quinta-feira, 29 de junho de 2017

'Uma Família de Dois' prega respeito por quem é diferente Luiz Carlos Merten, O Estado de S.Paulo

Omar Sy. Ele é Samuel, o pai de Gloria, vivida por Gloria Colston Foto: Mars Films/Poisson Rouge Pictures
Sucesso de público na França, Uma Família de Dois fez 3,5 milhões de espectadores no país. “Nos demais mercados em que foi lançado fez mais 4,5 milhões, o que significa que já foi visto por 8 milhões de pessoas”, conta numa entrevista por telefone, de Paris, o diretor Hugo Gélin. Algum parentesco com Daniel Gélin, que foi um astro na França nos anos 1940 e 50? “Era meu avô.” Hugo, de 37 anos, admite que o avô despertou seu amor pelo cinema. “A família tem mais atores, mas foi ele, sim.”
Uma Família de Dois estreia nesta quinta, 29, nos cinemas brasileiros. É um remake de Não Aceitamos Devoluções, produção mexicana de 2013 que bateu recordes no país de origem. “Fui bem fiel à história original, mas, se você comparar os dois, vai ver que há uma diferença muito grande. Até o desfecho é o mesmo, mas o filme mexicano puxa para o dramalhão e eu quis fazer meu filme mais leve, divertido.” E, claro que ter Omar Sy como protagonista faz toda diferença. “Escrevi o filme para ele, pensando nele. Se Omar não tivesse aceitado, não creio que conseguisse fazer o filme com outro ator.”
Embora se trate de um remake, Hugo Gélin defende seu filme como ‘bem pessoal’. “Sou pai de um menino de 7 anos, que tive muito novo. A paternidade inesperada fez de mim outro homem, mais responsável. Omar (Sy) nunca havia feito um pai no cinema. Achei que seria um desafio interessante para ele. Esse bon vivant que, de repente, muda sua vida porque tem uma filha. Situar o personagem no universo do cinema - é dublê - lhe permitiu liberar a imaginação em cenas de ação e humor. E os personagens secundários também foram ganhando colorido. O tio gay, a mãe ausente que volta.”
Impossível não pensar em Kramer Vs. Kramer, de Robert Benton, que venceu vários Oscars em 1979. Meryl Streep desaparece, deixando o encargo de criar o filho para Dustin Hoffman. Ele se desdobra para ser esse misto de pai e mãe - ‘pãe’. Quando está numa boa, Meryl reaparece para brigar na Justiça pela guarda do filho. “O filme foi outra referência tão fundamental quanto o original mexicano. Há quase 40 anos, Kramer Vs. Kramer foi pioneiro ao flagrar mudanças na estrutura familiar”, diz Gélin. Em Uma Família de Dois, a mãe volta e briga pela filha. Sucedem-se as reviravoltas. Por mais leve que Hugo Gélin tenha querido ser, o clima pesa. Tem até, olha o spoiler, morte.
Embora a entrevista, a seu pedido, seja feita em francês, Hugo arrisca algumas palavras em português. “Tive uma babá portuguesa, meu melhor amigo é português e eu passei muitas férias em Portugal”, explica. O amigo é cineasta e ele escreveu e produziu A Gaiola Dourada, sobre uma comunidade de portugueses em Paris, para Rubens Alves dirigir. Ama o Brasil. Adolescente, integrou um intercâmbio de estudantes durante o governo do socialista François Mitterrand. Embrenhou-se na floresta amazônica, foi levar medicamentos aos índios, conheceu de perto sua cultura.
“Ao transpor o filme mexicano para a França e colocar Omar Sy no centro da história, acho que estou deslocando o eixo para o ‘outro’, num momento em que há tanta discriminação. Ter estado em Portugal, no Brasil foi muito importante para mim. Mesmo que de forma periférica o filme busca passar esse entendimento, esse respeito por quem é diferente de nós.”
'Não há quem não se renda ao carisma de Omar Sy'
Hugo Gélin, diretor de Uma Família de Dois, concorda com o repórter - Omar Sy é uma força da natureza. “Ele transborda a tela com sua vitalidade e sorriso. Deve haver algum maluco que não, mas não conheço ninguém que não se renda ao carisma de Omar.” Filho de mãe mauritana e pai senegalês, Omar nasceu em Trappes, Yvelines, em janeiro de 1978. Fez carreira como dublador e humorista, em 2000, estreou no cinema.
Tornou-se um fenômeno quando Intocáveis, que protagonizou com François Cluzet, virou o filme francês mais visto de 2011, com 11 milhões de ingressos vendidos, totalizando a maior renda da história do cinema na França. 

Omar Sy fez também Chocolate, que integrou o Festival Varilux no ano passado. Foi parar em Hollywood, mas o papel (pequeno) em Jurassic World - Mundo dos Dinossauros não dá conta de suas personas. E falando em inglês, ele também perde muito a graça.
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Minha covardia me dá vontade de agredir quem ousa viver "do seu jeito" - Contardo Calligaris

"Divinas Divas" é um filme surpreendente e imperdível. É difícil acreditar que seja o primeiro longa de Leandra Leal. Isso, pela qualidade da escrita e da direção e mais ainda pela maturidade do olhar, do sentir e do pensar.
Em plena ditadura militar, um grupo de artistas travestis montou um espetáculo de revista no Rio de Janeiro, no teatro Rival –que, na época, era dirigido por Américo Leal, avô de Leandra.
Hoje, o mesmo grupo de artistas volta ao palco. E Leandra conta e mostra a história dessa volta.
Saí do cinema com uma tremenda admiração pelas "Divinas Divas". Uma delas, num momento do espetáculo e do filme, canta "My Way" (vivi do meu jeito"¦), a música que ficou famosa na versão de Sinatra. Qualquer uma das artistas, hoje idosas, poderia cantar que ela viveu "do seu jeito", e o efeito em mim seria o mesmo: uma espécie de reverência diante da coragem de quem se aventura a viver encarando o que vier (do escárnio ao ódio) para respeitar seu próprio desejo.
Em geral, supõe-se que agressões e assassinatos contra travestis e transexuais (o Brasil é campeão nisso) sejam o efeito de um interesse sexual mal reprimido: "Bato numa travesti para bater no meu próprio desejo inconfessado de transar com ela ou de ser ela".
Há outra explicação, não excludente: "Bato na travesti que cruzo na rua porque odeio a coragem que ela tem de viver segundo seu desejo –que ela tem, e que eu não tenho. É a vergonha de minha covardia que me dá vontade de agredir quem ousa viver "do seu jeito".
Usei até aqui a expressão "artistas travestis", como se fosse perfeitamente adequada. No melhor dos casos, é uma gambiarra. Em Paris, nos anos 1970, em matéria de "transtornos de gênero", eu entendia muito menos do que hoje; por consequência (cuidado: ironia), eu tinha certezas afiadas e até opinava se e quando operações de mudança de sexo deveriam ser permitidas.
Parêntese. Engraçado, é sempre assim: quanto menos a gente entende, tanto mais a gente parece ter ideias claras e definidas.
Enfim, na época, meu "saber" tinha dois pilares.
O primeiro pilar era feito de distinções categóricas entre travesti, cross-dresser, drag, transformista, transgênero, transexual etc., como se fossem espécies rigorosamente distintas. Pois é, nunca são.
O segundo pilar era a separação pretensamente rigorosa entre transtornos de identidade de gênero e fantasias sexuais que envolvem uma mudança de gênero. Nos transtornos de identidade, o gênero de minha imagem no espelho não corresponde ao gênero ao qual sinto que pertenço: por exemplo, sinto-me mulher, mas o que aparece no espelho é um homem. Nas fantasias sexuais, não estranho minha identidade e meu corpo, mas posso imaginar estar transando e gozando como se eu fosse do sexo oposto.
Corolário dessa distinção: a mudança de sexo deveria ser autorizada a quem se sentisse homem num corpo de mulher ou mulher num corpo de homem, mas seria desaconselhada para quem "apenas" fantasiasse pertencer a outro sexo no coito.
Ora, a separação rigorosa entre transtornos de identidade e fantasias sexuais só existe em monografias e artigos acadêmicos.
É fácil enxergar quanto essa distinção é problemática lendo o último livro de Susan Faludi, "In the Darkroom" (na câmara escura), em que a escritora e ensaísta americana conta a descoberta de que seu pai (que ela não via havia tempo) mudara de sexo.
Na história, o transtorno de identidade de gênero é indissociável do que Faludi descobre das fantasias sexuais do pai dela.
Na verdade, quase sempre a dor de não se reconhecer no gênero de seu corpo é ligada às fantasias sexuais alimentadas pelo próprio projeto de mudar de gênero.
Um jovem transexual, que queria se transformar de mulher em homem, declarava, por exemplo, que ele continuaria desejando homens. O juiz lhe perguntou se não seria mais fácil e adequado, portanto, que ele continuasse sendo mulher. Ele respondeu que queria transar com homens, só que não como mulher, mas como um homossexual masculino. É isto: a identidade e o desejo sexual são intrincados.
Uma das "Divinas Divas", respondendo a uma pergunta, declara querer ser mulher, mas logo hesita. Parece dar se conta de que ela está, de fato, além da alternativa dos dois gêneros. O que ela quis ser é quem ela é: uma mistura única de fantasias, de gêneros –e de coragem.



quarta-feira, 28 de junho de 2017

Políticos deveriam fazer exames psicológicos e neurológicos regulares - João Pereira Coutinho

O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente. É um dos ensinamentos mais conhecidos de Lord Acton (1834-1902). Assino embaixo.
Experiência pessoal: em 20 anos de jornalismo, conheci muitos políticos e entrevistei vários. Com raríssimas exceções, todos exibiam um nível de imbecilidade que me impressionava e assustava. Não existem diferenças ideológicas. Bastava ocuparem lugares de poder para a imbecilidade se manifestar.
Cautela: não falo de "imbecilidade" no sentido prosaico do termo -burrice, estupidez, ignorância- embora existissem exemplares que também cumpriam esse papel.
Não, não. Falo de um outro tipo de imbecilidade: uma certa alienação face ao mundo, como se este mundo não existisse. Eu, modestamente, habitava o planeta Terra. Eles já estavam numa galáxia distante, onde os gestos, a linguagem e até o senso comum dos terráqueos deixavam de fazer sentido.
Tempos depois, quando assistia à queda de alguns -por incompetência, impopularidade ou até corrupção-, o que espantava não era apenas a infantilidade dos delitos. Era a surpresa dos personagens perante a queda.
Como se um gigante meteorito tivesse aterrado em cima das suas cabeças. Como explicar tanta alienação?

A ciência acaba de dar uma ajuda. Leio na "Atlantic Monthly" um artigo de Jerry Useem que recomendo. Conta o autor que a psicologia e as neurociências têm chegado às mesmas conclusões: o poder pode provocar no cérebro uma espécie de lesão.
Dacher Keltner, psicólogo de Berkeley, e Sukhvinder Obhi, neurocientista canadense, estudaram o assunto. Em termos comportamentais (Keltner) ou neuroestruturais (Obhi), o poder tende a inibir a capacidade empática dos poderosos.
Explico melhor. Todos somos seres sociais. Todos agimos e reagimos de acordo com o reflexo que obtemos dos outros. Nenhum homem é uma ilha, já dizia o poeta.
Em situações de poder, essa dinâmica se altera, até por razões conjunturais: o homem poderoso tende a rodear-se por uma corte de bajuladores que aplaude automaticamente as suas palavras e gestos.
Sem nenhuma sinalização exterior e dispondo de recursos que escapam aos meros mortais, o homem poderoso caminha na escuridão como se estivesse em pleno dia.
Para os meros mortais, os seus atos podem ser impulsivos, nefastos ou simplesmente criminosos. Para ele, são necessários, benéficos e muito acima da moralidade comum. Ele é um caso de impunidade porque os circuitos inibitórios estão, digamos assim, anestesiados.
Para a ciência, essas lesões podem ser temporárias ou duradouras. Mas existe uma forma de aliviar ou reverter os sintomas: por meio de lições de humildade. Como, por exemplo, recordar a um homem de poder os momentos da sua vida em que ele rastejou por este vale de lágrimas. Dizem os pesquisadores que o cérebro, até do ponto de vista imagiológico, volta a funcionar direito quando há essa "suspensão da irrealidade".
Nada que os antigos não soubessem já. O imperador Marco Aurélio, caminhando por Roma, fazia questão de ter um escravo ao lado para lhe dizer ao ouvido: "És apenas um ser mortal". Mas Marco Aurélio, apesar de mortal, era também um sábio -e a democracia não é o regime dos sábios.
Se as relações entre o poder e o cérebro podem ser problemáticas para os cidadãos, alguns ajustes inspirados pela ciência deveriam ser tentados.
O primeiro seria tornar os mandatos mais curtos (e, obviamente, não renováveis). Encurtar o tempo no poder é uma forma de profilaxia para que as loucuras da dominação não deformem a cabeça humana.
O segundo é admitir que mesmo mandatos curtos podem fazer os seus estragos. Deveria existir uma cláusula constitucional que obrigasse titulares de cargos políticos à realização de exames psicológicos e neurológicos regulares. Só com resultados limpos seria possível continuar.
Finalmente, se as lições de humildade tendem a repor equilíbrios perdidos, defendo há muitos anos a revitalização histórica do "bobo da corte": depois das reuniões formais, o bobo entrava em cena para ridicularizar severamente o líder e os seus asseclas. O bobo seria intocável e inimputável.
Por outro lado, qualquer presidente ou ministro deveria ser obrigado a viver uma semana de cada mês nas mesmas condições de quem recebe o salário mínimo. Para adquirir uma certa perspectiva em falta.
"És apenas um ser mortal", dizia o escravo ao imperador. Felizmente, já não há escravos. Mas ainda subsistem homens doentes que se julgam imortais. 


Angelo Abu

Dicionário da Mutreta - alguém precisava organizar essa bagunça - Gregorio Duvivier


Tramoia: N. Fem. Diz-se do esquema no qual você não está incluído. Distingue-se do trambique pelo profissionalismo. Etimologia: deriva da palavra "tramar" e pressupõe certo requinte.
Trambique: N. Masc. Diz-se do pequeno golpe, praticado de maneira amadora, geralmente pelos outros.
Mamata: N. Masc. Diz-se do esquema do qual usufrui-se com regularidade, e há muito tempo. A mamata, ao contrário do trambique e da tramoia, pressupõe antiguidade e frequência. Não se "comete" mamata mas se "tem" mamatas. Ex.: "Fulana não quis casar no civil porque recebe pensão do pai e não quer perder a mamata".
Mutreta: N. Masc. Espécie de trambique geralmente praticado contra o Estado, logo eticamente perdoável. Ex.: "Alguém conhece alguma mutretinha pra pagar menos imposto?"
Propina: N. Fem. Suborno com mais de três dígitos.Maracutaia: N. Fem. Irregularidade de proporções escandalosas, o equivalente a uma dúzia de tramoias que, juntas, tomaram proporções épicas.
Propinoduto: N. Masc. Canal de pagamento para a propina, quando esta atinge mais de seis dígitos.
Esquema: N. Masc. Tramoia do ponto de vista daquele que participa dela. Ex. "Como faço pra entrar nesse esquema?" "Desculpe, não tem como." "Nesse caso, vou ter que denunciar essa tramoia"
Pacto: N. Masc. Tramoia quando usada para acobertar outras tramoias. "A gente precisa de um pacto nacional, com Supremo, com tudo."
Bandalheira: N. Fem. Maracutaia sem pudor, feita de forma descarada.
Negociata: N. Fem. Diz-se da mutreta quando vintage. Para que se ocorra uma negociata é preciso que todos os negociantes estejam vestindo terno. Senão, é simples mutreta.
Falcatrua: N. Fem. Desfalque intermediário: não tão simples quanto um trambique e nem tão complexo quanto uma maracutaia.
Muamba: N. Fem. Importação que não passa pela alfândega, muitas vezes com a parceria da alfândega ou feita pela própria alfândega.
Faz-me-rir: N. Masc. Suborno de dois dígitos. "Essa multa aqui a gente resolve com um faz-me-rir".
Guaraná: N. Masc. Suborno de um dígito. "Pode parar o carro aqui sim, é só fortalecer o guaraná do colega"
Fortalecer: Verbo. Ato ou efeito de arredondar pra cima um valor estabelecido. "É 80 mas fecha em 100 pra dar aquela fortalecida."
Movimento: N. Masc. Diz-se de grupo dedicado exclusivamente à mutreta. Ex.: Partido do Movimento Democrático Brasileiro. 

terça-feira, 27 de junho de 2017

Vacas Magras - Fabrício Carpinejar

Eu enganei a escassez da adolescência participando dos sorteios da rádio. Vivia sintonizado para receber um disco ou um par de ingressos. Meus ouvidos estavam colados na voz do locutor como se fosse números de um bingo.
Morava sozinho, não tinha dinheiro para sair e tampouco passaria a vergonha de pedir ajuda para os pais. O que eu fazia? Caçava enquetes nas rádios. Pulava de um quiz-show para o outro. Soprava nomes de atores, solucionava charadas, descobria letrista oculto em canções, improvisava declarações de amor; topava tudo. Os apresentadores reconheciam a voz e acabavam envergonhados com a minha constante frequência.
Lembro do diálogo:
— Quem fala?
— Fabrício, do bairro Petrópolis.
— Você de novo?
A que mais me municiava o meu rebanho de vacas magras era a Rádio Cidade. Não foram poucas as vezes que eu subi o Morro Santa Tereza para buscar cortesias. As namoradas do período não entendiam como arrumava entradas. Acreditavam na minha influência, mal sabiam da chinelagem disfarçada de glamour. Aparecia de repente com vales para lançamentos, shows e peças de teatro. Grande parte da minha vida social, eu devo para o dial. Jamais abri os meus truques e revelei a roda da fortuna. Mantive a mágica do mistério com um sorriso irônico.
Numa época sem celular e sem telefone fixo no apartamento de solteiro, terminava por me enganchar no orelhão. Rezava primeiro para ser atendido — milhares de pessoas tentavam como eu. Não dava para desistir diante do sinal de ocupado. Depois, quando selecionado para falar, rezava para que as fichas sustentassem a ligação. Não podia me demorar, escutava o aparelho engolindo os meus valiosos minutos com ansiedade e sofreguidão. Quando acertava a resposta no programa ao vivo, vibrava e já desligava abruptamente, antes de ser cortado pela falta de crédito.
Resolvia o final de semana perseguindo promoções. Carregava um radinho de pilha no bolso durante a universidade para não chegar atrasado nas ofertas.
Colecionava, igualmente, cupons de desconto em revistas e jornais. Acho que os meus olhos são feitos de linhas pontilhadas.
Nunca fui redundante, pobre materialmente e de espírito. Compensava a ausência de bens com voluntarismo. Nem tive tempo de ser tímido. Por pior que seja, valorizo a apresentação de um artista em minha cidade. Sei o quanto vale o ingresso. Ao longo da juventude, lutei enormemente com as palavras, e um pouco de cara-de-pau, por cada um deles.

domingo, 25 de junho de 2017

Roquenrol - Luis Fernando Verissimo

O aniversário do Sergeant Pepper, dos Beatles, me pôs a pensar no meu currículo roqueiro. Posso dizer que conheço o roquenrol desde antes de ele nascer, ou pelo menos antes de se chamar assim. Morávamos em Washington e eu ia muito a concertos de “rhythm and blues”, onde geralmente era o único branco na plateia, e lembro quando as primeiras músicas de “r&b” começaram a pular a barreira racial e ser tocadas em programas de rádio para brancos. Em seguida, começaram a aparecer grupos brancos tocando mais ou menos a mesma música com o nome novo. A expressão “rock and roll”, com sua conotação sexual, também vinha da cultura negra, mas foram os grupos brancos que a capitalizaram. Como Bill Halley e seus Cometas, que fizeram a trilha sonora do filme Blackboard Jungle, que levou jovens à loucura e provocou quebra-quebras em muitas cinemas do mundo, e gravaram o Rock Around the Clock, espécie de hino inaugural do movimento.


A base do roquenrol era a progressão harmônica do “blues” e uma das suas raízes estava no “blues” branco, misturado com música caipira, do Sul dos Estados Unidos, de onde saíram Jerry Lee Lewis e Elvis Presley. O “rhythm and blues” negro continuou a existir e gerou muitas das formas que o roquenrol tem hoje, mas foi o roque branco nascido há 60 anos da encampação da música popular negra que tomou conta do mundo e o domina até hoje. Ajudou o fato de que, junto com o roque, começava a existir o Jovem como consumidor diferenciado, e não só de música. Um mercado que também domina o mundo até hoje. Acompanhei o roquenrol até os Beatles se separarem. Lembro que os Beatles e os Rolling Stones representavam correntes adversárias dentro do universo do roque. Os dois grupos vinham da mesma origem proletária, mas os Beatles tinham se sofisticado e, com o álbum do Sgt. Pepper, enveredado para uma coisa mais intelectualizada enquanto os Stones se mantinham fiéis ao “backbeat” básico e à pura energia hormonal, a mesma que atrai os jovens até hoje, embora eles já pareçam as suas próprias múmias. Quando os Beatles acabaram, me desliguei. Fui ouvir meu jazz, minha bossa e meus barrocos, e só tenho prestado atenção quando o roque se transforma em fenômeno psicossocial e a atenção é inescapável - como no caso das apresentações dos Stones. Uma ocasião para refletir sobre estes 60 anos e a durabilidade daquele ato de apropriação, quando os “blues” ficaram brancos. Sem falar, claro, na eternidade do Mick Jagger.

sábado, 24 de junho de 2017

Eros de revisão - Sérgio Augusto

Foi de propósito. Digitei “eros”, mesmo, mas é bastante provável que você, na pressa ou na distração, tenha entendido “erros de revisão”. Acertadamente. São desprezíveis as falhas tipográficas que os próprios leitores podem corrigir, fazendo uso da lógica ou induzidos por locuções consagradas, como, por exemplo, “erro de revisão”. A bem dizer, todo erro de revisão é, antes de tudo, um erro de digitação - ou de datilografia, como antigamente se dizia e cometia - que o revisor encarregado de reconhecê-lo e eliminá-lo deixou passar.
Os gringos têm um vocábulo enxuto e consanguíneo para identificar lapsos tipográficos: typos. Os franceses empregam “coquille” (literalmente, concha) e nós, gralha, gato e pastel. Até por ser o mais antigo, gralha afinal venceu a concorrência. 
No mais recente Bloomsday, semana passada, ao reavivar na memória um episódio ocorrido com James Joyce, ocorreu-me inventar um calemburgo que só tem graça em inglês: “This is not a typo, but a word in progress”. (Literalmente: “Isto não é um erro tipográfico, mas um neologismo em andamento”.) Pois, acredite, há gralhas que vêm para o bem. Como prova o aludido episódio envolvendo Joyce.
Estava o escritor irlandês a ditar Finnegans Wake ao conterrâneo Samuel Beckett, que então o secretariava, quando alguém bateu à porta e Joyce ordenou “come in” (entre). Concentrado em seu afazer, Beckett incluiu o “come in”, automaticamente, no texto que anotava. Embora não fizesse, nele, o menor sentido, Joyce tanto apreciou o erro que o manteve na edição final de sua “obra em andamento”. 
Mas quase sempre a gralha é um transtorno, uma calamidade. “É o único erro humano que, a meu ver, merece pena de morte”, prescrevia Otto Lara Resende, desavindo com revisores desatentos desde que na edição portuguesa de O Retrato na Gaveta flagrara um “ânus” onde originalmente sobrevoava um anu, o pássaro, pouco importa se cuculiforme. 
Segundo Eduardo Frieiro, que há 76 anos coletou uma série de gralhas históricas, não existe livro que não tenha sido vitimado por vacilos de tipógrafos e revisores. Claro que existem, mas são cada vez mais raros. Em outros tempos, com outro espírito, outra economia e mais leitores, as editoras investiam forte na contratação de editores, supervisores de textos e técnicos em checagem. Para abater custos e queimar etapas na produção de um livro, vários desses intermediários entre o, por assim dizer, manuscrito e o texto final foram sendo eliminados e precariamente substituídos por corretores automáticos e similares prodígios da era digital, exímios na troca de um erro por outros. 
O computador ajudou menos do que se pensa. “O uso do processador de texto resultou num declínio substancial na disciplina e atenção do autor”, constatou o editor chefe da Little, Brown and Company, Geoff Shandler. “Os manuscritos ficaram mais longos e mais desleixados, apesar de bem impressos.” Ou seja, os autores não são apenas vítimas daqueles a quem Otto Lara ameaçava com a pena capital. F. Scott Fitzgerald cometia erros primários de ortografia em seus originais. Nesse e em outros exemplos de grandes escritores, tais tropeços são irrelevantes porque corrigíveis. Escrever bem e escrever corretamente são departamentos distintos.
Nem as Sagradas Escrituras, cuidadas com devoto desvelo por escribas e tipógrafos, escaparam da maldição. Pelo menos cinco de suas versões, impressas entre meados do século 16 e começo do século 19, chegaram às mãos dos fiéis com intrusos cochilos, alguns constrangedores, como a ausência de um não no Sétimo Mandamento (liberando a roubalheira) e a falta de outro naquela epístola aos coríntios que veda aos perversos a entrada no Reino dos Céus. 
Segundo consta, a primeira grande vítima de uma gralha, entre nós, foi o poeta Cláudio Manuel da Costa, cuja obra introdutória do Arcadismo no Brasil saiu, em 1768, com um vistoso typo (“Orbas” em vez de “Obras”) na folha de rosto: Estampada na capa, chamaria ainda mais atenção, como aconteceu com a tradução dos Quatro Quartetos, de T. S. Eliot, editada pela Artenova, nos anos 1960, com um ele a mais no sobrenome do poeta. 
Em alguns exemplares do primeiro romance da série Harry Potter, J.K. Rowling virou J.A. Rowling, e foram prontamente recolhidos pela editora. Não eram tantos quanto os 80.000 exemplares do romance Liberdade, de Jonathan Franzen, que chegaram a ser impressos a partir de uma versão sem as alterações e correções do autor, e postos à venda em livrarias. Franzen descobriu a mancada enquanto lia um trecho do livro, durante um programa de entrevistas na TV britânica. Imagine a cena. Imagine o choque do autor. Imagine o prejuízo da editora.
Sorte teve a editora Garnier, cuja negligência no controle de qualidade da segunda edição das Poesias Completas de Machado de Assis, em 1902, beneficiou-se de uma brigada de corretores amigos do autor, que a nanquim emendaram, em mutirão, cada “cagara” que usurpara o pretérito mais-que-perfeito do verbo cegar numa estrofe do poema Advertência. Por outra versão da mesma história, Machado teria corrigido tudo sozinho. É possível. As tiragens de livros de poesia já eram bem módicas naquela época.
Dia desses repassei os olhos numa rara e autografada primeira edição de Angústia, de Graciliano Ramos, que herdei de Lúcio Rangel, amicíssimo do Velho Graça. Publicado em 1936 pela José Olympio, com o escritor encarcerado pelo Estado Novo e outra ortografia em vigor no País, tamanha era a quantidade de gralhas no texto que Graciliano, depois de posto em liberdade, pegou de volta o exemplar presenteado a Lúcio, entulhou suas margens de correções a caneta e, com nova dedicatória, devolveu-o ao amigo. 
Não sei quanto vale tal preciosidade no mercado bibliográfico. Um dos exemplares das poesias de Machado corrigidas a nanquim estava sendo oferecido, pouco tempo atrás, por R$ 900 na Estante Virtual. Café-pequeno se comparado aos livros coalhados de typos disputados em leilões lá fora. Em 15 de junho, a citada primeira edição de Harry Potter e a Pedra Filosofal, com o nome da autora grafado errado, foi arrematada por £ 10.000. Ano passado, um exemplar do mesmo livro com a palavra “philosopher” sem uma das letras na contracapa foi comprado por um empresário londrino por £ 43.750. 


A purificação pode vir de uma geleia de mexerica - Ignácio de Loyola Brandão

Para Celina Mori Matos, 9 anos, de Maria da Fé, MG
Sueli aconselha colher as mexericas pela manhã, quando elas estão ainda frescas pelo sereno da noite. Arranque-as ternamente dos galhos para que não fiquem marcas nos gomos. Deposite-as em cestos de palha e leve onde haja bom espaço para os preparativos que são grupais, delicados, exigem paciência e pedem muito assunto para conversas e risos ou alguém, que não sabendo manejar nenhum utensílio doméstico, possa cantar ou contar histórias para entreter. 
Estamos em Alto das Tocas, no sul de Minas Gerais, próximos a São Lourenço e Aiuruoca. De alguns pontos dessas terras de Ivo Szterling e Sueli Chaves avistamos o Itatiaia, picos da Mantiqueira, as Agulhas Negras e a Mitra do Bispo. O nome do lugar vem das lembranças das onças que, no passado, se refugiavam em tocas. A água que desce das nascentes forma um lago e aciona o monjolo, onde se pila o café. A água pode ser bebida direto das torneiras. Há quanto tempo não fazia isso? Séculos. A região é a de Cangalha, termo que me era familiar, meu avô José, marceneiro, costumava fazer cangalhas de madeira para serem colocadas no lombo dos burros, que conduziam mercadorias nas tropas.
As mulheres, Ciça, Marcia, Carla, Rose e Renatinha, foram convocadas já no café da manhã, entre pães de queijo saídos do forno, iogurte natural, bolos, biscoitos de polvilho com receita de Helena Rizzo, do Maní, pães comuns e de azeitona (afinal, naquelas terras, Ivo produz azeitonas e o azeite AIU), queijos da região, manteiga com leite de vacas do curral, frutas, suco verde, suco de laranja com mexerica. A reunião era para fazer a geleia de mexerica, receita de Ruth Barbieri, mãe de Ciça, que quase chegando aos 90 anos ainda briga querendo dirigir por São Paulo e brinda os amigos com preciosos vidrinhos de incomparável sabor. 
A mexerica ou mixirica (em Araraquara) também é conhecida como bergamota, mandarina, fuxiqueira, mimosa, Clementina ou mexerica do Rio, de casca fina, perfumada para uns, “fedidinha” para outros. Aquela cujo sumo penetra na pele. Acontece que Ciça estava no Alto das Tocas, viu o “mexerical” carregado, conspirou com Sueli, que convocou, aliás coordenou todos nós, urbanoides, para um ritual ligado ao campo, à terra. Cerimônia que nos fez esquecer o tempo e nos tranquilizou, tão eficiente quanto uma xícara de Chá de Estrada (erva-cidreira; não confundir com Capim Santo) à noite, antes de dormir. 
Não existe relógio, iPhone, smartphone, rádio, tevê, nada. Esqueçam what’s up, sms, o que for. Deixem a tecnologia a distância, ela pode distrair, preocupar, tensionar. A mente deve concentrar-se apenas nas mexericas de um alaranjado intenso. Problemas, preocupações, dificuldades, canseiras, contrariedades, tormentos, vão se dissolvendo no gume das faquinhas afiadas. São enviadas para longe, além dos limites das porteiras. Afinal, estávamos a 656 quilômetros de São Paulo em linha reta, só que retas não existem em Minas; me desminta Werneck. O mundo se resume àquele espaço batido pelo sol outonal da Mantiqueira, na varanda de madeira de onde se vê a Pedra do Rincão e os vales e colinas encobertos por nuvens que insistem em grudar no solo, apaixonadas. 
Naquela manhã, dividiram as tarefas. Uma cortava os frutos ao meio, outra retirava a parte dos gomos, um terceiro abria gomo a gomo e manejando a faca como se fosse um bisturi, retirava o que em criança chamávamos as “garrafinhas”, separando as sementes. Aquela massa de “garrafinhas” encheu devagar uma vasilha. Passada hora e meia, o resultado tinha sido alguns centímetros de massa. Outros apanhavam as cascas e com uma pequena colher ou uma faquinha curva na ponta, tiravam a massa branca junto à casca que pode amargar a geleia. 
Todos se envolvem, conversam, perguntam por que fomos nos meter nisso? Depois riem, relaxados. As cascas são lavadas sete vezes, cozidas, cortadas em tiras e as tiras, por sua vez, cortadas em pedaços milimétricos, que irão para os tachos de cobre, misturados à massa da polpa e ao açúcar. Vigília sobre o fogo, o fogão é de lenha, canos passam por dentro das brasas, aquecem a água que serve banheiros e cozinha. Há também energia solar. São horas em fogo lento até vermos que a geleia tomou forma, um perfume cítrico invadiu a casa, virá o resfriamento, a colocação em potes de vidros. E a espera para o café na manhã do dia seguinte. É provável que alguém assalte a geladeira.
Nesse meio tempo, as horas se passaram, todos trabalharam (confesso, fiz o mínimo, fingi muito). Levei um texto para revisar, nem abri. Naquele silêncio, naquele sol, rodeado por montanhas verdes, vendo reunidos os produtores de azeitona e azeite, que investem e arriscam em uma atividade nova, que vem crescendo no Brasil, olhei para este país e para os homens que levam as coisas para frente. Três dias valeram por anos de terapia. 
Nem por um segundo pensei naqueles sujeitos horrendos que, em Brasília, procuram nos reconduzir à pré-história. Aquele corpo de políticos corruptos, sem ética e moral, que nos desgoverna, afundado na lama dos bordéis do planalto central. Eles nada sabem nem querem saber da força desses homens do campo, imersos em tarefas de construção. Pensei nisso, esperando a geleia de mexerica esfriar. Canalhas que vivem da compra e venda de suas almas, sem nada saber dos verdadeiros brasileiros, os que sobrevivem em meio a ruínas, empreendem, criam, e mantêm este Brasil de pé. A geleia foi uma purificação. Há tanto de bom a fazer.


quinta-feira, 22 de junho de 2017

Tabacaria - Álvaro de Campos

Não sou nada. 
Nunca serei nada. 
Não posso querer ser nada. 
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. 

Janelas do meu quarto, 
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é 
(E se soubessem quem é, o que saberiam?), 
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, 
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, 
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, 
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, 
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, 
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. 

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. 
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, 
E não tivesse mais irmandade com as coisas 
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua 
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada 
De dentro da minha cabeça, 
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. 

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu. 
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo 
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, 
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. 

Falhei em tudo. 
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. 
A aprendizagem que me deram, 
Desci dela pela janela das traseiras da casa, 
Fui até ao campo com grandes propósitos. 
Mas lá encontrei só ervas e árvores, 
E quando havia gente era igual à outra. 
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar? 

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? 
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa! 
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! 
Génio? Neste momento 
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu, 
E a história não marcará, quem sabe?, nem um, 
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. 
Não, não creio em mim. 
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas! 
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? 
Não, nem em mim... 
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo 
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando? 
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas - 
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -, 
E quem sabe se realizáveis, 
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente? 
O mundo é para quem nasce para o conquistar 
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. 
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. 
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, 
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. 
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, 
Ainda que não more nela; 
Serei sempre o que não nasceu para isso; 
Serei sempre só o que tinha qualidades; 
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta 
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, 
E ouviu a voz de Deus num poço tapado. 
Crer em mim? Não, nem em nada. 
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente 
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, 
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. 
Escravos cardíacos das estrelas, 
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama; 
Mas acordámos e ele é opaco, 
Levantámo-nos e ele é alheio, 
Saímos de casa e ele é a terra inteira, 
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido. 

(Come chocolates, pequena; 
Come chocolates! 
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. 
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. 
Come, pequena suja, come! 
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! 
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho, 
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) 

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei 
A caligrafia rápida destes versos, 
Pórtico partido para o Impossível. 
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas, 
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro 
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas, 
E fico em casa sem camisa. 

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas, 
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva, 
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta, 
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida, 
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua, 
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais, 
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -, 
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire! 
Meu coração é um balde despejado. 
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco 
A mim mesmo e não encontro nada. 
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. 
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, 
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, 
Vejo os cães que também existem, 
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, 
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.) 

Vivi, estudei, amei, e até cri, 
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. 
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, 
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses 
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso); 
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo 
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente. 

Fiz de mim o que não soube, 
E o que podia fazer de mim não o fiz. 
O dominó que vesti era errado. 
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. 
Quando quis tirar a máscara, 
Estava pegada à cara. 
Quando a tirei e me vi ao espelho, 
Já tinha envelhecido. 
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. 
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário 
Como um cão tolerado pela gerência 
Por ser inofensivo 
E vou escrever esta história para provar que sou sublime. 

Essência musical dos meus versos inúteis, 
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse, 
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, 
Calcando aos pés a consciência de estar existindo, 
Como um tapete em que um bêbado tropeça 
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada. 

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. 
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada 
E com o desconforto da alma mal-entendendo. 
Ele morrerá e eu morrerei. 
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos. 
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também. 
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, 
E a língua em que foram escritos os versos. 
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. 
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente 
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, 
Sempre uma coisa defronte da outra, 
Sempre uma coisa tão inútil como a outra, 
Sempre o impossível tão estúpido como o real, 
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície, 
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra. 

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?), 
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. 
Semiergo-me enérgico, convencido, humano, 
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário. 

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los 
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. 
Sigo o fumo como uma rota própria, 
E gozo, num momento sensitivo e competente, 
A libertação de todas as especulações 
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto. 

Depois deito-me para trás na cadeira 
E continuo fumando. 
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando. 

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira 
Talvez fosse feliz.) 
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela. 

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). 
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica. 
(O dono da Tabacaria chegou à porta.) 
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. 
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo 
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu. 

Álvaro de Campos, in "Poemas" 
Heterónimo de Fernando Pessoa 

"Eu sei, mas não devia" de Marina Colasanti





Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. 

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.


Mafalda - Quino



O Trem (Uma Teoria ) - Pedro Gonzaga

O trem chega. Você caminha pela plataforma. Pessoas caminham pela plataforma. Uma havia chamado sua atenção, mas ela se perderá ao entrar no outro segmento do trem. Dias, ou semanas, ou meses, ou anos depois, vocês voltam a se cruzar na mesma estação.
Desta vez, dividirão o carro e talvez seus olhares se encontrem, mas a viagem dela não terá o mesmo destino que a sua, ela descerá antes que você possa perceba. Na próxima oportunidade, você poderá descobrir-lhe o cheiro, o modo como sorri, ela terá sentado perto, talvez você escute seu nome, enquanto a pessoa que entrou com ela lhe vota palavras de amor, indiferença ou ódio.
Virá a vez em que ela estará muito próxima, mas será você a criatura absorta em pensamentos gerados por outra criatura, ali ou distante. À espada da sorte (ou do azar), vocês dois, um dia sentarão lado a lado. E haverá um reconhecimento e quem sabe um acidente, como dois corpos postos em rota de colisão. E vocês se farão companhia.
E a natureza desamparada dos viajantes solitários será suspensa. E então haverá a leveza das conversas novas. Quem sabe suas pernas discretamente se encostem, e depois as mãos. Para além, a cabine em que vocês, isolados do mundo, flutuarão até o fim da viagem.
Nós, esses passageiros. A vida feito inúmeras baldeações. Em nosso vagão há conhecidos, amigos, as pessoas que amamos, enquanto nós também podemos estar em seus vagões, até que os caminhos se bifurquem. No meio disso, os encontros amorosos, aleatórias intersecções que, racionalizadas, teriam a feição absurda daquele conto do Cortázar em que um homem segue transições programadas no metrô a fim de encontrar a mulher de sua vida.

Não há transições programadas. Em um momento, chegamos cedo ou tarde demais à plataforma. No outro, experimentamos a simpatia de um olhar que se perderá ao desembarque. Depois, somos aqueles prontos para tentar quando o outro está fechado, depois fechados quando o outro está aberto às tentativas. Por fim, somos os que se encontram, esses que por um momento descobriram a felicidade, semelhante a um descarrilamento, esquecidos de quão curtos são sempre os destinos.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

GPS - Luis Fernando Verissimo

– Em 700 metros, vire à direita, e logo em seguida à esquerda.
Quando o homem se enganava e não seguia suas instruções, a voz não perdia a calma. Dava novas instruções para corrigir o erro, pausadamente e sem fazer comentários. E o homem nunca deixava de se admirar com aquilo: de algum lugar do espaço um satélite o seguia, e uma voz etérea – Como? Saindo de onde? – lhe dizia o que fazer, baseada na informação do satélite. E o satélite via tudo, e nunca errava. Era como um deus em órbita estacionária da Terra.
Mas um dia o homem discordou do satélite. Depois de ouvir as instruções da voz, disse:
– Não mesmo.
E ouviu a voz dizer:
– O quê?
– Esta estrada eu conheço bem, e sua direção não está certa – disse o homem, antes de se dar conta que a voz estava dialogando com ele. A voz estava dialogando com ele!
– Vai por mim – disse a voz.
E o homem, apavorado (“Devo estar ficando louco”, pensou), obedeceu, e descobriu que o satélite tinha razão. O caminho indicado era mais curto do que o que ele conhecia. E quando chegaram ao destino desejado mais cedo, pelo atalho, a voz disse:
– Viu só?
*
O homem e a voz passaram a conversar. Ficaram íntimos. Agora, a voz terminava cada instrução com um “querido”. E tornou-se confidente do homem, que lhe contava sua vida e pedia sua orientação. Era muito sozinho. Gostava de uma moça, mas ela ainda não sabia. Ele deveria declarar-se?
– Declare-se – mandou a voz.
– Será?
– Vai por mim.
Ele estava descontente no trabalho. Tinham lhe oferecido outro cargo, em que não precisaria viajar tanto. Deveria aceitar? Sim, disse a voz. Ele estava ficando estressado com tantas horas sozinho nas estradas.
Noutro dia ele declarou que sua vida era uma porcaria e ele não queria mais viver.
– Vire para a esquerda, agora! – ordenou a voz.
– Peraí. Se eu virar para a esquerda vou invadir a outra pista.
– E ser amassado por uma jamanta, certo. Não é isso que você quer?
Depois a voz do GPS mandou:
– Daqui a 200 metros, vire para a direita.
– Onde nós estamos indo?
– Um hospital psiquiátrico que eu conheço. Esta nossa conversa é obviamente uma alucinação sua. Você precisa de tratamento.
– Você acha?
– Vai por mim.

Priscila Vieira

Na parede - Martha Medeiros



Existem diversas maneiras de se conhecer uma pessoa, não só através do que ela diz, mas também através de seus gostos, atitudes, preferências, escolhas. Por exemplo, uma das maneiras de sermos traduzidos é avaliarem o que penduramos na parede. O que as suas paredes revelam sobre você? 

Lembro do quarto da minha infância. Na parede atrás da cama havia o quadro de uma menininha de tranças, com as palmas das mãos unidas, rezando ao lado do seu gatinho. Não era escolha minha, mas eu não desgostava, era uma imagem que me transmitia conforto e segurança. Aí veio a adolescência, e a menininha rezando foi trocada por um pôster do David Cassidy. Começava ali a manifestação pessoal das minhas transformações internas.

Assim que minhas filhas tiveram seus próprios quartos, permiti que usassem as paredes como preferissem. A casa é dos pais, mas o quarto é território de livre expressão, onde seu ocupante começa a criar o quebra-cabeça da sua identidade.

Circulam por suas paredes cartazes de shows, fotos de amigos, desenhos de próprio punho, cartões-postais. Aliás, cartões-postais é uma paixão familiar: no meu escritório, emoldurei dezenas deles reunidos. Nenhum com imagens de cidades, nada de paisagens convencionais – são cartões artísticos que trazem propagandas de filmes, fotos em preto e branco, estímulos visuais os mais variados. Cada um desses cartões reflete as coisas que amo: cinema, música, poesia, humor, erotismo, cotidiano. Um caleidoscópio estimulante e que me situa – olho para eles e me sinto em casa, mesmo.

Pessoas usam as paredes para pendurar calendários, relógios, fotos de família, espelhos, objetos trazidos de viagens, mandalas, telas de seus pintores preferidos, imagens ligadas ao esporte, tudo que traga substância e prazer para conduzir os dias. Ou mantém as paredes nuas, que também é uma forma de expressão – o minimalismo comunica tanto quanto. A parede é o antepassado do Facebook, só que é uma página mais íntima e acolhedora: apenas têm acesso aqueles que fazem parte do nosso universo real, off-line.

Desperdício é quando a parede é utilizada com um fim apenas decorativo, sem nenhuma sintonia com os sentimentos e com a identidade do morador. O uso das paredes de forma protocolar, burocrática, torna a casa mais triste do que alegre, por total falta de inspiração do proprietário.

Use suas paredes. Troque as cores de vez em quando. Mude os quadros de lugar. Crie os seus. Invente moda. Acabo de encomendar com o superdiretor de arte Moisés Bettim uma tela que traz Woody Allen pintado ao estilo Andy Warhol – viva a pop art. Onde pendurarei?

Sei lá: na sala, no quarto, no banheiro, na cozinha, na sacada ou possivelmente no nicho que me serve de escritório – os cartões-postais hão de gostar da companhia. E a casa, preenchida de uma atmosfera tão diversa, habitada por tantos apelos e referências, ficará ainda mais parecida comigo.







terça-feira, 20 de junho de 2017

A Tristeza de Um Palhaço - Rafael Calheiros


Ali na esquina tinha um grupo de crianças. Pulando, cantando, gritando, se divertindo. Crianças alegres. Crianças que não paravam de rir. O motivo de tantas gargalhadas era um senhor de cabelos brancos. Não. Cabelos brancos não. Cabelos azuis. Azuis, vermelhos e amarelos. As pessoas que passavam perto olhavam com ternura. Outras passavam sorrindo. Realmente, tinha uma aparência engraçada pra quem via de longe. Um senhor baixinho, gordinho. Um senhor branquelo. Mas não era um senhor qualquer. Era um senhor fantasiado. Sim, pois com cabelos azuis, vermelhos e amarelos não poderia ser alguém comum. O senhor tinha tinta borrada nas têmporas. Como se ele mesmo tivesse feito a maquiagem. Maquiagem? Sim, gente. Maquiagem. Maquiagem branca. Exagerada. Era um senhor com um semblante carregado. Não, não vamos mais chamar o senhor de senhor. Vamos chamá-lo de palhaço. Então, o palhaço tinha o semblante carregado. Mas uma maquiagem que radiava alegria. Um grande nariz com uma grande boca sempre sorrindo. Com grandes olhos e cheio de truques. Truques que as crianças adoravam.
Mas o que ninguém sabia era quem era o senhor. Ah, mas eu disse que ia chamá-lo de palhaço. Tá. Mas o que ninguém sabia era quem era o palhaço. Mas eu sei quem era o palhaço. Era um órfão. Não um órfão sem pai nem mãe. Sem lenço sem documento. Sem eira nem beira, nem ramo de figueira. Mas um órfão de sentimentos. De bons sentimentos. Quando jovem arrancaram-lhe toda sua alegria. Toda sua esperança e fé. Todo seu amor. Arrancaram-lhe também sua inocência. No começo o ódio foi seu aliado. Sua força para viver. Mas depois a raiva passou. Restou-lhe apenas a conformidade. A indiferença. Não se faz necessário dizer como o jovem-senhor-palhaço perdeu tudo na sua vida. É uma estória muito triste. Tão triste e tão longa que não caberia nesse espaço. E ao ler toda essa estória, não restaria uma só pessoa nesse mundo que não se acabasse em lágrimas.
Voltemos ao presente. Lá estava o palhaço. Fazendo as crianças sorrirem. Fazendo os adultos sorrirem. Lá estava o palhaço. Incapaz de sorrir verdadeiramente. Incapaz de sonhar. Lá estava o palhaço pulando e cantando. Sorrindo e fazendo os outros sorrirem. Como é triste aquele palhaço. Como é engraçado ver as pessoas não notarem a tristeza daquele palhaço. Não. Não é engraçado. É triste. Triste desse palhaço que precisa se maquiar para sorrir.

A imprecisão da frase feita - Marcelo Rubens Paiva

A vida é uma só, não é assim que se diz?

O cara era completamente obcecado por ela, desde o primeiro dia em que a viu. Mas não pôde avançar. Tem limites. Sempre teve. Desde quando Moisés mandou o recado: "Não cobiçarás a mulher do próximo". Se entre dez mandamentos, apenas dez, cobiçar a mulher alheia estava entre eles, com a mesma relevância de "não matarás" e "não furtarás", porque é um princípio que deve ser seguido à risca. Talvez, um dos pilares da civilização. Deus não queria baderna. Foi sucinto, porque Deus não tinha tempo a perder. E soube como ninguém usar aquilo que criou em primeiro, o verbo.

Disse ele: "Não desejarás a casa do próximo, nem seu campo, seu servo, nem a sua serva, seu boi, jumento, nem coisa alguma do próximo". Coisa alguma, Ele disse. O jumento do próximo, poucos cobiçam. O boi e o servo, também. Só que um cara cobiçou, cobiça e cobiçará a mulher do melhor amigo. Por sabe-se lá quanto tempo.

Ambos estavam juntos quando a viram pela primeira vez. Numa festa. Mas foi o melhor amigo quem tomou a iniciativa. Viram-na dançando, sozinha, assim que entraram. Era a perfeição, vestia a perfeição, se movimentava com perfeição e atraía olhares também das próximas.

Os dois a notaram de imediato. Mas, como dois predadores, um não falou para o outro da joia rara que dançava sozinha no meio da pista. Um foi pegar bebida, o outro cumprimentou amigos. Ambos de soslaio, observavam a movimentação da presa. Só que o amigo foi segundos mais rápido. Ao final, já estava com ela num canto. Depois, já estavam se pegando. Logo, passaram a ser vistos juntos em outras festas. Dançaram. Beberam. Namoraram. Logo, marcaram o casamento. O outro? Inveja. Poderia ter sido ele. Mas foi o mais rápido, ambicioso e desprendido que ficou com o grande prêmio.

Sabe que ela gostava do amigo do namorado. Gostava do amigo atrapalhado com as mulheres. Gostava do inconsequente solteirão, neurótico, sempre apaixonado pelas mulheres erradas, envolvido em tramas nitidamente falidas. E ainda reclamava que o namorado era muito correto. Faltava nele a imprevisibilidade das tardes enroladas.

Os três saíam juntos. Parecia que era com ele que ela tinha mais afinidade. Com o não namorado.

No casamento, quando ele deu aquele abraço na então nova esposa do melhor amigo, ela disse algo de que ele nunca se esqueceu, que surpreendeu e deu aquele arrepio na alma, que poucas vezes um homem sente, arrepio que amolece os joelhos, as convicções, e o fez repensar em todos os segundos vividos nos últimos meses.

"Se não fosse ele, eu me casava com você", ela disse, beijando com a maciez de uma noiva encantada, pendurada no pescoço dele, bêbada, enroscando seu véu na gravata dele, seu colar no relógio dele. Ele sentiu o calor da carne dela, o bafo doce e quente que entorpeceu como uma anestesia que não pega e alucina.

O fotógrafo contratado fotografou-os nesse instante. E ela, dias depois, mandou para ele exatamente "a" foto. Em que ela parece debruçada para não cair, enroscada, com os olhos de uma mulher absolutamente apaixonada, como se entregue aos braços do grande amor. Na verdade, aos do melhor amigo do novo marido, depois de dizer que poderia ter sido ele, não o outro, se, meses antes, na festa inconsequente, tivesse agido com mais determinação, não tivesse gasto minutos de indecisão. Deu a entender até que preferia ele, golpe violento que algumas mulheres, na volúvel mania de dizer o que pensam, deferem sobre a lógica masculina quase binária. Enviou a foto como uma prova da existência do livre-arbítrio. E de que o amor não é um fato consumado, algo escrito ou predeterminado, e que Deus joga dados.

O que não pode? Moisés sumarizou demais. Com a vizinha? Não pode. Com a filha do amigo, a mulher do amigo, a amiga da mulher? Não pode. Com a cunhadinha? Claro que não. Com a chefe, a subalterna, a prima, a enteada, a amiga de infância... Não pode? Limites impostos conseguem se sobressair sobre sentimentos descontrolados? A humanidade é a síntese da luta entre razão e emoção. E dá certo porque quase sempre a primeira ganha por nocaute.

Anos depois, ele sentiu um movimento diferente. "Meu amor", "meu querido", "lindo", passaram a fazer parte das mensagens trocadas. Cifradas. "Muitos beijos", "mil beijos", "beijão", também foram incluídos. Códigos. Vamos sair um dia, vamos tomar um café, vamos passear, papear, ao teatro, ao cinema, ela sugeria, preciso papear, desabafar, preciso falar, indicava, preciso de colo, atenção, suprimir uma estranha carência que nasceu como erva daninha. "Penso em você todos os dias", ela enfim escreveu numa mensagem bombástica.

Ele ligou, ela não atendeu. Devia estar com ele ao lado. Ela ligou, ele não atendeu. Estava ocupado. O desencontro durou semanas. Até um dia, sim, conseguiram se falar. A voz dela, aflita. Pressa. Urgência. Está difícil, ela disse do nada. Tenho só 30 anos. Às vezes, parecemos dois amigos. Dois irmãos. Está difícil, ela repetia. Ele vai viajar. Vamos sair. Precisamos sair. Preciso sair. Estou carente demais.

E ele só pensa numa coisa. Tem limites? Ele a deseja demais. Quer levá-la para uma suíte presidencial. Quer despi-la. Tê-la. Quer vê-la nua andando pelo quarto. Quer vê-la nua sobre ele. Quer beijar todos os pedaços, os cantos, sentir todos os cheiros, a textura de cada parte. Quer ouvi-la suspirar, rir, gozar. Quer ver os olhos dela embaçar, revirar. Quer vê-la tímida, abusada, entregue, retraída, culpada, muito culpada, totalmente culpada e viva! Quer sofrer com ela. Quer ter dúvidas. Quer ser sufocado por descrenças, indecisões e tormentos. Quer se sentir vivo à beira de um abismo. Numa corda bamba. Com uma corda no pescoço. Acordado.

Se comecei esse texto com uma frase feita, termino com outra. Querer não é poder. Não é?

Talvez elas sirvam para reprimir ambições impossíveis. Falo das frases feitas. Deus não nasceu ontem. É esperto. Imagina a bagunça, se a cobiça virasse fato.

Se bem que acabei de me lembrar de outra frase feita. Toda a regra tem... Você sabe.

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...