domingo, 29 de outubro de 2017

'Ser brasileiro é sobre imitar o inglês': modismo expõe autoestima frágil - Sergio Rodrigues

"Liberdade não é sobre transar na primeira noite, e sim sobre não querer transar e não transar." A frase me aparece no artigo de uma jovem feminista brasileira que as ondas digitais trouxeram casualmente à minha praia.
Incorporo o velho copidesque e a traduzo mentalmente para o português publicável: "Liberdade não tem a ver com transar na primeira noite, e sim com não querer transar e não transar". Só então me dou conta de que, fazendo isso sempre que me deparo com a construção torta, ando ocupadíssimo.
Como tantas traduções ruins, "ser sobre" deixa entrever a construção estrangeira que tem por matriz -no caso, o inglês "to be about".
Em dublagem barata de telefilme, passa. Num texto original brasileiro, a ideia contida em "to be about" costuma ser expressa pelas palavras "ter a ver com", "ter relação com". Ou mesmo, num belo exemplo de concisão, pelo verbo "ser"!
Não fica bacana? "Liberdade não é transar na primeira noite, e sim não querer transar e não transar."
Estamos falando de um dos mais insidiosos modismos importados da língua do Pato Donald. Uma tradução literal que poderíamos chamar de macunaímica -no sentido da preguiça, sem dúvida; no da ausência de caráter, talvez.
Quero deixar claro que não sou xenófobo ou purista. A língua portuguesa não é uma moçoila virginal ameaçada pela avalanche de palavras inglesas. É mais forte do que se pensa e, vamos falar claro, nunca foi santa.
A própria "avalanche" do parágrafo anterior, remanescente do tsunami de palavras francesas que arrastou nossos letrados no século 19, prova que uma dieta rica em estrangeirismos engorda e faz crescer. Aliás, o termo japonês "tsunami" está no mesmo caso.
Podíamos ficar nisso o dia todo.
Anos atrás, fui um dos críticos do projeto do deputado Aldo Rebelo (PCdoB) que previa multa para quem usasse palavras importadas. Coisa não só irrealizável, mas ignorante em sua visão do idioma e perigosa em sua inspiração totalitária.
Nada disso nos obriga a aplaudir a anglofilia jeca que acomete setores da classe média, em especial lá pelas bandas do corporativês, do marquetês e do informatiquês.
Se o uso de termos anglófonos tem lógica econômica, pois as palavras vêm nos pacotes de tecnologia e serviços que importamos, seu alcance é muito ampliado por certa aura, por uma sobra de valor simbólico.
Aquilo que se exprime em inglês, idioma "vencedor", soa mais sério, competitivo, atraente. Isso, sim, me parece um alvo digno de chumbo grosso. O abuso de estrangeirismos não ameaça o português, mas revela uma deficiência de autoestima.
É sintoma de um problema cultural.
O que fazer? Confesso que, além da minha resposta-padrão para as mazelas brasileiras em geral (educação, educação, educação!), não sei.
Talvez um começo seja denunciar a postura culturalmente servil que falantes educados, quem sabe intelectuais, alguns até inflamados de nacionalismo, revelam sem querer quando concebem uma construção grotesca como "ser brasileiro é sobre ter jogo de cintura".
Ou não. Vai ver que o errado sou eu e que um dia teremos de traduzir para o "sobrismo" diversas frases famosas de nossa história: "Um país é sobre homens e livros" (Monteiro Lobato); "Governar é sobre abrir estradas" (Washington Luís); "O mundo é sobre um moinho" (Cartola).

Sobre o 'sobre' - Antonio Prata

Adams Carvalho

Meu vizinho das quintas-feiras, Sérgio Rodriguesjá abordou o tema com muito mais propriedade do que eu seria capaz, mas ele tem me irritado tanto (o tema, não o Sérgio) que vou invadir o quintal alheio e bater na mesma tecla. De um ano pra cá, comecei a ouvir frases do tipo "não é sobre opinião, é sobre respeito" ou "não é sobre alimentação, é sobre saúde", "não é sobre direitos, é sobre deveres".
A primeira vez que me deparei com este novo uso do "sobre", pensei que estavam falando "sobre" algum filme, livro ou peça de teatro. A respeito de "Superman I", por exemplo, poderíamos dizer que "não é sobre superpoderes, é sobre amor". Assim como "Casa de Bonecas", do Ibsen, "não é sobre um casamento, é sobre a liberdade". Prestando mais atenção, porém, percebi que o sentido era outro. Era o "sobre" como "ter a ver com". Trata-se de uma tradução troncha de "it's not about", que os anglófonos usam a torto e a direito. Ou melhor, nós usamos torto, eles usam direito.
Palavras são ferramentas, chaves que se encaixam perfeitamente nas delicadas fendas dos significados. Quando a gente usa a ferramenta errada, espana o parafuso. O que aumenta meu desconforto com o "sobre" é que nas frases em que ele é empregado tem sempre alguém nos dando uma lição e dizendo que não entendemos lhufas do assunto. É como se eu estivesse tentando aparafusar uma estante na parede, me afastassem da tarefa e assumissem o meu lugar usando uma faca de cozinha. Ou, para ligar a imagem à origem do problema: usando uma chave inglesa.
Tradução é um ofício dificílimo e muito mal pago, no Brasil. Razão pela qual, imagino, pipoquem entre nós tantos tiros no pé –da letra. Vira e mexe leio livros em que os personagens dizem que "costumavam" morar em tal rua. Isso, em português, significa que as pessoas moravam em tal rua de vez em quando. Segundas, quartas e sextas? E nas terças e quintas, se mudavam pra outro endereço? Esse "costumavam" é a tradução literal de "used to", o que na língua de Camões poderia ser perfeitamente cortado se conjugássemos "morar" no pretérito imperfeito do indicativo: "moravam".
Nos livros em que as pessoas "costumavam" morar em tal lugar (ou namorar tal garota ou estudar em tal escola), também costumam tomar, pela manhã, seu "desjejum" ("breakfast"). Me diga, amigo, você alguma vez se deparou com um "desjejum" que não fosse numa tradução ruim ou na receita de um nutricionista? No Brasil se toma café da manhã. (Em Portugal, "pequeno almoço"). Nestes mesmos livros, quando brigam, os personagens se ofendem com frases do tipo: "Oh, Johnny, que espécie de imbecil é você?!". O amigo já disse ou já ouviu algum patrício dizer "oh"? E por mais que vicejem entre nós várias espécies de imbecis, não é do nosso feitio, num arranca-rabo, inquirir a qual linhagem o imbecil em questão se filia.
Não quero parecer arrogante. "Não é sobre preciosismo", eu diria, aderindo à moda, "é sobre lógica". Há frases que fazem sentido, outras que não. Já está tão difícil nos entendermos em bom português, imagina com todo mundo usando faca em parafuso e desrosqueando porca com alicate: acabaremos por estropiar de vez a fragilíssima máquina da comunicação. E antes que alguém se sinta pessoalmente ofendido, aviso: estou falando do modismo em geral, não de qualquer indivíduo em especial. Juro: "It's not about you".

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Culpa - Mariliz Pereira Jorge


Roger Lerina/Folhapress


Sinto culpa por tudo.
Se chamo uns amigos para conhecer um bar, já começo a sofrer na porta. Por causa da fila, do ar-condicionado muito forte, muito fraco, porque não tem o raio do ar. Sinto como se uma bala Soft tivesse escapulido para dentro da traqueia, se está muito cheio, muito vazio, se toca sertanejo, se não toca, se a cerveja não está gelada, se só tem importada, se não tem, se fazem Negroni (está na moda, certo?), se alguém resolve fumar em 2017 num ambiente fechado, se não pode fumar, onde já se viu um lugar que não pensa nos fumantes?!
Não gosto de indicar livros, músicas, filmes, peças de teatro ou exposições. É bom? Não sei. Não lembro. Não fui. Dormi. Saiu de cartaz. Não comprei ainda. Vou me culpar, pela perda de tempo, de dinheiro. Do outro. Já me convenço de que é a amizade o que pode se perder. Vai que a pessoa acha que estou fazendo apologia ao racismo, à pedofilia, ao gayzismo, ao uso do botox antes dos 30, aborto como método contraceptivo, à volta dos militares ou da pochete. Melhor, não.
Sugestão de restaurante? Até arrisco. Sempre o mesmo. Sem ousadia. De preferência, se o cardápio for o de sempre. Só como o mesmo prato. Tenho apego, minto. É aquela loteria. Tem o humor do garçom, se o chef está com a lua em Virgem, se o prato veio no ponto, se é pouca comida, a conta é cara, a música, alta. Tem também as outras mesas. Como controlar gente que grita como se estivesse num clássico de futebol? E quando tem criança? Mas e quando são os filhos do amigos que provocam cara feia? Quero morrer de congestão.
Uma grande amiga se interessou por um cara que considero irmão. É ótima pessoa, péssimo namorado. Falei, não presta. Não adiantou. Falei, transe, mas não se apaixone. Não adiantou. Enquanto ela transbordava de ocitocina e de orgasmos múltiplos, tudo foi bem. Quase fui alçada ao posto de santa casamenteira. Um dia ele comprovou minha teoria de que não prestava. Eu de férias na Europa, ela me manda um textão que deve ter inaugurado o estilo na internet, dizendo o quê? Seu amigo não presta. Morri de culpa. Como não protegi uma marmanja de 30 anos?
Briguei com alguém de quem gosto muito faz uns meses por causa de política. Eu estava certa e ela errada, claro. Ou não. Sinto culpa, porque tenho saudade, não pela briga. Porque eu estava certa, claro. Ou não. Resolvi esta semana que não falo mais sobre esse tipo de assunto. Quando penso em entrar em uma treta, arrumo uma louça para lavar ou um armário para limpar. As pessoas não estão preparadas para descobrir o que os amigos pensam. Nem eu. Mas eu tinha sempre uma palavra para ajudar os idiotas a se reconhecerem. E depois morria de culpa, porque o mundo está cheio de idiotas que são pessoas boas. Vomitava minha verborragia e morria de culpa. Cabou. Agora o estômago regularizou a produção de suco gástrico, parei com o Rivotril e durmo tranquila.
Alguém pode se reconhecer nesse texto, talvez seja melhor não. Ou sim. Vai com culpa mesmo.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Janelas - Fabrício Corsaletti



Cravo
Era um bar de madeira fosca e paredes de vidro numa esquina clara de Buenos Aires que, nos dias nublados, ficava quase fosforescente. Entrei dez anos depois com minha mulher no meio da tarde, ambos mortos de fome. Pedimos milanesas e salada mista, uma garrafa de vinho tinto e outra de água mineral. Fiquei observando seu antebraço escuro cheio de pulseiras prateadas com padrões cor de laranja. Ela abriu uma sacola e me mostrou algumas compras: um vestido, cadernos, talheres feitos de chifre de boi. A essa altura o álcool já fluía deliciosamente pelo sangue. Lamentei ter parado de fumar quando terminamos de comer. De manhã tínhamos visitado o Museo Nacional de Arte Decorativo. Na tampa de um cravo do século 18, decorado com cenas cotidianas pintadas a óleo, um casal passeando pelo campo chamou nossa atenção. Pareciam correr ao ar livre, bêbados e alegres, embora não desse pra ver nenhum detalhe das figuras, meros borrões cor de mostarda. — Bêbados e alegres correndo pelo campo de uma pintura do século 18. Semanas antes de uma tristeza infernal.
*
Centro
Penso em mudar pro centro da cidade. Eu saberia viver junto aos prédios descascados. Andar pelas ruas de onde o tempo varreu a mentira das cores. Sentir no fim da tarde raiva ou desejo sexual misturados à buzina dos carros e aos gritos dos loucos e dos camelôs. — O cheiro maravilhoso do espetinho, minha última esperança! — De uma janela sem cortinas olhar as sacadas com varais improvisados: a beleza do corpo nu, a beleza do corpo vestido. Escrever de manhã sobre o que vi de noite e sempre. Com meu café coado depois do pão com manteiga. Diante de um laptop conversível — neste apartamento cravado em cima de um bar.
*
Bolo
Minha avó fez um bolo de cenoura pra receber as amigas, velhas parentes que moravam do outro lado da cidade e a visitavam uma vez por ano. Quando a campainha tocou, tive uma ideia: roubei o bolo do forno e o coloquei em cima da tampa da privada do banheiro do quarto da minha avó. As velhas sentaram na mesa da cozinha e minha avó foi pegar o bolo pra servir com café. Ficou desesperada. Vasculhou os armários e as gavetas. Veio até a sala, onde eu brincava com alguma prima e flagrou meu olhar doentio. Rindo mas já arrependido, eu disse onde estava. Ela ficou ainda mais desesperada, pois não sabia mentir e acabou contando tudo pras colegas. Por sorte, eram o que as pessoas elegantes chamam de pessoas simples (o que não diz nada sobre as pessoas "simples", mas diz muito sobre as pessoas elegantes) e comeram o bolo sem grandes dramas.
Existe outro bolo escondido, que não me deixa dormir. Chegou a hora de jogá-lo na mesa. Vamos ver no que dá.
*
Margens
O mar tem margens. Janelas têm margens. Revólver tem margens. Minha liberdade, infelizmente, tem margens. (O ar, no entanto, circula onde quer.)
O céu não tem margens.
Os olhos da minha namorada não têm margens.

Todos estamos em nossas biografias - Denise Fraga

A moça fazia suas compras no supermercado. Tinha errado os botões nas casas do casaco. Sempre me dá pena. Uma pessoa com os botões trocados é quase um ícone de solidão. Arrumou-se, saiu, quiçá passou pela portaria, sem ter ninguém para lhe acusar o erro. Pensei em fazê-lo, mas, mais uma vez, o ímpeto de avisar me veio junto com a dúvida. Sabe-se lá há quanto tempo ela estará assim? Sabe-se lá o quanto anda se sentindo só? O quanto eu poderia feri-la sendo o alheio a confirmar-lhe isto? Lembrei de mim nas ruas de Roma.
Certa vez, viajei sozinha. Quando entrei no quarto do hotel, comecei a chorar. Que ideia tinha sido aquela de ser estrangeira sem ninguém ao meu lado? Tive vontade de me enfiar debaixo das cobertas, de ligar a televisão, mas também não conseguia, era a Cidade Aberta que me esperava lá fora.
Aos poucos fui me acalmando. Tomei café, me agasalhei e saí vacilante, de mapa na mão. Era verdade que eu estava em Roma, mas mais do que toda a beleza daquela cidade, foi a vida em movimento, os sons, as gentes, os carros e lambretas que acolheram a insignificância da minha solidão. Era só existir. Comer, andar e existir. Não existe viagem errada. Viajar é só acordar e existir.
Fui ver o Caravaggio, sentei na Piazza Navona e fiquei horas observando como cada turista queria a foto de sua moedinha sendo lançada à Fontana de Trevi. Eu era uma entre tantos e eles quase pareciam meus. Me ampliei. Serenei. Também é bom, solidão.
Já estava voltando para o hotel, quando percebi, refletido em uma vitrine, o meu estado. Talvez eu tenha andado pelas ruas umas boas três horas daquele jeito. Logo depois do almoço, eu havia entrado numa loja para provar uma bota. Não gostei, devolvi pro vendedor e saí da sapataria com a calça dobrada até quase o joelho, deixando de fora minha berrante meia vermelha. Talvez por vingança da venda frustrada, o homem não se deu ao trabalho de me avisar. Quiçá até riu de mim, alegrando um pouco a hora da sesta que seu patrão não o deixa tirar. O fato é que eu andei bastante tempo por Roma exibindo a minha solidão. Mas, àquela altura, o vendedor e seu silêncio já faziam parte da minha biografia. O porteiro do hotel, a garçonete do almoço, os japoneses e até Caravaggio já eram meus familiares do mundo e a única coisa que eu precisava fazer era abaixar a perna da calça e continuar existindo.
Resolvi avisar a moça de seu casaco no supermercado. Sabe-se lá o quanto ela ama estar sozinha? Sabe-se lá o quanto ela sabe que eu sou dela e ela é minha?
Seu franco sorriso de agradecimento me provou que era bem possível que sim.

Beijo roubada - Marcelo Rubens Paiva

Seria melhor que alguns beijos nunca tivessem acontecidos. Beijos acontecem? Seria melhor se alguns beijos nunca tivessem sido dados. Que a vida continuasse sem eles. Pois impuseram transformações excessivas. Estava tudo “índio” bem. Por que beijei?
Era um sonho matinal. Por alguma razão, talvez a luz da manhã, talvez as oito horas já de sono rolando, o sonho matinal é mais nítido e o lembrado, daqueles que se o sujeito faz terapia precisa ser anotado assim que interrompido, num diário preenchido por narrativas obsoletas e absurdas a serem debatidas com um terapeuta, tipo “sonhei que estava passando um fax para a minha avó”. Nem existe mais fax nem nenhuma das avós. Querer o impossível não é bom...
O sonho matinal é aquele sobre o qual dá para refletir, lembrar detalhes e, dependendo da narrativa, fechar os olhos e tentar retornar ao episódio interrompido. Poucos conseguem. Sonhos matinais têm mais luz. Por isso, são mais próximos da realidade. Em muitos sonhos matinais nem sacamos que estamos sonhando.
Ele sonhava um sonho banal. Sonhava que ia em busca de um PF pelo bairro. Não um agente do Estado, mas um prato-feito. Em várias casinhas, ele é vendido. Em garagens que viram restaurantes rápidos. Servem apenas almoço. Ou carne de panela com arroz-feijão e salada, que nada mais é do que um alface e rodelas de tomate, o que prova o absoluto desprezo por fibras de montadores de PFs. Por vezes, batata frita ou cozida. E farofa. Sempre o arroz-feijão é fantástico e incomparável. Por vezes, a farofa se destaca.
Já sabia de cor o gosto dos PFs ao redor. E torcia para não ter comida em casa, para apelar para eles eventualmente. Sabia que não podia viver de PF, devido ao excesso de sódio e gordura neles.
Sonhava que estava para entrar num PF de uma casa laranja germinada da Pompeia, quando chegou um SUV preto blindado. Um helicóptero aterrissou na varanda. Desceu Carolina Dieckmann. Do carro, sua entourage. Perguntaram do PF local. Ele fez as honras do bairro. Detalhou a Carolina, ou Carol, como a chamam, o melhor do dia.
Que honra todo este povo aqui na Pompeia num Prato-Feito com um bom músculo de panela, apesar da batata oleosa demais. Carol foi simpática. Entraram e almoçaram. Sempre quando eles se olhavam, ela era simpática demais. Parece tanto uma garota dourada feliz e saudável. Conhecia por fotos aqueles olhos com malícia, cabelos loiros charmosamente despenteados, aquelas pintas no ombro, na clavícula esquerda, no peito...
Já nos corredores do casebre, começaram a se beijar. Sim, era daqueles sonhos em que temos intimidades com celebridades que admiramos. Beijo bom, beijo molhado. Beijo com tesão, mas com paixão; tesão fruto de paixão.
Como o tempo e a cronologia num sonho seguem as leis de Einstein (o tempo é curvo e se pode voltar ao passado), em seguida já estavam apaixonados, em seguida já viajavam num ônibus de turnê de banda de rock que ele alugara para a ocasião, sem banda ou turnê. Apenas os dois viajavam, sem entourage, apaixonados, sem pararem de se beijar, por estradas vicinais. Conheceriam o Brasil.
Aos poucos baixou o desespero dos apaixonados. Dio mio, terei que sempre alugar este gigante das estradas para viajar com ela? Terei que levá-la de helicóptero a restaurantes, bares, boates? Terá que ser o melhor amante, ter o melhor champanhe, o melhor hotel, com varanda para a melhor vista, a melhor casa de praia, ingresso para a melhor boate de Nova York, Londres, ali, sempre embarcando em Executivas? Não poderei engordar, ter uma intoxicação, uma espinha no nariz, falhar no ato sexual! Terei que acordar antes e dormir depois, se quiser estar sempre disponível. Braços torneados, barriga tanquinho, bunda firme, peitoral delineado. Terei que pedir empréstimos, vender bens, para satisfazer o luxo e conforto que uma estrela como ela requer. Por que não apareceu a Cleo Pires num Uber. Com a Cleo meus transtornos seriam menores. Loiras são mais exigentes. São?
Ele estava rolando com a Carol aos beijos e agarros pelo chão do busão estilo turnê de dupla caipira, ou melhor, de sertanejo universitário, ou melhor, pós-graduado. Sua mulher o acordou, para dizer que o táxi chegara. Ele pediu mais dez minutinhos. Estou sonhando com a Carolina Dieckmann, disse. A mulher fez um ar entediado. Vou dar de mamar e já volto.
Fechou os olhos, quase conseguiu voltar ao sonho. Mas na verdade ele se transformava num sonho erótico tenso, com muitas expectativas. Ele se transformava num pesadelo. Acordou de vez. Aquele sonho estava uma delícia, e estava estressando. Acordou e anotou no diário: “Não pedir aumento”.
Ao ir embora, sua mulher veio se despedir, com um dos filhos no peito. Sabe que você lembra a Carolina Dieckmann. Foi trabalhar. Torcendo para ninguém aparecer de SUV blindado ou helicóptero nos seus pés-sujos.

domingo, 22 de outubro de 2017

O papagaio marroquino - Fabricio Corsaletti


Pedro Piccinin


há um papagaio marroquino
na minha imaginação
há um papagaio verde e tagarela
me soprando em árabe
versos que não posso compreender
há um papagaio coberto de poeira
esperando que eu me dedique
à tradução dedutiva
há um papagaio de peito estufado
diante do Mediterrâneo
me incentivando a arriscar
mais
há um papagaio no ombro de um homem
da minha idade
que caminha sem pressa
pelas vielas azuis de Chefchaouen

Dois poemas infantis - Fabricio Corsaletti

Pedro Piccinni


ODE AO MACARRÃO
macarrão é a comida dos deuses
macarrão é um tipo de calma
macarrão é um tipo de sonho
macarrão é a comida da alma
macarrão é a mãe explicada
macarrão é uma espécie de amor
macarrão é o melhor desta vida
macarrão para vereador!
macarrão é gostoso no almoço
macarrão é demais no jantar
macarrão de café da manhã
minha mãe nunca que vai deixar
macarrão com cebola e tomate
macarrão com manteiga e azeitona
macarrão, carne e queijo ralado
macarrão - ai meu Deus! - na japona
macarrão quando estou meio triste
macarrão quando estou delirante
macarrão quando estou sem sentido
macarrão quando estou lendo Dante
macarrão é a infância no prato
macarrão é a nossa bandeira
macarrão é a única coisa
mais legal que qualquer brincadeira
*
POEMA DAS CASAS
uma casa é uma caixa coberta
as paredes, o telhado em cima
uma casa tem portas, janelas
no jardim dá pra brincar de esgrima
uma casa protege do frio
e é fresquinha nos dias de calor
já vi casas cortadas por rios
e uma casa transbordar de amor
de uma casa se entra ou se sai
numa casa se fala e alimenta
eu queria ser como meu pai
ter uma estante de ferramentas
há famílias que vivem em casas
e pessoas que vivem nas ruas
é tão triste dormir numa casa
quando há gente dormindo nas ruas
uma vez fui embora de casa
porque um dia é preciso ir embora
fiquei anos como que sem asas
só, sonhando, do lado de fora
uma casa pode durar séculos
mas também pode ser derrubada
algum deus nos confins do universo
chora ao ver casas abandonadas

Janela - Antonio Prata

Adams Carvalho/Folhapress



Abro a janela do escritório a caminho do computador, o sol bate no meu rosto e me detenho ali, de pé, por um instante. São nove horas da manhã, é um sol bom, certamente aprovado pela Sociedade Brasileira de Dermatologia, o céu está azul e uma brisa adia o calor que já começa a dar as caras neste final de outubro. Na laje do prédio em frente, recostado no para-raios, um porteiro de calça marrom e camisa bege fuma seu cigarro, o olhar perdido sobre o vale do Pacaembu. Lá longe, catorze andares abaixo, um amolador de facas anuncia sua chegada, parecendo vir diretamente de 1983: trrruiiiiiiillllll, trrruiiiiiiillllll, trrruiiiiiiillllll.
O mundo está se acabando, mas por um instante estou dentro de uma crônica do Rubem Braga.
Lá longe, catorze andares abaixo, o presidente do Brasil acaba de flexibilizar as leis contra o trabalho escravo, em nome da estabilidade –e não é essa a nossa estabilidade? Nos Estados Unidos um defensor dos combustíveis fósseis, colocado na agência que deveria combater os combustíveis fósseis, promove a queima de carvão. A "New Yorker" publica o perfil de um dos organizadores da manifestação de Charlottesville,
um supremacista branco cuja razão de viver é provar que os negros são intelectualmente inferiores e que tratá-los como iguais é uma estratégia dos banqueiros judeus para disseminar a desordem e reinar sobre a terra. Essas notícias deveriam soar absurdas, mas o que parece irreal, agora, é o sol batendo no meu rosto, a brisa, o céu azul, o porteiro descansando,
o silvo do amolador de facas.
Sei o momento exato em que tudo começou a desandar: foi aos 23 minutos do primeiro tempo de Brasil x Alemanha, na Copa de 2014, com o gol de Kroos, um minuto após o gol de Klose, aos 22. Aos 25 Kroos fez de novo, e aos 28, Khedira; não muito depois a economia brasileira ruiu –a Nova Matriz Econômica, sabemos agora, era tão sólida quanto a "Família Scolari"–, Bolsonaro, defendendo a tortura, passou a ser uma figura política relevante, os criminosos investigados pela Lava Jato tomaram o poder para acabar com a Lava Jato, Trump venceu as eleições nos EUA, o tráfico retomou o controle do Rio de Janeiro, o MPL, movimento que levou milhares às ruas pelo transporte público, abriu as portas para o MBL, movimento que levou milhões às ruas e ajudou a eleger em primeiro turno o aumento da velocidade nas marginais. É como se aqueles quatro gols em seis minutos tivessem criado um buraco negro, um bueiro cósmico, um ralo no espaço-tempo que, desde então, vem engolindo qualquer possibilidade de bom senso.
Se eu tivesse nascido na Somália ou na Maré talvez não estivesse surpreso, para a maioria esmagadora da população mundial a vida sempre foi um 7 a 1 constante, uma luta para fugir da guerra, encontrar água, alimentar os filhos, mas eu nasci em São Paulo, numa família de classe média, cresci num curto período em que as coisas pareciam estar melhorando. Foi uma exceção? Ou exceção é o que estamos vivendo agora? A história tem alguma lógica ou é mesmo essa patacoada cheia de som e fúria, sem sentido algum, contada por um idiota?
O porteiro termina seu cigarro e some por um alçapão, já não ouço o amolador de facas, mas o sol continua, e eu sigo na janela por mais uns minutos, seis, que sejam, me agarrando à brisa bragueana.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Há sempre o inesperado - Roberto DaMatta

A Ponte do Rio Kwai é um dos filmes clássicos de David Lean um dos inventores

da narrativa cinematográfica. Realizado em 1957 e baseado num livro de Pierre Boulle, 

inventor da inesperada saga do planeta dos macacos, ele recebeu o Oscar de 

melhor filme de 1958. Para alguns críticos, A Ponte do Rio Kwai é tão brilhante

quanto Lawrence da Arábia (realizado em 1962); mas para mim ele permanece 

ao lado de Oliver Twist (1947) Passagem para a Índia (1984) e de Desencanto (1945)

como uma das obras-primas do cinema, quando o cinema contava histórias

e não se comprazia em explodir automóveis.

Eu o assisti no cinema Icaraí, aqui em Niterói, numa época em que pensava ser cineasta e quando ir ao cinema era um ritual civilizatório. Nos anos 60, abundavam os filmes (russos, franceses, italianos e alemães) que “enchiam as medidas” – nossas almas e corações – como dizia o meu saudoso e calado pai. 

A Ponte do Rio Kwai conta uma história manifestamente simples e tão paradoxal quanto a ponte (o símbolo latente) que o intitula. Nas selvas da Birmânia, durante a 2.ª Guerra, um coronel inglês imbuído de militarismo patriótico e seu batalhão são aprisionados pelos japoneses. Sua entrada no campo de derrotados, logo na abertura do filme, não sugere aprisionados, pois que, inesperada e orgulhosamente, eles estão estropiados, mas orgulhosamente assoviam a famosa marcha do coronel Bogey. Música que valeria um comentário. 
Tenaz, o coronel somente aceita construir a ponte para os seus algozes, nas condições que corajosamente estipula para o comandante japonês. A primeira ponte do filme, portanto, é a do elo entre o militarismo dos coronéis. A segunda, lida com a fuga de americano antimilitarista inesperadamente compelido, no entanto, a voltar com uma guerrilha inglesa para destruir a ponte que daria vantagem estratégica ao inimigo. A terceira é a descoberta que a ponte havia sido construída por ingleses. A quarta é testemunhar como o orgulho da sua construção engloba o patriotismo do heroico coronel inglês, fazendo com que ele tente impedir (agindo como um traidor) a sua destruirão. A quinta ponte é a ironia de testemunhar como uma ação intencional, o extremado e pouco discutido patriotismo parido pela guerra, transforma-se num conflito entre os próprios ingleses. Como diz pelo menos duas vezes no filme um elegante e profético major inglês: “There is always the unexpected (Há sempre o inesperado...)”.
Esse filme elabora esses inesperados que ligam rotinas e intencionalidades às suas imprevisíveis consequências. Nele, o patriotismo é suplantado pelo orgulho pessoal; aprisionados aprisionam seus verdugos; a fidelidade ao líder transforma ultraje em heroísmo; e a guerra entre nações ditas civilizadas é revelada como uma arrematada loucura. Eis um “filme de guerra” que, paradoxalmente, milita contra a guerra.
*
Quem não nasceu de novo por causa de um inesperado? 
*
Iniciei-me no exílio antropológico quando – de agosto a novembro de 1961 – fiz trabalho de campo entre os índios gaviões no sul do Pará. Mas como os exilados também se comunicam, solicitei a uma respeitável figura do último reduto urbano que visitamos, uma cidadezinha na margem esquerda do rio Tocantins, que cuidasse da correspondência que Júlio Cezar Melatti, meu companheiro de aventura, e eu, iríamos receber. Naquele mundo sem internet, telefonemas eram impossíveis e cartas ou pacotes demoravam semanas para ir e vir.
Recebemos uma rala correspondência na aldeia do Cocal. Mas quando chegamos à nossa base, no final da pesquisa, descobrimos que nossa correspondência havia sido violada. 
Por quê? Ora, por engano, respondeu o responsável, arrolando em seguida o inesperado e a ironia que até hoje permeia a atividade de pesquisa no Brasil. Foi quando soubemos que quem havia se comprometido a cuidar de nossas cartas não acreditava que estávamos “estudando índios”. Na sua mente, éramos bons demais para perdermos tempo com uma atividade tão inútil quanto estúpida. Éramos estrangeiros disfarçados – muito provavelmente americanos – atrás de urânio e outros metais preciosos. Essa plausível hipótese levou o nosso intermediário ao imperativo de “conferir” a correspondência.
Mas agora que os nossos rostos escalavrados pelo ordálio do trabalho de campo provava como estava errado, ele, pela primeira vez em sua vida, acreditou ter testemunhado dois cientistas em ação! 
Há sempre o inesperado.


A Ponte Do Rio Kwai (Legendado)

http://www.metacafe.com/watch/7014771/a_ponte_do_rio_kwai_legendado/



sábado, 14 de outubro de 2017

KEEP CALM e não vire um reaça - Martha Medeiros

Aquele carrancudo que entrou e saiu do elevador sem dar bom-dia não tem nada contra você, o problema é que ele, além de não ter o hábito de ser cortês, descobriu ontem à noite que a mulher com quem casou há dois anos tem um amante.

O apressadinho que está buzinando de forma alucinada atrás do seu carro não tem nada contra você. Além de ser naturalmente mal-educado, ele dormiu apenas três horas esta noite e não tomou café da manhã, o que não colaborou para melhorar seu precário humor.

A mulher que postou na sua página do Face uma ofensa despropositada porque discorda das suas ideias não está com raiva de você, ela nem entendeu direito o que você quis dizer, aliás, ela nem sabe quem você é. A coitada não se conforma de nunca ter passado num concurso público e esse frustração transformou a mulher num azedume ambulante.

O cara que furou a fila não está competindo com você, ele já perdeu pra si mesmo faz tempo. O chato que conta piadinhas machistas não está querendo provocar você, é que o infeliz não pega ninguém. O colega que questiona tudo que você faz não está querendo importunar você, óbvio que o sujeito tem baixa autoestima. Aquele olhar atravessado que a passageira do ônibus deu pra sua roupa não é uma crítica a você, ela é que não tem coragem de se expressar com mais criatividade.

Somos todos inocentes das neuras, traumas, complexos e distúrbios alheios. Se a pessoa surta, se a pessoa faz estardalhaço, se a pessoa briga por qualquer coisa, não é contra você nem contra mim, a encrenca é com ela mesma. Taí uma fórmula precária, porém bem intencionada, de colaborar com a paz no mundo: não dê trela.

Mantenha a calma e reserve toda sua indignação para quem está realmente atrapalhando sua vida com total consciência disso. Política, sim, é sobre você, sobre mim, sobre nós todos, não tem atenuante. É com essa corja que temos que nos entender - ou nos desentender. Mas com inteligência. 

Não caia na conversa de qualquer oportunista que surgir com um discurso preconceituoso e radical, tipo um Trump tupiniquim, destes que prometem colocar ordem na casa, mas que não passam de ignorantes que só aprofundam o atraso da nação. Você não precisa decidir agora em quem votará para presidente em 2018. Cuide para não ser reacionário, porque a tentação é grande. 

O país está nervoso, e a tendência é confundir ditadura e conservadorismo com salvação. Não dê aval para este brutal retrocesso. Não acredite em mitos, em frases de efeito, em extremismos. Aguarde até saber quem serão os candidatos, qual o comprometimento de cada um deles, seu passado, seu currículo, suas propostas de desenvolvimento econômico e inclusão social, e aí sim, pense, pondere e dê o troco com sanidade - não com desespero.

O século vermelho - Sergio Augusto

Alexander Herzen, filósofo e escritor russo do século 19, não só acreditava no advento do socialismo como tinha certeza de que a Rússia o implantaria na Europa. Os alemães Marx e Engels duvidavam da segunda hipótese. Na avaliação da dupla, a Rússia agrária e atrasada não reunia as condições necessárias a uma revolução. De todo modo, Engels, precavido, começou a estudar russo para enfrentar em pé de igualdade a influência crescente do líder anarquista Mikhail Bakunin, que já nascera falando o idioma de Herzen. Depois que a coroação do czar Alexandre II, em 1855, incendiou o campo e incomodou a nobreza, Marx e Engels recuaram de sua descrença. 
Marx ficou surpreso ao descobrir que o primeiro volume de O Capital fora traduzido para o russo e editado em São Petersburgo só um ano depois de seu lançamento por uma editora de Hamburgo. Mais surpreso ficaria se pudesse ter sabido que um jovem russo chamado Vladimir Ilyich Ulyanov elegera O Capital o seu vade-mécum revolucionário, após devorá-lo encarapitado no fogão da casa paterna.
A Rússia ganharia o devido destaque no segundo volume de O Capital. Pois Herzen estava correto: a tirania czarista um dia cairia de podre, abrindo caminho para a implantação dos ideais socialistas, mas não em toda a Europa. Fazia bastante tempo que os russos consideravam a pobreza uma virtude cristã, o excesso de riqueza imoral e o trabalho, a única fonte verdadeira de valor. 
Se era débil o potencial “revolucionário” da população rural e pouco confiável a insatisfação da aristocracia, forte era a tradição de rebeldia da intelligentsia urbana e de perseguição aos seus mais inquietos criadores. O censurado Pushkin participou do levante dezembrista de 1825, que peitou a sucessão de Nicolau I. Gogol satirizou a opressão imposta aos servos pelo feudalismo czarista. Tolstoi combateu o absolutismo. Dostoievski chegou a flertar com o anarcoterrorismo. 
Mesmo escritores apolíticos não conseguiam ocultar seu desgosto com a monarquia czarista. Exemplo clássico: Ivan Goncharov, criador de Oblomov, o suprassumo da inércia, da indolência e do vazio da aristocracia, personagem-título de um romance que se revelou premonitório, pois o oblomovismo contaminou não só a burocracia imperial como os apparatchiks bolcheviques. 
Ocupando o vazio deixado pelo parlamento e a imprensa livre, as artes na Rússia czarista serviram de arena para o debate político, filosófico e religioso. Em lugar nenhum o artista foi mais sobrecarregado com a tarefa de liderança moral de seu povo, nem mais perseguido pelo Estado – e não apenas durante o ancien régime. Alienados das massas rurais pela distância e o analfabetismo (em 1920, três em cada cinco camponeses não sabiam ler), os artistas russos tomaram a si criar uma comunidade de valores e ideias por meio da literatura, do teatro, do cinema, das artes plásticas e da música, beneficiando-se do “espírito patriótico” e do “orgulho nacionalista” dos servos explorados pelos Romanov.
“Vista como guerra contra os privilégios, a ideologia prática da Revolução Russa devia menos a Marx – cujas obras mal era conhecidas pelas massas semianalfabetas – e mais pelos costumes igualitários e anseios utópicos do campesinato”, argumenta o historiador inglês Orlando Figes em seu monumental estudo sobre a cultura russa, recém-traduzido pela Record. 
Com 880 páginas, Uma História Cultural da Rússia não é um “livro de hepatite”, mas de tendinite no punho. Figes remonta ao início do século 18, mas o que talvez mais interesse aos leitores, às vésperas do centenário da revolução soviética, seja o que se desenrola a partir da página 523, com a chegada da poeta Anna Akhmatova (1889-1966) ao palácio dos Sheremetev, transformado em santuário contra a destruição da guerra e da revolução, em 1918. 
Akhmatova, cujos poemas Trotski desdenhou como “irrelevantes”, no Pravda, sentia mais temores do que esperanças na Revolução. Sustentou-se cuidando da tapeçaria oriental do Museu Hermitage e do acervo de uma biblioteca de Petrogrado, passou necessidades, como, aliás, todos ou quase todos os artistas e intelectuais da época, mas nem quando seu ex-marido, Nicolai Gumilev, foi fuzilado sem julgamento, acusado de conspirar pela volta da monarquia, parou de defender a permanência de seus pares no país. Ela sobreviveu ao sectarismo literário dos comunistas, ao stalinismo, e é, com justiça, uma das figuras de maior destaque no livro. 
Todos os heróis e vilões do Outubro Vermelho lá estão: Vladimir Maiakovski (o “poeta da Revolução”), Eisenstein, Zamiatin, Meyerhold, Babel, Mandelstam, Blok, Shostakovich, Prokofiev, o comissário da cultura Andrei Jdanov, o supercensor de Stalin, além do próprio ditador, que, por incrível que pareça, era ultraletrado e cinéfilo. Sob a sua batuta (ou férula, se assim preferir), a deplorável doutrina do Realismo Socialista foi formulada, em outubro de 1932, numa reunião na casa de Gorki, que mantinha relações amistosas com o Kremlin.
Talvez a mais fulgurante e trágica vítima do revertério stalinista, Maiakovski, que fazia de tudo: poemas, panfletos, slogans, programas radiofônicas, jingles, textos para teatro e roteiros para cinema, suicidou-se ou foi suicidado em 1930. Não sem antes escrever uma sátira futurista (O Percevejo), gozando o modo de vida e a burocracia soviéticos dali a 50 anos. “Somos levados a concluir que a vida social sob o socialismo será muito maçante em 1979”, comentou um crítico da época, consagrando Maiakovski, involuntariamente, como um acurado profeta da era Brejnev. 

O cinema elimina o tempo - Ignácio de Loyola Brandão

Meu fascínio por festivais devo a Justino Martins que, na década de 1950, fazia a cobertura de Cannes para a revista Manchete. Cannes era o máximo em glamour, beleza, mulheres lindas, estrelas, grandes diretores. Ninguém pensava no Oscar, era, e é, festinha provinciana de Hollywood. As estrelas francesas eram sensuais e mostravam os seios com generosidade, coisa que não se via no cinema americano. Brigitte Bardot, Mylène Demongeot, Simone Signoret, Martine Carol, Françoise Arnoul, Cécile Aubry, Claudine Dupuis eram minhas preferidas. Mas Cannes tinha diretores como René Clement, Marcel Carné, Robert Bresson, Jean Renoir, Clouzot, Resnais, depois Truffaut, Godard, Agnès Varda (ela está vindo), Louis Malle. Para nós, Cannes era intelectualidade e sensualidade. Era acima de tudo a festa do cinema, e os olhos do mundo se voltavam para lá. Ainda é. Nunca fui, é um de meus projetos há tempo, tenho apenas 81 anos. Depois, descobri Veneza, San Sebastián, Berlim, Karlovy Vary, pura celebração de filmes.
Em 1954, lá de Araraquara, acompanhei em transe, o 1.º Festival Internacional de Cinema do Brasil, parte das festas do 4.º Centenário. Bandos de estrelas, atores e diretores norte-americanos, franceses, italianos, mexicanos. Entre outros, o legendário Erich von Stroheim, que tínhamos visto em Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder. Também vieram Edward G. Robinson e Walter Pidgeon, que se puseram a pregar a favor da lista negra e das prisões e inquéritos instaurados em Hollywood pelo odioso senador McCarthy, contra a liberdade de expressão, que acabou com a carreira de centenas de cineastas e atores de primeira linha. A arte sempre incomodou os oportunistas. 
Daquele festival tenho o cartaz original a mim presenteado pelo seu autor Alexandre Wollner. Emoldurado, me lembra que cinema foi meu sonho. Substituí pela literatura, que me dá enorme prazer (e angústia). Festivais de cinema brasileiro cobri muitos por este Brasil. Nos anos 1960 e 1970, eles pipocavam pelo País.
Lembro-me ainda de dois filmes da primeira Mostra de São Paulo, em 1977, Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia e O Enigma de Kaspar Hauser. Criada por Leon Cakoff com a força que somente um louco sonhador divino apaixonado pode, a Mostra seguiu e chega à 41.ª edição. Das Mostras e dos festivais tenho ainda a nostalgia da maluquice que significava escolher os filmes. Era necessário uma logística apurada. Ainda é. Filmes, horários, salas, deslocamentos entre uma sala e outra, horas de comer (vi muito filme com fome, e daí?). Invejava os que tinham permanentes, ou seja acesso gratuito. Sempre tive pudor e educação, jamais quis dar “carteirada”, ainda que tenha dado uma e outra. Jornalista e crítico, conhecia os bastidores e sabia da saia-justa dos organizadores com a organização e os “carteirantes”. O sujeito chega: “Sabe quem sou? Claro que sabe! Veja aí, preciso de tantos ingressos para tantas pessoas para os filmes”. E vem uma lista de toda a Mostra. 
Formávamos grupos, fazíamos as escolhas, nos dividíamos, íamos para as filas. Ao amadurecer, passei a ter colaboração dos meus filhos, os três adoram cinema, um faz fotografia de cinema. Tudo é adrenalina, até o momento de as cortinas se abrirem (são raras as cortinas nas salas) e o foco azulado bater na tela. Aí, começa a emoção. Para mim, igual desde o primeiro filme que vi, A Canção de Bernardette, que me deixou siderado. Eu tinha 10 anos.
Com paciência, garimpo, dúvidas, dívidas, pesquisas, contatos, busca de patrocínios, Leon Cakoff realizou suas mostras por anos. Hoje, ele é uma figura tão importante na história do cinema em São Paulo, quanto Paulo Emílio Sales Gomes, Almeida Salles, Caio Scheiby, Rudá de Andrade, Dante Ancona Lopes, Benedito J. Duarte, Jean-Claude Bernardet. Sei que há dezenas de outros. Daqui a uma semana, terá inicio mais uma Mostra. Nas mãos de Renata de Almeida, que, assim que o marido Leon partiu, disse: agora é comigo. E está sendo, mesmo porque é a vez das mulheres. Lembro-me de mulheres que nos primeiros tempos foram suporte na Cinemateca Brasileira – um pouco base teórica de tudo isso –, como organizadoras, arquivistas, assessoras de imprensa, quando tudo era meio amador: Nilce Tranjan, Fátima Pacheco Jordão, Lucila Bernardet, Lygia Fagundes Telles.
Ainda não sei o que vou ver. Há muito, mas muito mesmo, são 390 filmes, boa parte dirigida por mulheres, há também filmes sobre diversidade, problemas do mundo. Algo me deixa agoniado. Imaginem se aqueles que andam de olho, vigiando o “exagero das artes”, em nome dos costume e da moral, decidirem intervir? Vai dar rebelião. Fico pensando se essa gente de Neandertal percorresse museus, dando com telas como A Origem do Mundo, de Courbet. Ou a Vênus Deitada, de Ticiano Vecellio, em que um garotinho tem as mãos nos seios de uma farta mulher – pedofilia? Ou – ó Deus – A Madonna de Leite, de Lorenzetti em que Maria dá os seios a Jesus. Sem esquecer os olhos lascivos do bebê diante do seio da Madonna no quadro Virgem do Leite, de Frei Carlos, século 16. Sacrilégios? E o que pensar de A Fonte, de Duchamp? Um mictório é arte?
Que a Mostra, tradição cultural do Brasil, tão importante quanto a Bienal Internacional de Artes, seja aberta e fechada em plena liberdade, amor à arte, emoção. O que me encanta é ver nas salas a multidão de jovens ansiosos, inquietos, famélicos. De bengala, pé avariado em uma queda, vou aos cinemas que estiverem mais perto. Subirei à Paulista, ao vão do Masp, para rever O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro, e adorarei descer ao centro, ao renovado Marabá, que abrigou todas as estreias da Vera Cruz. Vou tentar ver o máximo. Um amigo me viu, ficou pesaroso: “Como vai escrever agora, com esse pé inchado?”. Respondi: “Escrevo com a cabeça e a mão”. A Mostra mistura em mim o ontem, o amanhã e o hoje. O cinema elimina o tempo. 

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Onde está a saída? - Roberto DaMatta

Em qualquer sociedade honesta para com os seus valores, a saída reside na neutralização dos males que a afligem. Todos os coletivos têm coisas em comum. Em nenhum, estimula-se o assassinato, a doença ou a evasão de regras gerais em benefício exclusivo de alguma família, etnia ou classe social.
Todo sistema discerne que mazelas como a morte, a doença, a loucura, a corrupção, o fanatismo ou o crime – embora inevitáveis – não podem ser transformadas em valores. Reconhecer o mal não significa a ele render-se. O crime, conforme aprendi com Durkheim, é lamentavelmente normal; mas só é normal se for combatido e evitado!
Essa velha lição parece ter sido esquecida no Brasil. Um sintoma disso é quando se tem dúvidas do remédio; ou quando os remédios aprofundam ainda mais o crime, fazendo com que vício e virtude se confundam a ponto de se perder o fio da meada. Daquilo que em qualquer grupo constitui sua fidelidade a si mesmo como grupo. 
Quando os indivíduos se associam, eles deixam de ser exclusivamente motivados por seus interesses particulares. A teia de relações estabelecidas entre os membros de um coletivo passa a ser fundamental nas suas decisões. Em todo elo há no mínimo dois egoísmos, mas não se pode esquecer que o elo é, ele próprio, um ator. Toda relação tem, como diria o grande Pascal, razões que os seus atores desconhecem. Ou, como estamos testemunhando com vergonha no caso brasileiro, fingem cínica e paradoxalmente em nome da lei, desconhecer. 
Os atores podem ter intuitos egoístas, mas as suas relações, paradoxalmente, fazem surgir dimensões que vão além desses propósitos já que elas têm também suas finalidades. Uma relação comercial só atende bem os seus atores na medida em que satisfaz sua finalidade de criar riqueza. Do mesmo modo, o amor é usado, mas ele também usa – quando não mata – seus amantes, como ocorreu com Romeu e Julieta. 
Quando falamos que existe honra entre ladrões, apontamos para uma ironia. Como pode existir honra num grupo de marginais pergunta o nosso lado individualista, invocando sem saber um elemento coletivo. Ora, diz o nosso lado sociológico, a honra entre ladrões, pervertidos e marginais, é justamente aquilo que suas ações revelam sobre os seus sistemas. A honra entre ladrões – tal como as compulsões dos pervertidos do marquês de Sade, de Freud e do diabo de Machado de Assis – é o testemunho daquilo que precisa ser investigado e compreendido. 
Nem sempre, como descobriram Mandeville e Maquiavel, o egoísmo produz egoísmo. Mais das vezes, o vicio produz virtude e até mesmo santidade ou riqueza, como constatou o diabo brasileiro de Machado de Assis. Pelo mesmo paradoxo, nem sempre a benevolência engendra equidade. O nosso velho populismo não produziu igualdade, mas corrupção, traição, desmoralização e plutocracia. 
Nas chamadas ciências sociais, o progresso consiste, como acentuou Albert Hirschman, numa emancipação das convenções. Não se pode aplicar ao estado a mesma moralidade requerida para as pessoas. Esse paradoxo de Maquiavel não é muito diferente daquele que ensina como bons sentimentos não fazem boa poesia ou ser amigo do cara garante administração pública honesta. 
O grande ensinamento dessa brutal crise brasileira é que ela nos leva para uma viagem para dentro de nós mesmos. Não há mais no mundo em que vivemos a possibilidade de “consertarmos” o Brasil por meio de um modelo externo ou de um salvador vindo de fora (do sul ou de baixo). Não há mais nada que não tenha sido sugado pelo sistema que, globalizado, permite contar até as barras de ouro de gatunos olímpicos nessa olimpíada de ladroeiras na qual ganhamos todas as medalhas e batemos todos os recordes
Quero, pois, imaginar que a investigação e o julgamento das imoralidades que testemunhamos não vão liquidar a política, mas a politicalha que a desmoraliza. Estou igualmente convencido de que não liquidamos nenhuma das utopias – liberdade sem censura, igualdade com meritocracia e oportunidade para os desvalidos – da minha juventude. Se o paradoxo dos fundadores do pensamento social estava correto, uma abusiva imoralidade tem nos conduzido a uma não prevista atitude mais realista relativamente à necessidade de termos um código moral e um credo político do qual devemos nos orgulhar. Revolução não combina com malandragem e hipocrisia.
Se o vício particular engendra virtude coletiva, porque o familismo domesticado não engendraria uma administração pública competente? Não é justamente a roubalheira que nos tem trazido um agudo sentimento de justiça e de honestidade? 

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Solte seus cupins - Humberto Werneck

Quem foi mesmo que disse que escrever é cortar palavras?, pergunta um colega. Seria Carlos Drummond de Andrade? 
Como sempre que me sinto desafiado, parei tudo e fiz da dúvida alheia uma questão pessoal. 
Meu cupincha se lembrava de ter lido uma crônica em que Maria Julieta Drummond de Andrade, filha do poeta, reuniu conselhos literários do pai. Eu também me lembrava, e, entre nuvens de ácaros, voltei ao recorte de jornal. Lá estava, de fato, a recomendação, repetida, conta Maria Julieta, “sem cessar e com razão’: “Escrever é cortar palavras”. 
Então era mesmo Drummond o autor da frase, para mim familiar há mais de meio século. Salvo engano, a ela fui apresentado num auditório escolar em que pontificava uma autoridade em economia verbal. Mal o mestre, invocando o poeta, receitou tesoura, um dedo juvenil (até hoje morro de inveja) levantou um aparte: mas esta frase tem um rabicho supérfluo. Como assim?, estranhou o palestrante – e o moço, triunfante: “Escrever é cortar”, simplesmente – “palavras” fica óbvio. O mestre embatucou, mas teve a humildade de pedir aplausos.
Reli, ia dizendo, a crônica de Maria Julieta, e a leitura me levou a outra, de Armando Nogueira, em que o jornalista (muito dado, aliás, a embaixadinhas estilísticas) conta ter passado anos na certeza de que o autor da “preciosa máxima” era Drummond. Um dia, tocou no assunto com ele, e o poeta negou autoria. Armando ficou desapontado, pois “a sentença tinha a cara do mestre Drummond, cuja prosa é um exemplo de concisão”.
A dúvida, portanto, meu caro colega, persiste. Ainda não dispensa interrogação numa seleta de frases sobre concisão que venho acumulando e que, admito, deveria consultar mais amiúde. 
Aquela, por exemplo, em que Graciliano Ramos compara o trabalho do escritor ao de uma lavadeira que esfrega e torce incansavelmente, até que da roupa já não pingue uma gota, pois a palavra foi feita para dizer, não “para enfeitar, brilhar como ouro fácil”. Na mesma linha, Hemingway a nos ensinar que texto é arquitetura, não decoração de interiores. Ou Mark Twain, para quem escrever é fácil – basta cortar o que ali não deve estar.
Ainda ouço Moacyr Scliar dizer, numa entrevista, que deletar é tão ou mais importante do que digitar. E García Márquez lamentando não se lembrar quem foi que disse que “um bom escritor é mais apreciado pelo que rasga do que pelo publica”. Para não falar em João Cabral de Melo Neto, em cuja poesia não acho vírgula sobrante, tão certo estava ele de que escrever é como catar feijão: Jogam-se os grãos na água do / alguidar / e as palavras na da folha de papel; / e depois joga-se fora o que boiar”. Se o cronista José Carlos Oliveira recomenda “não se derramar”, visto que “palavra é sangue”, Cabral, diz o mesmo com imagem inaudita: “... nem deve a voz ter diarreia”.
Já que a conversa me levou às vizinhanças da escatologia, me permita, em boa causa, baixá-la ainda mais, e, em defesa do texto bem podado, descarregar a lembrança prosaica, porém instrutiva, de algo que vi no banheiro, sim, no banheiro de uma redação onde trabalhei. 
Andava eu saudavelmente obcecado pela ideia do texto enxuto, ao ponto de haver criado uma Teoria da Vênus de Milo, segundo a qual qualquer texto melhora se cortado com rigor. Por que Vênus de Milo? Pode ser, respondi, que a moça da estátua tivesse mãos e braços menos belos. A esse esforço de limpeza, no qual cada palavra esteja em condições de justificar presença, chamo “soltar os cupins”, cupins benignos, cuja dieta consistisse exclusivamente em madeira ruim.
Mas estávamos, perdoe, no WC, e havia ali um toalheiro onde se lia: “Bastam duas folhas deste papel para secar suas mãos. Portanto, evite o desperdício”. Logo notei que alguém, munido de caneta, levava àquele cubículo necessidades também estilísticas, pois aos poucos o aviso foi perdendo banha. No final, estava assim: “2 folhas secam suas mãos. Evite desperdício”. Acho que dá para cortar a segunda frase. Ou a primeira? 
Antes que você, tendo chegado até aqui, passe a tesoura e reduza a zero a prosa do cronista, convém fechá-la com ilustração mais elevada, que vou colher naquele texto de Armando Nogueira. Fala-se ali de um conto de John Ruskin em que um sujeito, numa feira, implica com este cartaz: “Hoje vendo peixe fresco” – e, aos poucos, convence o vendedor a cortar pelancas verbais. 
“Hoje” não precisa, argumenta ele, pois para o freguês qualquer dia é hoje. “Vende” também é dispensável – o que mais se faria uma banca de feira? Quanto a “fresco”, bem... alguém poria anúncio de pescado que não estivesse nessas condições? 
Restava, àquela altura, “peixe” – mas não seria o caso de descartar essa palavra, já que ali não se vende outro tipo de mercadoria? A chance de algum comprador se equivocar é zero – até mesmo um cego, que tem no olfato um guia certeiro.
Melhor cortar neste ponto. Agora é com você – aqui & alhures, empunhe a tesoura, solte seus cupins!


Velha nova república - Marcelo Rubens Paiva


Antes denominávamos favela. Agora, ocupação. No Rio, comunidade. 

Mudamos para retirar o estigma da denominação anterior sem 

mudarmos  a desigualdade e injustiça social que elas revelam, 

o déficit habitacional brasileiro,  que começou no começo  da 

República,  com soldados que combateram o movimento acusado

de monarquistade Antônio Conselheiro, numa ocupação num 

morro chamado Favela, “larga planura ondeante onde se erigia  

o arraial de Canudos...” (Euclides da Cunha), por causa da planta 

“favela”, a mandioca-brava.


Nova República é uma ocupação na Baixada Santista, com vista para São Vicente, a primeira vila brasileira, que entra pelas frestas da Mata Atlântica, fundada por sobreviventes da Vila Socó, favela de palafitas destruída em 1984 pela explosão de um duto sem manutenção que se rompeu da Petrobrás, vazou 700 mil litros de gasolina, incendiou 500 barracos, matando 93 pessoas confirmadas (400 desaparecidas). 
Era o sexto vazamento da Petrobrás, a empresa mais advertida e multada pela Cetesb na época. Todos fingiam que o problema não existia. Muitos problemas sociais as autoridades não veem. Oito funcionários da empresa foram condenados pela Justiça.
Nova República é também uma ocupação no Morumbi, que desmoronou e soterrou 32 dos 120 barracos, provocando a morte de 14 moradores (12 crianças) em 1989, um ano depois da promulgação da Constituição da Nova República, que elevou a Petrobrás ao símbolo de um novo e próspero Brasil.
Um terreno vizinho era aterrado para receber obras de um condomínio de luxo, embargado pela Prefeitura. Os proprietários tinham sido multados várias vezes. Quatro anos depois, o dono do terreno, o responsável pela obra e quatro funcionários da Prefeitura foram condenados.
A desigualdade social se manteve na Nova República, período designado para indicar a retomada do poder pelos civis em 1985, o fim da ditadura militar, cujo pilar foi a Constituição de 1988, cujos pilares são: eleições livres, sistema político multipartidário e, sobretudo, liberdade de culto, opinião, manifestação e expressão.
A Constituição, costurada numa grande e empolgante mobilização durante a Constituinte, é das mais avançadas. Mas deu numa Justiça cujos juízes de primeira instância bloqueiam redes sociais, censuram instalações artísticas, embargam peças de teatro por motivos religiosos, não chegam a um consenso sobre violência contra as mulheres, ganham auxílio-residência, mesmo habitando na mesma cidade em que trabalham. 
Muitos deles recebem salários superiores ao salário-base de R$ 33.763 que designa a Constituição (teto dos ministros do STF), graças a penduricalhos, auxílios, indenizações, gratificações. 
Segundo O Globo, três de cada quatro juízes brasileiros receberam remunerações acima do teto. Três de cada quatro juízes encontraram formas e atalhos, com respaldo legal, para driblar o que manda a Constituição. Um desembargador de Rondônia ganhou num mês R$ 111.132,44. O recorde ficou com Sergipe. Uma excelência faturou R$ 141.082,20 em agosto de 2016.
A Nova República é gerida por mais de 30 partidos políticos. A maioria dos deputados que estão na Câmara não foi eleita pelo voto direto. Entraram por suplências e coligações. 
Criaram o sentido de governabilidade: repartem o poder e suas empresas entre aliados. Nasceu o maior organograma de corrupção da História, que rapou, inclusive, fundos de pensão.
Algumas correntes políticas defendem a volta dos militares. Um deputado, Jair Bolsonaro, homenageou um notório torturador no dia em que se votou o afastamento de uma presidente da República. Assumiu o poder um ministério com seis indiciados pela Justiça. Inclusive o chefe da nação, denunciado por crimes de corrupção e obstrução de justiça.
A Nova República propiciou estabilidade econômica, abertura dos portos, aumento de programas sociais, e que a esquerda assumisse a Presidência, aliada a antigos parceiros do regime militar. Sem traumas. Conseguiu que ambientalistas se sentassem com ruralistas num mesmo ministério, que aliados da tortura frequentassem os mesmos corredores que torturados. 
Mas reservas indígenas, demarcadas na Constituição de 1988, foram invadidas. A floresta protegida foi derrubada. Quilombolas são questionados. A saúde e a educação pública são uma tragédia.
Na Nova República, segundo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 14% dos brasileiros vão ao cinema, 96% não frequentam museus, 93% nunca foram a uma exposição de arte, 78% jamais assistiram a um espetáculo de dança. Segundo Ibope, leitura ficou em 10.º lugar quando o assunto é o que gosta de fazer no tempo livre. Perdeu para televisão, música, internet, reunir-se com amigos, família, sair com amigos, filmes em casa, escrever, redes sociais, jornais e revistas, praticar esporte. 
Em 90% dos municípios, não há cinemas, teatros, museus ou centros culturais. A censura voltou. A religião voltou às escolas. O debate ideológico, a filosofia e a sociologia, saíram. Templos de religiões afro são atacados. A violência urbana é epidêmica. O crack, uma doença social. O tráfico virou organização.
Mulheres se empoderam, mas continuam a ser assediadas. O aborto é crime. Homossexuais podem se casar, mas eventualmente são agredidos. Cotas para negro democratizam o ensino e sanam uma dívida social, mas o racismo está longe de acabar. 
A Nova República tem muito pouco de novo. A base da sua economia é a mesma da monarquia: minério, carne, grãos, cana de açúcar (como nos ciclos), vasto território e mão de obra barata. A Nova República nasceu velha.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Corte - Fabricio Corsaletti

Pedro Piccinini





Eu não queria chegar ao Japão, eu só queria encontrar minhocas. Por isso cavava com uma enxada em miniatura atrás de um pé de goiaba — de costas pra festa —, no quintal dos nossos vizinhos Abrão e Linda Ferez. Os filhos deles — Michel, Samir e Karime — brincavam com minha irmã e outros dois meninos em volta de um buraco de um metro e meio de profundidade por uns três de largura. Não sei o que estava sendo construído ali.
Também não lembro por que eu estava sozinho. Uma cratera do tamanho de um carro não era algo que eu desprezasse. Minha hipótese: fiquei excitado demais, perdi o controle, falei bobagem e fui expulso do grupo. E lá estava eu com a porcaria de uma enxadinha de cabo frouxo, sendo picado pelos mosquitos, enquanto meus pais e os amigos deles se divertiam em torno da churrasqueira e a Paula e os nossos amigos enlouqueciam escorregando pra dentro do buraco.
Em certo momento desliguei de tudo e me concentrei no que de fora (depois me disseram) parecia inveja: eu tentando abrir um buraco bem no dia em que eles tinham um buraco enorme, profissional. Não importa. O que pode ter começado como fingimento aos poucos foi se tornando legítimo, e aquele buraco pequeno e imperfeito agora era o centro do meu universo. Senti um orgulho desmedido quando encontrei a primeira minhoca — partida ao meio, sem querer, por um golpe da lâmina. Mesmo achando esquisito, guardei as duas metades no bolso do short.
Foi nesse momento que ouvi os gritos do meu pai. Virei a cabeça devagar, torcendo pra que não fosse nada grave, mas já era tarde: desesperado, meu pai atira o violão (vermelho-alaranjado, o tampo esfolado pela palheta) contra o muro e sai feito um louco pra socorrer minha irmã. Numa de suas descidas ao interior do buraco, um casco de garrafa quebrado tinha rasgado de fora a fora sua coxa direita. Nunca vou esquecer: meu pai correndo com minha irmã no colo e na perna dela uma grande boca vermelha aberta. O sangue não escorria. (Até hoje, seja qual for o contexto, sempre que ouço a palavra abismo penso nesse corte.)
Minha mãe me levou pra casa, meu pai passou mal durante a operação, minha irmã voltou meio grogue da anestesia e eu fiz o que pude pra ser um irmão legal. Levava água pra ela, chocolate, brinquedos. Se ficava com raiva, me controlava e ia andar de bicicleta.
Me angustiava ver minha mãe chegar do trabalho e encontrar minha irmã com a perna enfaixada. A expressão do meu pai também me comovia. Era como se eles tivessem usado máscaras esse tempo todo e de repente elas tivessem caído. Durante algumas semanas, eles deixaram de ser meu pai e minha mãe pra ser apenas pessoas comuns, especiais. Comecei a ter medo de que um de nós morresse.
— Doeu muito? — perguntei pra minha irmã quando ela sarou.
— Não sei. Não lembro direito da sensação.
Depois disso, como todo mundo, ela se deu mal algumas vezes e raramente precisou de mim. Mas eu, eu ainda sinto que estou cavando um buraco e enfiando minhocas mortas nos bolsos, enquanto minha irmã corre perigo e meu pai estraçalha seu estimado violão. 

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Tem alguém aí? - Martha Medeiros

Eu achava que detinha algum conhecimento, ao menos o suficiente para conseguir atravessar os dias identificando o terreno onde pisava. Lembro inclusive de ter sido uma criança com ares de veterana, topetuda, mas o tempo passou, a roda girou, e hoje, à medida que os dias se sucedem, mais amadora me sinto.
Em algum momento dei uma cochilada e esse breve instante de distração foi suficiente para o mundo fazer um looping e me desalojar. Acordei agorinha e estou me desconhecendo. Não me transformei numa barata, e sim numa moscona – cada um com sua metamorfose. O fato é que não sei de mais nada. Estou nauseada, boiando nesse mar de opiniões contundentes. Quero voltar a pisar em terra firme, mas para isso preciso que alguém me resgate.
Tem alguém aí? Tem alguém aí que ainda duvide de alguma coisa? Dúvida é a ausência de certeza. Não costumava ser pecado mortal ter dúvida, tínhamos várias e de certa forma era um estado de alerta positivo, nos conduzia à investigação, ao aprofundamento dos fatos e de nós mesmos. Só que para esclarecer as dúvidas era preciso paciência.
Tem alguém aí com paciência? Paciência é a virtude de saber esperar e de ser perseverante. Esperar. Lembra esperar? É, faz tempo. Coisa que não há mais. Não há mais tempo para pensar antes de responder, pensar antes de agir, pensar antes de acusar, pensar antes de ofender. Ninguém dedica nem dois minutos a fim de se portar com civilidade, nem meio minuto para escolher entre o sim e o não. Hesitou, perdeu. Azar o seu.
Tem alguém aí com compaixão? Compaixão é o sentimento de identificação com quem sofre ou passa por dificuldades. Muito nobre, mas para que serviria compaixão, alguém saberia dizer? Temperar saladas, evitar rugas, ganhar dinheiro? Antigamente servia para temperar amizades, evitar conflitos, ganhar paz de espírito. Pouco lucrativo, entendo.
Tem alguém aí não querendo ganhar nada com isso?
Agride-se. Persegue-se. Humilha-se. Debocha-se. Patrulha-se. Quanto mais se pega no pé, mais se ganha em estatura. Se eu flagro o outro no erro, ponto pra mim. Deixo claro que o bom sou eu. Que o certo sou eu. É a forma mais rápida de se autoelogiar sem dar muito na vista.
O que tenho visto? Muita gente eloquente, inteligente, posicionada, articulada, bem-resolvida, politizada e não aceitando vacilações: julgamento sumário para quem não estiver do meu lado. Em outra encarnação, devo ter tido carteirinha desse clube, mas como eu dizia no início do texto, dormi no ponto, não paguei todas as mensalidades, mosqueei.
Tem alguém aí que não é tão bom? Que não sabe tudo? Que está meio perdido? Então segura aí, me espera, vou com você. Também não estou me achando.

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...