festas". Nem o biógrafo Gonçalo Junior, que escreveu o excelente "Quem Samba Tem Alegria: A Vida e o Tempo de Assis Valente", descobriu o que ele fazia num quarto de pensão em Niterói, na véspera de 25 de dezembro de 1932, tendo como única companhia a ilustração de uma bailarina na folhinha do calendário.

 

A fossa era profunda, e Assis Valente deve ter se lembrado da infância difícil no interior da Bahia, sem presentes nem brinquedos, ao ter a inspiração para os primeiros versos: "Anoiteceu, o sino gemeu/ E a gente ficou feliz a rezar/ Papai Noel, vê se você tem/ A felicidade pra você me dar". E o refrão revelador de seu estado de angústia: "Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel".

Lançada por Carlos Galhardo em 1933 e depois regravada (por sugestão de João Gilberto) pelos Novos Baianos em 1970, "Boas Festas" é a mais popular canção natalina brasileira. É também a melhor, mas longe de ser a única. E não estou falando de "Então é Natal" —a versão de "Happy Xmas (War is Over)", composta por John Lennon—, que tem o dom de anualmente ressuscitar a cantora Simone.

 

Entusiasta do gênero, o historiador Luiz Antonio Simas é capaz de esquecer o peru e o vinho e passar toda a ceia cantando para os amigos "Amargo Presente", samba-canção de Cartola interpretado por Beth Carvalho, "Meu Natal", um Lupicínio Rodrigues na voz de Jamelão, ou mesmo "Tão Bom que Foi o Natal", de Chico Buarque, raridade oferecida num compacto aos clientes da imobiliária Clineu Rocha, em 1967.

 

Para alimentar a tristeza —tão essencial à data quanto a rabanada — costumo ouvir "Meu Velho Amigo", esquecida valsa de Baden Powell com letra de Vinicius de Moraes, que pergunta: "Meu velho amigo/ Por que foste embora? / Desde que tu partiste/ O meu Natal é triste/ Triste e sem aurora".


Assis Valente - compositor




Zefirina Bomba Natal 2006 FULL EP



Papai Noel - Sergio Augusto


Ho ho ho!



Quando você deixou de acreditar em Papai Noel?

Fiz esta pergunta a uma porção de amigos. A média ficou entre os 4 e 6 anos de idade, sendo que alguns mentiram para denotar precocidade. Fiquei na média, com viés de baixa. Foi meu pai quem me revelou toda a verdade ao me entregar o presente que eu havia pedido ao outro pai, Noel. Nenhum trauma ficou. Afinal, trazidos ou não pelo bom velhinho, os presentes nunca deixaram de chegar - e era isso o que mais me importava na noite de Natal, além das rabanadas, é claro. 

Meu pai fez a coisa certa. Melhor cair na real em casa do que na rua, desiludido por algum moleque mais safo do que você, como amiúde acontece. Se bem me lembro, havia levantado algumas dúvidas sobre a impossibilidade lógica de Papai Noel entregar tantos presentes em todos os cantos do planeta, numa única noite e a bordo de um trenó puxado por nove renas (eram oito antes da inclusão de Rudolph, no século passado). Quando pinta esse tipo de questionamento é sinal de que chegou a hora de abrir o jogo com seu filho. Até para ficar com alguma credibilidade para quando ele começar a lhe fazer embaraçosas perguntas sobre a vida e os milagres de Jesus Cristo.



Noel não é uma divindade. Os adultos não acreditam nele, como acreditam em Deus e Jesus, mas estimulam seus filhos a cultuá-lo e perpetuar suas inacreditáveis façanhas entre os netos e demais descendentes. Diferençar as crianças dos adultos de maneira tão capciosa - as crianças não devem mentir, mas podem ser enganadas, ao passo que os adultos não devem ser enganados, mas podem mentir - é uma maldade com elas, condenou o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, num famoso ensaio sobre Noel, muito mais complexo do que esta minha redução deixa transparecer. Seu ponto de partida foi um fait divers natalino, de grande repercussão na França.

Na véspera do Natal de 1951, um boneco reproduzindo a figura de Père Noel foi enforcado e incinerado defronte a catedral de Dijon, diante de 250 crianças, por ordem de alguns religiosos locais, em pé de guerra com o que chamavam de “paganização da Natividade”, ou seja, a preponderância de Noel sobre menino Jesus e a manjedoura nas festividades natalinas. Pegou mal. “Recende à Inquisição”, acusou um jornal. O clero baixou a crista.

Lévi-Strauss intrometeu-se na polêmica com seus dotes estruturalistas (o ensaio, Papai Noel Torturado, foi publicado na revista Temps Modernes, em março de 1952), e traçou curiosos paralelos entre o Natal cristão e sua relação com a vida (o nascimento de Jesus) e o Natal pagão e sua relação com a morte e a ressurreição (do sol, no solstício de inverno) - com o herético Noel ocupando o centro da ribalta.

Quem mais profusamente me informou sobre o primeiro mito da garotada foi um sujeito chamado Roger Highfield. Nem sei se ainda vive, mas era, quando o conheci, um jornalista londrino especializado em ciências. Mesmo sem acreditar em Noel desde a mais tenra idade, interessou-se por sua lenda e estudou-a como quem segue a trajetória e as proezas de um santo com um passado real. Do que apurava, vasculhando trivialidades e enigmas natalinos, dava conta em sua divertida coluna no Daily Telegraph. Uma curiosidade puxava outra, num vórtice de deliciosas absurdidades.

Por que o bom velhinho, apesar da idade avançada, do excesso de peso e do diabetes (uma das “descobertas” de Highfield), prefere entrar pela chaminé e não pela janela, dos fundos, onde tampouco seria visto? Porque em sua primeira encarnação, ao financiar, sorrateiramente, o dote das filhas de um nobre falido com três sacolas de ouro, deixou a terceira despencar pela chaminé. E a superstição prevaleceu.

Naquela época, Noel ainda era Nicolau: um bispo cristão, sem barba branca nem pança, sempre retratado com uma Bíblia na mão. Teria morrido em 6 dezembro de 352, em Mira (atual Demre), no sudoeste da Turquia, onde, aliás, existe uma igreja de São Nicolau, em estilo bizantino. Seu nariz rubicundo foi de tanto apanhar sol no Mediterrâneo, não de pegar frio no Ártico. Seu deslocamento para as terras árticas do Norte da Europa - migração bem ao gosto da sensibilidade europeia do século 19 - foi manobra de marqueteiros da indústria e do comércio natalinos, com um empurrão decisivo dos americanos. O turismo dos países escandinavos fatura horrores até hoje.

Voltemos a Highfield. Todas as minhas dúvidas infantis e mil outras mais foram, se assim posso dizer, saciadas por ele; na coluna e, depois, nos livros Can Reindeer Fly? (Rena voa?) e The Physics of Christmas (A física do Natal). Para entender como Noel dá conta de todas as suas entregas no espaço de algumas horas e operando em fusos horários diferentes, Highfield recorreu à mecânica quântica, à nanotecnologia, à engenharia genética e à informática. Nem assim me convenceu, certamente porque não entendo patavina das três primeiras e da terceira tenho um conhecimento pouco mais que basal.

Um matemático de respeito, Ian Stewart, da Universidade de Warwick, contribuiu para essa diletante discussão com uma tese estrambótica: as renas de Noel seriam dotadas de uma misteriosa engenhoca no topo da cabeça que lhes permitiria voar com rapidez supersônica. Os esgalhos das renas, segundo Stewart, são “dispositivos aerodinâmicos transônicos”, que em alta velocidade se dobram como as asas do extinto Concorde e fazem o trenó, de tão rápido, tornar-se invisível a olho nu e indetectável por qualquer radar. 

Bem melhor me dei consultando, sobre a mesma questão, Unweaving the Rainbow (Desafiando o arco-íris), do cientista britânico Richard Dawkins. Que foi direto ao ponto. Também calculou que Noel precisaria voar mais veloz que o som para visitar numa única noite os 850 milhões de lares estimados por Simon Singh (autor de O Enigma de Fermat e noelólogo amador), mas seu home delivery produziria nos céus uma barulheira infernal, um sucessão de estrondos apocalípticos. Como a noite de Natal é, por tradição e natureza silenciosa (“Silent night, holy night...”), Dawkins liquidou a polêmica com esta peremptória conclusão: do ponto de vista científico, não há a menor possibilidade de Papai Noel existir.

Recolham os seus sapatinhos. E tenham um feliz Natal.

Malvados - André Dahmer









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PEDREIROS ZOANDO PAPAI NOEL DE SHOPPING!

Lipo, Noel de Shopping! 


O saco de Papai Noel - Roberto DaMatta

Foi num Natal da minha meninice que meus tios Silvio, Mario e Marcelino revelaram o segredo: Papai Noel não existia! Senti o choque tantas vezes renovado quando uma ilusão é arruinada.
Só os retardados acreditavam, diziam meus tios, naquele velhinho americano milionário, imperialista, gordo que voava em trenós, usava uma roupa de rei e tinha o mau gosto de morar no gelo. Meus tios amazonenses detestavam o inverno de Niterói!
Todos cobriram o bom velhinho Noel com um traço negativo, e meu Tio Marcelino, o comunista da família - toda família brasileira tem um dissidente, um doente, um rico, um louco e um boçal simpático ao Bolsonaro ou ao Lula -, destacava o saco de brinquedos de Papai Noel. Símbolo privilegiado dos que davam presentes. Só os trouxas acreditavam nesse Papai Noel que encarnava um dos mais perversos tentáculos do capitalismo, do mercado e da propaganda. Se eu começava a duvidar de coisas mais reais e sérias, como Deus e milagres, agora descobria que Papai Noel era mais um engodo.
O que vai acontecer com a bicicleta que eu havia pedido a Papai Noel?
Em plena contradição, realizei o doloroso diálogo interno inexistente entre os políticos que abundam entre nós, cuja psicopatia jaz nessa ausência de conflito interno.
Claro que você vai ganhar a bicicleta, disse meu lado inocente. Ainda mais agora que você sabe que Papai Noel não é aquele f.d.p. capitalista e deve ser o seu pai! Fique tranquilo, o seu Papai Noel não vai lhe negar a tão esperada bicicleta. Afinal, o Natal é uma festa de Igreja e não um comício populista contra o capitalismo.
Na sala de jantar, encontrei vovó e mamãe armando a árvore de Natal e falando do presépio da igreja do Ingá. A singeleza do Menino Deus na manjedoura; da devoção de Maria, José, dos pastores pobres e dos Reis Magos, que testemunhavam o milagre da encarnação daquele que veio ao mundo para nos salvar de nós mesmos, aplacou minha decepção.
É claro que vovó e mamãe não falaram com essa presunção de cronista, mas disseram mais do que isso por meio de sua fé e de seu amor. Fé, amor, beleza e verdade estão ligados, queridos leitores.
Elas resolveram uma oposição que, anos depois, fui ler num ensaio como sempre sábio de Claude Lévi-Strauss, escrito a propósito de um Papai Noel supliciado no adro da igreja de Dijon, França, no Natal de 1951. Pois avó e mãe mostraram para o menino que a oposição entre o presépio e um Papai Noel capitalista era aparente. No fundo, ambas diziam uma mesma coisa: eram rituais de esperança e troca. Ambas religavam o céu e a terra, o passado e o presente, a morte e a vida, adultos e crianças que o cotidiano obrigava a apartar na sua obrigação de nos tornar humanos. Na manjedoura, o Menino Deus abençoava, do mesmo modo que o grande saco de presentes de Noel renovava a fé na generosidade.
Mas será que eu vou ganhar a bicicleta?
Ganhei a bicicleta e nela eu dei muitas voltas. Cheguei à ousadia de ir ao centro da cidade. E com ela eu tenho percorrido muitos caminhos. Alguns esburacados pela má-fé, pela desonestidade e pela burrice. Mas eu vou tocando a mesma bicicleta numa estrada pavimentada pelos meus sentimentos de gratidão por ter tido aquele Natal avuncular tão revelador.
E você, leitor? Você ainda acredita em Papai Noel? A propósito: você tem tios?
Minha vivência foi a do lado sobrenatural do Natal, simbolizado pelo presépio e o seu lado, digamos, social (mas não menos mitificado) representado pelo saco de brinquedos que foi importado por difusão dos Estados Unidos, o qual é acompanhado de todo o cenário de produtos industriais natalinos como árvores, luminárias, papéis especiais e, acima de tudo, os maravilhosos presentes que fazem com que o Natal moderno se assemelhe - como me revelou esse mesmo Lévi-Strauss no seu genial As Estruturas Elementares do Parentesco (traduzido publicado pela primeira vez no Brasil numa coleção dirigida pelo prof. Castro Faria e pelo vosso cronista) - a um ritual dos nativos da Columbia Britânica, o potlatch, no qual se realizava uma troca avassaladora e agnóstica de presentes entre chefes tribais.
No caso do Natal, há igualmente uma intensa troca. Desta vez entre gerações que se dão mutuamente nos regalos que os mais velhos dão aos mais novos - Deus permitindo e querendo - de modo mais amoroso e sofisticado. No meu tempo de menino, o máximo era uma bicicleta. Hoje, o repertório incluiu viagens, automóveis e cargos públicos, dinheiro e empreiteiras. Neste sentido, o Natal dos presentes e o dos presépios são rituais que unem gerações abolindo o tempo pela repetição dos presentes. O saco de Papai Noel concretiza elos de sangue e espírito com os quais nos damos uns aos outros.
O simbolismo e o ritual revestem a crueza do mundo. Papai Noel, é claro, existe e não existe. Falar disso, porém, é uma outra croniqueta...

André Dahmer










Carlos Ruas












Medindo os presentes - Roberto DaMatta

No dia de hoje, você pode estar inventariando os presentes ou, quem sabe, indo mais longe ainda: refletindo mais uma vez sobre o presente momento. E vivendo em cheio e constrangido o peso, o surto sociopsicológico do País. 
E, no entanto, o Natal é o momento de receber presentes e, no fundo, todo momento proporciona um presente. Viver é estar presente e, simultaneamente, ser presenteado – ganhar ou perder alguma coisa ou pessoa.
No curso de um vida, a ocasião natalina é mestra em proporcionar inventários e comparações. Certamente porque o Natal é uma festa obrigatória no sentido coercitivo. “Do Natal e do carnaval”, diz um amigo, “a gente pode fugir mas ninguém escapa!”. 
Como toda repetição com extraordinária força coletiva, ele, de um lado, abole o tempo conjuntural mas, de outro, faz com que se observe os natais de hoje em relação com os de “antigamente”.
Meus natais originais trazem de volta os “presentes” mais do que a “árvore enfeitada” com uma neve que eu só fui conhecer aos vinte e pouco anos, no Natal de 1963 em Cambridge, Massachusetts, quando na janela de minha humilde casa de uma vila de estudantes harvardianos, eu fui presenteado com grossos flocos brancos que lentamente caíam de um céu de púrpura aos borbotões, e – eis meu sobressalto – não faziam barulho como as chuvaradas do Brasil. O clima do Natal no norte era diverso. No nosso, o sorvete, ainda visto como artigo de luxo em casas sem geladeira, era servido como algo especial, coisa impossível de conceber naquele momento em que se via o gelo caindo do céu, pintando de branco o asfalto da rua – congelando o mundo.
Para nós, os cinco meninos e a menina com os quais compartilhei os anos decisivos de minha vida, o Natal significava basicamente presentes. E para cada menino daqueles tempos uma fantasia que só os Reis magos (corre a lenda que foram eles que inventaram os presentes de Natal) poderiam tornar real. Durante anos eu sonhei com uma máquina de telegrafia igual à que vi na estação de trem de Rio Largo, Alagoas. Depois passei a freudianamente fantasiar uma pistola automática das que eram usadas nos filmes policiais. Um dia, o prêmio passou o aperto de mãos e o suave beijo da namorada já sentidos e antecipados pelo carinho do pai, da mãe, de tia Amália, de vovó Emerentina e pela austeridade de vovô Raul. 
Hoje ainda quero ver que, a despeito de tudo – e acima de tudo da burrice emocional, pomposa, onipotente, narcisística, autocrática e jurídica que pode nos levar ao suicídio nacional –, o Natal ainda é o tempo do riso feliz. 
Não é a festa das gargalhadas dos carnavais que não podem durar muito porque matam. Mas é a festa do sorriso discreto e contente com ele mesmo. De um tempo no qual a felicidade entra, mesmo espremida, em nossas pequena vidas e nos faz viver as nossas plenitudes. E o menino dentro do velho avô Beto, cujo amor o faz chorar de felicidade pelas netas e netos, e pelo filho perdido mas sempre achado nos outros. Sorrir e sonhar com todo o amor que teima em nascer da raiva, da frustração, da má-fé e da resistência a um Brasil que resiste a ser igualitário.
Os presentes de Natal concretizam a invisibilidade do lixeiro, do porteiro e dos empregados. Dos que fazem coisas para nós com honra e competência, garantindo a nossa (falsa) visão superior de nós mesmos. O presente revela os presentes de nossas vidas. Medidos uns contra os outros, avaliamos onde estamos e quem somos. É quando nos damos conta de que a consciência da vida e de quanto devemos uns aos outros é o nosso milagroso presente.
Armandinho - Alexandre Beck











Cólera - É Natal! (EP 1987)





Crônica de Natal - Antonio Prata 

Ela me acusa de torcer o nariz pro pinheirinho, reclamar dos enfeites e recusar as luzinhas


Minha mulher sugere colocarmos luzinhas coreanas no chapéu de sol, em frente de casa. Eu resmungo qualquer coisa. Ela percebe a má vontade e se incomoda. "Que foi?!", pergunto, com aquela surpresa dissimulada que nós, homens, lançamos quando queremos desacreditar as reações femininas, colocando-as na conta dos instáveis vapores uterinos --não na das nossas irritantes atitudes.



Ela saca a estratégia e põe as cartas na mesa: diz que eu torci o nariz quando chegou com o pinheirinho, sábado passado, que foi de muito mau humor que a ajudei a pendurar os enfeites, domingo, e agora fico fazendo corpo mole diante das luzinhas coreanas. Por fim, me acusa: "Você é ridículo: você é contra o Natal!".



Sou? Não queria. Me parece mesmo ridículo ser "contra o Natal", digo que não lembro de cara feia nenhuma ao decorarmos o pinheiro e reafirmo que meu problema é só com as luzinhas. Ela pergunta o que há de errado com elas. Levanto o indicador, pronto para fazer um discurso inflamado, mas fico mudo como a estátua de Duque de Caxias.



O que há de errado com as luzinhas? Penso em alegar desperdício de energia. Teria, é verdade, um argumento sólido --ou líquido, se apelasse pro degelo das calotas--, mas estaria mentindo. Não é uma questão ecológica.



"Você não acha bonito as árvores todas iluminadas?" Sigo calado --agora, já com o indicador recolhido ao bolso-- e percebo que acho bonitas, sim, essas árvores luminosas. Dão às noites de dezembro um ar vibrante --vamos até a farmácia comprar fralda e parece que estamos indo a uma festa. Daí pra vestir no chapéu de sol a polaina de lampadazinhas já são outros quinhentos.



"Qual o problema?" --ela insiste. "É que nem o Halloween? Vai dizer agora que é uma festa importada'?" Não, de jeito nenhum. Halloween, admito: sou contra. Não por nacionalismo, mas por senso de ridículo. Aquelas abóboras e caveiras, entre nós, soam tão naturais como as perucas nos carecas. Já o Natal é uma festa cristã, somos um país majoritariamente cristão e mesmo que a data tenha virado sinônimo de comércio, eu, com meu Nike nos pés e iPhone no bolso, não teria muita moral pra um discurso franciscano.



Não, eu não sou contra o Natal. Tenho um amigo, o Maurício, que é. Contra o Natal, o Carnaval, abraços no oi e no tchau e qualquer outra manifestação --falsa, segundo ele-- e afeto ou felicidade. Ele tem seu ponto, mas sou diferente do Maurício. Sou coração mole. Fico feliz, no mês de agosto, quando chega o cartão do meu dentista desejando feliz aniversário. Por que, então, ó pai, fiz cara feia pro pinheirinho, resmunguei pra pendurar enfeite, me recuso a enrolar no chapéu de sol as luzinhas coreanas?



Não sei, mas minha mulher parece ter uma teoria: "Você é um metido! Você se acha superior, é isso! Não quer brincar de Natal' só porque tá todo mundo brincando! Fica falando mal da direita, mas age que nem um aristocrata!". Calúnias! Calúnias! Calúnias que tento calar, agora, do alto deste chapéu de sol, com 20 metros de luzinhas coreanas (que, diga-se de passagem, são "made in China") enroladas no ombro. Só torço para não cair daqui. Não quero que soe aristocrático, mas preferia uma morte um pouquinho menos ridícula.



Duke








A Peste Azul - Antonio Prata


Um de nós elogiou o hambúrguer, o outro comentou sobre as carnes que tinham surgido nos últimos anos, o papo evoluiu pras técnicas de engorda do gado (no pasto ou em confinamento), o termo “confinamento” trouxe um certo desconforto com nosso hambúrguer e o Fabrício falou “Ah, vamos mudar de assunto, minha vida já é complicada o suficiente, não quero agora, no dia 20 de dezembro, ter que começar a sofrer por todas as vacas do mundo”.



Ficamos um tempo em silêncio, foquei no hambúrguer, na tarde ensolarada e nas pessoas que, à nossa volta, também faziam daquele almoço de terça- feira uma minicelebração de fim de ano, embaladas por essa brisa que refresca dezembro, vinda ali de janeiro, conforme nos aproximamos do Natal. A garota do caixa, conversando com o garçom, deu uma risada. Um barbudo desembrulhou um disco de vinil. Um careca chegou numa mesa grande e foi recebido com pompa e circunstância: “Pereba! Pereba! Pereba!”.



Eu já estava quase ouvindo o mar quebrando na praia em algum ponto da Simão Álvares quando o Fabrício me trouxe de volta pro concreto: “A gente vive uma época muito religiosa.”. Concordei: “O terrorismo islâmico, a bancada da Bíblia, o Crivell...”, “Não”, ele me cortou, “Isso também, mas não tô falando de Deus. Agora tudo é religião. A religião vegana e a religião carnívora. A religião do carro e a religião da bicicleta, a religião da amamentação e a religião da cesariana, a religião da Lava-Jato e do ‘Volta, Dilma!’, todo mundo é fanático e, se você discorda um tiquinho, você é um herege que tem que ser bloqueado da vida da pessoa, que nem no Facebook”.



Quando ele acabou de falar, lembrei do filme O sétimo selo, do Bergman. O Facebook me pareceu muito semelhante à Europa do século 14, devastada pela peste negra: cada post uma cruz erguida por um messias instantâneo, pequenas seitas de “likes” e “comments” atrás, vagando pelas planícies azuis das timelines, comungando a iluminação do dia. “Goiabada no temaki, não!”, “Se o seu filho usa fralda descartável, você é um assassino de golfinhos!”, “Eis aqui o que eu acho sobre o prepúcio nojento do terceiro pinto no clipe ridículo da Clarice Falcão”. Uma diferença pras seitas do século 14 é que nas mídias sociais os chicotes são raramente usados para a autopenitência; costumam castigar mais o lombo alheio.



Antes da sobremesa já estávamos enredados na velha discussão de boteco do século 21: a humanidade sempre foi esse lixo, e as redes sociais só revelaram o chorume, ou o ódio e a intolerância aumentaram nos últimos anos? Não sei, mas tenho a sensação de que colaborou pra pindaíba termos parado de engordar as crianças soltas nos pastos e passado a criá-las em confinamento: escola, condomínio, inglês, clube, iPad. 



Em 1985, quando ainda existia uma instância muito louca, libertária, diversa e apartidária chamada “rua”, eu passava uma hora no amigo judeu, outra na casa da amiga com a avó janista, comia sal no baio macrobiótico e bebia no açude de groselha Milani. “Tolerância” não era um conceito ensinado na escola, mas um pré-requisito básico para você conseguir brincar de esconde-esconde com 15 crianças diferentes.



Olho a garota do caixa rindo com o garçom, o barbudo do vinil tomando sua cerveja, o Pereba contando uma história na mesa grande; faz sol lá fora e um jacarandá-mimoso estende sua sombra para dentro do restaurante. Não é possível que todo mundo se odeie tanto.











Luiz Gê



Daniel Lafayette






Paulo Batista

Mort Walker









(In) Feliz Natal - Ruth Manus


Desde criança, ouço minha mãe dizer, ao tentar justificar o fato de não querer comemorar seu aniversário, que não gostava de alegria com data marcada. Nunca entendi bem o que ela queria dizer com essa expressão. Hoje, aos quase 30 anos, na semana do Natal de 2017, entendi.

Para falar a verdade, eu nunca fui muito fã do Natal. Não escrevia cartinhas para o Papai Noel, nem tive qualquer trauma ao descobrir que aquele senhor, na realidade, não existia. Meu grande, violento e irrecuperável trauma de infância foi descobrir que a Vovó Mafalda era homem. Isso sim foi um golpe duro. Já o Papai Noel nunca me foi uma figura tão cara.

Cresci com um certo sentimento de culpa por não esperar o Natal com uma alegria estonteante. Pelo senso comum, não há grande problema no fato de não se amar o carnaval. Nem é absurdo não ligar para a Páscoa ou para o Dia das Bruxas. Mas não ligar para o Natal sempre soou como um verdadeiro sacrilégio, como se fosse sinônimo de não gostar da família ou de não valorizar a figura de Jesus Cristo.

O Natal da minha infância era atípico. Uma grande festa com pais, irmãos, tios e primos no começo de dezembro. Essa festa eu adorava – e adoro até hoje. Mas na noite do dia 24 e no almoço de 25, meus irmãos iam embora para estar com o pai deles. Sobrávamos eu, meu pai e minha mãe. Meu pai perdeu a mãe aos 23 anos, às vésperas do Natal, e, obviamente, nunca mais olhou para a data com grande alegria. Era uma noite estranha. O Natal não era uma data esperada por mim. Pelo contrário, queria que ele passasse logo para que meus irmãos voltassem para casa. Anos depois, o Natal segue me parecendo um dia incômodo.

Tenho certeza de que não sou a única para quem o Natal é uma data confusa. A maioria das pessoas, nessa data, lida com culpas, angústias e ausências. A partilha das crianças por conta das separações, a falta daqueles que já morreram, os avós que lidam com a ausência dos netos, os adultos que aprendem a estar com os sogros em vez de estar com os pais, os pais que aprendem a abrir mão dos filhos que já cresceram. O Natal é bonito, mas é dolorido também.

Soma-se a isso essa doentia dinâmica dos presentes que se instalou nas nossas vidas. Tenho certeza absoluta de que Jesus, em algum lugar, fica mesmo muito chateado por ver seu aniversário transformado em uma data de consumo extremo, de crianças que abrem dezenas de pacotes sem valorizar quase nenhum, de adultos que se flagram angustiados com quanto dinheiro vão ter que desembolsar para satisfazer os requisitos mínimos que o comércio conseguiu nos impor.

É claro que é bom estar com a família reunida, comendo coisas gostosas. Ninguém tem dúvidas disso. O problema é ter que lidar com essa estranha logística natalina, cheia de compromissos, divisões, compras, pacotes e frustrações. No fim, percebo que, assim como eu, tem muita gente que só quer que janeiro chegue logo para que isso esteja resolvido o quanto antes.

Compreendo muito bem agora o que minha mãe dizia sobre não gostar de alegria com data marcada. Meu amor e minha dedicação pelas pessoas não se confunde com o Natal. Meu amor é sereno e minha dedicação é constante. Vejo muito mais amor no fato de eu estar trabalhando com alguma pressa para poder buscar logo minha enteada para passearmos de ônibus pela cidade do que no presente que comprei pra ela de Natal. Vejo mais amor pelos pais quando preparo o café da manhã, quando eles chegam a Lisboa, do que quando marco com eles o almoço do dia 25.


Não sei se é herança genética, mas realmente não sou fã da alegria, do amor, nem da oração com data marcada. O Natal é só uma data. O amor, a presença e a fé nos outros 364 dias é o que realmente conta. No fundo, todos sentimos uma certa culpa. Mais do que feliz Natal, feliz todo dia pra nós.






Raimundos - Infeliz Natal 


Lembrancinhas - Cláudia Laitano 


O presente perfeito deveria saltar aos olhos como um grande pacote vermelho sobre um jardim coberto de neve inconfundível, inescapável. Todo nosso carinho condensado em um único objeto, que por acaso custaria exatamente o que podemos pagar e nem um centavo a mais. Nenhuma hesitação, fila ou mesmo uma data compulsória determinando o dia e o motivo da entrega. Um presente tão espontâneo e único quanto o afeto que inspirou a vontade de presentear.
Ao abrir o presente perfeito, o destinatário seria tomado de surpresa e incredulidade. Como alguém poderia ter adivinhado que era exatamente aquilo que povoava seus sonhos? Neste momento, os olhos de quem dá e os olhos de quem recebe se cruzariam em um breve e intenso instante-presente, cheio de cumplicidade e reconhecimento mútuo.
Mais do que agrado protocolar, sinal de gratidão ou simples obediência ao ritual das datas comemorativas que exigem trocas de gentilezas, o presente perfeito seria aquele que se dá e se recebe com alegria. Na maior parte das vezes, porém, escolher presentes é tão prazeroso quanto cumprir um compromisso obrigatório. Queremos nos livrar da tarefa como de uma reunião de condomínio ou de uma ida ao supermercado: com eficiência, mas no menor tempo possível.
Compra-se rápido, talvez, porque descarta-se mais rápido ainda. Adivinhar o que uma pessoa gostaria de ganhar tornou-se o menor dos problemas hoje em dia. Todo mundo deseja alguma coisa – ainda que não por muito tempo. Vivemos cercados de possibilidades de consumo, desejos insatisfeitos e frustrações difusas, habituados a preencher com objetos diferentes tipos de vazios. Nesse ambiente, torna-se cada vez mais difícil emprestar a algo que se pode comprar algum tipo de significado que não seja o de ser consumido e substituído logo em seguida.
Para transformar uma mera troca de mercadorias em uma verdadeira troca de presentes, é preciso um pequeno exercício de subversão. Dizer não às compras apressadas, burocráticas, obrigatórias, cansativas. Mas se for impossível escapar delas, que cada presente chegue ao destinatário acompanhado de um gesto ou palavra surpreendente, pessoal, intransferível.
Talvez nossas tias não estivessem apenas nos enrolando quando diziam, envergonhadas, com um pacotinho vermelho da Sloper na mão: “É só uma lembrancinha, viu?”.
Porque, no fim das contas, o presente perfeito, o que vale a pena dar e ganhar, é aquele que se transforma em lembrança assim que a gente o abre.

Alves



João Bosco


Cazo

Duke








Fabiane Langona




Tiago Recchia





Renan César



Querido Papai Noel - Michel Laub



Em mais este Natal cristão, dê um presente ao meio cultural brasileiro fazendo com que:

- A disciplina de interpretação de texto se torne diária em todas as escolas, de preferência em aulas longas e sem direito a ir ao banheiro.

- Não se atribua valor automático ao que não necessariamente tem valor: o novo em relação ao velho, o denso em relação ao simples, o pessimista em relação ao otimista.

- Deixem Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Caio Fernando Abreu em paz.

- Não haja mais chamadas jornalísticas do tipo "O evangelho segundo Clarice", "Em busca do Rosa perdido" ou "Caio F de A a Z".

- Cronistas parem de escrever sobre pesquisas sexuais feitas com ratos.

- Cineastas parem de botar a culpa de seus insucessos no público.

- (Parem, também, de identificar sucessos de bilheteria com qualidade estética.)

- Trailers se abstenham de contar dois terços do filme e botar uma piadinha ao final.

- Resenhas se abstenham de contar três terços dos livros.

- Um único funcionário das livrarias de aeroporto, e também o dono que os contrata e orienta, e também o público que frequenta o ambiente e endossa com suas compras tristes a seleção de títulos das gôndolas e prateleiras, tenham algum resquício de gosto literário.

- Comediantes ruins não atribuam mais sua ruindade à ditadura do politicamente correto.

- (E ninguém mais use termos e construções como "politicamente correto", "chorume", "eu sou polêmico mesmo" e "ao menos ele teve o mérito de abrir o debate".)

- Artistas, ensaístas e palpiteiros em geral evitem dizer que não fazem lobby, não participam de conchavos, não integram panelas e dão suas opiniões doa a quem doer (na maioria das vezes, dói só no fígado de quem ouve).

- Escritores parem de explicar a própria obra com conceitos que não são seus, e sim de alguma patrulha política, de gênero ou de departamento acadêmico.

- Críticos resistam à tentação de comentar livros de desafetos pessoais ou desafetos da namorada.

- Autores consigam se controlar e não respondam aos críticos. Entendo o impulso de provar superioridade intelectual, moral e -em casos raros- física, mas a melhor forma de fazer isso é com silêncio público e amargura que estraga a vida familiar.

- Volte a ser possível esquecer da existência de alguém, em vez de ser lembrado dela em links, retuítes e até posts na página de quem morreu.

- Volte a ser possível fazer ironia sem precisar explicá-la com reticências, pontos de exclamação ou emoticons.

- Volte a ser possível ser contestado sem acusar o contestador de baixar o nível da discussão.

- Acabe o culto intelectual às estatísticas e ao que dizem "pesquisas recentes".

- Acabe o culto intelectual à pornochanchada (ok quanto ao outro culto a esse nobre gênero cinematográfico).

- O Congresso Nacional proíba os hologramas de músicos.

- Bandas de rock escolham --não dá para fazer as duas coisas ao mesmo tempo-- entre discurso de contestação aos poderes estabelecidos e cachês de publicidade.

- E letristas contratem revisores (dá só uns R$ 9 a lauda).

- Alguém explique por que tanta gente, deixando claro que paira acima da vulgaridade, passa o dia no Twitter comentando Faustão, "The Voice Brasil" e a passagem de Francisco Cuoco e sua namorada pelo Castelo de Caras.

- Alguém explique por que condenamos com tanta fúria a ostentação do Rei do Camarote nas mesmas timelines que ostentam, o tempo todo, os trabalhos que fazemos, os pratos que comemos e os lugares para onde vamos nas férias.

- E também por que alguém vai a um show apenas para registrar a performance do artista no celular, revendo-a mais tarde --se é que vai rever-- numa tela pequena e com qualidade medonha de som e imagem.

- Anciões que ainda frequentam esses shows (oi) parem de gritar contra a nuvem porque o mundo era tão melhor antes, não é mesmo?

- Haja só um pouco menos de sarcasmo contra alvos fáceis, como catálogos de arte contemporânea.


- Não exijam de artistas que tenham opinião sobre tudo. Artistas têm o direito de ser omissos, alienados, incoerentes e burros.
Pater

Rafael Correa





Nani



Daniel Lafayette




Papai Noel Velho Batuta - Garotos Podres



Acreditar no Natal - Lya Luft


"Acreditar em Papai Noel, em anjos, em famílias amorosas ou amigos fiéis, em governantes mais justos e líderes mais capazes – em alguma coisa a gente acaba sempre acreditando"

Acreditei em Papai Noel por muitos anos. Menina do interior com a fantasia sempre a mil, ele fazia parte das minhas histórias encantadas. Até uns 7 anos de idade, eu também acreditava na cegonha e no coelho da Páscoa. Quando o pôr-do-sol tingia o céu, diziam-me que os anjinhos começavam a assar aqueles biscoitos de Natal que se faziam em todas as casas da pequena cidade. Trovoadas de começo de verão eram São Pedro arrastando os móveis para a fábrica de brinquedos ter mais espaço.

Na antevéspera de Natal, um recanto da sala era ocultado por lençóis estendidos, e ali atrás ocorria o milagre: na noite de 24, com o coração saltando de ansiedade, a gente escutava sininhos como que de prata: era hora. Levada pela mão da mãe ou do pai, eu entrava na sala, de onde os lençóis tinham sido removidos, e lá estava ela: a árvore de Natal, toda luz de velas, toda cor de esferas, e embaixo os presentes. Muitíssimo menos dos que se dão hoje às crianças, mas havia presentes. Cantávamos canções natalinas, todo mundo se abraçava, depois abríamos os pacotes e comíamos a ceia. No dia seguinte, chegavam tios, primos, alguns amigos. Era só isso, sem alarde, mas com emoção. Guardei a sensação de que Natal é fraternidade, é reconciliação, é alegria de estar junto, é a chegada de pessoas queridas, é o tempo da família. Para quem não a tem, é o tempo dos amores especiais. Não éramos particularmente religiosos, mas uma de minhas avós, luterana convicta, na manhã seguinte me levava à igrejinha, onde eu gostava de cantar. Algo de muito bom se comemorava nesse tempo, o nascimento de Cristo e a esperança dos povos. Nem tudo seria guerra e perseguição, pobreza, crueldade, injustiça.
Ilustração Atómica Studio

As pessoas se queixam muito de que o Natal hoje é só comércio. Depende de quem o comemora. Se me endivido por todo o próximo ano comprando presentes além de minhas possibilidades, pois no fundo acho que assim compro amor, estou transformando o meu Natal num comércio, e dos ruins. Se entro nesses dias frustrado porque não pude comprar (ou trocar) carro, televisão, geladeira, estou fazendo um péssimo negócio para minha alma. E, se não consigo nem pensar em receber aquela sogra sempre crítica, aquele cunhado cínico, aquele sobrinho malcriado, abraçar o detestado chefe ou sorrir para o colega que invejo, estou transformando meu Natal num momento amargo. Então, depende de nós. Claro que há as tragédias, as fatalidades, doença, morte, desemprego, alguma maldade – essas não faltam por aí. Um avô meu morreu de doença muito dolorosa, na véspera de Natal. Foi a primeira vez que vi um adulto, minha avó, chorando. Há poucos anos, minha mãe morreu na antevéspera de Natal, depois de longuíssimo tempo de uma enfermidade maldita. Mas foram também ocasiões de conforto e consolo, abraço, amor e entendimento.

Na medida em que não se podem dar muitos e caríssimos presentes, talvez até se apreciem mais coisas delicadas como a ceia, o brinde, o carinho, os votos, a reunião da família, o contato emotivo com os amigos, mensagens pelo correio ou e-mail, música menos barulhenta e aroma de velas acesas. Mais que tudo isso, o perfume de uma esperança ainda que realista. A crise nas finanças pode incrementar a valorização dos afetos. Se não pudermos viajar, curtiremos mais nossa casa. Se não há como trocar velhos objetos, vamos cuidar mais dos que temos. Se não podemos comprar o primeiro carro, vamos olhar melhor nossos companheiros no metrô. Vamos curtir mais nossos ganhos em afeto.

Não é preciso ser original para escrever sobre o Natal. A gente só quer que ele seja tranqüilo e gostoso, e que nos faça acreditar: em Papai Noel, em anjos, em famílias amorosas ou amigos fiéis, em governantes mais justos e líderes mais capazes, em um povo mais respeitado – em alguma coisa a gente acaba sempre acreditando. Porque, afinal de contas, é a ocasião de ser menos amargo, menos crítico, menos lamurioso e mais aberto ao sinal deste momento singular, que tanto falta no mundo: a possível alegria, e o necessário amor.


Cellus







A pioneira do Papai Noel – Ruy Castro

Já contei essa história aqui, mas, desde então, passaram-se muitos Natais e uma geração inteira de Papais Noéis. Aconteceu em São Luís do Maranhão, por volta de 1890. Terminada a ceia de Natal, os parentes e amigos da jovem professora se reuniram em torno da árvore para trocar presentes e cantar madrigais. De repente, entrou pela janela um homem gordo, de barbas brancas, ceroula e touca vermelho-sangue, botas e cinto pretos, um ameaçador saco às costas e emitindo sons de "Ho! Ho! Ho!".

 

Que diabo era aquilo? Susto, pânico, correria. Ali havia velhos, mulheres e crianças. Um dos presentes sacou um trabuco e o apontou para o intruso, com a intenção de crivá-lo. O homem, súplice e balbuciante, rendeu-se tremendo com os braços para cima e deixou cair o saco cheio de embrulhos. E, então, a dona da casa colocou-se entre a arma e o alvo. Alçou a testa e proclamou: "Não o matem! É o Papai Noel!".

 

Só ali, a jovem —Maria Bárbara de Andrade, filha do excêntrico poeta local Joaquim de Sousa Andrade, vulgo Sousândrade— explicou. Ela e seu pai tinham morado por 20 anos em Nova York. Foi onde, em criança, ela conheceu e se apaixonou por aquela figura que se tornara nos EUA o símbolo do Natal.

 

O homem de roupa vermelha e barbas brancas com um saco às costas fora uma criação do ilustrador Thomas Nast para a revista Harper’s Weekly em 1863 e, pelos anos seguintes, fixara-se no coração das crianças americanas. Mas ninguém o conhecia por aqui. Para apresentá-lo ao Brasil, Maria Bárbara contratara um senhor gordo e o maquiara e fantasiara de acordo. Os convidados, aliviados, relaxaram. Abraçaram o Papai Noel e lhe serviram vinho (não, não lhe ofereceram Coca-Cola).

 

E assim foi. Hoje, a impenetrável poesia de Sousândrade é estudada na USP como pioneira do concretismo. Mas quando se fará justiça a Maria Bárbara Sousândrade como pioneira do Papai Noel?


Foto do poeta Sousândrade e capa do almanaque Vida Infantil de 1956 com o Papai Noel - Heloisa Seixas




Duke






Tiago Recchia



Spacca



Ao bom velhinho - Fernanda Young


Querido Papai Noel:

Tenho sido uma boa menina e me comportado bem. Mentira, tenho sido uma boa menina e me comportado mal. Não faço pipi na cama, mas faço má-criação. Cumpro com os meus deveres, mas falo um monte de nomes feios. É que ando um pouco de saco cheio de certas coisas.

Políticos roubando sem parar e as pessoas com medo de assalto. Prefeituras me multando pelas ruas e as cidades entregues as baratas.

Crianças fazendo malabarismos pelas esquinas e todo mundo preocupadíssimo com o namoro dos famosos. Mulheres aumentando cada vez mais seus peitos e os homens assistindo cada vez mais futebol. O mundo piorando ano após ano e todos soltando foguetes no réveillon.

Gente falando mal do que eu faço e não fazendo porcaria nenhuma. Bom, a lista seria grande. Mas não foi para me queixar que resolvi escrever para você.
Queria, por causa dessas chateações, fazer alguns pedidos. Todos de coisas que não existem, vou logo adiantando. Mas você também não existe e eu dei um jeito de te mandar esta carta, certo? Eis, então, o que desejo:

UMA COLA DE BARRIGA Adoraria que minha barriga grudasse de volta. Tive filhos e, depois, já tentei de tudo, mas não há milhares de abdominais que resolvam.

UMA PIZZA ANTIDEPRESSIVA. Adoro pizza, mas detesto a culpa que se segue. Poderiam descobrir algum ingrediente totalmente natural, que pudesse também ser usado para fazer chicletes de auto-estima.

UM APAGADOR DE GAFE. Poderia vir em spray. Após alguma gafe cometida, a pessoa daria uma borrifada no ar e os últimos 15 segundos deixariam de ter existido.

UMA ESCOVA PERMANENTE, PERMANENTE MESMO. Que tipo de “permanência” é essa, que não resiste a umas gotinhas de chuva? Eu busco a eternidade – o furacão Katrina poderia passar pela minha cabeça que a escova continuaria intacta.

UM GENÉRICO DO SIMANCOL. Ninguém mais ia continuar precisando de uma dose de simancol, pois bastaria passar na farmácia da esquina.

UM ARMÁRIO AUTO-ARRUMANTE. Aqui em casa, já temos um forno autolimpante, um freezer autodescongelante e várias figurinhas autocolantes. Só falta alguém resolver a questão dos armários.

UM DERRUBADOR DE SINAL. Quando alguém viesse falar ao celular perto de você, o sinal automaticamente cairia. E, quando alguém ligasse para um celular próximo a você, escutaria a seguinte mensagem: “O aparelho chamado encontra-se na região de uma pessoa sem paciência, ligue depois”.

UM LOCALIZADOR DE ROUBADAS. Funcionaria como um localizador GPS comum, com uma diferença: sempre que você estivesse indo em direção a uma roubada, o aparelho indicaria o caminho de volta para casa.

É isso, Papai Noel. Apenas isso.
Botarei o meu sapatinho na janela do quintal acreditando em você.
Feliz Natal a todos.

Jota Camelo





Cazo



Genildo



Márcio Vaccari




Ze Dassilva










Tiago Recchia


João Bosco







Dodô


E se em vez de falar de Natal -  Martha Medeiros



E se em vez de falar de Natal, a gente procurasse entender por que o mundo está de patas para o ar? Pessoas se sentem no direito de serem rudes com as outras, seja por estarem amparadas pelo escudo das redes sociais, seja porque já não sobra um fiapo de paciência e educação. Qual a dificuldade de ser gentil?

E se em vez de falar de Natal, a gente lembrasse que é livre para decidir? Livre para ficar ou ir embora, livre para continuar com a vida que tem ou arriscar outra coisa, livre para ser quem é de verdade ou continuar fazendo de conta. Liberdade. Que tal experimentá-la antes que seja tarde?

E se em vez de falar de Natal, a gente falasse sobre compaixão? Tanta gente com dívidas impagáveis, sem acesso a um tratamento médico decente, se sentindo solitário, não sendo escutado por ninguém, recebendo da vida uma enxurrada de negativas. Que atenção destinamos aos milhares de "invisíveis" que nos cercam?

E se em vez de falar de Natal, a gente falasse das responsabilidades que nos cabem? Postar contra o racismo, contra a homofobia, contra o feminicídio, isso qualquer um faz para ostentar consciência e ganhar likes em seus perfis, mas e no dia a dia? Como você se comporta, que tipo de piada faz, qual sua reação ao ver alguém sendo discriminado? Não há saída se não dermos nossa contribuição concreta para a sociedade mudar.

E se em vez de falar de Natal, a gente falasse de arte, ainda que pareça cansativo bater nesta tecla? Cinema, música, teatro, literatura, tudo isso é mais do que entretenimento. É preciso frequentar shows, exposições, feiras de artesanato, mostras fotográficas, rodas de chorinho e samba, qualquer coisa que extraia a emoção e a sensibilidade que estão dentro de nós, mas que, sem serem provocadas, fazem a gente parecer apenas um robô cumpridor de tarefas.

E se em vez de falar de Natal, a gente falasse de amor? Não os amores dilacerantes que viram roteiros e poemas, mas do amor sem o aditivo da angústia: amor real, compartilhado, maduro, inteligente, amor que se reconhece um projeto de satisfação, alegria, construção. Amor que não se rende aos apelos do sofrimento, aparentemente tão sublimes, mas amor que trocou a dor narcísica pelo contentamento simplificado.

E se em vez de falar de Natal, a gente falasse da fé nos acasos, da importância de não ceder a vulgaridades, da autonomia das nossas escolhas, dos favores que a vida nos fez, da poesia que há nas miudezas, de como é importante acordar, tomar café, escovar os dentes e continuar a busca pela plenitude possível?

Com Deus ou sem Deus, ter uma vida digna depende de nós. O Natal é só um pretexto.


Julio Renato Lancellotti

Aliedo


Beto Gomes




Brum


Gilmar Fraga



Quinho


Três Cenas de Natal - Luís Pimentel

1.

          Chegaram em casa com a informação de que o caminhão da Ação Social estava  parado na praça, carroceria carregada de brinquedo, farta distribuição de presente para os necessitados.

         O menino largou o time de botão espalhado sobre a mesa, recokheu camiseta e sandálias e partiu na carreira. O moço da Prefeitura disse que bolas de futebol, de couro ou de plástico, não havia mais. Nem carrinhos de madeira ou de controle remoto, nem livros ou velocípedes, bonés do Batman, insígnia de comandante, nada.

          - Agora só tem bonecas que choram e fazem xixi.

          - Me dê. Vou levara para minha irmã.

          O menino não tinha irmã para dar a boneca que chora e faz xixi. Mas não ia perder a viagem.

 

2.

          Barbas e cabelos brancos ele já tinha. Também já estava meio barrigudo, e a rouquidão provocada pelo cigarro e a cachaça ajudavam a voz na hora do ho, ho, ho! Era só botar a roupa do Papai Noel que ia dar tudo certo.

          Vários coroas, muito gordo e meio roucos, já estavam na fila, pegando senhas para a entrevista. Uns dez ou doze seriam escolhidos para representar o bom velhinho nas portas das lojas, fazendo fotos com as crianças e chamando a freguesia.

          - O que você acha do espírito natalino? – perguntou o homem da agência.

          - Acho um cocô, mas preciso muito deste emprego.

          Expulso da sala, foi fazer o seu ho, ho, ho! No botequim.

 

3.

 

          Filhas e netos e bisnetos arregalaram os olhos, chocados, quando ela devolveu o presente coletivo d família: uma linda e funcional enceradeira, modelo que já não existe ( aliás, enceradeiras também não existem mais).

          - Levem esta porcaria!

          A filha mais velha tomou a frente:

          - Mas, mamãe, o que nós vamos fazer com isto?

          Deu um gole no vinho, antes de ensaiar a despedida:

          - Enfiem onde quiserem.



Duke


Laerte









A traidora na noite de Natal - David Coimbra

A mais memorável noite de Natal da minha vida aconteceu quando tinha uns seis anos de idade. Uso o adjetivo memorável porque preservo aquela noite límpida na lembrança, mais do que a do Natal do ano passado. Haveria de ser mesmo um Natal da infância, que Natal é coisa de criança.
Está bem, poderia ser da infância do meu filho e, de fato, houve um em que a inocência dele me proporcionou momentos especiais. Eu havia contratado um Papai Noel para ir lá em casa. Quando o homem bateu na porta, falei para o Bernardo:
– Vai atender.
Ele foi correndo e, quando abriu a porta, ficou mudo de emoção. O Papai Noel, aliás, ótimo Papai Noel, muito convincente, entrou, o acomodou sobre os joelhos e começou a conversar conversas do Polo Norte. O guri batia os braços de agitação com tanta velocidade, que achei que levantaria voo.
Foi lindo. Mas o “meu” Natal, aquele em que fui, digamos, protagonista, foi o dos meus seis anos.
Deu-se na casa do meu avô, na Rua Dona Margarida. Minha avó passou o dia inteiro na cozinha, preparando a ceia. Enquanto isso, os outros adultos arrumavam o cenário da festa, no pátio, debaixo da parreira carregada de uvas brancas e pretas. Meu avô estendeu fios de luzinhas coloridas na parreira e, sob elas, foi instalada a grande mesa retangular. As margens estavam enfeitadas por hortênsias que a minha avó cultivava o ano inteiro. Sobre a toalha, ela ia deitando travessas com as comidas mais deliciosas – minha avó cozinhava melhor do que qualquer um desses Alex Atalas da vida.
Havia muita gente. Amigos e vizinhos conversavam e riam sob os cachos de uva. O namorado da minha madrinha, que ela chamava de Quaquá, trouxe um violão, e ele e um amigo puseram-se a cantar. Nunca tinha ouvido aquela música, até então, e só fui ouvi-la de novo uns 20 anos depois, mas lembro exatamente como eles cantaram, a entonação, o ritmo, tudo. Gostei tanto, que pedi que repetissem, e eles repetiram. Era uma música gravada pelos Beatles, Baby, it’s you. No refrão, depois de um chala-lalalá, os dois repetiam uma palavra em inglês:
– Cheat! Cheat! Pronunciavam: “Tchit! Tchit!”. Perguntei para o Quaquá o que significava.
– Traidora! Traidora! – ele respondeu. Fiquei um pouco perplexo. “Traidora” não podia ser considerada coisa boa, e a música era tão bonita...
Traidora, traidora... Então, a música tinha sido feita para insultar a moça. Era uma vingança. Aos seis anos de idade, aquilo me desconcertou. O amigo do Quaquá, percebendo minha decepção, emendou:
– Mas ele não acredita que ela seja traidora. É o que os outros dizem, mas ele quer ficar com ela.
Sorri. Assim, sim. Não prosseguimos a conversa. Alguém os chamou ou eu é que fui chamado, não sei, só sei que a noite continuou amena e boa. Houve presentes, tenho certeza de que houve, mas não lembro o que ganhei. Lembro que todos estavam bem, todos sorriam e pareciam gostar uns dos outros, e aquilo me fazia feliz.

Desejo uma noite de Natal parecida para você, para todos nós. Desejo que as pessoas à sua volta sintam-se contentes por estarem juntas. E, se alguma ideia ou ocorrência, por um breve instante que seja, anuviar o pensamento de um menino, corrija rápido, corra a dizer algo bom. Talvez você ajude a fazer com que a beleza daquela noite dure toda uma vida.



Ricardo Coimbra

Jan Limpens


Fabiane Langona




Luzes de Natal, seres humanos elétricos e a pujança do capitalismo - David Coimbra

Tomo cada choque aqui... Sério, choque mesmo, não choquinho. Basta encostar em uma maçaneta ou em qualquer objeto de metal que... bzzzz! Um choque forte! Como se metesse os dedos na tomada.
Você não vai acreditar, mas já tomei choque até de madeira, que nem é condutora de eletricidade, deve ser madeira fake de americano, sei lá, só sei que tomo choque de madeira e de outras pessoas. Minha mulher volta e meia reclama:
– Tu estás chocante hoje!
Explicaram-me, os americanos, que tem a ver com o frio e o clima seco. Você fica carregado de eletricidade e, de súbito, descarrega quando em contato com algo que funciona como condutor. Agora: por que você fica carregado de eletricidade? Isso não sei. Alguém inteligente e didático, por favor, me diga como uma coisa dessas pode acontecer com um ser humano.
O fato é que a vida é diferente aqui, ao norte do mundo. Tem uma rádio de Boston que desde o meio de novembro, desde antes do famoso Dia de Ação de Graças, está tocando música de Natal. E não é música de Natal de vez em quando. É SÓ música de Natal, música de Natal o dia inteiro, sem parar, sem nenhuma outra música a não ser música de Natal. Não imaginava que existisse tanta música de Natal, por Deus.
Às vezes tiro do rock and roll clássico da WROR e sintonizo nessa rádio para conferir se continua rolando música de Natal. Não dá outra. Música de Natal e música de Natal, como se você estivesse o dia todo na frente das Lojas Americanas, ouvindo a Simone cantar “...a festa cristã...”. Credo.
É insuportável. Todo aquele amor fraternal escorrendo do radinho, melecando o ouvido da gente. Dá para aguentar duas músicas, no máximo. É muito dingobéu para um homem tão pouco natalino feito eu. Como é que essa rádio se sustenta? Como ela tem audiência? O inteligente que me explicar sobre os choques me explique isso também, por amor de Santa Claus.
Natal é festa de criança. Tenho que aproveitar enquanto meu filho é pequeno, porque, depois, quando ele se tornar adolescente, se tornará também cínico, como todos os adolescentes, e aí foi-se um pedaço da magia do mundo e a chance de um pai se consagrar. Então, exerço todas as ortodoxias natalinas com meu filho. Há uns dois anos, levei-o para ver o Natal Luz de Gramado. No fim de semana passado, levei-o para ver o inigualável Natal de Nova York.
E o Natal de Nova York é mesmo inigualável, mas, em alguns pontos, é igual ao de Gramado. Dois exemplos: a decoração feérica da cidade, algo excelente, e a quantidade de gente na rua, algo nem tanto. Sentia-me, nas avenidas de Manhattan, como me sentia na Emancipação, em Tramandaí, nos verões dos anos 70. Quanta gente! Era difícil de caminhar. Minha avó teria comentado:
– Será que é a saída da fábrica?
Fomos ao grandioso espetáculo de Natal da Radio City e, na saída, ao ingressarmos na 5ª Avenida, deparamos com o desfile de carros da Chanukah, a festa das luzes dos israelitas. Muito bonito e tudo mais, só que, naquele frio de zero grau, não conseguíamos pegar um táxi, o que é espantoso para Nova York, a cidade mais bem servida de táxis do mundo. Seguimos em frente. Havia turistas por toda parte, comendo cachorros-quentes nas esquinas, carregando sacolas de compras.

Os restaurantes estavam todos lotados e havia filas de meia quadra nas portas das lojas. Filas para comprar! Os Estados Unidos, definitivamente, emergiram da crise de queixo erguido e peito estufado.


















Natal sem mimimi - Mariliz Pereira Jorge

Detesto dezembro, detesto Natal, tudo fica cheio, o trânsito insuportável, acaba a cerveja no supermercado, todo mundo resolve fazer em um mês o que poderia ter feito em um ano, tenho que aguentar aquela colega biscate, o meu chefe songo-mongo, trocar sorrisos forçados, desejar Feliz Natal. Tem caixinha pra tudo: pro frentista, pro lixeiro, pra manicure, pro flanelinha. Já sei que vou comer peru três dias seguidos. Meus Deus, quem inventou frutas cristalizadas? As frutas estavam lá, quem foi mexer com elas? Não sei o que é pior, maionese com maçã ou arroz com passas. Quando vão acabar as fotos dos amigos-secretos? E das famílias felizes? Só eu tô cheia deste "foi um grande ano" do Facebook? E esse especial do Rei, que coisa cafona? Passei o dia na cozinha, gastei um dinheirão, tudo pra ganhar uma "lembrancinha" de presente. Que saco.



Talvez não haja mês no ano em que as pessoas reclamem mais do que dezembro. Estou na contramão e sei que não sou a única. Gosto dessa época do ano por si só. Adoro ver as ruas mais cheias, as pessoas mais apressadas, ter compromissos comigo e com os outros todos os dias. Tenho prazer em decorar a casa, comprar presentes para a família toda e para os amigos mais chegados. Me divirto horrores nos amigos-secretos, na chopada de Natal, na confraternização com o pessoal do colégio. Troco mensagens com amigos e conhecidos queridos desejando de verdade que todos tenham um Feliz Natal, independentemente do que o Natal represente para cada um.



Talvez seja otimismo demais, mas não compartilho desse mau humor, dessa birra que fica tão transparente nas redes sociais. É uma época tão festiva que eu me recuso a olhar apenas o lado ruim. Tem o lado ruim. Temos que lidar com a saudade de quem não está perto ou nem está mais entre nós, precisamos exercitar a cara-de-pau em nossas relações profissionais, e nossa paciência com parentes com quem nem temos tanta afinidade. Faz parte.



Quando somos crianças e adolescentes não tem jeito, ficamos reféns da programação de nossos pais, mas nem assim acho que seja um sacrifício tão grande. Nessa época, tudo o que importa são os presentes, ninguém está envenenado pelo drama que é tentar ser legal quando não queremos ser. Eu adorava abrir os presentes, comer e ir dormir, sem me esforçar pra ser simpática com ninguém.



Mas a gente cresce.



Já fugi da confraternização da empresa. Preferi não estar lá a ter que trocar beijinho e desejar felicidade a pessoas que eu adoraria mandar pra casa do chapéu. A gente perde de estar com os que gostamos, mas me senti aliviada por não desejar boas festas a um chefe que conta histórias bonitas de espírito de Natal nas redes sociais, mas trai a esposa. Não tenho mais idade nem estômago para isso.



Tirando essa parte chata, todo o resto vale a correria e o ritual. A árvore decorada, a mesa bonita, a roupa nova, as frutas secas, o peru, o pavê, ou seja lá o que for. Quanta gente não tem nada disso?



Para mim, nem de longe a felicidade das pessoas nas redes sociais parece não ser genuína. Eu acredito nos sorrisos, no abraços, nas taças brindando, no carinho que transcende uma fotografia. Todo mundo tem algo para celebrar. Ninguém é só feliz nas redes sociais, tampouco é infeliz o tempo todo em suas vidas offline. É o que sempre digo, a vida nos devolve o que a gente dá a ela. Então, é zero mimimi no Natal, para não ter mimimi de volta em minha vida.



Feliz Natal! Vou ali tomar um Sonrisal, repeti três vezes a maionese com maçã. Detesto, mas estava uma delícia.





Will Tirando




Jean Galvão

Estela May

Adão Iturrusgarai


Laerte





Superguidis - Natal


O ritual para se abrir a cesta de Natal  - Ignácio de Loyola Brandão

Todos os anos, chegam em casa duas cestas de Natal, às vezes ao mesmo tempo, às vezes com diferença de dias. Uma vem da Global que publica meus livros há 35 anos. A outra de uma amiga, Lygia Carvalho, autora de um delicioso livro sobre Santos, mulher que discorda de mim em muitas coisas, principalmente em política, mas somos a prova de que opostos podem conviver, com respeito. O importante é que nestes dias as duas cestas provocam minha memória afetiva. Trazem de volta um dos rituais mais encantadores de minha infância. A abertura da única cesta de Natal que tivemos.
Araraquara, anos 1940, plena guerra. A Mercearia Lauand deixava a mim e ao Luiz Gonzaga, meu irmão mais velho, deslumbrados com a decoração natalina e com as cestas de Natal abertas, revelando tesouros como figos secos, tâmaras, nozes, castanhas de Portugal, latas de sardinha, vinhos (de onde seriam?), torrones, damascos (só sabia que existiam pelos filmes sobre o Oriente, estrelados por Maria Montez e John Hall), passas americanas em caixinhas vermelhas, caixas de bombons, vidros de azeitonas, latas de marmelada, pessegada, goiabada, azeite, temperos.
Quem compra tais cestas? Indagávamos e ficávamos peruando, indo de lá para cá a olhar para as caras de possíveis compradores. Certa vez, um senhor, nos disseram que da família Lia, entrou e escolheu duas. Quase caímos de costas. Nas nossas cabeças só quem podia comprar aquilo seria um Morganti, um Lupo, um Gravina, um Albiero, um Blengini, um Tedde Neto, um Chiquinho Vaz, um Dindin Garita, um Rubinho Lombardi, um Zaramella, um Somenzari, um Vono, um Barbieri. Cestas eram inacessíveis a gente como eu. 
Até o dia em que meu pai chegou em um carro de aluguel do Ponto da Matriz, ouvi barulho, corri abrir e ele entrou majestosamente com uma cesta de Natal nas mãos, depositou-a sobre a mesa da sala. Mamãe veio da cozinha, enxugando as mãos no avental. Havia sempre uma sopa à tarde, substanciosa e barata. Quente, queimava a língua naqueles dias causticantes de dezembro na cidade onde mora o sol.
“Que loucura é essa Totó?” Era o apelido de meu pai, de nome Antônio.
“Comprei!” Meu irmão veio afobado: “Vamos abrir logo, ver o que tem”.
“Nada disso”, disse mamãe, imperativa. “Primeiro, todo mundo toma banho, põe roupa limpa, janta. Depois arrumamos a cozinha e vamos abrir. Uma cesta de Natal, e esta é a nossa primeira, é muito importante, coisa séria.”
Desta vez, Luiz e eu brigamos para entrar correndo no banheiro, quando sempre era o contrário – vai você; não, vai você; não, pode ir. Banho tomado, sabonete Gessy, todos vestidos, bonitos, engolimos a sopa velozmente, vendo que papai fazia o mesmo, tão ansioso como os filhos. Não teve sobremesa, aliás nem se usava, a não ser em certos dias. Papai tomou leite frio com farinha de milho, um hábito da vida inteira. Cozinha limpa, portas abertas, o ar parado, cigarras cantando, revoada de andorinhas (desapareceram da cidade), papai ligou o rádio, ouvia-se a Hora do Brasil, odiosa e chata desde aquela época.
“Como conseguiu comprar, Totó? Nunca me disse nada.”
“Surpresa. Desde janeiro, a cada mês separei um dinheiro. Ficou naquela caixa de sapatos da Casa Barbieri no fundo do guarda roupa. Quando chegou novembro, tinha o dinheiro, fui lá, escolhi.”
Claro que não existia poupança, nada disso, cada um guardava seu dinheiro como podia, quem tinha conta no banco recebia um juro por mês, e somente os chiques tinham conta. A verdade é que, retiradas as finas fitas de papel e uma palha que protegia tudo, as maravilhas foram saltando. Meu pai sabia fazer suspense e criar clima, afinal, o irmão dele, tio Geraldo, era o melhor rádio ator da PRD-4, Rádio Cultura, que para orgulho geral nasceu antes da Rádio Nacional do Rio de Janeiro.
Para desespero nosso, não pudemos tocar em nada daquilo espalhado sobre a mesa, iluminado por lâmpadas de 50 velas, afinal era tempo de guerra e devíamos economizar energia. Teríamos de esperar oito dias até o Natal. Anos mais tarde quando vi o filme Os Últimos Passos de Um Condenado à Morte, soube o que é esperar dia a dia, contando horas, minutos, segundos, até sentar-se na cadeira elétrica ou na câmara de gás. Segundo a segundo até colocar a mão em uma passa, uma castanha, um chocolate, um damasco, uma castanha assada, um torrone Montevergine. Para enfim atirar-nos com volúpia às delicias da cesta que, esgotada, ficou no alto de um guarda-roupa na casa dos meus pais, por anos e anos, guardando recortes de jornal, papel de presentes, contos que meu pai vez ou outra mostrava, fotos de mamãe solteira, uma carta dela para ele, em que as palavras estavam escritas com as silabas todas ao contrário, um código pessoal, que nunca deciframos. Quais segredos eram trocados por um casal que vivia junto o tempo inteiro, nunca se desgrudava? Um dia, a cesta desapareceu. 










 Aqui na Esquina - Luli Penna


Fredy Varela


Bad Religion - American Jesus legendado





Natal Existencial - Artur da Távola

Que o seu Natal seja a certeza de que a vida é apenas descoberta, aventura, invenção e mistério.

  
Que seja Natal em você ainda quando lá fora imperem o escárnio e a injustiça.
Nascendo natais em você, melhor enfrentará a luta por construir o mundo com justiça e amplidão.

Será Natal o que for afetivo, caloroso, verdadeiro e sem disfarces, mesmo o de Papai Noel.

Será Natal sempre que o pedido de perdão seja feito e no coração se abrigue o mesmo sentimento de perdão, que cada um aprenderá a dar e pedir.

Será Natal o que se fizer sincero e grato. Será Natal onde o sorriso agradeça, peça, revele ou insinue e jamais disfarce, distraia ou seduza.

Há de ser Natal quando todos festejemos por igual, e saibamos avaliar perdas, dores, erros e ofensas e comungar qualidades, feitos, capacidade de prosseguir na luta constante por ver, sentir, saber e enfrentar.

Há de ser Natal sempre que se comece e a força nasça e renasça, proclamando emocionada, a descoberta do si mesmo e dos tesouros no imo escondidos.
Sendo Natal você pode se comover, dar a mão, chorar à toa, beijar os filhos, pedir a benção ao pai, brincar de bola de gude, boneca ou soldadinho de chumbo.

Sendo Natal, você deve se fazer mais simples, chorão ou ciumento, sentar no colo até de estátua, sem temer pedir afago, agasalho, cafuné, abraço de filho, doce de leite ou trégua.

Natal seja, onde houver consciência de tudo que oprime, principalmente quando vem disfarçado em lucro, progresso, ciência, aparência, fruição, rispidez, sentimento de superioridade, pretensão ou esbanjamento.

Natal seja, onde o supérfluo não seja!
Natal seja sempre que a arrogância ceda!

Natal seja onde re/exista um gesto sincero de compreensão e coragem de não fazer o que oprime, ou capitular ante a opressão sofrida.

Serás o Natal se fores tu. Serás o Natal se fizeres um congresso interior dando a palavra a cada bancada interna.

Serás o Natal se te identificares com o melhor e o pior de ti, crucificando-te em sacrifício para elevar-te à altura do melhor de ti e do Pai que elejas como padrão.

Serás o Natal se fores presente, embrulho, dádiva, oferta, surpresa, entrega ou adivinhação.

Se, em vez de tu, preferires ser você, então que seja Natal em você quando se estabeleça a capacidade de compreender quem o ofende sem ofender quem o compreende; que seja Natal em você sempre que se descobrir também menor, mesquinho ou pequeno e fizer o esforço de halterofilista da própria moral.

Seja Natal em você sempre que se sinta invisivelmente emocionado ou emocionalmente visível, tocável, perceptível, em sua melhor dimensão do sentir.

Que seja Natal em você a cada recordação e reconhecimento de quem algo lhe trouxe, mesmo encapado em dor ou perda, espanto, amor ou desilusão.

Ser Natal é olhar o céu para obter silêncio. É saber olhar, pacificar, gesticular a esperança e votar na verdade.

Ser Natal é ascender as próprias luzes sem brilho e ouvir, no silêncio, a voz do mistério a proclamar a verdade, numa linguagem oculta, com a qual se consiga alcançar sem saber e perceber sem conhecer.

Ser Natal é pular o muro ou entrar pela chaminé para dentro de si e lá encontrar a mesma criança com as enormes barbas brancas da sabedoria milenar da espécie.

Ser Natal é descobrir que Natal é SER!





Jaguar





Guabiras


Clayton










Natal - Rubem Alves

O Natal me deixa triste. 
Porque, por mais que o procure, não o encontro. 
Natal é uma celebração.

As celebrações acontecem para trazer do esquecimento uma coisa querida que aconteceu no passado. A celebração deve ser semelhante à coisa celebrada. Não posso celebrar a vida de Gandhi com um churrasco. Ele era vegetariano, amava os animais. Uma celebração de Gandhi teria de ser feita com verduras, água, leite e um falar baixo. Mais a leitura de alguns textos que ele deixou escritos. Assim Gandhi se tornaria um dos hóspedes da celebração.

Agora, um visitante de outro planeta que nada soubesse das nossas tradições, se ele comparecesse às festas de Natal, sem que nenhuma explicação lhe fosse dada, ele concluiria que o objeto da celebração deveria ser um glutão, amante das carnes, bebidas, do estômago cheio, das conversas em voz alta, do desperdício.

Nossas celebrações de Natal são como as cascas de cigarra agarradas às árvores. Cascas vazias, das quais a vida se foi. Se perguntar às crianças o que é que está sendo celebrado, eles não saberão o que dizer. Dirão que o Natal é dia do Papai Noel, um velho barrigudo de barbas brancas amante do desperdício, que enche os ricos de presentes e deixa os pobres sem nada.

Pois é certo que as celebrações do Natal são orgias de ricos, celebrações do desperdício e lixo. Celebrações do lixo? Aquelas pilhas de papel de presente colorido em que vieram embrulhados os presentes, não são elas essenciais às celebrações? Rasgados, amassados, embolados num canto. Irão para o lixo. Quantas árvores tiveram de ser cortadas para que aqueles papéis fossem feitos. Para quê? Para nada. A indiferença com que tratamos o papel de presentes é uma manifestação da indiferança com que tratamos a nossa Terra.

Estou convidando meus amigos para uma celebração de Natal. Ela deverá imitar a ceia que José e Maria tiveram naquela noite: velas acesas, um pedaço de pão velho, vinho, um pedaço de queijo, algumas frutas secas. À volta de um prato de sopa de fubá – comida de pobre –, tentaremos reconstruir na imaginação aquela cena mansa na estrebaria, um nenezinho deitado numa manjedoura, uma estrela estranha nos céus, os campos iluminados pelos vaga-lumes. E ouviremos as velhas canções de Natal, e leremos poemas, e rezaremos em silêncio. Rezaremos pela nossa Terra, que está sendo destruída pelo mesmo espírito que preside nossas orgias natalinas.

André Dahmer




Óscar Fuchz


Céllus




Patife Band - Noite Feliz (1985)




Natal - Luis Fernando Verissimo

Natal é uma época difícil para cronistas. 
Eles não podem ignorar a data e ao mesmo tempo 
não há mais maneiras originais de tratar do assunto.

Os cronistas, principalmente os que estão no métier há tanto tempo, que ainda usam a palavra métier – já fizeram tudo que havia para fazer com o Natal. Já recontaram a história do nascimento de Jesus de todas as formas: versão moderna (Maria tem o bebê numa fila do SUS), versão coloquial ("Pô, cara, aí Herodes radicalizou e mandou apagá as pinta recém-nascida, baita mauca"), versão socialmente relevante (os três reis magos são detidos pela polícia a caminho da manjedoura, mas só o negro precisa explicar o que tem no saco) versão on-line (jotace@salvad.com.bel conta sua vida num chat sitc), etc.

Papai Noel, então, nem se fala. Eu mesmo já escrevi a história do casal moderno que flagra o Papai Noel deixando presentes sob a árvore de Natal, corre com o Papai Noel e não conta nada da sua visita para o filho porque querem criá-lo sem qualquer tipo de superstição várias vezes.

Poucos cronistas estão inocentes de inventar cartas fictícias com pedidos para o Papai Noel: patéticas (paz para o mundo, bom senso para os governantes), políticas ("Só mais um mandato e eu juro que acerto, ass. Fernando") ou práticas ("Algo novo para escrever sobre o Natal, por amor de Deus!").

Já fomos sentimentais, já fomos amargos, já fomos sarcásticos e blasfemos, já fomos simples, já fomos pretensiosos – não há mais nada a escrever sobre o Natal! Espera um pouquinho. Tive uma idéia. Uma reunião de noéis! Noel Rosa, Noel Coward e Papai Noel. Acho que sai alguma coisa.

Noel Rosa, Noel Coward e Papai Noel estão reunidos... onde? Na mesa de um bar? Papai Noel não freqüenta bares para não dar mau exemplo. Pelo menos não com a roupa de trabalho. No Pólo Norte? Noel Coward, acostumado com o inverno de Londres, talvez agüentasse, mas Noel Rosa congelaria. Não interessa onde é o encontro. Uma das primeiras lições da crônica é: não especifica. Noel Rosa, Noel Coward e Papai Noel estão reunidos em algum lugar. Os três conversam. Noel Rosa – Ahm... Sim... Hmm...
Noel Rosa diz o quê?
Noel Rosa – E então?
Noel Coward e Papai Noel se entreolham. Papai Noel cofia a barba. Ninguém sabe, exatamente, o que é "cofiar", mas é o que Papai Noel faz, enquanto Noel Coward olha em volta com evidente desgosto por estar em algum lugar. Preferia estar em outro. A todas essas eu penso em alguma coisa para eles dizerem.
Noel Rosa (tentando de novo) – E aí?
Papai Noel – Aqui, na luta.
Noel Coward – What?
Esquece. Não há mais nada a escrever sobre o Natal.

Salvo isto, se dão vênia: que seu Natal em nada lembre o da Chechênia. 


O Melhor de Calvin - Bill Watterson









































Crônica de Natal (de novo) - Luis Fernando Verissimo


Tenho inveja dos cronistas novos. Não porque eles não sabem que todas as crônicas de Natal já foram escritas e podem escrevê-las de novo. Mas porque podem fazer isto sem remorso.
Tem a crônica de Natal tipo “o que eu gostaria que Papai Noel me trouxesse”. A Luana Piovani ou um fac-símile razoável, a paz entre os povos, um centroavante para o Internacional (ou um fac-símile razoável) etc.
Tem as infinitas variações sobre problemas encontrados por Papai Noel no mundo moderno (seu trenó levado num assalto, sua dificuldade em se identificar em portarias eletrônicas, protestos de ambientalistas contra o seu tratamento das renas, suspeita de exploração de trabalho escravo, suspeita de pedofilia etc.).
Tem as muitas maneiras de atualizar a história da Natividade (Maria e José em fila do SUS, os Reis Magos chegando atrasados porque foram detidos por patrulhas israelenses ou militantes palestinos, Jesus vítima de uma bala perdida).
Tem as versões diferentes da cena na manjedoura, inclusive — juro que já li esta, se não a escrevi — narrada do ponto de vista do boi.
Todas já foram feitas.
Há tantas crônicas de Natal possíveis quanto há meios de se desejar felicidade ao próximo.
Os cartões de fim de ano são outro desafio à criatividade humana. Pois todas as suas variações também já foram inventadas.
Quando eu trabalhava em publicidade, todos os anos recebia encomendas de saudações de Natal e Ano Novo “diferentes”, porque os clientes não se contentavam em apenas desejar que o Natal fosse feliz e o Ano Novo fosse próspero.
Uma vez sugeri um cartão de Natal completamente branco com a frase “Aquelas coisas de sempre…” num canto, mas acho que este foi considerado diferente demais.
E dê-lhe poesia, pensamentos inspiradores, má literatura e a busca desesperada do diferente.
Um cartão em forma de sapato, de dentro do qual saía uma meia: a meia para o Papai Noel encher de presentes e o sapato para entrar no Ano Novo de pé direito. Coisas assim.
Enfim, tudo isto é apenas para desejar a você aquelas coisas de sempre…


Mafalda - Quino

M. Schulz







































The Ramones - Merry Christmas (I Don't Want To Fight Tonight)


https://www.youtube.com/watch?v=pTgaD3pwRTc

Os Magos - Luis Fernando Verissimo

E tendo nascido Jesus em Belém da Judeia no tempo do rei Herodes, eis que uns Magos vieram do Oriente a Jerusalém, dizendo “Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? Porque vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo”. E o rei Herodes, ouvindo isso, perturbou-se, e toda Jerusalém com ele. E congregados todos os príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo, perguntou-lhes onde havia de nascer o Cristo. E eles lhe disseram: “Em Belém da Judeia, porque assim está escrito pelo profeta. E tu, Belém, terra de Judá, de modo nenhum és a menor entre as capitais de Judá, porque de ti sairá o Guia que há de apascentar o povo de Israel”. Então Herodes, chamando secretamente os Magos, inquiriu exatamente deles acerca do tempo em que a estrela lhes apareceria. E, enviando-os a Belém, disse: “Ide, e perguntai diligentemente pelo menino, e quando o achardes, participai-me, para que também eu vá e o adore”. E tendo eles ouvido o rei, partiram, e eis que a estrela que tinham visto no Oriente ia adiante deles, até que chegando, se deteve sobre o lugar onde estava o menino. E, vendo eles a estrela, alegraram-se muito. E, entrando na casa, acharam o menino com Maria sua mãe, e, prostrando-se, lhe ofertaram dádivas: ouro, incenso e mirra. E, sendo por divina revelação avisados em sonhos para que não voltassem para junto de Herodes, partiram para sua terra por outro caminho.
*
Até aí, é o que conta a Bíblia. Algumas dúvidas. Dá-se pouca atenção à visita que os Magos fazem a Herodes antes de procurarem o menino, tanto que em encenações do episódio Herodes nunca é mencionado. Na Bíblia, está escrito que Herodes chamou os Magos “secretamente” à sua presença, o que já sugere que sua intenção não era apenas conversarem numa boa. Também está escrito que Herodes “perturbou-se” com a noticia do nascimento de um futuro rei dos judeus. O que não o impediu de, cinicamente, pedir que os Magos lhe informassem quando tivessem descoberto o Cristo, para também ir adorá-lo.

Por que Herodes não mandou que os Magos fossem seguidos até avistarem a estrela que mostraria o local do nascimento do Cristo? Especulação: na sua conversa secreta com os Magos, Herodes teria pedido que eles matassem o recém-nascido, o que o pouparia de mandar matar todos os recém-nascidos em Belém. Apenas um morto impediria a morte de milhares. Com uma punhalada certeira, os Magos salvariam a vida de muitos inocentes. E Herodes só esperaria a notícia da morte do Cristo para festejar.
*
A caminho do local que a estrela do Oriente apontava, os três Magos teriam discutido quem empunharia o punhal que mudaria a história do mundo. O golpe seria dado antes ou depois da oferta das dádivas? Mas chegando à manjedoura e vendo o menino no colo de Maria, apiedaram-se dele, prostraram-se e ofertaram o ouro, o incenso e a mirra. E naquela noite sonharam que Herodes os perseguia por o terem traído, e partiram para sua terra por outro caminho.
*
A Bíblia não diz mais nada sobre os Reis Magos. Não se sabe se Herodes os alcançou para vingar-se da traição. Sabe-se, isto sim, que Herodes mandou matar todos os meninos de Belém.








Marcio Vaccari 



A VIDA COMO ELA YEAH      ADÃO ITURRUSGARAI





Nani 


VIVER DÓI   -   FABIANE LANGONA







PÉSSIMAS INFLUÊNCIAS      ESTELA MAY














Alves

Quino



Cellus



Nani





Márcio Vaccari



Galvão Bertazzi






Jesus Cristo, que vai fazer aniversário, foi o primeiro nepo baby da história - Flávia Boggio

Ele conquistou milhões de seguidores, teve a vida traçada ainda jovem e decidiu que poderia seguir a carreira de filho de Deus
Em 25 de dezembro do século 1º nascia em uma manjedoura um pobre menino, rodeado por animais. De repente, do meio do deserto, apareceram três patrocinadores com "recebidos".
Aquele não era um menino comum. Seu destino estava traçado por herança. Sim, Jesus foi o primeiro nepo baby da história.
Nepo baby —abreviação de bebê nepotista — é o termo criado pela internet para definir pessoas cuja carreira profissional foi catapultada pelo fato de serem filhos de pessoas poderosas. No caso de Jesus, o mais poderoso de todos.
Como os nepo babies atuais, ele conquistou milhões de seguidores e teve a vida traçada ainda jovem. Como Enzo, filho da Cláudia Raia, foi responsável por gerações de crianças com nomes como Jesus, Lucas e Virgínia (que também é uma famosa influencer casada com um nepo baby).
No começo, Jesus sentiu o peso da fama do pai, que tinha construído todo o universo enquanto ele só fazia banquetes para eventos.
Ficava chateado de ser chamado de "filho de Deus", assim como a filha do Didi e o irmão da Sandy e Junior. Sofreu de síndrome do impostor, mas conseguiu curá-la, porque curava qualquer doença.
Fugiu de casa para mochilar e se encontrar. Decidiu que poderia seguir a carreira de filho de Deus, independente de ser filho de Deus. Virou coach e criador de conteúdo.
Mas, diferente do pai, era um ótimo ouvinte. Não ficava castigando a torto e a direito, sem que seus fãs entendessem porquê. Era uma versão do Todo Poderoso não tão poderosa, mas com mais carisma.
Cumpria a promessa de dar presentes para seus fãs, como peixes e vinho, e tinha princípios. Recusou até a fazer "publi" para empresas de apostas, como a mais famosa de todas, que oferece fortunas em troca de queimar almas no inferno.
Mas ser herdeiro de Deus tinha suas desvantagens. Adão e Isaac que o digam. Jesus foi preso, crucificado e morto. Quando o bicho pegou mesmo, foi salvo pelo pai.
Mesmo assim, sofre até hoje. Quando passa em uma igreja vê sua imagem crucificada e seus seguidores comendo seu corpo e bebendo seu sangue.
O pior mesmo é fazer aniversário no Natal, quando ninguém liga para aniversários. Só querem saber de Papai Noel e presentes.

João Montanaro




lAERTE

Dezembro perigoso - Walcyr Carrasco


O que você prometeu a si mesmo? Emagrecer? Eu consegui, mas sou um caso raro

Noite dessas, um amigo me ligou. Estava confuso, irritado, nervoso:

– Amanhã vou pedir demissão.

Quis saber por quê. Ele me contou que está há anos no emprego, é o braço direito do chefe e, mesmo assim, não teve nenhuma promoção nem aumento nos últimos anos.

– É hora de sair.

Argumentei. Há uma regra imbatível no que se refere a trabalho. Melhor procurar novo emprego já tendo um do que sem nada. O desempregado entra no mercado com muitos pontos a menos. Depois de um tempo sem achar nada, bate um desespero, ele acaba aceitando algo pior do que já tinha. É uma regra de ouro: se estiver insatisfeito com seu emprego, não peça demissão. Procure outro escondido. E bem escondido. Pega muito mal se seu chefe descobrir que você está em fuga.

Durante a conversa, tive uma luz que o convenceu a mudar de atitude.

– É a síndrome de dezembro – eu disse. Dezembro é o mês em que a gente faz uma avaliação do ano, da vida.

Pois é. Parece ser um mês alegre. Há festas, carinhas sorridentes de Papai Noel. Na virada do ano, um clima de euforia, todos queremos estourar um champanhe na praia, brindar a uma nova vida. Vem a esperança: com a virada do ano, uma nova etapa da vida. Só que não é assim. A vida é contínua, formada por elos de escolhas e acontecimentos que se encadeiam. A gente grita:

– Agora será um ano realmente novo!

E tomamos decisões arriscadas. Casamentos se desfazem porque, de repente, o homem não consegue explicar à namorada que tem de passar o Réveillon com a mulher. E como explicar, se ele já convenceu a outra que seu casamento é uma farsa, que não faz mais sexo com a oficial há anos, que está pronto para separar? A namorada quer uma prova de amor. Prova das boas é passar o Réveillon juntos. O sujeito se contorce. Escolhe. Nem sempre toma a decisão que tomaria a longo prazo.

Pior. No trabalho, qualquer resolução de dezembro ficará adiada até depois do Carnaval. Alguém acha emprego entre Ano-Novo e Carnaval? Este país, lamentavelmente, para. Ficamos em estado de suspensão.

Isso torna dezembro duplamente perigoso. É fácil decidir e desistir. Mas a retomada, a reconstrução... fica para depois! (A não ser que sua proposta seja montar uma oficina de fantasias carnavalescas e, mesmo assim, multidões trabalham nisso há meses!)

Não sou pessimista, mas nunca me assusto quando ouço dizer que em datas festivas há mais suicídios. Dezembro é justamente onde a gente descobre que as decisões do Ano-Novo passado rolaram ladeira abaixo. O que você prometeu a si mesmo? Emagrecer? (Vitória, eu consegui. Mas sou um caso raro. A barriga de meus amigos continua cada vez maior.)

Prometeu que encontraria um novo amor e, agora, descobriu que ele fugiu com sua melhor amiga? Prometeu comprar casa própria e não sabe como pagar as parcelas intermediárias durante a construção? Enfim, é agora que você avalia as promessas feitas com a melhor das intenções no fim de ano passado. E descobre que foram palavras escritas na areia, a maioria das vezes.

Vem uma frustração que nem te conto. Dói fundo. Não há nada a fazer a respeito, porque decisões férreas de Ano-Novo são o resultado das avaliações de dezembro. Mas é preciso conviver com a realidade. Não há muito dinheiro para os presentes, a viagem não vai rolar. Conheço um casal que ia todo ano para Punta del Leste. Neste ano, até tem amigos dispostos a oferecer hospedagem, mas não há dinheiro para as passagens. Sofrem.

Não quero dizer que o ano tenha sido ruim para todo mundo, por favor! Mesmo que você tenha uma vida radiosa, feliz, em dezembro corre o risco de olhar a parte pior da história. A gente é assim: o que acontece de bom, anotamos em preto e branco; de ruim, gritamos aos olhos e ao mundo como se fosse escrito em neon.

Em dezembro, lembro o que não consegui. E o projeto de estudar hebraico bíblico? (Sempre tive vontade.) O livro ainda vive embaixo do travesseiro? A vontade de ver mais os amigos? Intensificar as relações? Meu blog, eu não ia fazer um blog?

O duro é que não adianta tomar nenhuma iniciativa agora. Vem Natal, depois Réveillon. Por melhor que seja o novo plano de vida, a gente adia. Até regime. Quem começa regime no Natal? Fica a sensação de frustração, do que a gente queria fazer e não fez. E que não pode começar imediatamente. Dezembro é perigoso. É o mês em que a gente festeja, enquanto chora pela vida.

Will Tirando




Jarbas


Zé Dassilva

Aleixo


Leonardo



Nando Motta




Dodô
Benett


Angeli

O Natal e a Mentira - Walcyr Carrasco


É uma das datas mais hipócritas que conheço. A outra é o aniversário. Nelas, todos mentem
O Natal é hipócrita. Podem me atirar pedras. Reafirmo. É uma das duas datas mais responsáveis por mentiras. A outra é o aniversário, pelo qual acabo de passar. Fiz 63 anos. Nada pior do que ouvir frases consoladoras do tipo:
– Poxa, mas você não parece.
Como se aparentar a própria idade fosse horrível. E daí se parecer 60, 70, 80? Deveria parecer 20? Nem com toda plástica e Botox do mundo! No máximo, ficaria com a cara paralisada e os olhos puxados, à oriental, como acontece com quem exagera em plásticas. Para quê? Para parecer alguém que não quer aparentar a idade que tem. Mas que aparenta. Deu para entender?É como se diz por aí:
– Ixi, ela está com o rosto todo trabalhado.
Trabalhado quer dizer: reformado. Se pudessem, alguns plásticos ou dermatologistas passariam massa corrida e lixa industrial para garantir o resultado. Ainda não surgiu nenhum produto à altura. Ainda.
Meu aniversário é próximo do Natal, portanto, em dezembro, vivo um festival de hipocrisia. Principalmente em relação a presentes. Não há nada mais difícil do que surpreender alguém com algo de que realmente goste. A não ser que a gente dê, por exemplo, um Land Rover zero. Ou um brilhante do tamanho de uma dentadura. Surpreender é difícil. Se alguém anuncia o presente desejado, também não tem graça. Como pedir: cuecas, meias, CD do Leonardo, um pacote de ração para cães para economizar nos gastos, um mês de academia. Pior, fazer cara de gentil e dizer:
– Acho ótimo você dizer o que quer, assim não erro.
Natal é teste do Enem, que a gente não pode errar? As pessoas espertas confessam:
– Meu maior sonho é conhecer o Caribe!
Finjo que não entendo e digo:
– Sabe que eu não? O Brasil tem praias tão lindas. Já foi para Santos?
Em seguida, começo a falar das belezas de Santos, enquanto o outro me encara com ódio. Santos é uma cidade adorável no litoral de São Paulo, onde muitos aposentados adoram viver. Não é conhecida pela beleza das praias, digamos assim.
Confesse. Nunca mentiu no Natal? Nem quando ganhou algum horror? E falou:
– É exatamente o que eu precisava!
O pior é quando esse horror é objeto de decoração. Quem deu, cada vez que vai em casa fica olhando para ver onde pus. Estaria atirado no fundo de algum rio, se não fosse a fiscalização. Então escondo. Cada vez que vou receber a visita, tenho de lembrar:
– Onde estão aqueles dois coelhinhos de porcelana? Tenho de pôr na mesa da sala.
A campainha toca, e eu ainda correndo atrás dos coelhinhos. Ser gentil não é uma arte, também pode ser um martírio.
Há pessoas que simplesmente ganham o presente de Natal – isso acontece muito com amigos secretos –, agradecem e choram de emoção. Depois embrulham, botam no armário e aguardam o próximo Natal, para reciclar. Isso costuma dar tão errado que nem tenho palavras.
A mãe de um amigo devolveu, dois anos depois, o perfume que a própria irmã dele tinha dado, ainda embrulhado no mesmo papel de presente. Mãe e filha acabaram aos gritos, enquanto as pessoas se esforçavam para cantar “Jingle bells”. Eu mesmo reciclei um presente, não digo quando nem onde, por discrição. Só sei que era uma bolsa linda, masculina, que o contemplado jamais compraria. Nem eu, aliás.
Era cara. Sou do tipo que usa sempre o mesmo relógio, a mesma bolsa, até se desfazerem. Resolvi passar adiante. Embrulhei num lindo papel de presente, botei fitas. Na hora do amigo secreto, quando o contemplado abriu o presente emocionado... bem em cima, exatamente em cima, estava o cartão de quem me dera, endereçado a mim mesmo. Agora me expliquem: como não vi o cartão quando embrulhei? Como, como? Parece que a tal Lei de Murphy é inexorável. Quando é para dar errado, dá errado. Mas não deu. Ele ficou abismado contemplando a pasta em couro preto.
Tanto como eu, contemplando o cartão. Aí meus dedos se moveram mais rápidos que as patinhas de uma aranha. Ainda não sei explicar como consegui, como ninguém viu. Empalmei o cartão e fugi para o toalete. Nem tive coragem de jogar fora. Rasguei e engoli. Na volta, o presenteado ainda chorava de emoção com minha generosidade. Chorei junto.
Já me preparo para as novas mentiras, inevitáveis no Natal. Neste ano, a família quer fazer em minha casa. Vamos combinar: dar presentes é muito difícil. Uma coisa certamente ninguém espera receber: sinceridade. Se é para mentir, que venha o Natal. Já estou preparado.


Politicopatas - CJ








Como dar seu presente de Natal - Walcyr Carrasco


Adiei o que pude. Xinguei o sistema de consumo. Agora tenho de tratar dos presentes de Natal. Nem preciso ir à academia. Gastarei minhas calorias andando por lojas, atravessando shoppings e mergulhando em multidões exaltadas em torno de caixas lentos.

Tenho uma teoria a respeito de presentes, ótima para o Natal. Presentes se dividem entre: de luxo, práticos e criativos. De forma geral, a regra é a seguinte: quanto menor a caixinha, mais rico quem ganha ou quem dá. Quanto maior, menos grana no pedaço. Claro, há exceções. Mas brincos de brilhantes, gargantilhas de rubis exigem embalagens pequenas. Uma máquina de lavar é um pacotão. Se você tem muito dinheiro, está fácil. Um relógio de marca famosa, champanhe Dom Perignon, Veuve Clicquot ou Cristal sempre são bem acolhidos, assim como bons vinhos, charutos cubanos, bolsas de grife exclusivas, lanchas, carros zero. Todo mundo adora rico que bota presente bom na mesa. Aquele adágio que milionários e mestres de etiqueta adoram declamar – “ser elegante é ser simples” – é mentira. Se alguém tem um amigo rico, odiará um presentinho qualquer. Quer que o rico mostre quem é, dando algo de luxo. Confesso: recentemente ganhei um conhaque Louis XIII. Já falei dele aqui, custa mais de R$ 12 mil a garrafa. Meu coração tremeu de emoção.

– Como alguém pode gastar tanto comigo? – pensei, com os olhos faiscando de autoestima.
Depois, é claro, escondi a garrafa. Sou filho de pobre. Não correrei o risco de que algum amigo bebum enxugue meu conhaque. Eu mesmo o beberei de gota em gota. Mais tarde, quando a preciosidade acabar, encho a garrafa com um conhaque comum e sirvo a quem vier, para parecer generoso.

A categoria luxo impressiona. Mas o criativo funciona para ricos e pobres. Tem toda a chance de se tornar inesquecível. Por exemplo, um pacote de argila fresca dado a uma criança na noite de Natal é inesquecível. Para a mãe e a dona da casa. Mas a criança vai adorar! Fuja de filhotes de cães ou gatos. Bichos a gente só dá a quem realmente quer. Já ganhei um presente criativo e inesquecível, entre muitos, de minha amiga Lucilia Diniz. Quando fiz 60 anos, ela me ofereceu uma caixa com DVDs de todos os filmes que ganharam o Oscar do ano em que nasci até meu aniversário. Para meu orgulho, também já fiz sucesso em um aniversário da Bethy Lagardère, que hoje vive no Rio e já foi casada com o homem mais rico da França. Bem, o que se dá para alguém assim? Roupa de grife, para uma das mulheres que melhor se vestem no planeta? Encontrei um livro sobre os pássaros do mundo. A cada página, as ilustrações subiam em relevo e ouvia-se o som dos pássaros cantando. Ela adorou! Para ser criativo, é preciso também ser surpreendente. Conheci uma mulher que preparava biscoitos e oferecia em vidros personalizados aos amigos. Uma delicadeza. Aviso: estou cultivando abelhas. Ano que vem me safo engarrafando potes de mel e oferecendo com um “eu mesmo produzi”. Presentes criativos, ou as pessoas adoram ou disfarçam. Mas, se fingem que gostam, é o que realmente conta no Natal.

Presentes práticos são os que menos entusiasmam. Mães costumam ser vítimas dessa categoria. Ganham coisas para a casa: pratos, panelas, eletrodomésticos. Minha mãe, que não era boba, a certa altura da vida implorou: “Neste Natal, quero um presente para mim”. Foi o único jeito de se livrar dos liquidificadores, dados ano após ano por mim e meus irmãos. A gente nunca sabe exatamente o que dar a pai e mãe, que parecem ter tudo. O segredo: pense em algo que, na imaginação, eles nunca usariam. Tipo um estojo de maquiagem transado, para ela se sentir uma mocinha; shorts colorido para ele; material de pintura, caso não pintem; ou inscreva seu velho num curso de culinária; ou ofereça um pacote de seis meses numa academia. Se insistir num presente prático, fuja de liquidações. Certa vez dei uma camisa a um amigo secreto no trabalho. Não serviu. Tentei a troca, não aceitaram. Na época, eu estava durango. Nunca mais toquei no assunto. O amigo secreto virou inimigo público.

A não ser que tenha certeza absoluta, fuja do presente prático. Senão, um dia encontrará uma pilha de eletrodomésticos na área de serviço de sua mãe, tia ou sogra, acumulados ao longo do tempo. Surpresa ainda é o melhor no Natal. E, quem sabe, você ofereça um vale salto paraquedas a seu primo, e ele te agradeça eternamente?



Pryscila

Fernando Gonzales



Luscar



Sinovaldo



Crônica de Natal – Fernanda Pompeu

Nunca acreditei em Papai Noel. Pois papai Marcus e mamãe Etienete sempre deixaram claro serem eles que iam na loja comprar nossos presentes. Também costumavam declarar que a situação estava ruim, daí os presentes virem modestos. O que não significava que não fossem encantadores. Na primeira infância amei cada presente que recebi. Em particular recordo de uma baratinha de lata (carro de corrida da época) e da miniatura de uma máquina de escrever.
A falta de crença no Papai Noel poupou a mim e a meus irmãos da desilusão de sua não existência. Nesse quesito agradeço aos meus pais. Se nos privaram de uma fantasia, também nos protegeram da consequente frustração.

É fato que os Natais do final da década de 1950 eram muito diferentes dos atuais. Não havia brinquedos em padarias, farmácias, lojinhas no metrô. Por sinal nem tinha metrô. A televisão, ainda incipiente, era tímida nos comerciais veiculados ao vivo. O foco publicitário estava mais nas mamães do que nos filhos.

Mesmo a figura do Papai Noel sinalizava estranheza. Idoso envolto em roupa de inverno no escaldante verão brasileiro. Associado à neve que ao menos 95% das crianças nunca viram. Montado num trenó puxado por alegres renas que até para a garotada rural – acostumada à companhia de muitos bichos – soavam exóticas. Figuras de decalque, como se dizia então.

Com o passar das décadas, o aumento vertiginoso da população e a explosão das mídias de massa, o mercado entendeu o marketing e potencializou a personagem. O idoso gordinho e simpático virou garoto-propaganda de marcas famosas, bebedor de refrigerantes, babá de bonecas caras.
A Wikipédia anota que a invenção do Papai Noel se inspirou no arcebispo de Mira na Turquia, o São Nicolau. Ele gostava de ajudar anonimamente quem estivesse em dificuldades. Levava nas costas um saco de moedas e as distribuía às escondidas. Já a indumentária ganhou definição quando a Coca-Cola lançou um comercial com o velhinho vestido de vermelho. Cor que não é só do PT, mas também do planetário xarope gelado.


São histórias que talvez apontem a não permanência no futuro do Papai Noel. Basta que uma nova geração de papais resolva não evocá-lo. Mas tudo isso tem pouco a ver com o Natal. Pois na substância e sem adjetivações a data comemora o nascimento de um cara de bom coração. Portanto desejo a todos, crentes e céticos, um Feliz Natal!

Sinovaldo



Brum

Alves


J.Bosco
Tacho







Hector Salas

Fantasias de Natal - Humberto Werneck

A longa sucessão de choques de realidade que a vida nos reserva, do berço ao túmulo, frequentemente principia com o enunciado de uma frase perversa com a qual algum espírito de porco põe a pique uma de nossas mais excitantes ilusões: 
– Ainda não sabe que o Papai Noel é o pai da gente?
***
Com você, como foi que aconteceu?
Comigo, já não me lembro. A revelação, que eu saiba, não chegou a me traumatizar. Na extensa prole do doutor Hugo e da dona Wanda, que puseram no mundo um time de basquete feminino e um de vôlei masculino, fui o segundo a dar as caras, e não creio que o choque tenha sido provocado pelo primogênito Rodrigo, extrovertido a mais não poder. Era ele quem nos acordava nas manhãs de 25 de dezembro, quando as duas portas da sala ainda estavam trancadas. 
Com o papai e a mamãe Noel ainda ferrados no sono, gramávamos uma torturante espera. Nada nos restava senão nos revezarmos no buraco da fechadura para divisar, ao fundo, repousando no sofá, as pilhas de presentes trazidos no Polo Norte – o qual nem desconfiávamos ser, entre outros endereços, a Casa Sloper. Confesso que nunca me ocorreu perguntar aos pais, ou mesmo aos meus botões, por onde o Bom Velhinho conseguia entrar naquela casa desprovida de lareira & chaminé. 
Não me lembro de ter sido mal atendido em qualquer dos meus Natais da infância. Nem mesmo quando, às vésperas de completar 4 anos, não encontrei sobre o sofá um dos três presentes que havia encomendado. 
Dois deles chegaram sem problemas, e fiz questão de que aparecessem numa foto de grupo, feita semanas mais tarde, na fazenda. No gramado em frente ao Roseiral, como se chamava a casa de campo da vovó, lá estou eu, de cócoras, na linha de frente de um mar de netos aglomerados em torno de uma sorridente dona Dora. De óculos escuros pouco mais que zero km, tenho as mãos cruzadas, num evidente esforço para tornar visível o anel de prata no mindinho – meu ansiado anel “de chapinha”, isto é, provido de uma superfície oval para gravação de iniciais. 
Adulto, custei a me reconhecer na foto; foi preciso que minha mãe apontasse: “Você é esta marmota aqui”. Falou então de meu terceiro pedido, que por boas razões os prepostos do Papai Noel houveram por bem não atender: um par de muletas. 
Sim, muletas – mas não porque o pedinte fosse, além de marmota, um tipinho mórbido: aquilo tinha para mim apelo semelhante ao das pernas de pau com que via o artista se exibir no circo. Aparato lúdico, nada mais que isto.
Tantas décadas depois, quase temo que o Papai Noel, num 25 de dezembro, venha a entregar ao senhor maduro a mercadoria que sonegou ao menino, para atender não mais a fantasias circenses, mas a imperativos ortopédicos.
***
Meu pai, este sim, sofreu decepção enorme quando a natureza o colocou diante da evidência de que o Papai Noel não existia.
Apaixonado desde sempre pelas aves, houve um Natal em que o infante Hugo pediu ao rubicundo presenteador “um passarinho diferente”. Os irmãos, todos mais velhos do que ele, coçaram as cabeças, aliás àquela altura já um tanto escalvadas. Ao contrário do caçula, nenhum era passarinheiro; mas criatividade não lhes faltava: providenciaram uma ave plebeia, além de pincéis e tintas, e recobriram as penas com todas as cores da paleta, convertendo a criaturinha num delírio cromático provido de asas.
No dia de Natal, o menino – que, já bigodudo, viria a se notabilizar como ambientalista, num tempo em que a palavra nem sequer fora criada (o primeiro registro escrito, esclarece o dicionário Houaiss, é de 1984) – o menino, dizia eu, se deparou, sob a árvore, com uma gaiola dourada em cujo poleiro pousava inédita maravilha multicolorida. Tão logo o queixo deixou de estar caído, quis saber o nome da espécie, detalhe em que nenhum dos irmãos havia pensado. “Camuflagem”, improvisou um deles. Mais exatamente, Camouflage, vocábulo francês, idioma então bem mais prestigioso que o inglês, para designar “disfarce”.
Durante meses reinou Huguinho sobre a meninada do bairro, para lá e para cá com a gaiola de seu Camouflage, ser prodigioso do qual nem os passarinheiros veteranos conheciam similar. 
Assim foi até que chegasse a época da muda, quando, em poucos dias, a natureza depenou a ave por inteiro, abrindo espaço para plumagem nova, processo em que o assombro policromático voltou a ser uma triste e vulgar fêmea de papa-capim, espécie que ninguém se daria ao trabalho de ostentar numa gaiola, muito menos dourada.
***
Em matéria de decepção natalina, sou mais aquela pela qual passou o finado confrade João Ubaldo Ribeiro, por ele narrada com enorme graça numa crônica. Numa noite de 24 de dezembro, ele e sua patota pré-adolescente se postaram em lugar escuro para flagrar, na fornalha da ilha de Itaparica, a chegada do trenó puxado por juntas de renas. Dali viram um homem com roupas convencionais saltar furtivamente a janela de uma dona avulsa – e assim vieram a saber que nesta vida há fantasias bem mais excitantes que a farda rubra do Papai Noel.









Papai Noel Velho Batuta - Garotos Podres


Emoções e Tristezas Natalinas -  Eduardo Mascarenhas


Sempre fiquei impressionado com a tristeza ou mesmo com a ameaça de tristeza que, pela época do Natal, se abatem sobre as pessoas. Caso eu quisesse exagerar e ser cruel, poderia até dizer que o Natal é uma época de crianças alegres cercadas por adultos tristes. Evidentemente, dizer isso é excessivo. Na verdade, as emoções despertadas pelo Natal são bastante complexas. Todavia, estou certo de que há pelo menos uma ponta de tristeza em quase todo mundo.

A alegria das crianças é motivada por razões óbvias. O Natal é época de presentes e acima de tudo de PRESENÇA de pais muito frequentemente ausentes.

Também é de fácil entendimento o lado alegre que desponta nos adultos. O Natal constitui uma oportunidade de reencontros, anistias e perdões. A esponja da solidariedade lava mágoas e rancores acumulados e encardidos. Trata-se, no mínimo, de uma trégua, de um cessar-fogo, de um armistício e de uma esperança de recomeço. Tudo isso enternece e comove corações.

Ora, se o Natal é exatamente tudo isso, de onde decorre a tristeza que ele acarreta? Aliás, não é só o Natal que provoca tristeza; ocasiões a princípio alegres como a Passagem de Ano e o Carnaval também trazem tristeza. No entanto, para um olhar mais fino e agudo, há matizes distintos nessas tristezas. Qual é então o matiz específico das tristezas natalinas?

Em primeiro lugar, salta aos olhos que, diferentemente da Passagem de Ano e Carnaval, o Natal é em essência uma festa da família. Se a Passagem de Ano ainda é uma festa híbrida, mistura de Natal com Carnaval, este, por sua vez, já é quase o oposto do Natal. No Natal se comemoram o amor e a família, ao passo que no Carnaval se festejam a disponibilidade e a sensualidade; ou melhor, festeja-se a sensualidade disponível. Estamos diante quase do oposto dos vínculos que soldam a família.

A primeira fonte do banzo natalino é o fato de o Natal evocar a lembrança daquela infância querida que os anos não trazem mais. Mas não é só isso. O Natal evoca também a infância que se quis ter e que não se teve, as dores de um passado familiar que nem sempre foi doce.

Como se não bastasse, o Natal evoca ainda a diferença entre o amor e a família que se tem e a que se gostaria de ter. Nosso casamento e nosso relacionamento com os filhos e amigos serão tão bons quanto gostariamos que fossem? Então ficamos tristes e saudosos de uma vida de afeição e de amor com que sonhamos e que não conseguimos realizar. Aquilo que se deixou de ser sem nunca ter sido... E haja fossa!

Podemos ainda detectar no Natal outro fator entristecedor, fator a que se presta pouca atenção, mas que é muito importante. Trata-se do seguinte: por acentuar poderosamente o vínculo familiar, o Natal produz na mente um duplo efeito.

Em primeiro lugar, produz uma sensação de perda dos vínculos mundanos. De uma hora para outra, passamos a ter a s ensação de que nossa vida ficou restrita à vida familiar. É como se o mundo tivesse morrido e ficassemos reduzidos à família. Isso representa uma perda para nossa parte adulta, além de provocar uma sensação de claustrofobia, de estarmos confinados em espaços pequenos.

Em segundo lugar, o Natal, também por reforçar o sentido da família, tende a desqualificar a sexualidade, pois esta, ao produzir permanentemente tentações, tende a desestabilizar os casais. Assim, o Natal é uma festa antiafrodisíaca, quase um breve contra a luxúria. Essa sensação de estar meio dessexualizado angustia o lado adulto, provocando uma verdadeira hipocondria sexual: "Será que perdi o sexo para sempre?"

A claustrofobia e a hipocondria natalinas também colaboram para a tristeza específica do Natal.

Todas essas emoções se dão com pessoas que tem família, que não perderam filhos e amores. Imagine-se a situação daquelas que já sofreram essas perdas!



Ikenga



Benett

Jean Galvão


Miguel Paiva


Dalcio




Genildo

Pater




Ebenezer Scrooge recebe o Fantasma do Natal Presente do Subjuntivo - Ricardo Araújo Pereira


Luiza Pannunzio/Folhapress



E então, um quarto espírito apareceu. Ebenezer Scrooge admirou-se.

“Desculpe, mas deve haver algum engano. Já cá estiveram três colegas seus. Foi impressionante, tive uma experiência mística extraordinária, fui confrontado com a minha própria avareza, o que me levou a uma profunda introspecção que acabou por me transformar num homem melhor. Agora queria ver se ainda dormia um pouco, porque amanhã gostaria de me levantar cedo para começar a ser
uma pessoa mais generosa e compassiva logo de manhã.”

O espírito não se deixou impressionar: “Fico satisfeito por ouvir isso, mas minhas ordens são para aparecer aqui a esta hora”.

“Para quê? Como lhe disse, não vale a pena. O trabalho já foi feito pelo Fantasma do Natal Passado, pelo Fantasma do Natal Presente e pelo Fantasma do Natal Futuro.


“Sim. Mas faltou eu: o Fantasma do Natal Presente do Subjuntivo.”

“Isso é absurdo. O presente do subjuntivo continua a ser o presente. É o mesmo tempo.”

“Mas é outro modo, Ebenezer. O principal objetivo desta noite é que você passe a
comportar-se de outro modo.”

“Isso foi conseguido. Já lhe disse que mudei. Vou dar dinheiro a instituições de caridade e pagar os tratamentos do pequeno Tim. Estou completamente reformado. Pode ficar descansado. Boa noite.”

“Não, escute. Vamos dar um passeio. Ver alguns Natais.”

“Já fui. Vi Natais passados, Natais presentes e Natais futuros. Não vou ver Natais presentes do subjuntivo. Até porque não existem.”

“Ouça, quando distribuíram os Natais a cada fantasma, os melhores cargos já estavam escolhidos. Eu queria ser Fantasma do Natal Presente, mas o Márcio chegou primeiro, e eu tive de ficar com o presente do subjuntivo. Era isso ou ir assombrar uma casa velha. Ora, eu estive 200 anos a assombrar. Ao princípio é divertido, mas depois, basicamente, são gritos. Estava a precisar de uma mudança profissional, e aparecer a avarentos na noite da consoada para lhes fazer ver o verdadeiro espírito de Natal era
uma carreira muito atraente.”

“Eu compreendo. Mas Fantasma do Natal Presente do Subjuntivo não é nada. Além disso, já estou imbuído do espírito de Natal. Pode ir embora.”

“Você continua o mesmo homenzinho desagradável que era no início do conto. Pode enganar todo o mundo, mas o Fantasma do Natal Presente do Subjuntivo você não engana."

Dodô


Jorge Braga


LÉZIO JÚNIOR






Cazo



Boas Frestas - Martha Medeiros

Quando eu era adolescente, a escrivaninha do meu quarto ficava encostada contra uma parede onde havia uma janela que dava para a rua. Entre mim e o mundo havia persianas feitas de lâminas horizontais que ocultavam o que acontecia lá fora, a fim de que eu pudesse me concentrar nos estudos do colégio. Mas, de vez em quando, eu abria um espaço entre uma lâmina e outra para espiar.
Era através dessas frestas que eu reparava num garoto que morava quase em frente. Ele entrava e saía de sua casa, andava de skate, se reunia com os amigos do quarteirão. E eu ali, escondida atrás das persianas, observando e sonhando. Inventei um romance entre mim e ele pelas frestas. Muitos anos depois, a realidade atravessou a janela e a história aconteceu pra valer, mas esse tempo também já acabou.

O que não acabou foi essa mania de abrir um espaço para ver o que acontece do outro lado da vida, quando eu deveria estar atenta apenas ao que acontece bem na minha frente.

Frestas. Pequenas aberturas necessárias para fazer contato com a imaginação, com a fantasia, com o que, estimulado pela curiosidade ou pela fé, pode se tornar menos impossível do que parece.

Abro a página de um livro e ganho o universo. Ouço cinco minutos de música em meio ao expediente e já troco de ânimo. Envio um e-mail audacioso para uma colega e passo a participar de um projeto. Basta uma pequena quebra de rotina, mudar de tom, arriscar um sim. O sim é a fresta necessária entre lâminas e lâminas de nãos. O não bloqueia a vida sonhada.

Às vezes parece que já está tudo escrito, o destino determinado. É desse jeito, dessa forma, não invente coisa, está bom assim. Apenas respire e vença os dias, um após o outro. As persianas estão fechadas protegendo você dos raios ultravioletas, dos temporais, das tentações, de tudo o que existe do lado de lá, onde você não está. Aquiete-se. Nada de mal pode lhe acontecer, querida.

Mas nada de bom também, se a gente não teimar.

Então procuro escutar além do que ouço, enxergar além do que vejo, acreditar no que vai além do racional. Com a ponta dos dedos, separo uma lâmina da outra para descobrir de onde virá o indefinido, aquilo que ainda não existe senão como possibilidade, o big bang que será capaz de produzir um novo mundo, a explosão que sinalizará que é hora de zerar o cronômetro e recomeçar a contagem do tempo.

Estamos terminando dezembro. E se, em vez de falar de Natal, que é sempre igual, a gente abrisse pequenos vãos por onde alguma novidade possa entrar e tornar a vida menos repetitiva? Eu, que não suporto trocadilhos, até a eles estou recorrendo para fugir da mesmice: boas frestas para todos.

Veronezi



Frank

João Bosco

Tacho

Reinaldo


Ronaldo

Beto



Poema de Natal - Fernando Pessoa

Natal… Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.
Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade !
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.
E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei !


Luiz Girão (Eu não gosto de você Papai Noel de Aldemar Paiva)


Natal na barca - Lygia Fagundes Telles


Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.

O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.

Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.

Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.

A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o. rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.

— Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.

— Mas de manhã é quente.

Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.

— De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me encarando.

— Quente?

— Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?

Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:

— Mas a senhora mora aqui perto?

— Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje...

A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno.

— Seu filho?

— É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre... Mas Deus não vai me abandonar.

— É o caçula?

Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce.

— É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos.

Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.

— E esse? Que idade tem?

— Vai completar um ano. — E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: — Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou.

Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los.

— Seu marido está à sua espera?

— Meu marido me abandonou.

Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos comunicantes.

— Há muito tempo? Que seu marido...

— Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.

Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar.

— A senhora é conformada.

— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.

— Deus — repeti vagamente.

— A senhora não acredita em Deus?

— Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas...

Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão:

— Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.

Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.

Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim

— Estamos chegando — anunciou.

Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:

- Chegamos!... Ei! chegamos!

Aproximei-me evitando encará-la.

— Acho melhor nos despedirmos aqui — disse atropeladamente, estendendo a mão.

Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.

— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.

— Acordou?!

Ela sorriu:

— Veja...

Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.

— Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço.

Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.

Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.

Natal da Barca, de Lygia Fagundes Telles - Contos da meia-noite





Amigo Secreto - curta metragem
direção: Márcio Salem
http://portacurtas.org.br/filme/?name=amigo_secreto

Todas as casas do bairro recebem uma carta ás vésperas do natal, menos a de dona Olga. Inconformado, o carteiro tenta fazer de tudo para que ela receba uma correspondência também. 



Ressaca - curta
direção: Rene Brasil

http://portacurtas.org.br/filme/?name=ressaca11344

Um casal acorda no dia 25 de Dezembro. Ele está de ressaca e não lembra do que fez na ceia com a família dele. Ela está bem e o ajuda a se lembrar do que fez. Ele acha que estragou a festa mas descobre, conforme se lembra, que havia contado suas experiências dos natais da infância e de como era um tempo de amor e saudade. Ela relembra tudo isso com ele e percebe que para ela esse foi um natal inesquecível.

A Lente e A Janela - Marcius Barbieri





Uma menina ganha uma câmera de vídeo no Natal e se transforma através da lente e da janela.


John Lennon - Happy Christmas






Happy Xmas (War Is Over)

Happy Xmas Yoko
Happy Xmas John

So this is Christmas
And what have you done
Another year over
And a new one just begun

And so this is Christmas
I hope you'll have fun
The near and the dear one
The old and the young

A very Merry Christmas
And a happy New Year
Let's hope it's a good one
Without any fear

And, so this is Christmas
For weak and for strong
For rich and the poor ones
The world is so wrong

And so happy Christmas
For black and for white
For yellow and red ones
Let's stop all the fight

A very Merry Christmas
And a happy New Year
Let's hope it's a good one
Without any fear

And so this is Christmas
And what have we done
Another year over
A new one just begun

And, so happy Christmas
We hope you have fun
The near and the dear one
The old and the young

A very Merry Christmas
And a happy New Year
Let's hope it's a good one
Without any fear

War is over, if you want it
War is over, now

Happy Christmas


Feliz Natal (A guerra acabou)

Feliz Natal, Yoko
Feliz Natal, John

Então é Natal
E o que você fez?
o ano temina
E começa outa vez

E então é Natal
Eu espero que você se divirta
aos próximos e queridos
Aos velhos e os novos

Um Natal muito feliz
E um feliz Ano Novo
Vamos esperar que seja um bom ano
Sem medo

E então é Natal
Para fracos e fortes
Para ricos e pobres
O mundo está tão errado

E então Feliz Natal
Para negros e brancos
Para amarelos e vermelhos
Vamos parar todos os conflitos

Um Natal muito feliz
E um feliz Ano Novo
Vamos esperar que seja um bom ano
Sem medo

E então é Natal
E o que você fez
o ano temina
E começa outra vez

E então Feliz Natal
Nós esperamos que você se divirta
aos próximos e queridos
Aos velhos e os novos

Um Natal muito feliz
E um feliz Ano Novo
Corrigir
Vamos esperar que seja um bom ano
Sem medo

A guerra acaba, se você quiser
A guerra acaba, agora


Feliz Natal

https://acervo.publico.pt/contos-de-natal

Coral de Rua - Garotos Podres - Papai Noel Filho da Puta


Clayton

Vitor Teixeira













Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...