Meu nome é Emanuel. Há tempos, eu pensava em criar um blog sobre leitura mas não encontrava o nome. "Crônicas Recolhidas e Cia Ilimitada" é, por enquanto, o nome provisório do blog. Além das crônicas, artigos de opinião, contos e poemas terão seu espaço aqui. Sempre que possível, além do texto, serão incluídos links e/ou imagens relativos ao tema.
domingo, 19 de novembro de 2017
Sobre pizza e honestidade - Ruth Manus
segunda-feira, 13 de novembro de 2017
Natal
DESCUBRA QUAL BICHINHO VOCÊ É!
A última ceia - Julián Fuks
Sobre a mesa o maior frango da venda, farofa de banana, arroz com frutas secas, cravos fincados no tênder: de fome ninguém vai morrer. Quatro cadeiras em volta, alinhadas com diligência. Acomodados, apenas três, e o silêncio montado no tempo, galgando a noite com indiferença.Aquele moleque é um inconsequente, o pai disfarça a inquietação em impaciência, tomando de empréstimo a palavra do chefe, preto inconsequente, é o que o chefe lhe diz quando alguma coisa não sai bem. A filha está mais entretida com seus problemas, comprida demais sua saia de renda, a que horas será que a festa começa, por que não comer de uma vez se já é óbvio que ele não vem. A mãe crava a unha entre os dentes, crava os olhos na parede, roga à estatueta de gesso que também esperou seu filho numa noite como essa, indaga o rosto de madeira com suas lágrimas vermelhas, por que é que ele não chega, que foi que lhe fizeram, bom rapaz que ele é. Não é desses que se perderam, ele sabe cuidar de si, não é nenhum pixote, não é nenhum guri; só tem o estranho vício de habitar as ruas e frequentar vielas.
Um jovem o abismo de fardas guardou consigo. Deve dar meia-noite a qualquer momento. O governador não vai ligar para prestar suas condolências.
JULIÁN FUKS é autor de "Procura do Romance" e "Histórias de Literatura e Cegueira" (ambos editados pela Record).
Fernando Gonsales
Hoje é um bom dia - Luisa Geisler
A família viajou. Na cozinha, Ana, a diarista, encara o telefone celular. Odeia o Natal sozinha.Se ela poderia sair também? Não, passagens durante feriados são sempre caras. Não era a sua folga. E alguém vai cuidar de Lola, a poodle. Ana odeia o natal sozinha em Curitiba.
Se algo falhasse, seria a terceira família em seis meses. Ana se sentiria deslocada em qualquer família já completa, fosse no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Nos cursos de capacitação, sempre recomendavam: mudem pouco, eles conferem a carteira. Após catar suco na geladeira, Ana odeia o natal sozinha em Curitiba, Paraná.
Celular em mãos, Ana se senta. O papel de parede brilhante da ausência que todos os familiares são. Ana vê Lola e sente raiva. Fria e lógica, de um psicopata que sabe -num ensaio acadêmico de 137 folhas-- o que e por que odeia. Não é só Lola. Ana odeia o natal sozinha em Curitiba, Paraná, no bairro do Juvevê.
O celular toca o hino do Atlético Mineiro. Ana deixa tocar por um instante. Quem sabe estejam todos bem. Quem sabe haja solução. Ana pega o celular e sorri ao atender a chamada. É um bom dia.
LUISA GEISLER é autora de "Quiçá" e "Contos de Mentira" (ambos editados pela Record).
PAULO SCOTT é autor de "Habitante Irreal" (Alfaguara) e "Ainda Orangotangos" (Bertrand).
Miguel
Amely - Pryscila Vieira
Melancolia - Paloma Vidal
Quando o dente de leite que a Fada tinha levado embora apareceu na caixinha colorida da sua mãe, foi mais um sinal de que as coisas não eram como pareciam. "Suspeito", anotou no caderno que ela tinha lhe dado "para desenhar". Ele só conseguia fazer uns pauzinhos que rematava com círculos de diferentes tamanhos e depois chamava de bonecos, esperando que sua mãe se conformasse. Quase sempre ela não se dava por satisfeita: "e isso aqui?". "É uma árvore", improvisava. "Mas não tem folhas". Sem paciência, acaba dizendo que suas árvores eram assim, para encerrar a discussão. Tudo aquilo era chato e o distraía das suas tarefas como agente secreto. A Fada do Dente, o Coelhinho da Páscoa e o Papai Noel passavam sempre de madrugada, quando ele estava dormindo. Quanto a isso não havia nada a fazer, pois se ficasse acordado eles desistiriam de vir, o que não só não resolveria seu problema como o deixaria sem as recompensas. Sua mãe voltava sempre a esse ponto. Era evidente que eles se comunicavam com ela ou o dente não teria ido parar na caixinha, mas se lhe perguntasse ela nunca admitiria o óbvio. Isso tornava a chegada do Natal um tanto melancólica: de que adiantaria pedir um DS se sua mãe acabaria por convencer o Papai Noel de que ele estava mesmo era precisando de uma mochila nova?
PALOMA VIDAL é autora de "Mar Azul" (Rocco) e "Algum Lugar" (7 Letras)
Conto de Natal – Gregorio Duvivier
Meus primos já não acreditavam em Papai Noel havia muito tempo. A Barbara, minha irmã mais nova, já não acreditava em Papai Noel havia muito tempo. Eu era o último beato: era pra mim que continuavam a encenação. E que encenação. Como o Natal era sempre na fazenda, meu avô aparecia em cima de um trenó puxado por uma rena. Era tipo Disney, só que mais real. Pros meus amigos descrentes, eu dizia: "Vocês só conhecem aquele Papai Noel do shopping. É claro que aquele não existe. O que vai lá em casa é especial. Ou você acha que é qualquer velhinho que tem um trenó puxado por uma rena?".
Já devia ter uns sete anos de idade quando percebi que tinha alguma coisa errada. Peraí. Esse trenó é uma carroça. Essa rena é um jumento. E esse Papai Noel tem os olhos do meu avô, a voz do meu avô e os dois nunca estão no mesmo lugar ao mesmo tempo. A verdade começou a ecoar como num filme: o Papai Noel é o seu avô. O seu avô é o Papai Noel. Luke, I am your father. Balbuciei: "Vovô?". Ele tossiu. Cobriu os olhos. Ô-ôu.
Olhei em volta e vi que todos estavam prendendo o riso, inclusive a minha irmã mais nova. Todos sabiam de tudo. E o pior: todos sabiam que eu não sabia.
Fui correndo pro banheiro e vomitei a ceia de uma vez só. Na boca, o gosto azedo de decepção, desespero e chester com farofa de ameixa.
"Se o Papai Noel não existe, o que é que existe, então? Por que é que a Barbara não me contou que ele não existe? Será que isso quer dizer que sou mais burro que ela?"
Chorei por horas e nunca mais acreditei em nada: Papai Noel, coelhinho da Páscoa, fada do dente, Deus, o Espírito Santo, homeopatia e relacionamento aberto.
Quando via um quadro de Jesus, eu tinha vontade de puxar a barba postiça. Tadinho do vovô, acha que me engana.
*
Meu primo Santiago (filho dos meus primos) tem três anos de idade. Perguntaram o que é que ele ia pedir ao Papai Noel. Ele disse que não queria nada. Explicaram que o Papai Noel podia conseguir qualquer coisa que ele quisesse. Era só pedir.
Seus olhos brilharam, fascinados com tanto poder. E disse: "Então pede pra ele um empadão".
E de repente o Natal voltou a fazer sentido. E meu avô, depois de 20 anos de férias, vai voltar a desempenhar seu papel. Acho que meu ceticismo não resiste a uma aparição na carroça, trazendo um empadão.
ElvisDuke
Fernando Gonsales
ANTÃO - Fabrício Corsaletti
Era negro o Papai Noel da minha infância. Curiosamente, isso nunca foi motivo de estranhamento pros moleques da nossa cidade, racista como qualquer cidadezinha do interior de São Paulo. Como qualquer capital do Brasil. Pelo contrário, estranhávamos quando outro adulto qualquer, branco ou japonês, vestia a roupa e o chapéu vermelhos e punha uma almofada idiota na barriga. Achávamos aquilo de uma falsidade intolerável, e logo alguém reconhecia e desmascarava o impostor.
Certa manhã, entre o Natal e o Ano-Novo, fui sozinho pro Clube dos Bancários —que ficava no final de uma estrada de terra e onde a classe média de Santo Anastácio passava as tardes nadando e jogando futebol— e vi um velho gordo e negro, de olhos verdes e turvos de catarata, fumando um cachimbo sentado na varanda de uma casa de madeira sem pintura, com manchas de musgo nas paredes, telhado caído, quase escondida atrás dos pés de mamona. Era o Papai Noel. Desci da bicicleta e disse:
-Oi, Papai Noel!
Ele levantou e disse:
-Ô, menino, tudo bem? Entra. Como vai seu pai? Sua mãe tá trabalhando essa semana? Preciso passar lá pra arrancar esse dente —e abriu a boca com a mão pra que eu pudesse ver direito.
Mais tarde descobri que seu nome era Antão.
Viveu ainda muitos anos depois que deixei de acreditar em Papai Noel.
Caco Galhardo
Calendário de polêmicas natalinas - Flávia Boggio
Familiares e amigos contribuem para tornar esta época do ano ainda mais miserável. No lugar do amor e abraços, o fim de ano vira temporada de desaforos e remorsos. Esqueça o "ninguém solta a mão de ninguém". Dezembro é tempo de dedo no olho e gritaria.
Para que o leitor se prepare para esta época tão turbulenta, a coluna preparou um cronograma das principais tretas de fim de ano. É o calendário de polêmicas natalinas.
15.dez — "Natal: Confraternização ou Golpe do Capitalismo?". Pior do que "Halloween ou Festa do Saci", a polêmica do sentido do Natal começa quando alguém que tenta frustrar o ritual de troca de regalos, alegando se tratar de um momento espiritual, não material.
20.dez — "Amigo Secreto: Confraternização ou Filme de Terror?". Mal chega dezembro e aparece alguém com a polêmica sugestão: "vamos fazer amigo secreto?". A família se divide entre os que são contra, os que querem "inimigo secreto" e os do "amigo ladrão", que sempre termina em briga.
22.dez — "Uva Passa: Iguaria ou Heresia?". Todo Natal esse inocente ingrediente vira tema de briga entre os apreciadores e os resistentes a esse toque agridoce. Sobra para a mãe, que só queria fazer um arroz menos insosso.
23.dez — "Chester: Ave ou Aberração?". É frango? É peru? É uma forma de vida? A discussão permanece por séculos, já que são poucos registros da tão polêmica ave. Há quem diga que se trata só de um enorme peito de frango com patas.
24.dez, 19h — "Pavê: É Pá vê ou Pá Cumê?". É só a sobremesa aparecer na mesa que a família fica apreensiva, esperando algum tio lançar a famigerada piada. Aos familiares, resta a dúvida entre responder "é pá cumê" ou protestar contra a piada, o que certamente termina em briga.
24.dez, 23h — "E o PT, Hein?". Tão frequente e temida quanto manjar na sobremesa natalina, a pergunta normalmente é lançada por algum idoso da família para o jovem estudante de humanas da família. Em poucos segundos, a celebração termina em dedo na cara e gritaria.
Mas fiquem tranquilos. As polêmicas terminam no dia 25. Mas em dezembro do ano que vem tudo começa novamente.
O enforcamento do Papai Noel - Luciano Magalhães Melo
Cada pessoa possui suas próprias crenças. O conjunto destas
pode ser fixo ou mutável, temporário ou duradouro. Pode ser superficial ou
profundamente estruturado, pode ser julgado como racional ou absurdo. O delírio
é uma falsa crença, construída sobre inferências incorretas a respeito da
realidade. É firmemente mantido a despeito de não ser compatível com o que todo
mundo acredita e nem se desfaz frente às óbvias provas do contrário.
Ida acredita em um homem mágico que a vigia constantemente. Ela está certa de que, uma vez por ano, o ser encantado a visita e lhe deixa presentes, mas somente se ele julgar o comportamento dela como adequado. A crença de Ida viola os princípios científicos de realidade, é, portanto, um delírio? Depende do contexto. Quando eu disser que Ida tem cinco anos, imediatamente se dissipa a preocupação sobre a saúde mental dela.
O fantástico entorno natalino continua a provocar boas
discussões. Vale muito a leitura do ensaio "O Suplício de Papai Noel",
do antropólogo Claude Lévi-Strauss, lançado em 1952 na revista Les Temps
Modernes. O texto foi republicado na recente edição da coletânea, do mesmo
autor, "Somos Todos Canibais", e remete a acontecimentos de 1951. Os
fatos narrados ensejam reflexões pertinentes à nossa época, vamos a estes.
Autoridades eclesiásticas francesas denunciavam a crescente substituição da temática cristã por símbolos pagãos durante as celebrações natalinas. O Papai Noel contaminara o real propósito do Natal. À insatisfação católica somaram-se forças da Igreja protestante, isso fez o movimento crescer ainda mais. O ápice, então, ocorreu no dia 24 de dezembro, quando o Papai Noel foi enforcado nas grades de uma catedral francesa e, em seguida, queimado em frente às crianças órfãs. O clero havia condenado o personagem herege, um intruso que usurpava o lugar de Cristo e que bania o presépio.
Estas circunstâncias trouxeram oportunidades preciosas aos anticlericais de ataque aos religiosos, faziam-se acusações da intromissão cristã quanto às decisões privadas de festejos. Afinal, o Papai Noel oferta um momentâneo escape da realidade lógica, um descanso que ajuda o enfrentamento posterior. Também realça a pureza e a ideação mágica infantil, algo bonito de se ver e que deve ser incentivado. Mas há um paradoxo, a Igreja criticava um símbolo fantástico enquanto ateus convertiam-se em guardiões da superstição. Essa contradição só existe por haver uma contínua mistura de motes cristãos com motes pagãos.
Lévi-Strauss nos recorda que a diferença entre Papai Noel e uma divindade tradicional é que os adultos não acreditam nele, embora forcem crianças a acreditar. Portanto, o velhinho gordo separa os mais novos dos adolescentes e adultos. A ilusão infantil, cuidada por adultos, se desfaz como se fosse um rito de passagem, um marco do amadurecimento, quando os muito jovens passam a saber o que somente os mais velhos sabem. Os ritos de iniciação auxiliam os adultos a manterem os pequenos em obediência e a disciplinarem suas reivindicações.
Este expediente aparece em outras culturas. Os pueblos,
nativos do sudoeste dos Estados Unidos, têm um personagem semelhante ao Papai
Noel. Membros das tribos surgem periodicamente fantasiados e mascarados,
encarnando deuses que retornam às aldeias. Estes são os Katchinas, que punem ou
recompensam as crianças, enquanto estas não reconhecem seus familiares debaixo
dos disfarces.
A tradição do Papai Noel foi construída a partir de
combinações de legados de personagens ancestrais. Por exemplo, na Roma
clássica, havia a festividade de Saturnália, que ocorria em dezembro. Seus
participantes trocavam presentes entre si e celebravam Saturno, uma deidade que
devorava as crianças, enquanto idosos bondosos as protegiam. Na Escandinávia,
por sua vez, o demônio Julebok trazia presentes aos pequenos em datas
especiais.
O Papai Noel é um bastião sólido do paganismo moderno.
Os filhos musicais de Papai Noel - Alvaro Costa e Silva
Uma das histórias mais tristes das quase sempre tristes
noites de Natal envolve o autor de "Boas Festas". Nem o biógrafo
Gonçalo Junior, que escreveu o excelente "Quem Samba Tem Alegria: A Vida e
o Tempo de Assis Valente", descobriu o que ele fazia num quarto de pensão
em Niterói, na véspera de 25 de dezembro de 1932, tendo como única companhia a
ilustração de uma bailarina na folhinha do calendário.
A fossa era profunda, e Assis Valente deve ter se lembrado da infância difícil no interior da Bahia, sem presentes nem brinquedos, ao ter a inspiração para os primeiros versos: "Anoiteceu, o sino gemeu/ E a gente ficou feliz a rezar/ Papai Noel, vê se você tem/ A felicidade pra você me dar". E o refrão revelador de seu estado de angústia: "Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel".
Lançada por Carlos Galhardo em 1933 e depois regravada (por
sugestão de João Gilberto) pelos Novos Baianos em 1970, "Boas Festas"
é a mais popular canção natalina brasileira. É também a melhor, mas longe de
ser a única. E não estou falando de "Então é Natal" —a versão de
"Happy Xmas (War is Over)", composta por John Lennon—, que tem o dom
de anualmente ressuscitar a cantora Simone.
Entusiasta do gênero, o historiador Luiz Antonio Simas é
capaz de esquecer o peru e o vinho e passar toda a ceia cantando para os amigos
"Amargo Presente", samba-canção de Cartola interpretado por Beth
Carvalho, "Meu Natal", um Lupicínio Rodrigues na voz de Jamelão, ou
mesmo "Tão Bom que Foi o Natal", de Chico Buarque, raridade oferecida
num compacto aos clientes da imobiliária Clineu Rocha, em 1967.
Para alimentar a tristeza —tão essencial à data quanto a rabanada — costumo ouvir "Meu Velho Amigo", esquecida valsa de Baden Powell com letra de Vinicius de Moraes, que pergunta: "Meu velho amigo/ Por que foste embora? / Desde que tu partiste/ O meu Natal é triste/ Triste e sem aurora".
Assis Valente - compositor
Zefirina Bomba Natal 2006 FULL EP
Papai Noel - Sergio Augusto
Malvados - André Dahmer
PEDREIROS ZOANDO PAPAI NOEL DE SHOPPING!
Lipo, Noel de Shopping!
O saco de Papai Noel - Roberto DaMatta
André Dahmer
Medindo os presentes - Roberto DaMatta
Cólera - É Natal! (EP 1987)
(In) Feliz Natal - Ruth Manus
Raimundos - Infeliz Natal
Lembrancinhas - Cláudia Laitano
O presente perfeito deveria saltar aos olhos como um grande pacote vermelho sobre um jardim coberto de neve inconfundível, inescapável. Todo nosso carinho condensado em um único objeto, que por acaso custaria exatamente o que podemos pagar e nem um centavo a mais. Nenhuma hesitação, fila ou mesmo uma data compulsória determinando o dia e o motivo da entrega. Um presente tão espontâneo e único quanto o afeto que inspirou a vontade de presentear.
Ao abrir o presente perfeito, o destinatário seria tomado de surpresa e incredulidade. Como alguém poderia ter adivinhado que era exatamente aquilo que povoava seus sonhos? Neste momento, os olhos de quem dá e os olhos de quem recebe se cruzariam em um breve e intenso instante-presente, cheio de cumplicidade e reconhecimento mútuo.
Mais do que agrado protocolar, sinal de gratidão ou simples obediência ao ritual das datas comemorativas que exigem trocas de gentilezas, o presente perfeito seria aquele que se dá e se recebe com alegria. Na maior parte das vezes, porém, escolher presentes é tão prazeroso quanto cumprir um compromisso obrigatório. Queremos nos livrar da tarefa como de uma reunião de condomínio ou de uma ida ao supermercado: com eficiência, mas no menor tempo possível.
Compra-se rápido, talvez, porque descarta-se mais rápido ainda. Adivinhar o que uma pessoa gostaria de ganhar tornou-se o menor dos problemas hoje em dia. Todo mundo deseja alguma coisa – ainda que não por muito tempo. Vivemos cercados de possibilidades de consumo, desejos insatisfeitos e frustrações difusas, habituados a preencher com objetos diferentes tipos de vazios. Nesse ambiente, torna-se cada vez mais difícil emprestar a algo que se pode comprar algum tipo de significado que não seja o de ser consumido e substituído logo em seguida.
Para transformar uma mera troca de mercadorias em uma verdadeira troca de presentes, é preciso um pequeno exercício de subversão. Dizer não às compras apressadas, burocráticas, obrigatórias, cansativas. Mas se for impossível escapar delas, que cada presente chegue ao destinatário acompanhado de um gesto ou palavra surpreendente, pessoal, intransferível.
Talvez nossas tias não estivessem apenas nos enrolando quando diziam, envergonhadas, com um pacotinho vermelho da Sloper na mão: “É só uma lembrancinha, viu?”.
Porque, no fim das contas, o presente perfeito, o que vale a pena dar e ganhar, é aquele que se transforma em lembrança assim que a gente o abre.
Alves
João Bosco
Alves
Renan César
Querido Papai Noel - Michel Laub
Nani
Acreditar no Natal - Lya Luft
A pioneira do Papai Noel – Ruy Castro
Já contei essa história aqui, mas, desde então, passaram-se
muitos Natais e uma geração inteira de Papais Noéis. Aconteceu em São Luís do
Maranhão, por volta de 1890. Terminada a ceia de Natal, os parentes e amigos da
jovem professora se reuniram em torno da árvore para trocar presentes e cantar
madrigais. De repente, entrou pela janela um homem gordo, de barbas brancas,
ceroula e touca vermelho-sangue, botas e cinto pretos, um ameaçador saco às
costas e emitindo sons de "Ho! Ho! Ho!".
Que diabo era aquilo? Susto, pânico, correria. Ali havia
velhos, mulheres e crianças. Um dos presentes sacou um trabuco e o apontou para
o intruso, com a intenção de crivá-lo. O homem, súplice e balbuciante,
rendeu-se tremendo com os braços para cima e deixou cair o saco cheio de
embrulhos. E, então, a dona da casa colocou-se entre a arma e o alvo. Alçou a
testa e proclamou: "Não o matem! É o Papai Noel!".
Só ali, a jovem —Maria Bárbara de Andrade, filha do
excêntrico poeta local Joaquim de Sousa Andrade, vulgo Sousândrade— explicou.
Ela e seu pai tinham morado por 20 anos em Nova York. Foi onde, em criança, ela
conheceu e se apaixonou por aquela figura que se tornara nos EUA o símbolo do
Natal.
O homem de roupa vermelha e barbas brancas com um saco às
costas fora uma criação do ilustrador Thomas Nast para a revista Harper’s
Weekly em 1863 e, pelos anos seguintes, fixara-se no coração das crianças
americanas. Mas ninguém o conhecia por aqui. Para apresentá-lo ao Brasil, Maria
Bárbara contratara um senhor gordo e o maquiara e fantasiara de acordo. Os
convidados, aliviados, relaxaram. Abraçaram o Papai Noel e lhe serviram vinho
(não, não lhe ofereceram Coca-Cola).
E assim foi. Hoje, a impenetrável poesia de Sousândrade é estudada na USP como pioneira do concretismo. Mas quando se fará justiça a Maria Bárbara Sousândrade como pioneira do Papai Noel?
Foto do poeta Sousândrade e capa do almanaque Vida Infantil de 1956 com o Papai Noel - Heloisa Seixas
Tiago Recchia
Spacca
Ao bom velhinho - Fernanda Young
E se em vez de falar de Natal - Martha Medeiros
Julio Renato Lancellotti
Beto Gomes
Brum
Quinho
Três Cenas de Natal - Luís Pimentel
1.
Chegaram em
casa com a informação de que o caminhão da Ação Social estava parado na praça, carroceria carregada de
brinquedo, farta distribuição de presente para os necessitados.
O menino
largou o time de botão espalhado sobre a mesa, recokheu camiseta e sandálias e
partiu na carreira. O moço da Prefeitura disse que bolas de futebol, de couro
ou de plástico, não havia mais. Nem carrinhos de madeira ou de controle remoto,
nem livros ou velocípedes, bonés do Batman, insígnia de comandante, nada.
- Agora só
tem bonecas que choram e fazem xixi.
- Me dê. Vou
levara para minha irmã.
O menino não
tinha irmã para dar a boneca que chora e faz xixi. Mas não ia perder a viagem.
2.
Barbas e
cabelos brancos ele já tinha. Também já estava meio barrigudo, e a rouquidão
provocada pelo cigarro e a cachaça ajudavam a voz na hora do ho, ho, ho! Era só
botar a roupa do Papai Noel que ia dar tudo certo.
Vários
coroas, muito gordo e meio roucos, já estavam na fila, pegando senhas para a
entrevista. Uns dez ou doze seriam escolhidos para representar o bom velhinho
nas portas das lojas, fazendo fotos com as crianças e chamando a freguesia.
- O que você
acha do espírito natalino? – perguntou o homem da agência.
- Acho um
cocô, mas preciso muito deste emprego.
Expulso da
sala, foi fazer o seu ho, ho, ho! No botequim.
3.
Filhas e
netos e bisnetos arregalaram os olhos, chocados, quando ela devolveu o presente
coletivo d família: uma linda e funcional enceradeira, modelo que já não existe
( aliás, enceradeiras também não existem mais).
- Levem esta
porcaria!
A filha mais
velha tomou a frente:
- Mas,
mamãe, o que nós vamos fazer com isto?
Deu um gole
no vinho, antes de ensaiar a despedida:
- Enfiem
onde quiserem.
Laerte
A traidora na noite de Natal - David Coimbra
Ricardo Coimbra
Jan Limpens
Luzes de Natal, seres humanos elétricos e a pujança do capitalismo - David Coimbra
O ritual para se abrir a cesta de Natal - Ignácio de Loyola Brandão
Aqui na Esquina - Luli Penna
Fredy Varela
Bad Religion - American Jesus legendado
Natal Existencial - Artur da Távola
Que o seu Natal seja a certeza de que a vida é apenas descoberta, aventura, invenção e mistério.
Que seja Natal em você ainda quando lá fora imperem o escárnio e a injustiça.
Nascendo natais em você, melhor enfrentará a luta por construir o mundo com justiça e amplidão.
Será Natal o que for afetivo, caloroso, verdadeiro e sem disfarces, mesmo o de Papai Noel.
Será Natal sempre que o pedido de perdão seja feito e no coração se abrigue o mesmo sentimento de perdão, que cada um aprenderá a dar e pedir.
Será Natal o que se fizer sincero e grato. Será Natal onde o sorriso agradeça, peça, revele ou insinue e jamais disfarce, distraia ou seduza.
Há de ser Natal quando todos festejemos por igual, e saibamos avaliar perdas, dores, erros e ofensas e comungar qualidades, feitos, capacidade de prosseguir na luta constante por ver, sentir, saber e enfrentar.
Há de ser Natal sempre que se comece e a força nasça e renasça, proclamando emocionada, a descoberta do si mesmo e dos tesouros no imo escondidos.
Sendo Natal você pode se comover, dar a mão, chorar à toa, beijar os filhos, pedir a benção ao pai, brincar de bola de gude, boneca ou soldadinho de chumbo.
Sendo Natal, você deve se fazer mais simples, chorão ou ciumento, sentar no colo até de estátua, sem temer pedir afago, agasalho, cafuné, abraço de filho, doce de leite ou trégua.
Natal seja, onde houver consciência de tudo que oprime, principalmente quando vem disfarçado em lucro, progresso, ciência, aparência, fruição, rispidez, sentimento de superioridade, pretensão ou esbanjamento.
Natal seja, onde o supérfluo não seja!
Natal seja sempre que a arrogância ceda!
Natal seja onde re/exista um gesto sincero de compreensão e coragem de não fazer o que oprime, ou capitular ante a opressão sofrida.
Serás o Natal se fores tu. Serás o Natal se fizeres um congresso interior dando a palavra a cada bancada interna.
Serás o Natal se te identificares com o melhor e o pior de ti, crucificando-te em sacrifício para elevar-te à altura do melhor de ti e do Pai que elejas como padrão.
Serás o Natal se fores presente, embrulho, dádiva, oferta, surpresa, entrega ou adivinhação.
Se, em vez de tu, preferires ser você, então que seja Natal em você quando se estabeleça a capacidade de compreender quem o ofende sem ofender quem o compreende; que seja Natal em você sempre que se descobrir também menor, mesquinho ou pequeno e fizer o esforço de halterofilista da própria moral.
Seja Natal em você sempre que se sinta invisivelmente emocionado ou emocionalmente visível, tocável, perceptível, em sua melhor dimensão do sentir.
Que seja Natal em você a cada recordação e reconhecimento de quem algo lhe trouxe, mesmo encapado em dor ou perda, espanto, amor ou desilusão.
Ser Natal é olhar o céu para obter silêncio. É saber olhar, pacificar, gesticular a esperança e votar na verdade.
Ser Natal é ascender as próprias luzes sem brilho e ouvir, no silêncio, a voz do mistério a proclamar a verdade, numa linguagem oculta, com a qual se consiga alcançar sem saber e perceber sem conhecer.
Ser Natal é pular o muro ou entrar pela chaminé para dentro de si e lá encontrar a mesma criança com as enormes barbas brancas da sabedoria milenar da espécie.
Natal - Rubem Alves
O Natal me deixa triste.
Porque, por mais que o procure, não o encontro.
Natal é uma celebração.
As celebrações acontecem para trazer do esquecimento uma coisa querida que aconteceu no passado. A celebração deve ser semelhante à coisa celebrada. Não posso celebrar a vida de Gandhi com um churrasco. Ele era vegetariano, amava os animais. Uma celebração de Gandhi teria de ser feita com verduras, água, leite e um falar baixo. Mais a leitura de alguns textos que ele deixou escritos. Assim Gandhi se tornaria um dos hóspedes da celebração.
Agora, um visitante de outro planeta que nada soubesse das nossas tradições, se ele comparecesse às festas de Natal, sem que nenhuma explicação lhe fosse dada, ele concluiria que o objeto da celebração deveria ser um glutão, amante das carnes, bebidas, do estômago cheio, das conversas em voz alta, do desperdício.
Nossas celebrações de Natal são como as cascas de cigarra agarradas às árvores. Cascas vazias, das quais a vida se foi. Se perguntar às crianças o que é que está sendo celebrado, eles não saberão o que dizer. Dirão que o Natal é dia do Papai Noel, um velho barrigudo de barbas brancas amante do desperdício, que enche os ricos de presentes e deixa os pobres sem nada.
Pois é certo que as celebrações do Natal são orgias de ricos, celebrações do desperdício e lixo. Celebrações do lixo? Aquelas pilhas de papel de presente colorido em que vieram embrulhados os presentes, não são elas essenciais às celebrações? Rasgados, amassados, embolados num canto. Irão para o lixo. Quantas árvores tiveram de ser cortadas para que aqueles papéis fossem feitos. Para quê? Para nada. A indiferença com que tratamos o papel de presentes é uma manifestação da indiferança com que tratamos a nossa Terra.
Estou convidando meus amigos para uma celebração de Natal. Ela deverá imitar a ceia que José e Maria tiveram naquela noite: velas acesas, um pedaço de pão velho, vinho, um pedaço de queijo, algumas frutas secas. À volta de um prato de sopa de fubá – comida de pobre –, tentaremos reconstruir na imaginação aquela cena mansa na estrebaria, um nenezinho deitado numa manjedoura, uma estrela estranha nos céus, os campos iluminados pelos vaga-lumes. E ouviremos as velhas canções de Natal, e leremos poemas, e rezaremos em silêncio. Rezaremos pela nossa Terra, que está sendo destruída pelo mesmo espírito que preside nossas orgias natalinas.
André Dahmer
Céllus
Patife Band - Noite Feliz (1985)
Natal - Luis Fernando Verissimo
M. Schulz
The Ramones - Merry Christmas (I Don't Want To Fight Tonight)
Os Magos - Luis Fernando Verissimo
*
Até aí, é o que conta a Bíblia. Algumas dúvidas. Dá-se pouca atenção à visita que os Magos fazem a Herodes antes de procurarem o menino, tanto que em encenações do episódio Herodes nunca é mencionado. Na Bíblia, está escrito que Herodes chamou os Magos “secretamente” à sua presença, o que já sugere que sua intenção não era apenas conversarem numa boa. Também está escrito que Herodes “perturbou-se” com a noticia do nascimento de um futuro rei dos judeus. O que não o impediu de, cinicamente, pedir que os Magos lhe informassem quando tivessem descoberto o Cristo, para também ir adorá-lo.
*
A caminho do local que a estrela do Oriente apontava, os três Magos teriam discutido quem empunharia o punhal que mudaria a história do mundo. O golpe seria dado antes ou depois da oferta das dádivas? Mas chegando à manjedoura e vendo o menino no colo de Maria, apiedaram-se dele, prostraram-se e ofertaram o ouro, o incenso e a mirra. E naquela noite sonharam que Herodes os perseguia por o terem traído, e partiram para sua terra por outro caminho.
*
A Bíblia não diz mais nada sobre os Reis Magos. Não se sabe se Herodes os alcançou para vingar-se da traição. Sabe-se, isto sim, que Herodes mandou matar todos os meninos de Belém.
Nani
Quino
Nani
Dezembro perigoso - Walcyr Carrasco
O que você prometeu a si mesmo? Emagrecer? Eu consegui, mas sou um caso raro
Noite dessas, um amigo me ligou. Estava confuso, irritado, nervoso:
– Amanhã vou pedir demissão.
Quis saber por quê. Ele me contou que está há anos no emprego, é o braço direito do chefe e, mesmo assim, não teve nenhuma promoção nem aumento nos últimos anos.
– É hora de sair.
Argumentei. Há uma regra imbatível no que se refere a trabalho. Melhor procurar novo emprego já tendo um do que sem nada. O desempregado entra no mercado com muitos pontos a menos. Depois de um tempo sem achar nada, bate um desespero, ele acaba aceitando algo pior do que já tinha. É uma regra de ouro: se estiver insatisfeito com seu emprego, não peça demissão. Procure outro escondido. E bem escondido. Pega muito mal se seu chefe descobrir que você está em fuga.
Durante a conversa, tive uma luz que o convenceu a mudar de atitude.
– É a síndrome de dezembro – eu disse. Dezembro é o mês em que a gente faz uma avaliação do ano, da vida.
Pois é. Parece ser um mês alegre. Há festas, carinhas sorridentes de Papai Noel. Na virada do ano, um clima de euforia, todos queremos estourar um champanhe na praia, brindar a uma nova vida. Vem a esperança: com a virada do ano, uma nova etapa da vida. Só que não é assim. A vida é contínua, formada por elos de escolhas e acontecimentos que se encadeiam. A gente grita:
– Agora será um ano realmente novo!
E tomamos decisões arriscadas. Casamentos se desfazem porque, de repente, o homem não consegue explicar à namorada que tem de passar o Réveillon com a mulher. E como explicar, se ele já convenceu a outra que seu casamento é uma farsa, que não faz mais sexo com a oficial há anos, que está pronto para separar? A namorada quer uma prova de amor. Prova das boas é passar o Réveillon juntos. O sujeito se contorce. Escolhe. Nem sempre toma a decisão que tomaria a longo prazo.
Pior. No trabalho, qualquer resolução de dezembro ficará adiada até depois do Carnaval. Alguém acha emprego entre Ano-Novo e Carnaval? Este país, lamentavelmente, para. Ficamos em estado de suspensão.
Isso torna dezembro duplamente perigoso. É fácil decidir e desistir. Mas a retomada, a reconstrução... fica para depois! (A não ser que sua proposta seja montar uma oficina de fantasias carnavalescas e, mesmo assim, multidões trabalham nisso há meses!)
Não sou pessimista, mas nunca me assusto quando ouço dizer que em datas festivas há mais suicídios. Dezembro é justamente onde a gente descobre que as decisões do Ano-Novo passado rolaram ladeira abaixo. O que você prometeu a si mesmo? Emagrecer? (Vitória, eu consegui. Mas sou um caso raro. A barriga de meus amigos continua cada vez maior.)
Prometeu que encontraria um novo amor e, agora, descobriu que ele fugiu com sua melhor amiga? Prometeu comprar casa própria e não sabe como pagar as parcelas intermediárias durante a construção? Enfim, é agora que você avalia as promessas feitas com a melhor das intenções no fim de ano passado. E descobre que foram palavras escritas na areia, a maioria das vezes.
Vem uma frustração que nem te conto. Dói fundo. Não há nada a fazer a respeito, porque decisões férreas de Ano-Novo são o resultado das avaliações de dezembro. Mas é preciso conviver com a realidade. Não há muito dinheiro para os presentes, a viagem não vai rolar. Conheço um casal que ia todo ano para Punta del Leste. Neste ano, até tem amigos dispostos a oferecer hospedagem, mas não há dinheiro para as passagens. Sofrem.
Não quero dizer que o ano tenha sido ruim para todo mundo, por favor! Mesmo que você tenha uma vida radiosa, feliz, em dezembro corre o risco de olhar a parte pior da história. A gente é assim: o que acontece de bom, anotamos em preto e branco; de ruim, gritamos aos olhos e ao mundo como se fosse escrito em neon.
Em dezembro, lembro o que não consegui. E o projeto de estudar hebraico bíblico? (Sempre tive vontade.) O livro ainda vive embaixo do travesseiro? A vontade de ver mais os amigos? Intensificar as relações? Meu blog, eu não ia fazer um blog?
O duro é que não adianta tomar nenhuma iniciativa agora. Vem Natal, depois Réveillon. Por melhor que seja o novo plano de vida, a gente adia. Até regime. Quem começa regime no Natal? Fica a sensação de frustração, do que a gente queria fazer e não fez. E que não pode começar imediatamente. Dezembro é perigoso. É o mês em que a gente festeja, enquanto chora pela vida.
Noite dessas, um amigo me ligou. Estava confuso, irritado, nervoso:
– Amanhã vou pedir demissão.
Quis saber por quê. Ele me contou que está há anos no emprego, é o braço direito do chefe e, mesmo assim, não teve nenhuma promoção nem aumento nos últimos anos.
– É hora de sair.
Argumentei. Há uma regra imbatível no que se refere a trabalho. Melhor procurar novo emprego já tendo um do que sem nada. O desempregado entra no mercado com muitos pontos a menos. Depois de um tempo sem achar nada, bate um desespero, ele acaba aceitando algo pior do que já tinha. É uma regra de ouro: se estiver insatisfeito com seu emprego, não peça demissão. Procure outro escondido. E bem escondido. Pega muito mal se seu chefe descobrir que você está em fuga.
Durante a conversa, tive uma luz que o convenceu a mudar de atitude.
– É a síndrome de dezembro – eu disse. Dezembro é o mês em que a gente faz uma avaliação do ano, da vida.
Pois é. Parece ser um mês alegre. Há festas, carinhas sorridentes de Papai Noel. Na virada do ano, um clima de euforia, todos queremos estourar um champanhe na praia, brindar a uma nova vida. Vem a esperança: com a virada do ano, uma nova etapa da vida. Só que não é assim. A vida é contínua, formada por elos de escolhas e acontecimentos que se encadeiam. A gente grita:
– Agora será um ano realmente novo!
E tomamos decisões arriscadas. Casamentos se desfazem porque, de repente, o homem não consegue explicar à namorada que tem de passar o Réveillon com a mulher. E como explicar, se ele já convenceu a outra que seu casamento é uma farsa, que não faz mais sexo com a oficial há anos, que está pronto para separar? A namorada quer uma prova de amor. Prova das boas é passar o Réveillon juntos. O sujeito se contorce. Escolhe. Nem sempre toma a decisão que tomaria a longo prazo.
Pior. No trabalho, qualquer resolução de dezembro ficará adiada até depois do Carnaval. Alguém acha emprego entre Ano-Novo e Carnaval? Este país, lamentavelmente, para. Ficamos em estado de suspensão.
Isso torna dezembro duplamente perigoso. É fácil decidir e desistir. Mas a retomada, a reconstrução... fica para depois! (A não ser que sua proposta seja montar uma oficina de fantasias carnavalescas e, mesmo assim, multidões trabalham nisso há meses!)
Não sou pessimista, mas nunca me assusto quando ouço dizer que em datas festivas há mais suicídios. Dezembro é justamente onde a gente descobre que as decisões do Ano-Novo passado rolaram ladeira abaixo. O que você prometeu a si mesmo? Emagrecer? (Vitória, eu consegui. Mas sou um caso raro. A barriga de meus amigos continua cada vez maior.)
Prometeu que encontraria um novo amor e, agora, descobriu que ele fugiu com sua melhor amiga? Prometeu comprar casa própria e não sabe como pagar as parcelas intermediárias durante a construção? Enfim, é agora que você avalia as promessas feitas com a melhor das intenções no fim de ano passado. E descobre que foram palavras escritas na areia, a maioria das vezes.
Vem uma frustração que nem te conto. Dói fundo. Não há nada a fazer a respeito, porque decisões férreas de Ano-Novo são o resultado das avaliações de dezembro. Mas é preciso conviver com a realidade. Não há muito dinheiro para os presentes, a viagem não vai rolar. Conheço um casal que ia todo ano para Punta del Leste. Neste ano, até tem amigos dispostos a oferecer hospedagem, mas não há dinheiro para as passagens. Sofrem.
Não quero dizer que o ano tenha sido ruim para todo mundo, por favor! Mesmo que você tenha uma vida radiosa, feliz, em dezembro corre o risco de olhar a parte pior da história. A gente é assim: o que acontece de bom, anotamos em preto e branco; de ruim, gritamos aos olhos e ao mundo como se fosse escrito em neon.
Em dezembro, lembro o que não consegui. E o projeto de estudar hebraico bíblico? (Sempre tive vontade.) O livro ainda vive embaixo do travesseiro? A vontade de ver mais os amigos? Intensificar as relações? Meu blog, eu não ia fazer um blog?
O duro é que não adianta tomar nenhuma iniciativa agora. Vem Natal, depois Réveillon. Por melhor que seja o novo plano de vida, a gente adia. Até regime. Quem começa regime no Natal? Fica a sensação de frustração, do que a gente queria fazer e não fez. E que não pode começar imediatamente. Dezembro é perigoso. É o mês em que a gente festeja, enquanto chora pela vida.
Will Tirando
Jarbas
Zé Dassilva
Aleixo
Leonardo
O Natal e a Mentira - Walcyr Carrasco
É uma das datas mais hipócritas que conheço. A outra é o aniversário. Nelas, todos mentem
O Natal é hipócrita. Podem me atirar pedras. Reafirmo. É uma das duas datas mais responsáveis por mentiras. A outra é o aniversário, pelo qual acabo de passar. Fiz 63 anos. Nada pior do que ouvir frases consoladoras do tipo:
– Poxa, mas você não parece.
Como se aparentar a própria idade fosse horrível. E daí se parecer 60, 70, 80? Deveria parecer 20? Nem com toda plástica e Botox do mundo! No máximo, ficaria com a cara paralisada e os olhos puxados, à oriental, como acontece com quem exagera em plásticas. Para quê? Para parecer alguém que não quer aparentar a idade que tem. Mas que aparenta. Deu para entender?É como se diz por aí:
– Ixi, ela está com o rosto todo trabalhado.
Trabalhado quer dizer: reformado. Se pudessem, alguns plásticos ou dermatologistas passariam massa corrida e lixa industrial para garantir o resultado. Ainda não surgiu nenhum produto à altura. Ainda.
Meu aniversário é próximo do Natal, portanto, em dezembro, vivo um festival de hipocrisia. Principalmente em relação a presentes. Não há nada mais difícil do que surpreender alguém com algo de que realmente goste. A não ser que a gente dê, por exemplo, um Land Rover zero. Ou um brilhante do tamanho de uma dentadura. Surpreender é difícil. Se alguém anuncia o presente desejado, também não tem graça. Como pedir: cuecas, meias, CD do Leonardo, um pacote de ração para cães para economizar nos gastos, um mês de academia. Pior, fazer cara de gentil e dizer:
– Acho ótimo você dizer o que quer, assim não erro.
Natal é teste do Enem, que a gente não pode errar? As pessoas espertas confessam:
– Meu maior sonho é conhecer o Caribe!
Finjo que não entendo e digo:
– Sabe que eu não? O Brasil tem praias tão lindas. Já foi para Santos?
Em seguida, começo a falar das belezas de Santos, enquanto o outro me encara com ódio. Santos é uma cidade adorável no litoral de São Paulo, onde muitos aposentados adoram viver. Não é conhecida pela beleza das praias, digamos assim.
Confesse. Nunca mentiu no Natal? Nem quando ganhou algum horror? E falou:
– É exatamente o que eu precisava!
O pior é quando esse horror é objeto de decoração. Quem deu, cada vez que vai em casa fica olhando para ver onde pus. Estaria atirado no fundo de algum rio, se não fosse a fiscalização. Então escondo. Cada vez que vou receber a visita, tenho de lembrar:
– Onde estão aqueles dois coelhinhos de porcelana? Tenho de pôr na mesa da sala.
A campainha toca, e eu ainda correndo atrás dos coelhinhos. Ser gentil não é uma arte, também pode ser um martírio.
Há pessoas que simplesmente ganham o presente de Natal – isso acontece muito com amigos secretos –, agradecem e choram de emoção. Depois embrulham, botam no armário e aguardam o próximo Natal, para reciclar. Isso costuma dar tão errado que nem tenho palavras.
A mãe de um amigo devolveu, dois anos depois, o perfume que a própria irmã dele tinha dado, ainda embrulhado no mesmo papel de presente. Mãe e filha acabaram aos gritos, enquanto as pessoas se esforçavam para cantar “Jingle bells”. Eu mesmo reciclei um presente, não digo quando nem onde, por discrição. Só sei que era uma bolsa linda, masculina, que o contemplado jamais compraria. Nem eu, aliás.
Era cara. Sou do tipo que usa sempre o mesmo relógio, a mesma bolsa, até se desfazerem. Resolvi passar adiante. Embrulhei num lindo papel de presente, botei fitas. Na hora do amigo secreto, quando o contemplado abriu o presente emocionado... bem em cima, exatamente em cima, estava o cartão de quem me dera, endereçado a mim mesmo. Agora me expliquem: como não vi o cartão quando embrulhei? Como, como? Parece que a tal Lei de Murphy é inexorável. Quando é para dar errado, dá errado. Mas não deu. Ele ficou abismado contemplando a pasta em couro preto.
Tanto como eu, contemplando o cartão. Aí meus dedos se moveram mais rápidos que as patinhas de uma aranha. Ainda não sei explicar como consegui, como ninguém viu. Empalmei o cartão e fugi para o toalete. Nem tive coragem de jogar fora. Rasguei e engoli. Na volta, o presenteado ainda chorava de emoção com minha generosidade. Chorei junto.
Já me preparo para as novas mentiras, inevitáveis no Natal. Neste ano, a família quer fazer em minha casa. Vamos combinar: dar presentes é muito difícil. Uma coisa certamente ninguém espera receber: sinceridade. Se é para mentir, que venha o Natal. Já estou preparado.
Como dar seu presente de Natal - Walcyr Carrasco
Adiei o que pude. Xinguei o sistema de consumo. Agora tenho de tratar dos presentes de Natal. Nem preciso ir à academia. Gastarei minhas calorias andando por lojas, atravessando shoppings e mergulhando em multidões exaltadas em torno de caixas lentos.
Tenho uma teoria a respeito de presentes, ótima para o Natal. Presentes se dividem entre: de luxo, práticos e criativos. De forma geral, a regra é a seguinte: quanto menor a caixinha, mais rico quem ganha ou quem dá. Quanto maior, menos grana no pedaço. Claro, há exceções. Mas brincos de brilhantes, gargantilhas de rubis exigem embalagens pequenas. Uma máquina de lavar é um pacotão. Se você tem muito dinheiro, está fácil. Um relógio de marca famosa, champanhe Dom Perignon, Veuve Clicquot ou Cristal sempre são bem acolhidos, assim como bons vinhos, charutos cubanos, bolsas de grife exclusivas, lanchas, carros zero. Todo mundo adora rico que bota presente bom na mesa. Aquele adágio que milionários e mestres de etiqueta adoram declamar – “ser elegante é ser simples” – é mentira. Se alguém tem um amigo rico, odiará um presentinho qualquer. Quer que o rico mostre quem é, dando algo de luxo. Confesso: recentemente ganhei um conhaque Louis XIII. Já falei dele aqui, custa mais de R$ 12 mil a garrafa. Meu coração tremeu de emoção.
– Como alguém pode gastar tanto comigo? – pensei, com os olhos faiscando de autoestima.
Depois, é claro, escondi a garrafa. Sou filho de pobre. Não correrei o risco de que algum amigo bebum enxugue meu conhaque. Eu mesmo o beberei de gota em gota. Mais tarde, quando a preciosidade acabar, encho a garrafa com um conhaque comum e sirvo a quem vier, para parecer generoso.
A categoria luxo impressiona. Mas o criativo funciona para ricos e pobres. Tem toda a chance de se tornar inesquecível. Por exemplo, um pacote de argila fresca dado a uma criança na noite de Natal é inesquecível. Para a mãe e a dona da casa. Mas a criança vai adorar! Fuja de filhotes de cães ou gatos. Bichos a gente só dá a quem realmente quer. Já ganhei um presente criativo e inesquecível, entre muitos, de minha amiga Lucilia Diniz. Quando fiz 60 anos, ela me ofereceu uma caixa com DVDs de todos os filmes que ganharam o Oscar do ano em que nasci até meu aniversário. Para meu orgulho, também já fiz sucesso em um aniversário da Bethy Lagardère, que hoje vive no Rio e já foi casada com o homem mais rico da França. Bem, o que se dá para alguém assim? Roupa de grife, para uma das mulheres que melhor se vestem no planeta? Encontrei um livro sobre os pássaros do mundo. A cada página, as ilustrações subiam em relevo e ouvia-se o som dos pássaros cantando. Ela adorou! Para ser criativo, é preciso também ser surpreendente. Conheci uma mulher que preparava biscoitos e oferecia em vidros personalizados aos amigos. Uma delicadeza. Aviso: estou cultivando abelhas. Ano que vem me safo engarrafando potes de mel e oferecendo com um “eu mesmo produzi”. Presentes criativos, ou as pessoas adoram ou disfarçam. Mas, se fingem que gostam, é o que realmente conta no Natal.
Presentes práticos são os que menos entusiasmam. Mães costumam ser vítimas dessa categoria. Ganham coisas para a casa: pratos, panelas, eletrodomésticos. Minha mãe, que não era boba, a certa altura da vida implorou: “Neste Natal, quero um presente para mim”. Foi o único jeito de se livrar dos liquidificadores, dados ano após ano por mim e meus irmãos. A gente nunca sabe exatamente o que dar a pai e mãe, que parecem ter tudo. O segredo: pense em algo que, na imaginação, eles nunca usariam. Tipo um estojo de maquiagem transado, para ela se sentir uma mocinha; shorts colorido para ele; material de pintura, caso não pintem; ou inscreva seu velho num curso de culinária; ou ofereça um pacote de seis meses numa academia. Se insistir num presente prático, fuja de liquidações. Certa vez dei uma camisa a um amigo secreto no trabalho. Não serviu. Tentei a troca, não aceitaram. Na época, eu estava durango. Nunca mais toquei no assunto. O amigo secreto virou inimigo público.
A não ser que tenha certeza absoluta, fuja do presente prático. Senão, um dia encontrará uma pilha de eletrodomésticos na área de serviço de sua mãe, tia ou sogra, acumulados ao longo do tempo. Surpresa ainda é o melhor no Natal. E, quem sabe, você ofereça um vale salto paraquedas a seu primo, e ele te agradeça eternamente?
Pryscila
Fernando Gonzales
Luscar
Sinovaldo
Crônica de Natal – Fernanda Pompeu
Sinovaldo
Brum
Alves
J.Bosco
Fantasias de Natal - Humberto Werneck
Papai Noel Velho Batuta - Garotos Podres
Emoções e Tristezas Natalinas - Eduardo Mascarenhas
Ikenga
Natal na barca - Lygia Fagundes Telles
Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.
O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.
Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.
Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.
A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o. rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.
— Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.
— Mas de manhã é quente.
Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.
— De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me encarando.
— Quente?
— Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?
Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:
— Mas a senhora mora aqui perto?
— Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje...
A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno.
— Seu filho?
— É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre... Mas Deus não vai me abandonar.
— É o caçula?
Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce.
— É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos.
Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.
— E esse? Que idade tem?
— Vai completar um ano. — E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: — Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou.
Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los.
— Seu marido está à sua espera?
— Meu marido me abandonou.
Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos comunicantes.
— Há muito tempo? Que seu marido...
— Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.
Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar.
— A senhora é conformada.
— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.
— Deus — repeti vagamente.
— A senhora não acredita em Deus?
— Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas...
Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão:
— Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.
Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.
Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim
— Estamos chegando — anunciou.
Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:
- Chegamos!... Ei! chegamos!
Aproximei-me evitando encará-la.
— Acho melhor nos despedirmos aqui — disse atropeladamente, estendendo a mão.
Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.
— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.
— Acordou?!
Ela sorriu:
— Veja...
Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.
— Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço.
Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.
Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.
Natal da Barca, de Lygia Fagundes Telles - Contos da meia-noite
Amigo Secreto - curta metragem
direção: Márcio Salem
http://portacurtas.org.br/filme/?name=amigo_secreto
Todas as casas do bairro recebem uma carta ás vésperas do natal, menos a de dona Olga. Inconformado, o carteiro tenta fazer de tudo para que ela receba uma correspondência também.
Ressaca - curta
direção: Rene Brasil
http://portacurtas.org.br/filme/?name=ressaca11344
Um casal acorda no dia 25 de Dezembro. Ele está de ressaca e não lembra do que fez na ceia com a família dele. Ela está bem e o ajuda a se lembrar do que fez. Ele acha que estragou a festa mas descobre, conforme se lembra, que havia contado suas experiências dos natais da infância e de como era um tempo de amor e saudade. Ela relembra tudo isso com ele e percebe que para ela esse foi um natal inesquecível.
A Lente e A Janela - Marcius Barbieri
Uma menina ganha uma câmera de vídeo no Natal e se transforma através da lente e da janela.
John Lennon - Happy Christmas
Coral de Rua - Garotos Podres - Papai Noel Filho da Puta
Macho Alfa - Antonio Prata
ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...
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Ela me perguntou quantas pessoas eu já vi morrer. Quantas pessoas você já viu morrer? Nenhuma, eu disse. Ela sorriu e disse eu vou ser a p...
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Olivia vem correndo, para na minha frente, mostra o caroço de mexerica e faz a pergunta favorita de seus dois anos e meio de vida: "P...